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Aula 08 (27-08) - Texto Complementar 01 DEMANT [Pt. 1]

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f 3. O Is.lã: Origens e Expansão . . 52 ( TElYlA . P· t O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004. p. 23- . 
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O ISLA NO TEMPO 
BIZÂNCIO, PÉRSIA E ARÁBIA: O PANORAMA 
GEOPOLÍTICO DOS SÉCULOS VI-VII 
Ao conrnírio de outras imporrnmcs religiões, o surg,imcnto do is];, tem dat:t e loc11 
dernarc:idos: começo do século VIJ, na península Árabe. l:. hem verdade que n lugar j~i 
tinha sido palco, há séculos, da revolução monoreísu - a Fé cm um deus único , 
introdmida pelo judaísmo e pelo cristianismo - o que r:i.lvcz tcnh:i Facilitado a reccpç:w 
da nova crença. Contudo, é impossível compreender 3 f":tnrásti ca exp:rnsão do is lã sem 
esrudar as condições hisróricas concret:is cm que Maomé e seu;; seguidores :icuar:rnl. 
A Arábia vivia então à m:irgem das duas superporéncias do Oriente Médio cb 
época: a Pérs ia e o Império Bi1.1n rino. Este, cuja capiral era a foino>a ConsranLinopb 
(hoje Istambul), surgira com a divisão do Império Ro111;;no em dois , o do Ocidente e 
o do Orienre, na década de 330 d.C. Embora a csrrurura bizantin:i absolmisra n,in 
conseguisse manter o alto nível de organização social e c:confi111ica original dos roma-
nos, esse império se mostrou exrraordinariamrnre duradouro , sob<evivcndo m;iis de 
mil anos, aré a conquisra turca, cm 1453. Em 395, o crisrianismo to!·n:ira-se a religião 
oficial, cornplerando assim sua lcnra transformação de í'é comesrarúria das cbs~es 
inferio res, de escravos e perseguidos, numa Igreja poderosa, cuja aurorid:idc estava 
sobreposta à do Esrado . Na verdade, o Império !3i7~>nrino nunct conheceu ;.i csuira 
separação entre Igreja e Escada, tão característica da crisrandade ocidental. As duas 
dimensões, a espiritual e a temporal, aglut inav:un-se no ch;1mado "ccsaropctpi smo", 
fenômeno que inclusive iria servir de modelo para :i sobreposiç:lo emrc rcligifo e 
política no islã. 
Como rcsulrado, disputas religiosas transformavam-se automatic21rn:ntc em con-
fliros políricos. Com efeito , a fé crisrã se viu à época c11,·olvida cm ásperas dispwas, 
cnrre elas a discussão sobre a própria narn reza de Crisw - s<:ria )<:sus um ~n divino <Jll 
um ser hum;rno' Pode parecer diííci l p:tra nús, :uualmcmc, compr(·cnder o alca nce e 
a imensidade de uma discussão desse ripo. mas só após drios concíl ios <:cumé11 ic0s 
ficou dcterm in:idJ a nJ.rnrcz:t du al elo Filho de D ('llS. :i um só trn1po divi11a e hun 1a-
11a, doutrina ~ceita aré hoje nas lgrejas Onud0x:1 ~ Catól ic:i. 
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24 1 O mundo muçulmano 
Essa visão oficial ganharia força na.~ regiões cemrais do .império, parciculanncmc 
na Ana[ólia e nos Bálc..'is. Encre[anto, no Oriente Médio, os monofis isw.~ - que acredi-
ravam apenas na·nacurez.a divina de Jc.1us - arrebanhavam adeptos e começaram a cha-
mar a atenç.'lo p<tra si. Considerados hereges, logo se viram rra.nsformados em alvo da 
incolerincia imperial. Quando o islã, vindo do deserto árabe, surgiu em cçna no cha-
mado Cresceme Fértil - região em forma de meia-lua, situada entre a costa leste do 
Mediterrâneo e o golfo Pérsico - aproveitou-se exatamente da frustração e da insatisfa-
ção daqueles perseguidos, etnicamente mais próximos dos árabes do que dos biz~rntinos. 
Além dos problemas e divergências internas, Biz.1.ncio teve de enfrentar muitos ini-
migos externos e, com isso, sofreu reduções periódicas e significativas de seu território. 
As ameaças vieram, em geral, do Oriente: invasões de nômades da Á.1ia central e inúme-
ros confrontos co m os persas exauriram milit:umcntc os bizaminos. O lmrério Persa, 
herdeiro da velha civili7.açfo do z.o roasrrismo - amigo sistema religioso-filosófico que 
teve Zararustr;i (Zoroascro ou Zoroasrcr) como seu profeta-Fundador mícico, no século 
VT a.C-, consticuíra o único Estado à altura do Império Romano edo l mpério lfo.ancino . 
As guerras intermináveis inviabilizaram a Rota da Seda, ei.-.;o comercial das carava-
nas que curegavam seda e outros produtos de luxo oriundos da China, através da 
Pérsia, para o mundo rnediterrineo conrrulado por Constantinopla. Assim, os comer-
ciantes foram forçados a explorar caminhos alternativos para o trânsito de suas merca-
dorias. Enrre as novas rocas, esrabclcccu-se a ligação da Pérsia ao Mar Yc:rmelho, e daí, 
aos porcos da Síria, atravessando o Hijaz., na Adbia seremrional. O comércio de trânsi-
to internacional beneficiou essa região semi-selvagem, em particular a cidade. de Meca. 
tradicional cemro de peregrinação graças i1 presença de uma profusão de deidades em 
torno de uma estranha pedra negra - um meteorito de 30 cenrímetros de diâmet ro, 
reverenciado como sagrado. junw ao qu<li mais tarde se ergueria uma construção em 
forma de cubo, a Caaba, conside1·ada pelos muçulmanos a C;L<;a de Dcus . 
A revelação islâmico. 
M<J.omé é, em português, o nome de Muhammad (570-6:12 d.C.). o profe(a fun-
dador do islã. Ele nasceu na época que muçulmanos de gerações posrcriorcs denomi-
narão d e j11hifiy]1ah - o período de ignorância e cegueira antes da revelação . Árabes, a 
esse ponro, sign ifi c1va111 os h:tbirames da Península Árabe falan rc:s da lín gua :k1he, do 
ramo meridional da família sernítica.1 Nem rodos os hahicanLc:s no clima sevno do 
Jcscno da Arábi;i cr:tm beduínos, ou s<:ja. nômades e paswrcs que cu id;1va111 ele rcb;1-
nhos de ovelhas, cabras e camelos, o u que rra·Liam em caravanas o comércio de longa 
disráncia. Nos o:ísis, predominava a agriculrura palm:ícea e ::t península tinh a ra111-
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O islã no Jempo 1 25 
bém pequenos centros urbanos. No lêmen, úea meridional chamada de "Arábia fr -
liz" por ser mais chuvosa e fértil, havia mesmo reinos e civiliz.açõcs avançadas e laços 
históricos com Estados africanos. Na era de M:tomé, os ;irabes do Hijaz. haviam aca-
.bado de sair de séculos de declínio comercial, processo que estimulou correntes de 
nômades, e Mec1 retornara sua posiç.ão predominante. 
O escilo de vida beduíno valori-1.ava acima de tudo a liberdade de movimento, a 
honra (ligada cm particular ao controle da sexualidade feminitn) e a solidariedade 
para com os membros do cl:i; valores que d.: resto permeavam toda •l sociedad::: 
:irabe. A organizJ.çlo social era tribal: a linhagem d<: uma pessoa, seu parentesco, 
superava quaisquer outras lealdades. Corno conseqüência, a cul tur·:l oral dc.1sc povn 
enfoti1.ava uma poesia qu e glorificava o próprio clã . A maioria dos bcduinos cu 
robre e assim se faziam f"rcqüen[es as brigas pelos escassos recursos dispo níveis -
animais e água, por exemplo-, o que provocava ciclos de vinganç<L A populaç:io, 
em geral, era polirdsta, ainda que tribos judaicas l' cristãs pudessem sei enconrr,1-
das ao norte da península, nas regiões mai s próx im as à Síria e 3. Palestina. O isl5. 
pretendia, e parcialmente conseguiu, superar tais rradiçôes; mas a ética beduína 
n;to desapareceria. Com as conquistas árJ.bes sob a bandeira verde do islã, ela n;; 
verdade disseminou-se por todo o Oriente Médio. 
Maomé pertenceu a um ramo menor do clã dos Qumysh (coraixitas), um dns 
mais poderosos de Meca. Foi cr i.ido como mercador e ..:asou-se ~os 25 anos com uma 
rica viúva, bem mais velha que ele. chamada Khadija. Supõe-se que, n;t' suas viagens 
de negócios , Maomé [eria enrrado em cu1Halo e sido influenciado por :\r;1bes judaicos 
e cristãos. Aos quarenra ;111os, teria com eçado a receber visões e ouvi r vozes , que 
acreditou serem de origem divina: o arcanjo Gabriel (Jibril, cm árabe) ap;trec,:ra para 
lhe revelar a p:1lavra de Dc:us, m;tndando-o rc:citar os seguintes versos: 
U: cm nome de teu Senhor que tudo criou; 
Criou o homen1 de tltn co:ígulo Je s:rngue. 
Lê 4uc [Cll Senhor 2 generoso, 
Que ensinou ouso do dlamo. 
Ensinou ao homem o que este 11'10 sabia. 
Essas são as mais amigas li nhas do Alcorã o .-' Maum(· reri;1 se assus tado co m ;1 
visão , mas, e nco rajado pda csrosa , perseverou . Conti111 1ari a a rc:cchcr rL·vc b çôes. q u t 
talavam d e um d eus único e un iputcn u.:. diante de qurn1 cada sc: 1· humano ~ cha111adu 
a se s11hmnn e vc-nc: r:1r: a 11ahvra is/11111 (isl~. e rn punusuc'.·s) sisni ll ( :t o:;Ham e rH L' 
submissão. 
26 1 O mundo muçulmano 
Ao acredirnr rer sido escolhido por Deus como veículo de sua mensagem, Maomé 
,p:lSSOU a assumir o papel de profe~a. As revelações teriam conrinuado duranre ' sua · 
vida inteira . No início , as mensagens exortavam-no a pregar e a converter seus 
comparriotas; em seguid a, passaram a gud-lo como o organiza'dor de uma comuni-
dade de crenres . Comudo, o Alcorão (recitação), compilação de rodas as revelações 
dadas a Maomé, só receberia sua versão definitiva trinta anos após sua morte. Épo-
ca em que a expansão vertiginosa da nova religião - e as dissidências que já se 
desenhavam no seu seio - p;issou a exigir a redação de um rexro consensual (hoje 
todos os muçulmanos aceitam essencialmente a mesma versão da Alcoráo, apesar 
das divergências na sua interpretaç.ão). 
Em princípio, Maomé conseguiu converter à nova fé ;i esposa e alguns ~unigos . Seu 
primeiro núcleo de ouvintes foi mínimo, mas o suficiente para irritar a dite comercia.i 
de Meca, cuja renda do turismo religiosa foi ameaçada pela insistência de Maomé cm 
destruir as imagens dos deuses politeístas. A repressão contra essa pequena e primeira 
comunidade muçulmana o levou a fi.igir com seus seguidores, no ano de 622, para 
outra cidade, mais aberra !:is suas demandas: latreb, desde então nomeada al-Medina (a 
Cidade), siruada a 300 quilômetros ao none de Meca. Essa fuga é conhecida como a 
hi7'm (hécira ou migração) e marci o início do calendário muçulmano, 
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Em Medina, lvbomé ainda [eve de enfrentar forre oposição, que resulcou em 
al"umas !mas ferozes. Porém , com o tempo, os seguidores de Maomé, os muslimin 
" (submetidos, origem da palavra muçulmanos) impuseram sua superioridade rnilirar. 
() Profeta pôde enrão reorgani7.ar Medina como a primeira comunidade a viver sob 
as leis muçulmanas, D e fato, seria o primeiro Estado muçulmano, ainda que peque-
no. Os derrorados foram expulsos, exterminados ou convenidos, enquanto os novos 
fi,:;, <: ... ü1"!1promcter;1m :i rca\á.ar uma guerra de expansão. do islã. Desse modo, a 
maioria das cribos foi devidamente imegrada à cu111unidadc muçulmana, ainda du-
rante a vida do Profeta, que insistiu e111 substituir as [radicionais solidariedades tribais 
por religiosas. 
Assim, Maomé transformou-se, de pregador desprezado, em líder polícico e rnili-
[J.r. Seu poder crescente levou um número cada vez maio[ de tribos a se al iar a ele e a 
acéicar a nova fé . Logo os muçulmanos derrotaram os coraixitas de Meca, que abri-
rJm as porcas da cidade para o filho rejeirado. Maomé limpou a Caaba de rodas as 
deidades pagãs, mas não ::ifastou a posição cenrral de sua cidade na[al (outorgando 
inclusive altas posiçôes :.1 rcc~111-convcrcidos da cli[e coraixita, o que desconcerwu 
:i.lguns seguidores veLernnos), Pouco antes de morrer, o Profeta ainda fez uma pcr·cgri-
nação a Meca, luga r doravamc dedicado ao Deus único. Quando da morte de MJomé, 
o Hij:i.z e a maior rane da Arabi:i cemral já esravam em mãos muçulmanas, 
O islã nn Jempo 1 27 
O que é o islã? 
Superficialmen[e, o islã parece ser uma religião simples, com dogmas claros, obri-
gações e: proibições. Os deveres do fiel se resumem aos cinco pilares do islã: 
l. Sh,dwda ou testemunho - É a confissão que eferna a conversão. O crente afirma 
a unidade do Deus' onipotente e aceira Maomé, numa fórmula que ele doravante repe-
tirá inúmeras vez.es: "Não há outro Deus e Maomé é seu Profeta" . De forma ainda mais 
incisiva do que no judaísmo e no cristianismo, o islã enfatiza a insuperável distância 
cmre o Criador e a criatura, e Sua absoluta unicidade: o politeísmo (shirk, isto é, assu-
mir uma "companhia" igual a Ele) constitui a..;;sim o maior pecado. Da.í a severid01dc 
comr:i a veneração de espíritos, santos e imagens, além de uma incompreensão diamc 
do conceito de Trindade (o islã aceita, enuetanrn , a existência de anjos,jinm e dcmêin i-
os). Deus é c[erno, inato, onisciente, onipresente. Os pensamemos mais secretos do 
co ração Lhe são abertos. Em ral visão, a função do homem é, antes de mais nada, 
entregar-se e servir a Deus. Deus é incomensurável, enquanto até os melhores homens, 
cal como Maomé, são ainda seres morrais e Lhe devem obediência absoluta, Após a 
mone, finalmente chegarão o fim do mundo e o dia do julgamento, quando Deus 
aceirnd. os bons em seu paraíso; enquamo os maus serão condenados ao inferno, 
2. Sai11r - É a t"C?-1. que se faz cinco vezes por dia. Os muçulmanos são chamados 
par:~ a reciraç.ão pelo muczzin , tradicionalmenre do minarete (manmn, a torre da mes-
quita). Atualn.;ente, uma gravaç.'io substirui muitas vezes o chamado ao vivo. É uma 
vener2ção a Deus e não um pedido para benefícios. A submissão (rcpresemada literal-
mente, com a prostração) é incondicional - quaisquer vanragens que o crente receba 
derivam da graça divina e não de um contrato com ela. Ainda que a sa!At seja possível 
cm qualquer lugar, el;i se fa7. preferivelmeme na coletivid~1de dos muçulmanos. Uma 
vez por semam., na scxra-feira, a comunidade se reúne na mesquita para a oraç.'ío comun:d. 
3. 7.akat ou esmola - Corresponde à tzcdakd judaica ou ao dízimo cristão, Todos 
enm:gam uma parcela da renda para fins sociais: assistência aos pobres, rereições 
comunais erc f um símbolo da solidariedade mútua <los fiéis qu e constiruem a um ma 
(11rnmah), a coletividade islâmica - quase uma n;iç.'fo não-rerricorial. 
4. Ramru:Úm (ramadã) - É o mês do jejum, entendido como purificação e ascese 
para Deus. Durame o mês imeiro , que comemora o recebimento do Alcorão, os fiéis 
se abstêm, desde o nascer a[é o pôr do sol, de relações sexuais, comida e hebida, 
inclusive água - rarefo árdua nas regiões de clima quen[e, o nde se si [uam as moradias 
da maiori; dos muçulmanos, parricularmeme quando o ramadá ocorre no verão.'; 
Co n rudo , é ra.mbém u 111 período de alegria, \'Ísi tas familiares e con fraterni7.açõcs, que 
oco rrem desde o anoirecer e continuam madrugada :Jdemro. 
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28 1 O mundo muçlllmono 
5: H1~ij- É a peregrinação a Meca e seus santu:írios, que simho!i?.1.m a supremacia 
divin:i. É uma obrigação que deve ser cumprida ao menos uma vc7. na vida pelo muçul-
mano saud3vel e que disponha dos meios necessários para tal. Do mesmo modo que 
Jesus, Maomé se viu inicialmente como reformador do judaísmo e adotou Jerusalém 
como cidade sagrada, local que nomia (qiblA) a re1.a e é destino de peregrin~çáo. Rejei-
tado pelos próprios judeus, porém, Maomé a subsrirniLl por Meca. Na ldade Médi:i, o 
hfljj era um esforço difícil, que implicava uma perigosa viagem; ai nda assim, milhare., 
conseguiram fazê-lo, vindos de rodas as panes do Dt1r al-ls/11112, a "Casa do islã", ou scj:l, 
do mundo muçulmano inreiro - do [rã até a Espanha, da Nigéria até a lndonési :i. O 
encontro e a experiência espiritual compartilhada constimíram fatores cruciais para a 
uniformi7~1ção e a manutenção da unidade religiosa. A coloni1.ação da Ásia e Áfric1 nos 
séculos XIX-XX trouxe avanços nos meios de transporte que p·~rmitiram urna expansão 
espantosa da peregrinação: nos anos l 920 ela chegou a 50.000 hajjis por ano. 1 Nas rn n-
dições físicas atuais, o h11jj pode reu11ir acé dois milhões de peregrinos, tendo Funda-
memal importância política e econômica para a Arábia Saudit:i, atual detenw1·a das 
cidades sagradas de Meca e Medina . .Jerusalém, aliás , mamém sua posição de terceira 
cidade sagrada do Islã e, ainda que seja mencion:ida no Alcorãoapenas uma va. ela é 
associada 3. visão noturna do Profeta na sua visita ao Paraíso. 
O islã e a sua relação com o judaísmo e o Gistianismo 
É notável a semelhança das duas revoluções monoteím:.s anteriores, o judaísmo e o 
cristianismo, com a crença e o rimai básicos do islã que, al!.fa, se considera a cominuaçãn 
e o aperfeiço~,:neruo daquelas. Maomé se integra assim numa extensa linlugem de pro-
fet,L, enviados por Deus ao homen~. Na verdade, ele é ·:isr.o como o 1'.lltimo deles, o "selo" 
dos profetas. O islã, em ouuas palavras, se considcr~l o clímax de uma longa história de 
diálogos ernre o Criador e a humanidade, onde Deus repctidameme chama o homem a 
seu autêmico des tino, apesar deste repetidamente desviar-se de seu caminho. 
Para os rnuçulm,mos, Deus '\iesce'' ao homem , pois o falível ser humano nun ca po-
deria se elevar e chegar a OetL' por seus próprios esforços (pelo menos na versão mais ra-
dical do islã). O islã, portamo, implica ao mesmo tempo numa cominuidade e numa 
rupmra. A conrinuidade reAete-se na exigência de ttm compun~unc:nro ético do. ser hu-
mano. Assim, a moral islâmica não esd longe da moral judaico-crisl:i. J:í a ruprn ra reíletc:-
se na imposição do islã aos politeístas, que tinham de escolher entre a cunvt:rsão ou a morte. 
Contudo, o amagonismo entre "nús" e "eles" é tão arraigado em nossos dias que 
nem sempre se notJ o fato de o islã pertencer 3 mesma família de religiões J. que pcrrcn-
cem o judaísmo eu cristianismo. Todas compartilham cerras crenças cemrais, como o 
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30 1 O mundo muçulmano 
monmeísmo, além de possuírem uma genealogia comum: O islã, no emanto, _é o caçula 
das [rês. Para 'êh:srocaf [amo essa ligação do islã com seus predecessores quanrn sua_or\: ·:.:.r· ,.,, 
ginalidade, é _útil fazer aqui um pequeno atalho histórico, que esclarecerá as linhas ma-
trizes dessa "revolução mono[eísrn'', em cuja tradição Maomé se coloca. 
Jud<tÍsmo: a primeira revolução monoteísta 
O mundo amigo, polireím., era povoado por uma multidão de deuses e deusas, 
alguns representando forças naturais, outros se manifestando na forma de animais ou 
de seres basranrc semelhantes aos homens . Além da finirude da viàa, a pri ~1c ipal dife-
rença entre morrais e imortais consistia no poder maior destes últimos. Os deuses não 
eram seres melhores do que os homens, eram simplesmente mais fortes. Eles n:io 
forneciam aos manais um sentido à vida ou mesmo um bom exemplo com seu com-
portamenrn que, como os mitos narravam, revelava-se muitas vezes egoísta e bi?~1rro. 
A relação com esse pameão politeísta era, portanto, utilitarista: os homens tentavam 
agradar e até manipular os deuses, por meio dos sacrifícios e da magia. 
A "revolução monoteísta" teve sua origem cm Israel. A Terra de Israel, ou Palestina, 
estava situada na margem oriental do Mediterrâneo, no cruzamento das vias comerciais 
e militares que ligavam os dois pólos do Oriente Médio antigo: Egirn e Mesopotâmia (o 
atual Iraque) . Devido a isso, a região sofreu invasões freqüentes. A migração do pastor 
Ab~aão, d~ Ur dos caldeus (uma das principais cidades no sul da Mesoporâmia, o que 
aponta para iníluências culturais babilônicas sobre os hebreus) para Canaã, fez parte desses 
movimentos regulares. No entamo, excepcionalmente, Abraao (lbrahim para os mu-
çulmanos\ orrt>climu estar em contato com um deus invisível mais fone e benevolente 
do que todos os outros. P0stcriormeme, os seguidores de Abr:i.~o. e primeiro dos p:mi-
arcas, negaram a própria ex:~~::xia das OU[ras divindades. Nascia, assim, o monoteísmo. 
A era dos patriarcas é mitológica - não há evidências textuais ou arqueológicas 
sobre ela -, mas é geralmeme localizada em torno de 1800-1700 a.C. O êxodo do 
Egiro por parte dos hebreus, de.scer1denres àos pa[riarcas, sob a liderança do profeta 
'. .~.:- ~:, ~-+. ~r:0rrido em mrno de 1300 a.C e a invasão, a conquista e o assentamen-
rn de Canaã, nas décadas seguimes. O mito formativo que constituiu o monoteísmo 
ético foi exaramente a revelação de Deus ao povo em Sinai, quando Ele reria entregue 
uma lei, os dez mandamentos, que formalizaria os padrões de conduta para os hebreus. 
Regras que, além de muito ritualismo, cbrarnente demarcavam os cerrirórios do fiem 
e do Mal. Estabelecia-se um convênio entre Deus e seu povo escolhido. 
Isso significou uma verdadeira revolução, memal e social. Jeov:í 115.0 :ipenas elimi-
nou rodos seus concorrences sobrenaturais, mas fundou também um novo tipo de 
.... , : -~;. 
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O islã no tempo 1 3 1 
relação. com os judeus: um conrrato com deveres e direitos múruos. Os jud;~s ,~e~t;i~ 
riam minuciosamente a lei sagrada e se transformariam num povo sacerdotal, volr;1c\o 
ao serviço divino. Em contrapartida, Deus lideraria e protegeria seu povo. Em vez da 
imprevisibilidade caótica de uma natureza pouco controlada, cujos acessos de raiva 
fatais eram atribuídos à arbitrariedade e à irresponsabilidade dos deuses, entrou em 
cena urna entidade onipotente, onisciente - e totalrnenre boa. Mesmo se as vicissitu-
des da vida não cessassem, doravante a responsabilidade por catástrofes individuais 
ou coletivas náo mais podia ser atribuída a um destino cego, mas ao comportamento 
do próprio homem. Doenças, fome, derrotas militares tinham que ser compreendi-
das corno punições do Céu pelo não-cumprimento por parte do homem Lle seu Lido 
do convênio. Esse compromisso do indivíduo e do grupo com uma vida vi rcuosa 
comtitui um momento-chave no desenvolvimento da consciência. · 
Diz-se que o judaísmo é, como posteriormente serão o cristianismo e o islã, uma 
:·digião de revelação: o divino, o transcendente, irrompe espontaneamente no mun-
do visível e se revela mediante mensageiros especiais, os chamados profetas; pedindo 
insistenterneme o compromisso irrevogável do homem com Deus - em geral por 
meio de uma mismra de recompensas e castigos, tais como o paraíso e o inferno. 
Outras religiões como o hinduísmo e o budismo carecem dessa "descida" do sobrena-
;ural ao mundo natural: nessas, o homem é chamado a fazer o esforço de "subir" até 
níveis de consciência superiores; se ele não o faz, nfo há divindade para puni-lo, mas 
ele condena a si mesmo aos laços da samsara, ciclo incessante de mort e e renascimento, 
que conseqi.ienternenre produz sofrimento. 
A coloniz..1ção das uibos hebraicas e suas relações conflituosas com outros povos 
nativos, coletivamente conhecidos como cananiras, conduziram :i unificação F"líri-
ca, cm aproximadamente 1025 a.C., no reinado cujo último monarca , Salomão 
(Sulciman ou Sol imão), construiu o primeiro Templo Sagrado. Um cisrna pôs fim à 
unidade, mas os dois reinos sucessores subsistiram durante algum tempo , sendo a 
Judéia o mais duradouro deles, que perdurou até a conquista pelos b<1bilônios em 
586 a.C. Na tradição judaica, aquele foi um período de profecias e de inrervenç.ão 
ativa de Deus no mundo. O islã aceita, com algumas variações menores, a m:~io r 
parte dessa história, e até hoje venera seus heróis como legítimos proferas de Deus. 
A era do exílio babilônio, entre 586-522 a.C., provocou o desejo da volra, da res-
tauração e da ab-rngação da "injustiça" que foi a destruição do remplo e da sober:rnia 
judaica. Desenvolveu-se a idéia de um Messias, um ungido de Deus gue n::aliz..-iria ess:1 
cr:rnsformação da real idade polírica. Ao contrário da sua inrerprctação posrerior mais 
cspirin::il na cristandade, :i vis:io original do messianismo nn judaísmo enfrnizava (e 
continua insistindo)no caráter humano e na aruação lerresrre do Messias. Assim , Ciro. 
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3 2 1 O mundo muçulmono 
o rei .meda que. destruiu o'"lrnpério -Babilônio e permitiu a volta dos exilados judaicos, 
Foi por algum tempo considerado como o possível Messias. Mais adiante, veremos 
como idéias messiânicas também não são ausentes no islã, em particular no xiismo. 
No período do segundo Templo, aproximadamente do século V a.C. até 70 d .C. , o 
judaísmo evoluiu para moldes bastante distintos do modelo anterior. "fi-Uvez se observe 
aqui a infiltração de idéias persas. A Pérsia estabeleceu o primeiro grande império 
multinacional da liistória e manteve uma política de tolerância religiosa para com seus 
sliditos variados. A dite persa aderiu à sua própria religião, o zoroastrismo, cuja origina-
. !idade estava na rejeição do politeísmo costumeiro, que foi substituído por um dualismo 
que interpretava a história cósmica e humana como uma luca entre Ahttm-Jvfazda, força 
da lll2. e do Bem, e seu oponente Ahrinum, o diabo da facuridão. Cada homem era 
· chamado a se alinhar com o Bem e a lutar para sua vitória final mediante um com~)or­
tamemo ético: o homem milirn, dessa Forma, junto a Deus - pensamento que impres-
sionou os judeus e, por intermédio do judaísmo, cristãos e muçulmanos. 
Um dilema dentro do judaísmo opõe o particularismo ao universalismo, o que 
iria estimular duas religiões-filhas, que remaram transcendê-lo. O contrato original 
comprometeu apenas Deus e um único povo, cuja identidade se rcafrmu por meio da 
ocupação de uma terra só. Mas, na segunda metade do primeiro milênio a.C., desen -
volvia-se uma diáspora judaica mais e mais excensa. Pensadores judaicos começaram 
a aplicar os valores <lo judaísmo a outros grupos não-judaicos: judeus entrar;im em 
contato e se d eixaram influenciar pelas idéias do helenismo, uma civili1,ação que abran-
gia o Medicerrâneo e o Oriente Médio num ideal de fraremidadc humana universal, 
baseado na supremacia da razão . Tais idéias atraíram boa parte dos judeus; porém, 
para outros, mais conservadçircs, sua assimilação constituía nad;i menos do que uma 
traição . Metodicamente, estes últimos foram erigindo um muro d.:: regrns 1·digiosas 
que separavam os judeus dos demais (regras proibindo casamenro:; miscos, certas 
comidas .. trabalho e transporte nos dias sagrados entre muitas outras) e que fociiita-
riam sua função de povo sacerdotal, mas dificultariam a convivência com os "pagãos" 
- sociabilidade que conduziria (pelo menos era o que os con.,ervadores temiam) à 
apostasia, ou seja, ao abandono da fé original. A política judaica se fragmentou assim 
em seitas de tendências opostas. 
lsrael vivia sob domínio de vári;L'i potências externas, com exceç:io de: per:íodos 
relativam ente curtos de independência ou autonomia. Quando essa aurnnomia se 
esvaneceu e os ocupantes romanos fo.c:rnm quesüo de assimilar os judeus à cullllra 
imperi al, a cena estava proma para <LS grandes revoltas dos sécu los 1 e 11 d.C. Essas 
combinaram elemrnrns de p:miotismo , de rcst:iur:iç:i.o religiosa Fundamem:ilisu e de 
esperanças messiânic1s. O resulcado foi catastrófico. Sua derrota culminou na dcs-
O islã no lemp.:i 1 33 
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34 1 O muncio muçulmono 
truição do Templo, na abolição da soberania e, no século II, num genocídio que pôs 
fim à presença física de judeus na Jud~ia, logo._rebarizada de Palestina. Uma comuni-
dade judaica sobreviveu na Galiléia até pelo menos o século VIJ, mas se rornou mino-
ria em meio a uma maioria cristã. 
Cristianismo - a segunda revoluç.'ío monoteísta 
O cristianismo é o segundo elo da revolução monoteísta e iníluenciaria o islã não 
menos do que o judaísmo. O ano 33 d.C. é data tradicional da crucificação de Jesus 
(Jssa) de Nazaré, reformado r radical judeu, pelo exército de ocupaç..'ío romana e com a 
con ivência da elite religiosa em Jerusalém. Para seus seguidores, Jesus foi consi<lcrado o 
Messias, o ungido (crista, em grego) , e posteriormente, na teologia de Paulo de Tarso , 
uma das trés expressões da própria divindade. Era urna visão que conduziu Catalmenre 
à ruptura com o judaísmo oficial. Mas, graças ao zelo dos apóstolos, que aproveitaram 
:t cxísi:ência da diáspora judaica e de uma eficiente rede de comunic.1.çóes no Império 
Romano inteiro, a mensagem cristã se difundiu rapidamente. 
A grande virada ocorreu quando a Igreja cristã primitiva abandonou rituais e 
costumes judaicos, tais como a circuncisão , a comida ritualmente pura e vários tabus 
que regulam o sábado e outros momentos especificamente dedicados a Deus - regras 
que foram consideradas como um rirualismo superado pelo advento e o auro-sauifí-
cio de Crisro. Sem essas obrigações, a conversão à nova fé foi muito facilirada tam-
bém - e especialmente - para não-judeus: as primeiras igrejas fo ram em geral médio-
oriencais e as pioneiras a se cristianizar foram as regiões mais desenvolvidas do Orien-
te 1'.~-Ed.io - a Síria, o Egiro, o Cáucaso etc. Dentro de alguns séculos , o criscianismo se 
romaria a principal religião do Império Romano, apesar das perseguições. Em 330, o 
imperador Consnmino reconheceu a nov:: :-::ligião. Cinqüenta anos mais tarde, m-
das as our.ras seriam proscritas. 
O cr.isüanismo manceve do judaísmo a crença no Deus único e em Seus manda-
:·.·c11tuS éticos ao creme .. A grande inovação foi a universafo.ação dos princípios do 
monu ,cL;,o ético. 1'.ifesmo que mit1gada por idéias greco-romanas, a ênfase na bonda-
de e na universalidade de Deus significou uma ruptura com a ideologia clássica. A 
imromissão ativa do sobrenarural na história do mundo - por meio dos estágios da 
criação, da revelação, da salvação pelo Cristo e, no futuro, de Sua volta, do ri m do 
mundo e do juíw final - p rojetou uma vis5:-. de. história planejada, anragõnica à visiio 
politeísta de um mundo eterno, ponruado pela simples reperição da vida e da mor'le, 
que rcflnir:a ;t.> temporalidades mturJ.Ís. l'·b vis:io cíclica, :i vida nfo cinln senrido 
definido; na visão monoccísra. a hisrória rem uma direção e o homem possui um papel 
O islõ no temi:io 1 35 
co mo ajudame de Deus. Para Ele, rodos os seres humanos são iguais. P or isso, há auco-
-.-..-~ ,~ 2 .. . ~..;.,,)es que relacionam a conquisca da dignidade pessoal traz.ida pelo cristianismo :io di:clínio 
da escravidão em fins da Antiguidade e ao desenvolvimenm do feudal ismo. 
O cristianismo ainda adotou e disseminou a idéia judaica da r es ponsahilidade 
individual pela escolha entre o Bem e o Mal - embora a Igreja moderasse essa proxi-
midade com seu monopólio dos sacramenros e da sua mediação, considerada impres-
cindível, entre o crente e a Trindade. O islã reforçará o encontro não-mediado enrre 
Criador e criacura, abolindo a "grade" existente entre ambos e oferecida no criscianis-
mo por insciruições como a Igreja e o clero.1' 
Na ausência de uma figura ;nediadora entre o mundo dos homens e o divino, ral 
como Jesus Cristo no criscianismo , a própria palavra de Deus adquire imponânci:i 
ainda maior - daí o papel absolutamenre cemral do Alcorão no islã. Escrito cm árabe. 
língua sagrada, ele acé hoje não foi traduzido no uso ritual por muçulmanos: faz-se 
quesrão da sua recitação na versão original. 
Em que o islã difere do judaísmo e do cristianismo ? 
Se o islã se encaixa num movimemo monoreísta mais amplo, ele também tem n:m1-
ralmente suas caraccerísticas específicas: muito ma.is do que o cristianismo, o islã abrange 
rodas as esferas da vida. O islã é uma religião (din) , com tudo o que esce termo imp lica 
(crença, rirual, normas, consolaç.'ío etc.), ao mesmo cempo em que é uma comunidade(um ma) e um modo de viver ou tradiç.fo (mnna) que regulari1..a todos os aspectos da vida: 
o indivíduo e as etapas de seu desenvolvimento; a educação; as relações emre homens e 
mulheres; a vida familiar e comunal; o comércio e o governo, a justiça e a filosofia. 
Ou seja, rudo se concentra num sistema jurídico-religioso coral: a xaria (shari'ri 
ou caminho certo), que se edificou, com base nas fontes sagradas, nos primeiro,; 
séculos do islã, mas cujo desenvolvimemo não cessou aré hoje, reagindo a circunstân-
cias sempre novas. làl complexidade levou à emergência de uma classe prestigiosa de 
legistas-inrérprcres especializados, os ulemás (ulama). A conseqüência dessa onipresença 
da religião, que penetra rodos os desvãos da vida cotidiana, é que o islã se rornava um 
(senão "o") principal clemenro formacivo da identidade colet iva das populações 
subjugada.' a ele. Quão formarivo , exaramence, eis um ponto de discussão entre os 
especialistas cuja resposca craz repercussões na arualidade. 
A rcbriva não-diícrenciação entre religião e polít ica é também um outro reoulcado 
disso. Na comunidade de Medina, regida por Maomé, Esrado e Igreja se confundiam, 
.: c:ssa conÍusão se rr:i.nsft: riu dt:pois para u Estado-império muçulmano, im ensament e 
maior que a comunidade prim itiva dos fiéis. Após a morte do Profera, seu t<:ncn1c 011 
36 1 O mundo muçulmano 
suplente (khalifa.~ou. califa} combinava a autoridade ·militar, jLfiídica e· religiosa sobre a 
um ma. A complexidade da interpenetração religião-política se prolonga até hoje . Mes-
mo sendo um exagero afirmar que não há nenhuma diferença entre religião e polfrica, o 
islã inclui em seu bojo muito mais do que um corpo de crenças. Correspondências na 
maneira de viver criam semelhanças entre as mais distantes sociedades n\uçulmanas. 
Outra masca original do islã é a igualdade dos fiéis, talvez uma herança das uadiçõcs 
independenres beduínas. Não há no islã pecado original, nem salvação do fiel pela fé no 
sacrifício do Salvador (como na mone de Jesus, no cristianismo), nem sacerdotes com 
sacramenros imprescindíveis para o resgate da alma do crente .. O estrato dos ulem;Ís, legisr;:s 
especializados, não tem o p::ipel do clero institucionaliudo da Igreja católica: eles são apc:nas 
intérpretes, e não mediadores. Essa igualdade, contudo, logo se tornou reórict por· causa 
das sangrentas lutas in ternas que, corno veremos, itia.rn fragmem:t.r o islã. 
Finalmente, é preciso destacar o conceito ambíguo do jihad, comumente traduzid;t 
como guerra s:u1ca. Literalmente,jihr1d quer di1.er "esforço em favor de Deus". Abraçar 
o islã implicava, desde o começo e aré hoje, ta.mo par:i o indivíduo quanro para a 
comunidade. assumir um compromisso total - para reger a própria vida nos molde.~ 
prescritos por Deus, para imbuir a sociedade com a letra e o espírico da lei divina e para 
propagar a verdadeira religião no mundo imeiro. Jihad, então. pode apomar para a 
disciplina da transformação interior (o grande jihad) tanto quanm para o empenho na 
guerra de conversão dos infiéis, externa e, se necessário, violema (o pequeno ji/)l7d) . 
"Lura" ou "militância" aproximariam melh or o sentido da palavr;t. 
De faro, o islã (tanto quanto o cristianismo) sempre se considerou o único po1·ca-
dor da verdade, combinando esse exclusivismo com o impulso de dissemin<í-Ia com o 
uso da palavra e/ou da espada. S;u1gremas guerras rcligios;~s não faltaram na história 
do cristianismo; porém, o elemenro militar é ainda mais presente no isl ã, cujo Profeta 
- em vez de ser imolado como o pacífico fundador do cristianismo - funcionou 
também como líder guerreiro e expansionista de sua comunidade. Ora, o Profeta 
logo se tornou o exemplo perfeito, o iJeal a ser atingido. Continuando o modelo 
posro em prática por M;1omé, o islã, nos séculos VII e Vll[, se expandiu rapidamcme 
pelas armas. A um ma que se estabeleceu tinha, pelo menos na recria, uma mobiliz.açáo 
permanente dos muçulmanos para participar em mais conquistas em nome da fé. 
Na verdade, essa expansão não foi tão condnua nem inspirada somente por moti-
vos ideal istas. Após um período de expansão milicar, o império muçulmano se estabili-
z.ou. Embora houvessem episódios de guenas religiosas na história ulterior do islã, cm 
geral seu crc5cimenco contínuo prosseguiu de forma gradual e p:J.dfica, por meio de 
comaros pessoais , comerci:iis, culturais etc. Manteve-se intacta, todav ia, um:i visão 
geopolítica que p:utilha o mundo em duas dimensões ancagünicas: a "Casa do islã", isto 
O i51Õ no tempo 1 37 
é, onde o islã vigora, contra a "Casa da guerra", onde ele ainda não prcdomin :i,,,,E~ttr,S . .. ...... .. 
arn.bas, armistícios são possíveis, mas nunca a paz completa, até a absorção final cL~ - . 
segunda pela primeira. A idéia do pegueno jih,1d (gucrr;; de conversão) nunca morreu, 
e está preseme p<tra novas mobili1..açõe:; - ou para nova.' imerprerações. 
A expansão muçulmana 
A expansão era in erente ao islã e, em alglll11~<s décadas. levou ?t conqu ista do 
Orienrc Médio e da África do Norte, seguida peh incorpoução islâmica de oum.,; 
regiões: t~~panha, partes da Índia, da Indonésia, China, ,ÁJric.1 negra entre outr<lS. O 
isl:.i é hoje a religião em mais dpida expansão e , com cerca de 1,3 bilhão de segu ido-
res, representa aproxi m adamente 20% da hltmanidade.7 
A história do islã coincide com o Auxo e reAuxo da expansão e retrocesso do 
mundo muçulmano. Distinguimos, esqucmaticamcmc, quatro estágios. Numa pri -
meira onda, nos séculos V11 a Xl. os :í.rabcs expandiram o islã para o O riente Médio 
e a África do Norte e estabeleceram não somente o mais e:tenso Estado do mundo, 
m::is desenvolveram uma civilização origin<tl e avançada: é a t<L'e clá .. ,sica. Num segun-
do csdgio , nos séculos Xl-XlV, o islã sofreu reveses no Oriente Médio , m:is conti-
nuou sua expansão na Ásia central e (ndia: é a Idade Média muçulmana. O rei·ceiw 
estágio . do século XI/ ar·~ o século XV11[. viu a renovação do dinaml~rno numa série 
de eficientes "impérios da pólvora" muçulmanos, baseados na supremacia conferida 
por seus canhões - o otomano no O rien te Médio, o saf;{vida no !rã, os grão-muglnls 
(im pcr:1dores muçulmanos) n<l lndia encre outros - com a propagação da fé p:1ra a 
África e o sudeste asi;ítico. No século XlX e na primeira metade do século XX, perío-
do que corresponde ao quarto estágio, o rn undo muçu\m:rno caiu sob a inílui'.nci~i 
das potências européias. As tentativas recentes de dcscoloni'l.:ição - e de: reper.s~lr um 
novo equilíbrio do islã em seu confronto com a modernidade ociden tal - abrem o 
q ue provavelmenre sed uma quima época. 
OS PRIMEIROS CISMAS (632-661) 
A primeira fase da história do islã (~,i :i do ,; C:llibs orrndn:;os ou "hem-gui;1clos" 
(r11.shicl1111), assim chamados porque s<.:u reino corrc:spundcu :i uma época dt: relativa 
unidade cmre os muçulmanos. Esse período foi rL·s1cmu11k1 não só da Fone impres-
~ão provocada ~1da mensagem de lvlaomé, corno també r11 Ju s·::Onio pvlí1ico <.: rnili1;~;· 
da primeira geração de rnuçLilmanos. A consrrução er igida pL:io Profi:ra não dL:srnoro-
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36 1 O mundo muçulmano 
nou após sua morte cm 632, mas se rnameve, e em algumas décadas se rransformou 
de um Estado ainda primirivo no mais poderoso império-Jo n1Lrndci_ Esse processo, · 
no emamo, não foi fácil. 
Maomé morreu sem deixar uma clara indicação sobre quem o sucederia. Uma 
tensão se manifesrou imediatamente entre duas tendências. A priqleira, minoritária, 
preferia reservar essa honra da linhagem profética à própria família do Profeta - seu 
pretendente era Ali ibn Abi Talib, genro de Maomé, casado com sua filha Fátima. Na 
opinião da segunda tendência, porém, qualquer fiel poderia ser um candidato ade-
quado , desde que fosse consensualmente aceito pela comunidade. Esse :mtagonismo 
reria gravíssimas implic.1çóes dentrode poucas décadas. 
O consenso se reuniu sobre a figura de Abu Bakr, velho companheiro de Maomé, 
que consolidou o poder muçulmano sobr·e os árabes. Ele foi sucedido cm 634 por 
Umar ibn al-Khanab, que conquisrou va.,tas áreas fora da península, principalmcnre 
do Império Bizantino: Egirn , Síria, Palesr ina, Mesopotâmia e panes do Cáucaso caí-
ram nas mãos dos muçulmanos. Em rodos os lugares conquistados, guarnições mili-
tares árabes Foram erguidas; porém, a população local, majorirariamente crisrá, em 
geral não foi coagida a aceit::ir o islã . . Para os próprios muçlllmanos, entreranro, Umar 
introduziu regras de severidade exemplar. 
Se os bizantinos sobreviveram, ainda que abatidos, o Império Pcrs;i., por seu lado, 
não dispun ha de reservas territoriais e militares adequadas, e foi derrotado, conquis-
rado e islamizado - processo que foi completado sob o terceiro c.-Uifa, Uthman ibn 
Affan (644-656). Com a expansão e a exploração dos territórios ocupados pelo islã, 
riquezas começaram a fluir para as mãos dos dás árabes mais favorecidos. As diferen-
ças de renda se tornaram cada vez. mais marcantes e a comperiç.:io pelo controle do 
espólio se acirrou . 
Quando Ali ibn Abi Talib finalmeme a~s~;;1'iu, em 656, as divisões já eram pro-
fundas demais para que ele conseguisse impor sua autoridade, contestada por 
Urnawiyya - um prcccndcnce ao califado que pertencia aos Banu Umayya, outro 
ramo dos coraixiras. Urna guerra civil se seguiu, e Ali foi <L\sassinado em 661. Mu'awiyya 
fund ou a primeira dinasria califa!, a dos Orníadas. Como símbolo da transição da 
liderança - ainda mais ou menos colegiada enrre os muçulmanos da primeira gera-
ção, que haviam conhecido o Profeta pessoalmeme - e para exercer o poder de forma 
mais moderna e adequada a um vasrn império, Mu'awiyya se mudou para Damasco, 
capital da nova ~)orência mundial. 
O derramamento de sangue desmanchou a ilusão de unid<Jde rnrre os muçulma-
nos eº' chuL·uu prorundamcn[t. lniciou-sc cmão um :i. nova leiturJ d::i époc::i do Pro-
Fera e de seus sucessores imediaras, idealizada como e1·a de religiosidade, proximidade 
;:i~--Priiicipais Divisões do Isli 
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40 1 O mundo muçulmano 
a Deus e, portamo, de su~essos_ t.a,i:it_o espi~ituais quanto muqd,;rnçis: Após a fim11 0\1 
guerra civil, a maioria dos árabes aceitou a pacificação sob Mu'awiyya. Hassan, filho 
mais velho e sucessor de Ali, abandonou a pretensão pela liderança de seu povo em 
troca de uma aposentadoria tranqüila. Contudo, terminou assassinado, cm 669 . Ali 
teve seguido res leais, para quem Mu'awiyya era um usurpador: eles f~rmaram o par-
tido ou facção de Ali, a xia (shi'a), de onde surgem os xiitas, ramo do islã que insiste 
na legalidade da sucessão hereditária originaL Para tanm, depositavam stia esperança 
no segundo filho de Al i, Hussein. 
Em GSO, qu:mdo Mu':iwiyya foi sucedido por seu filho Yazid. consagrandti assim 
um novo princíp io hen:dicário e uma nova dinastia, uma rebelião dos xiir;L> eclodiu sob 
a liderança de Hussein. Entrecanco, :i minoria xiita foi facilmente esmag;\da em Karbala, 
no Iraque, e Hussein, decapitado no dia 10 (aslmra) do mês Muharmm. Desse modo . 
consolidou-se a supremacia da ala dos omíadas, que se tornaram seguidores da "norma-
lidade" e da tradição (su.nna). Doravante o sunismo se rornou a ortodoxia conform!sca 
- o establishment. Não obstanre, o partido derrocado, a xia, não foi erradicado, m:is se 
desenvolveu em seita opositora, com suas próprias tradições - glorificando o sacrifício 
(supostamente volundrio) de Hussein, conrestando perenemc:nre a legitimidade dos 
ec-tlifas e conspirando em vão para a restauração do descendcme de Ali , o lrnã. ~ Enquan-
to tradição contc.~tarória, o xiismo aG1bou se desenvolvendo como ideologia milenarista, 
que enfati1..;•.va valores de justiça social e de martírio. 
O IMPÉRiO OMÍADA ÁRABE (661-7 50) 
De 661 até 750 , a dinastia omíada governou um império que se expandia da 
Espanha até o rio fndo . Para o ai Ilda jovem mundo muçulmano, esse foi um período 
de transição de uma comunidade religiosa para um Estado cenrrali1.ado. Nessa estru-
tura multiérnica, o monopólio do poder permanecia em mãos árabes, e foi exercido 
por guarn içõeo, inicialmente fronreiriç.1.s. Quando mercadores não-árabes se assenta-
ram ao lado dessas guarnições, esras gradualmeme se transformaram em cidades: é a 
origem de Fusrar-Cairo, K;lirouan , Bagdá, Basra e o u tra.~. Essa casca dominante, em 
princípio, só tinha o controle militar, mas logo adquiriu terras e passou a explorar o 
crabalho de uma popul:ição nativa, majoritariamente crisr:í ou zoroas[[ist:i.. 
Gradativamente , a camada :í rabe se inregrou nos países de colonizaçáo e sua língua se: 
expandiu por meio da administração e da religião. Os laços dos árabes com as elices 
locais ~ariv:15 se aprofunJarnm c:nquanrn a solidariedade intedsabe se enfraqueceu: 
quando expressões de regionalismo foram reprimidas pelo califado, a submissão ao 
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42 1 O mundo muçulmano 
cemro minou a rradição peninsular igualirária, e um absolurismo califa[ se instalou, 
beneficiado pelo trauma deixado pelos cismas originais: "Melhor cem anos de rirania 
do que uma hora de anarquia". 
Isso nos leva à rebção, muiro debatida, entre o islã e outras religiões e culruras. O 
islã praricava, em princípio, uma rolerância em relação aos "Povos oo Livro'' (Ah! al-
Kirab) - outras religiões monoreísras que possuíam um livro sagrado, uma revelação 
profética amcrior: judeus, crisrãos e sabeanos9 (o conceiro foi posreriormcnrc ampli-
ado para incluir mesmo politeísmos óbvios como o hinduísmo). Nos terrircírios 
bizantinos ocupados," os cristãos constituíam inicialmente a maioria. Como vimos, 
não houve, em princípio, pressões para a conversão. Os não-muçulmanos recebi;im o 
statu.j de comunidade protegida ou dhimma. Contudo, eles precisavam aceitar certos 
símbolos externos, como dererminado ripo de vestuário, marca de sua inFerioridadc. 
Medianre o pagamento da jizJ'ª· imposto cobrado, por pessoa, cm sinal do reconhe-
cimento da primazia do islã, e espécie de resgate do serviço militar (ou seja, a não 
participação no jihad, reservada aos muçulmanos), os dhimmis podiam continuar 
professando livremente sua religião e também participar da sociedade. MuiLos aré 
ocuparam posições de destaque na adminis[ração, na economia e nas arres. 
Esse sistema rinha algumas implicações significativas. A desmilitarização dos 
dhimmis deixava-os numa posição vulnerável. Com o decorrer dos anos, mais e mais 
"infiéis" migraram para a religião predominante e, assim, os crisrãos se rornaram 
minori;i.. Vale ressaltar que, em comparação com a posição de minorias não-crisrãs na 
··ri~r:inchde .... Jos dhimmis no islã era em geral bem mais suportável. Todavia , embo-
ra fossem relarivameme bem tratados, eles nunca estiveram seguros. Houve períodos 
de coexistência e interd.mbio cultural assim como períodos de discriminação e perse-
guição. Ourro aspe.cro curióso diz. respeiro ao farn de a conven;ao incluir um bônus 
econômico, pois novos muçulmanos já não precisavam pa~ar a .iizya. Dessa forma, o 
império muçulmano - cuja raz5o de ser se confundia com a expansão do islã - desen-
volvia Llm interesse econômico paradoxal nanão-conversão dos dhimmis: afinal, 
converrê-los significava deixar de arrecadar o dinheiro proveniente dos impostos pa-
gos por eles. Não obstante, quando convertidos, ou "libenos", passavam a participar 
do exércirn, e essa perda era compensada com o aumenro dos espólios de guerra. 
Mas, além da acração intrínseca da ncw~! re!igi:i.o, havia forres incentivos paralelos à con-
versão: o poder políric-c1 c:r.t, praricamenre, monopólio muçulmano. Muiws, portanro, de-
ram esse passo em dirt-ç.'i.u :io islã para usufruírem desse poder. Porém, 110 período omíada, 
os não-árabt:s gut se:: co1we1·tera111 ao islã ainda náo se beneficiaram auronuricamemc com 
direiws iguais ao do grnpn 111 us~ulmano original, tmalmenteárabe. Os recém-chegados con· 
rinuaram sendo discriminados e foram obrigados a. se vincular às rribos árabes ocupando 
O is lã !"lo lempo 1 43 
posição inferior, clienrelista. Ma.niresrações de insacisfação desses clientes (os mawalí), por-
tamo, não seriam surpreendentes, particularmenre nos antigos terri córios penas, já que uma 
amiga e orgulhosa tradiç,'i.o cultural conferia à Pérsia um forte sentimento de identidade. 
Por outro lado, o zoroasrrismo não conseguiu a mesma resistência religiosa, uma vr::1. derro-
rado politicamente. Muiros persas se converreram ao islã, e logo começaram a participar da 
cultura e a entrar na própria adminimaç.ão do Império Muçulmano. 
O l/'APÉRIO ABÁSSIDA (750-1258) 
Com a inregraç,'i.o de funcionários narivos, mais desenvolvidos, o Império Omí:ida 
absorveu r.íridas influência.' gregas e persas. 10 No entanto, a instirucionali?..aç.'lo do po-
der imperial afetou a "pureza muçulmana" primordi:il . O califa se tornava monarc1 
semi-divino, absoluto e disrame, processo que se compleraria sob uma nova dinastia. 
O desconrenramenro dos novos muçulmanos provocou nos anos 740 uma revolta dos 
mawa!i sob a liderança de Abu al-Abbas, parente discante do Profeta, que derrotou os ombd:L' 
e tomou posse da maioria de seus terrircírios. Apenas o último herdeiro omíada conseguiu 
escapar para a Espanha, onde um ramo dessa dina.<;tia se manreve até l 031. A rcvoluç.'io 
abássida esrabeleceu no poder uma nova dina.<;[ia, que igualou os direitos de rodos os mu-
çulmanos - árabes e não-árabes. Tal virada produziu amplas conseqüências. Por um lado, 
pôs fim à supremacia árabe, que havia sido a costura que manteve o imenso território uni-
ficado. A ortodoxia religiosa se tornou emão o único cimento político-social; quesrõe.<; te-
ológicas teriam doravante peso político ainda maior. Por outro lado , o novo regime deu 
chances iguais a muçulmanos não-árabes, e logo se viu o influxo deles nas elires - persas, 
especialmente, facilitado pela mud:mça da capital para Bagdá, mais próxima da l'érsia. 
Apesar de conflirns e revoltas ocasionais, o califado conseguiu em geral garantir 
uma prolongada época de paz. inrerna, além de um mínimo de jusliça e rolerância para 
com seus súditos. E.<;ses fatores explicam a accitaç.'i.o e satisfaçáo com o império, o mais 
poderoso e avançado do mundo em sua época. Na Europa, a expansão muçulmana foi 
parcialmente freada em 732, por Carlos Manel, na Baralha de Poiriers. Mas, no Medi-
terrâneo, a Sicília Foi tomada. Em 755, os abássidas derrotaram a China da dinastia 
Tang, expansionista, na Bar;tlha de Talas - estabelecendo na Ásia central uma delimita-
ção duradoura enrre as duas esferas de influências, a chinesa e a muçulmana. Por volta 
do ano 800, Carlos Magno manrinha uma correspondência diplomática com o califa 
Harun al-Rashid, imensameme superior a ele em território e 1·ecursos. Os dois primei-
ros séculos abássidas, até 945, foram um período de prosperidade e florescimento cul-
tural sem precedemcs: a clássica época de ouro da civili:z.aç.'lo muçulman::i. 
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44 1 O mundo muçu lmano 
É nessa época que parecem ,rer~se - acelerado do is· processos par~1lclos; que se com- · 
binaram para gerar o Orience Médio em seus moldes demográficos e émicos aruais: a 
arabiz.ação e a islamização, movimentos conrínuos durante séculos, mas graduais e 
nunca compleros. No fim da Época de Ouro, a maioria da população do império já 
era provavelmenre muçulmana; as emias religiosas minoritárias cessaaam de ser cul-
turalmeme produtivas, embora seus idiomas sobrevivessem, por exemplo, nas lirurgias 
(caso do siríaco e do copra). A expansão lingüísrica também foi impressionante, ma., 
reve limirações maiores: nem os persas nem os rurcos (que no século X começaram a 
se infiltrar no Orienre Médio) adoraram a língua ár:ibe como vernkulo . Contudo, 
ramo o a.,senramenro, após as conquistas, de soldados árabes e seus famil iares quamo 
a própri a expansão da religião foram fundamenr~tis para a disseminação dessa língua. 
Como rcsu lrado da arabi?.ação contínua, o mundo árabe e constiruído em nossos dias 
por um a va.,ta área da África do Norte e do sudoeste da Ásia, do Oceano Arlànrico até 
o Golfo Pérsico, e das fronteiras turca e iraniana aré o Sudáo. Além disso, o árabe se 
manrém como língua sagrada para os muçulmanos cm rodo o mundo. 
Contudo, os dois processos de assimilaç.ão nfo es tiveram sobrepostos em todo 
lugar, deixando até hoje crês tipos de minorias no seio do mundo árabe: l) arabófonos 
não-muçulmanos (co mo os maronitas no Líbano); 2) muçulmanos não arabófonos 
(caso dos curdos e dos berberes no M.arrocos); e 3) grupos nem muçulmanos nem 
árabes (os armênios , por exemplo). Tais minorias se enconrram em bolsões 
demográficos territorialmente delimitados - os cahiles argelinos, os curdos no lraqw.:, 
no Irã e na Turqui<1 etc. - ou dispersas em diásporas, tais corno os judeus até 1943, 
antes da criação de Israel. Poderia ser adicionado aí um quarto grupo minoritário: os 
cismáticos muçulm<tnos, muitos deles reunidos em seitas xiitas mais ou menos radi-
cais e esotéricas (drnzos, ismailitas, nusairis, alawitas etc.), além de cariditas, bahai e 
outros. Vale dizer que a tolerância para com os "traidores internos" era, em geral, hem 
menor do que a praticada em relação aos não-muçulmanos. 
De rodo modo, o relacionamento das minorias com a maioria ár;1be-muçulmana tem 
sido complicado até hoje, resultado de pressões, inrcrmitemes e desiguais, impostas pelos 
sucessivos regimes muçulmanos. Pressões para a uniformiz~tção culrura.I semp re existi-
r<tm. Entretamo, os reinos muçulm;rnos nunca dispuseram dos recursos (nem do impul-
so ideológico) que a Es1xrnha, a França ou a lnglateri·a forj~u <un na Idade Moderna com 
essa finalidade, tais corno a limpeza étnico-religiosa implemcmada em Castela e Ar;ig).o 
pelos reis católicos nos séculos XV e XVI ou, na Fr;rnça, pm Lu ís XJV no século XVJl. 
Como resultado, o mundo muc,:ulmano é he terogêneo. Atualmenre , a única sociedade do 
Oriente lv!édio mais ou menos homogênea é a Tl.1ryuia; mas cal unidade só l~ii garamida 
à cusca de genocídios e de trocas forçldas de populac,~ãu no século XX. 
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46 1 O mundo muçulmano 
Os padrões culturais: a ortodoxia 
., .,. .. O período ab::í.ssida ap roveitou a inrerrupç.'io d:is amigas raras comerc1a1s p:ira 
romar para si o papel de enrreposro internacional, mediador do comércio de longa 
distância feiro por caravanas entre a China e a Europa. O resultado foi uma crescente 
uniFicação econômica do Oriente Médio, baseada no poder da classe r11ercanril, os 
haz.1ris. Esres se tornaram a classe d_6minanre no império - e ra.mbém o suporte da 
sua ortodoxia rei igiosa. 
Na verdade, a expansão do isJiL trouxe um confromo com m costumes que vigo-
ravam nos novos territórios. fs~~· l~\fo'&7 conseqüentemente, a novos dilemas de inrer-
preração. As últimas testemunhasdo Profeta haviam desaparecido há muito rcmpo. 
Para faz.er frente às tendências centrífugas e manter a uniformidade da re ligião, dc-
srnvolveu-sc o .fiq/1, técnica semi-jurídica de interprecaç.ío das fomes religiosas, para 
determinar as regras de conduta religiosa e social. 
Como fazer as abluções rirnais no deserro onde falra água) Quem tem direito à 
herança? Como uma mulher precisa se vestir? Os juros são aceitáveis na vida econó-
mica) Sob quais condições um juiz muçulmano é qualificado para condenar à morre 
~.ssassinos ou :idúlteros? O objetivo, comudo, não era invenrnr novas leis, pois so-
mcnre Deus _pode legislar. O desafio era dedmir e apliG.r a vontade d'Ele em circuns-
tâncias nov;:is e muráveis, para assim chegar-se a uma classificação de atos em obriga-
rórios, recomend;íveis, neutros, rejeitáveis e proibidos (as cinco categorias da xatia) e, 
cm caso de rransgressão, impor as duras e dissuasivas punições previstas. 11 Para obter· 
as respostas, os legisras aceiraram a autoridade de quarro fonres. 
A primeira fonte da jurisprudência era, naruralmenre, o Alcorão, considerado como 
eterno, não-criado e amcrior à Cr_iação. No entanro, os ditames do livro sagr:ido eram 
pur vezes obscuros· e cont:r:iJirórios. O uso do vinho, por exemplo, era permirido, não 
recomendado e proibido em diferentes versículos, Os faqihs concluíram que o trecho 
com a proibição derivava de uma revelação posterior às outras e por isso cancelava :is 
anrcriores, Além desse tipo de dificuldade, a revelação era tácita em relação a muitas 
questões, Nesses casos, os legistas riveram de vasculhar os atos e palavras de Maomé (os 
hadiths) enquanro exemplo de compromisso para o fiel. Como ao longo dos séculos 
muitas lendas se acumularam acerca do fundador da religião, uma ciência crírica foi 
desenvolvida p:ira conferir· a au ren ticil·bdc dessa.s rradições. Para as questões em que nem 
assim Íoi possível achar a rc:sposr:i, aplicava-se o raciocínio analógico (qiy11S). 
Recomando o mesmo c:xemplo: se o vinho é proiliido, o que Í-a7.er corno uísque, 
Llue não nislia no rempo de Maomé? Foi deduzido que a proibição se aplicava ::i 
rod:1s :is hebidas inc:brianres. Por fim, cm casos muiro conrroverridos, o ijmr/, ou 
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48 1 O mundo muçulmano 
consenso entre os ulemi~. foi aceito como fonte competenrc cm si, segundo um hadith -. _ 
(tradição sobre ato ou fala de Maomé) que assegurava: "Deus nunca fará minha co-
munidade concordar com um erro". 12 Desse modo, cresceu um corpo jurídico-reli-
gioso abrangente do qual já falamos, ou seja, a xaria (shari'a, o caminho certo). 
Cristalizou-se um islã oficial, baseado nas fontes escritas originai~, representado 
por quatro madhhabs ou escolas de jurisprudência ortodoxas, com diferenças relati-
vamente marginais, e prodominando até hoje no mundo muçulmano: 
l ·Abu Hanifa (699-767) estabeleceu a escola haniflta, que hoje vigora no Ori-
ente Médio, na Ásia central e no subcontineme indiano; · • 
2 • Malik ibn Annas (711-795) fundou a escola m:i.iikita, mais conservadora, 
atualmeme predominanre nos territórios afr icanos ocidentais do isl:i; 
3 - Muhammad ibn ldris al-Shafl'i (767-820), cuja escola shaflira é a mais disse-
minada: Egito in ferior, África oriental, Arábia meridional, Indonésia; 
4 - Ahmad ibn Hanbal (780-855) desenvolveu uma incerprctaç.'io mais rigorosa, 
voltando às origens: o hanbalismo. No século XIV, o teólogo Ibn Taimiyya romou 
por base o hanbalismo p;ira estabelecer seu pensamento fundamentalista, que inspi-
rou os wahhabitas ultrauadicionalistas na Península Árabe no século >-.'Vlll, nuntém 
sua posição na Arábia Saudita, e é retomada em nossos dias pelos seguidores do egíp-
cio Sayyid Qutb,um dos principais ideólogos fundamentalistas comemporâneos. 
Com a expansão da xaria, a formação de juristas se proflssionali1 .. ava em acade-
mias especiali1..adas, desde o século XI chamadas de madrasas, os procócipos de nossas 
universidades. As quacro nzt1dhhabs acabaram por monopolizar ;i lei islâmica no uni-
verso sun ita - não :;cm uma dura luta culrnral. 
A falsafa - a teologia racionalista - e suo derrota 
O período árabe d:íssico rescemunhou o surgimento de novas formas de organi1.1-
ç.'io econômica (com a impl<rntação do crédito, das comparthias marítimas ecc.), além 
de avanços científicos significativos, na medicina, matem<ítica, ócica, astro11omi;1, 
filologia, náucica, e artísticos m. arquicernra, na.s artes ornamentais, na licer:irnra etc. 
Junto com esse progresso, veio a discuss.ão sobre as próprias bases filosóficas da socieda-
de muçulmana, desencadeada pelas traduções para o árabe de Platão, Aristóteles e ou-
tros pensadores clássicos. O redescobrimento dos grandes filósofos gregos provocou 
dúvidas sob re os dogmas islámicos - a criação do mundo, a ressurreiç~to foica pós-
morte, a onipresença de Deus-, em concri~te com as leis objetivas da natut-e-t.<l. 
Ü confromo de duas episcemologias dcncro do islã - a alcorinica e a racional, o 
dererminismo comra a livre escolha - gerou tensão · entre a revelação sobrcn:itural e a 
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racion:llidade (essa tensão prefigurava problemas p:<raldos na csrnbstica cristã medi-
ev;J, alguns séculos depois). Desenvolveram-se, então. escolas concorrcmcs cuj::i riva-
lidade produziu conseqüências em longo prazo. Simplificando, poderíamos definir. 
de um lado, a xaria como a escola conservadora - em relaç.'io ao domínio dos aspectos 
do culto, ela rejeitava em princípio quaisquer dimensões não controladas pela reli-
gião, rigorosamente do modo que era interprecada pela xa ~i <l, ou seja. nos moldes do 
"serviço a Deus''. 
Do outro lado, o ponco de partida de sua concon·cnte intdcccua\, a escob ~1ro­
orcssistJ. era "cnnhccu Deus" antes de servi-Lo. Essa rnF:Hinva o pqdcr do livre n ' . ... . -
pensamento: corretamente aplicad<l, a raóo, por forçc< própria, pode. akai1çar os mes-
mos encen<limcntos sobre o mundo, vis ível e invisível, que a rcvdaçáo divina. A ênF:1-
sc na razã<J condu?.ia a uma religião bem intelectuali7.àda (q,1!11111). Os mutazilitas 
chegaram 11 conclusão de que o próp ri o Alcor:io era alg;n criado e, portanto, náo-
etcrno, o que abriu caminho para a crítica históriGJ. da próp[·ia re!igi:lo. 
Talfalsafi1, ou filosofia racionalisrn, é claro, condi1.i~ com o progn:sso da ciência 
e da tecnologia, pré-condição, cm última instftncia, da proeminência muçulmana no 
mundo. Não obstante, a dominância dessa escola progressista, que cheg<tria a ser a 
doutrina ofici<J em 827, não foi duradoura e, a partir de 89 \,a re:lçáo ami-racion <tl isca 
levou a violent:is pe1·seguições. No século X. Abu al-1-bssan al-Ashari escreveu uma 
síntese que se cornou depo is a orrudo:xia, e qm: cnfari'lct a irc('mensurabilidade e 
incompreensibiiidade de Deus para meros humanos: o fld rcm que seguir Seus pre-
ceitos sem questioná-los - o famoso "nêto k1 como" (bili bifi, qt!e rede a obcdil:ncia 
absoluta ao Criador. O reverso dessa aceiração, todavi;t, er:1 um fotalismo que nos 
séculos por vir descrui1·ia a cri:Hividadc rn;.tçulrncina. 
Ao lado desses duis moldes cultur;1!::, xaria e jii!.wf<'.1, discingucm-scainda crê;. 
outras perspectivas: a mística (sufista), a e~oté:rico-rcvolucionária (xiita) e a agnóstic1 
(adtd;), que veremos a seguir. 
Sufismo 
A orcodoxia que hoje ern dia constirui :i vcr:óo normativa do islã conquisrou tal 
posição gradualmente, mcclic1ncc luras, muitas ve·Les radieis, contr:1 o que original-
mente era uma rcligiêto mais pluralista. /\o \ungu de su:1 hisu)ri:1 , o is\:i clescnvolvcu 
urna v;iriecbde de:: estilus religiosos que co11~t it uía1n np·:;õcs para os fiéis. Uma dessas 
era o 111isricisn10 movido pelo "amor a Deu:;", u LJUal, carrq;:1do de influênci cLs mo-
n:í.sricas cristàs e gnóscicas, husc:tva a r:.:união cb alma rn11 1 u Cri;tJor. /\.ênfase: dll isl~t 
na distância enrr~ Deus e suas criaturas (associada :1 aus\:ncia de: rcnd~nci;-ts ascéric1s ) 
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50 1 O mundo muçulmano 
não puecia predispô-lo à mediraç..'io. Contudo, havia sempre indivíduos a quem uma 
religião primariar1ienrc rirual. e social não sacisfazia. 
Tenrarivas para estabelecer um laço mais íntimo e individual com Deus aparece-
ram desde o século Vlll. Místicos desenvolveram uma gama de técnicas espiriruais 
para alcançar a experiência da proximidade e da união com Ele (a mais,conhecida é o 
dhikr, lembrança, que consiste na repetição dos nomes divinos para alcançar um 
estado de êxtase). Contudo, as expressões de cenas místicos aflrmando sua identida-
de com o divino logo esc..1ndaliz.aram ortodoxos mais preconceiruosos, que as consi-
derar:un como blasfêmia e, penamo (num conrexro de não-diferenciação enrre reli-
_gião e polícia.), desaflo à au'toridade. Isso chegou a provocar fo:res perseguições: cm 
922 o mísrico al-Halbj foi marriri1,ado. Após esse evento os míscicos se volraram a 
forma.' m;Üs sóbrias e camdosas. No encanto, a mística em si não morreu , recebendo 
novos impulsos. No século XI, por exemplo, à neoplatonisrn Ibn Sina (Aviccnna) e, 
um século depois , Ibn a.1-Arabi, baseados em visões místicas, desenvolveram a wahdar 
al-w1~jud (unidade da realidade), teoria herética e pIDteísta sobre emanações divinas 
sustentando o cosmos inteiro. 
A ortodoxia da xaria acabou por imegrar a mísrica numa posição minomana, 
submetida à reelogia oflcial na sínrese operada por al-Ashari . Mas, nas circunstâncias 
rurbulenras que vigoravam desde o século Xlll, cada vez mais muçulmanos buscaram 
··-- -L :· : ~- ~, sombra de certos mestres, místicos cuja reputação de santidade e de 
poderes milagrosos atraíam seguidores. Foi a origem de escolas em torno de líderes 
religiosos místicos, que se chamavam sufis - talvez por causa de suas vt:stimentas de lá 
(.ruf;. Os sufis se rornaram populares emre muçulmanos não-árabes, principalmente 
entre persas e turcos recém-convertidos. Seus seguidores costumavam se enconrrar (e 
em pane, moravam) em prédios especiais, os khanqas. Entre os berberes da África do 
Norte, os túmulos de tais ~:::<v> sc wrnaram locais de. veneraçáo e peregrinaçãu -
des:tprovaoos, é claro , por muçulmanos mais rígidos. 
Os sufls entregaram suas doutrinas esoréricas e exercícios secretos aos discípulos. 
·Desenvolviam-se· dessa maneira dinastias ou linhagens: no decorrer do tempo, os 
seguidores do caminho (tariq) de determinado mestre se organi;i,av:11n em irmanda-
des separadas, os tr1riqas, marcadas pelo relacionamento esp irirual entre guia e aluno. 
Algumas das ordens sufis mais conhecidas são os naqshibandis, os hcktashis, a 
qadii-i]'.l'ª• a tUmii]'.J'ª e a st11111SÍ]~'ª· Sua orrodoxia, enrreramo, sempre causou suspei-
tas: exisria uma Ecnsão permanente emre as irmandades prúximas do islã popular, 
com suas "aberrações" supersticiosas, e o alro islã, puri[ano e menos emociona.!, que 
periodicurn:mc .inspirava movi111c1Hos de '"limpez.a". Mas csse campo de Lcnsão nãu 
foi sempre anragônico: embora as irmandades sufls se mantivessem em geral longe da 
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polítiet, houve também casos em que cbs se poliriz.aram e: se rornaram reformistas 
militames, ~s vezes viokmas. Em .9utr:.0~ .q~9s,"como na Turquia amai·; c;la.~ .iníluen-
ciam a política nos bastidores. O espectro da atuação mfstica no mundo muçulmano 
é., portanto , extremamente amplo . Nos últimos séculos, tais ordens sufis têm repre-
sentado um papel absolutamente central na expansáo do islã, panicularmen te na Ásia 
central, Indonésia e África. Sem seu impacro, náo se explicaria a recente retomada de 
crescimento do islã. 
Xiismo 
O xiismo conrinuou como movimento contestarório da legitimidade califa!. Após 
o mardrio do sa_101id (senhor, ou descendente do Profeta) Hussein ibn Ali, o terceiro 
_imã, uma linha de im:ls da sua família o sucederam , quase rodos martiriz.ados pelas 
aurorid2dcs sunitas. Os sucessos políticos foram raros. Após o assassinato, em 740, 
de Zaid, o quinto imã, seus seguidores, os zaiditas, conseguiram temporariamente o 
controle do lrã setentrional. Depois, instalaram-se no lêmcn, onde se mantiveram no 
poder até o século XX. A morre do sexto imã, Ja'far ~11-Sadiq, em 765, coincidiu com 
uma nova onda de perseguições aos xiitas pelo regime abássida. Os xiitas passaram a 
adot<..r a taqiya, negaçiio oponunista de suas verdadeiras crenças, d.rica que permitiu 
sua sobrevi\'ência e re-eme rgên cia periódica. 
O xiismo se mostra mais suscetível à fragmentação sectária e mfstica do que a 
corrente principa.I sunita. lsma'il, o filho de Ja'far, causou uma nova secessão; seus 
seguidores, os ismailitas, consideram-no o sétimo imã legítimo e desenvolveram Sl!as 
próprias teorias esotéricas neoplaronistas. A maioria dos xiitas , no emanto, seguia a 
linhagem do irmão de lsma'il, Mussa al-Kazem. Eles se denominam xi iras duodécimos 
por aceit:J.J essa sucessão até o desaparecimento, em circunstâncias suspeitas, do déci-
mo segundo e úlrimo imã, em 874. 
Na teologia xiita, tal desaparecimento, a Grande Ocultação, permite ao imã espe-
rar por tempos melhores. Durante o milênio seguinte, o xiismo viveu da esperança 
messiânica do rerorno do imã oculro Muhammad al-Mahdi (o Esperado). Nesse ín-
terim , legisras xiitas assumi ram a liderança da comunidade. A partir daí , o xiismo 
oscilaria entre uma quietude cautelosa - rípica dos duodécimos, visto que não havia 
mais um imã a defender - e o impul so revol ucionário, sc:mprc perto dos ismailiras, 
que continuavam acreditando na presença de um imã, o que provocou a emergé.ncia 
.· de: falsos imãs. Os ramos x.iiras mais esotéricos pesquisar:m1 o significado velado (batin) 
d; Alcorão, e algumas sciras secretas chegaram até a deificação de Ali. 
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52 1 O mundo muçulmano 
A cultu ra letrada ':\,,- . -
O adab, ou estil o de vida das classes domin;i.mes, incluía o cultivo dos saberes 
acess íveis na época - história, geografia, ciência en tre outros, Porém, <l habilidade social 
ma.is prezada era a exp ressfo oraL O adib ou homem ed ucado náo somente dominava 
as formas poéticas, mas sabia tecer histórias, expressar-se numa con~ersa polida, cui -
dando da etiqueta, Num contexto de cones luxuos'ts e mercadores que aspiravam a 
tornarem-se cavalheirns, as arrcs, a cuigrnfi:i e a ilustraç!io íloresciam: tudo expressava 
uma elegância que (muiro implicitamente) rcílcri:t certo desintcrcs:;e peb reli~iosida­
de1'. Marcas da cultura árabe cLL>sic:i que quas~ dcs;1p;{rcceráo no islã posterio; 
A época abássida é considerada o auge da civili1.a~'á,o rm1çu\m;rn:dsabe , mas desde 
aproximad:unente o ano 900 iniciou-se seu lemo desmoronamento, A c:tusa principal 
foi a fragmentaçáo política, Ficou cada vez mais diFícil m;;,nter a unidade d~ império, 
que se tornou vítima da praga que assolou os impérios pré-modernos: a impossih ilida-
de, em vista dos meios de cormmicaçáo e transport~ primitivos da época, de controlar 
áreas mais discantesa partir de seu centro, A eficicncia do poder dependia de gcncr,ais 
encarregados de governar províncias distantes e: de arrec1dar os impostos, Pouco se 
podia fazer contra governantes ambiciosos que atr::sav:im a remessa dos triburos e 3U-
menravam seu próprio poder às custas da ca~1ital do império - s:dvo mandar contra eles 
outros generais, ;:ujos filhos e netos, em secessões provinciais Frcqücntcmenrc disfarç;idas 
de reivindicações religiosa.s, acabavarn urili?~'rndo -sc do mesmo arcitício, 
Cismáticos chegaram ao poder em vários pontos do mundo muçulmano. O p:H-
tido xiita alcançou seu m:lior sucesso quando a di11a;,tia ismailita dos fatímidas (970-
1150; o nome deriva de Fátima, a filha do ProFera) se consolidou na Tunís ia e. ooste-
riormente, também tomou posse do Egito, onde construiu Cairo como capttaL A 
perda desse trunfo foi crítica parn Bagdá, onde um cl::i de usurp1dores. os buídas, 
reduzia o califa a um caráter meramente cerimoni:lL Os ab:lssidas se mantiveram no 
poder pro forma até meados do século Xl!L Mas , na verdade, o ct:ntro do impáio 
sofreu um vácuo de poder. Sem dL'1vida, as divisões ideológicas demru do isl::i rivernm 
papel impurtame nesse declínio, 
A IDADE MÉDIA ÁRABE (SÉCULOS XI-XV) 
A história do mundo muçulmano no segundo milênio cristão apresenta um as-
pecto muito menos cocrent~ do que 11<1 époe<1 de 011rn, mas a rr:1dicional visão dualisn 
de emergência seguida de decadência é simplificadora denuis para dd1ni-la, É vcrcb-
r 
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O i slõ no lempo 1 53 
de que uma 'Série de invasões exrern<Ís e cal.i;nidades internas produ2i~;im imenso 
impacrn negativo no O riente Médio, levando a um declínio aparentemente inexodvel 
de seu centro - o mundo árabe, Em outras panes, porem, o islã viveu uma nova onda 
de exp;rnsão , a exemplo do subcontinente india no, do sudeste asiático e da África, 
Desde essa época, a hisrríria do mundo muçulmano ulrraoassa os limite.1 geoaráfi-
cos do Oriente Médio, PratiGtmcme contemporâneos do R~naseimen to na ~Eu~o,p:1 , 
três "impérios da pólvora" se conoolidar:un no Oriemc: o Império Otomano , nos 
amigos territórios bi7~'lntinos e no mundo árabe; o Império Safavida, na Pérsia; e 0 
Império dos Grão-Mugh:ils, na Índia, Sultanaros menNes existiram em outras regiões 
da Índia, em P'lrtes da África, em Java e na Sumatra entre outras, Esses imp~rios 
muçulmanos (como os impérios confuncionisras da China, Coréia e Japão, na Ásia 
orient:tl) mantiveram uma paridade de poder que as porência.5 européias n5o conse-
gu iram superar até que a virada do século XIX lhes fornecesse recursos imbatíve,is para 
taL Somente as revoluções política, indu.mia\, demográfica e miliLar que sacudiram e 
transformaram o mundo ocident:il permitiram-lhe ultrapas~:ar o mundo muçulmano, 
Seguiram-se a penetração econômica, política c cultural, as co l oniz~'lções - e o fracasso 
do desenvolvimento pós-colonial que, como veremos mais adiante, cunstirui o P'mo 
de fundo do atual agravamento das relações entre Ocideme e is\:i, 
Por causas ainda não cornpleramcnte compreendid;1s, o século X e os seguintes 
produziram na Ásia central uma série de mudanças, qut: i11-.puseram a tribos nômades 
repetidas invasões aos povos sedendrios e suas ricao turas cultivadas, O fenômeno 
teria gravíssimas conseqüências, da China :iré a Europa cencr;1L Essas infilrraçôes -
último aro de uma interação entre pasrnn:s e agricultores que começ.ara na época de 
Abra ao - ocorrer,am cm ondas e suas conseqüências foram di Ferenciadas, /\ curto 
prazo, porem , prcvakceu a dcv;Lstação, com consider<Íveis prcjuí?.os para o delicado 
equilíbrio ecológico e político da époGL 
No século XI, por exem1)lo, ocorreram desm1idoras migrações de beduínos 
:írabes hiLdi para ;:i África do None, Chegando ;ité a Argélia, essas incursões for~tm 
provavelmente um fator de desertifioção e de declínio da :tgriculrura, tradicional-
mente rica no Magreb, Já os turcos , imbuídos de um espírito guerreiro alienígena à 
cultura urbana das elites árabes e persas de Bagd:í e C:liro, entraram no mundo 
muçulmano rnnro como cribos qua:Ho comu indivídu os - neste úlrirno caso, foram 
apmvcitaJos como escravos e mcrccn;\:·ios, e se rnrr~'u,am os "gu:ird:l:. prernrianos" 
dos líderes 110\íricu-rcligiosos, Conl~a r o cumwlc da~; arnn< :< cscravns estrangeiros, 
gente de for,a sem ligaçõc:s pe,soais ou familiares e sc:m compromissos locais, er:1 
apareme111c11ll'. Ull\'1 pulí1Íc.t ,10ibi,1 - clll!l'.UlllU, u1m•.'• c\ i;, ' ' pruvérhi n latino, "quú 
rnstodict ipms cwroc!cs:" (quem vi giari ,1 os vigias; ),

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