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31 Cozinha e Identidade Nacional: notas sobre a culinária na formação da cultura brasileira segundo Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo Rogéria Campos de Almeida Dutra Professora de Antropologia Cultural no Departamento de Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutoranda em Antropologia Social no Programa de pós-graduação em Antropologia Social no Museu Nacional, UFRJ. Como todo ser vivo, os seres hu- manos também se alimentam. Não obe- decem, porém, a um padrão alimentar uniforme, demonstrando-nos uma sur- preendente criatividade na diversidade do ato de se nutrir. A culinária não res- ponde exclusivamente às necessidades biológicas de sobrevivência, mas tam- bém não é resultado somente cultural; duas dimensões de um mesmo fenô- meno, espaço privilegiado da media- ção entre Natureza e Cultura. Um meio pelo qual a natureza é transformada em cultura, como diria Lévi-Strauss (1968). Nossa recusa por certos tipos de alimen- to – que classificaríamos como “não- comestíveis” – não está, na maioria das vezes, fundada na fisiologia, mas num sentimento de ordem, que envolve as dimensões ética, estética e dietética. Daí podermos compreender a cultura como fundadora de um critério de palatabili- dade. É pela repetição incalculável dos estímulos sápidos que se processa a fi- xação do paladar. Fruto do hábito, ob- jeto da memória, o paladar se constrói, e valorativamente, pela combinação imprevisível do que classificamos como salgado, doce, ácido, amargo e pican- te. Diversas vezes mencionada por via- jantes que passaram pelo Brasil coloni- al, temos como exemplo, a preferência, tanto negra quanto ameríndia, pelo sa- bor picante da pimenta. Em nossa pró- pria cultura observamos como os sabo- res amargo e azedo associam-se a algo difícil, ruim, enquanto que o doce, que- rido representa suavidade. Neste sentido, o estudo da alimen- tação tem local privilegiado na análise cultural, na medida em que as preferên- cias alimentares figuram entre traços dis- tintivos e singularizantes. E não só varia entre sociedades, grupos sociais, como pode se diferenciar internamente a es- ses grupos, como comida de homem/ de mulher, de criança/adulto, de ho- mens/deuses. Sua abordagem nos con- duz a questões múltiplas que envolvem a ecologia, a técnica utilizada (no pre- paro do alimento e sua conservação), a vida familiar, as relações sociais, a ordem simbólica. As predileções alimentares se constroem a partir duma complexa tra- ma entre “norma de uso” e “respeito a tradição” (cf. Cascudo, 1983) Porém, apesar de profundamente arraigadas (não devemos nos esquecer que o paladar é o último a se desnacionalizar) não estão congeladas. Acompanham a própria dinâmica da sociedade na qual se inserem, estabelecendo o diálogo con- tínuo entre o tempo (o processo histó- rico) e o espaço (o espaço geográfico). O contato cultural nunca deixou de existir, e muito menos de contribuir para a reconstrução da singularidade. Como nos lembra R. Bastide (1973), a cultura se desenvolve muito mais por interfe- cundação do que por autofecundação. Há de se considerar o contato cultural não só como um processo de acultu- ração (no sentido literal de perda e anulação, e que de fato ocorreu, e vem ocorrendo, muitas vezes de forma trá- gica), como também de intercâmbio, res- saltando o valor do encontro de dife- rentes tradições. Neste texto, pretendo destacar como o processo de formação da socie- Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 32 dade brasileira pode se narrado pela constituição dos hábitos alimentares de sua população, apesar de ser um traço peculiar desta nossa sociedade a coexistência da diversidade regional (os diferentes sistemas ecológicos que definem o espaço) com o descompasso temporal (o processo histórico dife- renciado). Neste exercício reflexivo, centro-me particularmente em dois autores, Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo. Tal escolha deve-se pelo destaque que ambos dedicam à questão alimentar como fator constitutivo da identidade nacional. Ressalvando-se as diferenças entre os dois autores (inclusive por trajetórias distintas), podemos considerá-los portadores, dentre outros, do proje- to da inteligentsia brasileira, na primeira metade do século passado, de construir a identidade naci- onal valorizando exatamente o que era considera- do o grande empecilho para nossa construção como nação e para o “progresso” da sociedade brasilei- ra: a mistura, a mestiçagem que nos distanciava do padrão europeu de tradição, cujo prejuízo estaria relacionado a fortes componentes raciais. O CONTATO Foram necessários mais de 30 anos para que Portugal decidisse implementar uma política de colonização na Terra de Santa Cruz. A falta de grandes tesouros, e aparentemente, de riquezas minerais, a coroa portuguesa decidiu-se por po- voar este território a partir de uma estratégia ino- vadora. Ao invés de manter-se no extrativismo mercantilista, já experimentado tanto na sua pre- sença na Índia quanto na África, instituiu uma nova forma de permanência com uma atividade que lhe fosse rentável, a “colônia de plantação”, base- ada na agricultura. Esta realidade colonial agrária, da monocultura da cana e a produção de açúcar para “exportação” fundamentava-se na explora- ção de mão-de-obra escrava (primeiramente ameríndia e depois negra) e na necessidade de fixação do português neste território. Uma outra peculiaridade deste empreendimento da coroa portuguesa é o fato de que se construiria pela ação e investimento particular, de famílias de nobres ou ricos comerciantes que se desfaziam de seus bens no reino para investir, colonizar e proteger esta terra ova. Assim instala-se, principalmente no Nordeste, o complexo Casa-Grande & Senzala, definindo-se por características tais como: autárquica, produtiva, familial, hirárquica. Em contraste ao nomadismo exploratório nas primei- ras décadas do desenvolvimento – atividade mais democrática, por sinal, dando chance aos aven- tureiros, e que de alguma forma permaneceu como tendência dominante na atividade dos ban- deirantes na Capitania de São Vicente, – destaca- se a “estabilidade secular” do senhor de engenho. É neste cenário que se assiste o contato de três culturas diferentes, a ameríndia, a africana e a européia, interesse especial tanto de Freyre quan- to de Câmara Cascudo. Procuram destacar as pos- sibilidades de enriquecimento cultural que se deu pela via do “empréstimo” e do “acréscimo”. A tendência de combinação de traços de culturas diferentes que resultariam em uma configuração única, tornando-se um “complexo de cultura”.1 Este contato, no entanto, não se restringiu, no caso brasileiro, “à esfera produtiva”. A composição da sociedade brasileira se dá pela “hibridização”, onde grande número de colonos constituíram famí- lias com a ameríndia e a negra. Ambiente de escas- sez feminina provocando uma certa “confraterniza- ção” entre “vencedores e vencidos”. Freyre empenha-se, de forma bem sucedida por sinal, em inovar a leitura deste passado da so- ciedade brasileira pela perspectiva “de dentro”, através dos “estilos de residência, constantes de existência e normas de coexistência” – definidores estes, do “caráter” do povo brasileiro. Através de uma introspecção quase que proustiana, ele se pro- põe a uma “aventura da sensibilidade”, a penetrar na intimidade deste passado. A casa, e o que se passa na casa, como centro mais importante de adaptação e acomodação do português, o negro e o ameríndio. Pois que o complexo Casa-Grande &Senzala, autarquia produtiva, dirigida por senho- res rurais de autoridade inquestionável – “Dono das terras. Dono dos homens. Dono das Mulheres”(cf. Freyre, 1973a:lvii) – gira em torno da família como base da colonização. Uma das grandes forças permanentes, preservando e difun- dindo valores. Vale ressaltar que essas categorias “casa” e “família”não só definem uma qualidade do espaço, ou da mistura sangüínea, mas o cenário de relações interpessoais. Esta dimensão relacional, __________________________ 1 Destaca-se nesta forma de abordar a realidade cultural o diálogo de Freyre com o que viria a se chamar de Configuracionismo. Enquanto “traço” se definiria por ele- mentos culturais, o complexo se caracterizaria como a reu- nião dos vários “usos”, nos quais se faz presente este ele- mento específico. Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 33 que acontece na esfera doméstica, transborda para outras instâncias. Os personagens se definem e são definidos uns em relação aos outros, numa relação ao mesmo tempo fortemente hierárquica (envol- vendo a subordinação e a coerção) e uma convi- vência por demais íntima. Escrava, mas amante. Filho, mas bastardo. Católico, mas polígamo. Da família, mas mucama. As composições são intermi- náveis, mas sempre paradoxais, inclusiva dos opos- tos. A sociedade brasileira se constituindo baseada no equilíbrio de antagonismos. É a partir do mergulho nesta “petite histoire”, de preocupações aparentemente “femininas em torno de assuntos docemente inofensivos” (cf. Freyre, 1968: LXX) que tocamos nos bastidores do processo histórico de transformação de uma socie- dade. Fundamental para Freyre é o uso dos senti- dos para a sintonização daquele se cultural com seu meio e com as pessoas: não só a visão, o diálo- go de imagens, como o olfato, o paladar, o tato, a audição. A percepção sensorial. Não é por acaso que o sexo e a comida permeiam constantemente as relações, intermediada por um personagem es- pecialmente valorizado por Freyre, a mulher. “O português encontrou no Brasil a mulher fácil, abundante e amorosa” (Cascudo, 1983:172). Freyre é de opinião de que a cunhã constituiu a base física da família brasileira. Através dela, mais do que do índio, caçador e devastador de flores- tas, o europeu teve acesso à natureza cultivada, domesticada, imprescindível para sua sobrevivên- cia: dos frutos coletados e pequenas lavouras à cerâmica e tecelagem. É da mulher gentia que vi- eram remédios caseiros e o asseio pessoal ( o tão comentado banho freqüente, parte dos processo de higiene tropical desconhecido na época por grande parte dos europeus). Não só foi a primeira cozinheira, como também a primeira concubina: ela representou com sua nudez e interesse sexual em agradar o branco, o paraíso tropical para aque- les que vieram de uma Europa medieval e uma moral católica excessivamente rígida. A desvalorização da cunhã é simultânea ao desenvolvimento da indústria do açúcar, quando surge a figura da mucama, que dominou de forma mais intensa o ambiente doméstico, “discípula maravilhosa em ambas as fórmulas do sabor culi- nário e sexual solicitadas”(Cascudo, 1983:175). Apesar de sua posição subjugada frente ao regime escravocrata, Freyre destaca como esta íntima con- vivência da negra contribuiu para relativizar a pró- pria dureza da coerção: “Muita africana consegui- ra impor-se ao respeito dos brancos; umas, pelo temor inspirado por suas mandingas; outras, como as Minas, pelos seus quindins e pela sua finura de mulher” (cf. Freyre, l973a: 427). Já era comum em Lisboa no século XVI, como o foi nas principais ci- dades brasileiras do Brasil colonial, a presença de negras na rua vendendo os mais diversos víveres, na maioria a serviço de iaiás que preferiram se manter no anonimato. Outras vezes, o valor “quituteira/concubina” se destacava: as negras fre- qüentando os quartos dos mascates portugueses nas fazendas, por ordem do senhor interessado em aumentar o plantel de mestiços, oferecendo-lhes “mingauzinho dourado a ovos” (Freyre, 1968: 630). Vale ainda destacar o entranhamento da mucama na vida familiar, através da criação dos filhos de seus senhores: da proximidade sangüínea, pelo se papel de “cabra mulher”, amamentando a nume- rosa prole da casa grande, à sua participação nas cantigas de ninar, nas histórias que contavam, fe- cundando a imaginação infantil, e na fala dengosa, resumida, rapidamente assimilada pelos pequenos. Freyre descreve a mulher portuguesa do pa- triarcado rural da Casa-Grande como mulheres gordas, com grande conhecimento de cozinha e higiene da casa, “modos europeus e cristãos de tratar menino e gente doente”(op.cit.: 32). Mãe ignorante, cuja repercussão nos filhos não ultra- passava à esfera sentimental, alheia ao mundo que não fosse o da casa. Dedicava-se à sua adminis- tração, acompanhando e fiscalizando inúmeros criados em seus afazeres, seja nas costuras, no preparo de velas, sabão, licores ou geléias. Com sua sociabilidade restrita, exercitava o “saneamen- to mental” nos confessionários. Tanto Freyre quan- to Cascudo consideraram-na, a “iaiá”, a grande estabilizadora da civilização européia no Brasil, dado o seu papel conservador, estável, ordenador e integralizador. Às mulheres, coube uma posição especial neste processo dinâmico de caldeamento cultu- ral. Foram estrategicamente contemporizadoras, mediadoras de conflitos latentes, atuando sem, apesar da forma dissimulada, mas pressente e efe- tiva. Algo como o poder dos fracos, ou das águas, que lentamente envolve e domina o ambiente. O europeu encontrou aqui o ameríndio com uma alimentação baseada na caça, pesca, coleta e uma lavoura ainda incipiente: mandioca, milho, batata, feijão, pimentão, abóboras, cará, amendo- Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 34 im, palmitos, caju, abacaxi, goiaba, cajá, maracu- já, mamão. Peixes e carnes assados no calor do borralho, no moquem, enterrados sob a fogueira. Bebidas elaboradas a partir da fermentação de fru- tas, do milho, da mandioca. Não se utilizava o sal, nem o óleo. Apesar da grande influência sobre a alimentação do brasileiro, este não se utilizou da totalidade de espécies vegetais incluídas no cardá- pio ameríndio: bagas, raízes, frutos, o mingau de caroço de algodão, os içás (fêmea da formiga saúva, largamente apreciados no Brasil colonial, até mes- mo por europeus) e as “rahu” (larvas de um estágio de desenvolvimento de um certo tipo de maripo- sa, comparadas por alguns viajantes como a mais fina iguaria francesa). A vitória do complexo indí- gena da mandioca sobre o trigo merece ser relembrada: ela tornou-se base do regime alimen- tar do colonizador, com exceção de alguns repre- sentantes da elite portuguesa que insistiam em con- sumir a “farinha do reino”. Vem do hábito alimentar indígena a base da nutrição popular: mandioca, milho, batata, decisivos na “predileção cotidiana” do brasileiro. Do indígena herdamos o mingau, o pirão, a paçoca, a pamonha, a canjica, a pipoca. Formas culinárias originais que foram sendo lapi- dadas pelo tempo, por mãos africanas e portugue- sas para se chegar aos dias de hoje. É também na culinária que vemos de forma evidente a infiltração da cultura negra na nossa cultura: o uso do azeite de dendê, a pimenta malagueta, quiabo, gengibre, a variedade de fei- jões, inhame, coco, das palavras presentes no nosso vocabulário: quitutes, moleque, mocotó, quindim, mungunzá, farofa, angu, fubá. Vale ain- da destacar a doçaria de rua, das negras com seus tabuleiros e caldeirões oferecendo mocotó, vatapá, mingau, canjicas, acaçás, abarás, arroz de coco, feijão de coco, angu, peixe frito, mungunzá, bolo de milho, milho assado, tapioca molhada, acarajé. Negra e mulata quente, voluptuosa, que abusava dos “afrodisíacos do paladar” 2 . De acordo com Câmara Cascudo (1983), a mulher portuguesa prestou duas contribuições básicas à alimentação brasileira no domínio do paladar: valorizou o sal (praticamente desconhe- cido entre os ameríndios e pouco utilizado por africanos) e introduziu o açúcar. A ciência coloni- zadora do português tem como um de seus ápi- ces a transmissão de seu paladar aos habitantes desta terra, pois o que era português tornou-se brasileiro: toucinho,lingüiça, azeite, hortaliças, vinagre. Devemos também à mulher portuguesa a versatilidade do uso do ovo de galinha, a sua combinação com farinha, leite e açúcar, ignorada pelo africano e pelo indígena. Gilberto Freyre ain- da destaca a influência árabe na culinária portu- guesa que aqui também nos tocou: a preferência por comidas oleosas, cheias de açúcar, “condimentação afrodisíaca, vibração erótica”. Os inumeráveis doces e bolos de conventos, com forte apelo erótico, “...sussurrando nomes que eram confissões, apelos, críticas, murmúrios de queixas” (Cascudo, 1983: 344): Beijos, Suspiros, Abraços, Saudades, Sonhos, Toucinho do Céu, Cabelos de Virgem, Casadinhos, Barriga-de-Freira, Papo-de- Anjo, dentre outros. Nas palavras de Freyre, “a intenção afrodisíaca, o toque fescenino a confun- dir-se com o místico (...) Levanta-velho, Língua- de-moça, Baba-de-moça, Mimos de Amor” (1973a: 250). Deve-se ainda às portuguesas o hábito de fritar os alimentos, o arroz doce polvi- lhado de canela, a arte do papel recortado. Neste caldeamento cultural, apesar da rica diversidade de ingredientes, observa-se que na so- ciedade brasileira em geral, a base técnica mante- ve-se portuguesa, pois foram essas mulheres que ensinaram às cunhãs e mucamas a cozinhar na casa-grande e no sobrado. Cascudo nos fala da ocorrência de uma “aculturação compulsória” portuguesa, utilizando as reservas amerabas e os recursos africanos. Ressalta também que o pro- cesso de integração de raízes alimentares distintas teve caráter peculiar no caso brasileiro, compa- rando-se às colônias portuguesas em território afri- cano. Enquanto aqui verificou-se uma técnica européia consagrando o produto nativo, no terri- tório africano observa-se a pouca influência da mulher européia, e a predominância da culinária nativa com penetração dos pratos estrangeiros. A mulher portuguesa fez o beiju ameríndio mais fino e mais seco, molhou o polvilho de mandioca com leite. Inventou comidas, doces, conservas com fru- tos e raízes da terra, vinho e licor de caju, casta- nha de caju no lugar da amêndoa, o cuscuz de mandioca, a carne com cará, a canela e cravo conferindo sabores nobres a frutos tropicais. A própria feijoada, prato democraticamente presente na mesa dos brasileiros, apesar de associar-se ao escravo negro (era comida de senzala), “... é uma __________________________ 2 É curiosa a associação da situação, ou do objeto sexual- mente excitante, com o sabor picante da pimenta. Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 35 solução européia elaborada no Brasil” (Cascudo, 1983: 502), pois utiliza-se a técnica portuguesa da carne guisada com feijões. Porém, nem na Áfri- ca, nem em Portugal (que já conheciam tipos de feijões) ela tem esta popularidade que tem no Brasil, sendo que aqui ainda associa-se à farofa, à base da mandioca ameríndia. A doçaria brasileira, dada sua particularida- de, foi objeto específico de reflexão de Freyre. É no livro “Açúcar” que ele analisa o doce brasileiro como parte de um complexo cultural, expressão de um processo de interpenetração de culturas3 . Uma arte simbiótica que reúne “gostos tradicio- nais europeus a sabores tropicais”: a combinação de açúcar com frutas nativas como jenipapo, araçá, mamão, goiaba, maracujá, jabuticaba. No Nor- deste, em particular, verificou-se uma íntima cor- respondência entre a sofisticação (no sentido de diversidade) da arte da doçaria e a intensidade regional da produção de açúcar. Não só o doce como estética de sobremesa, como forma de ali- mentação (a indispensável rapadura do sertanejo nordestino é um exemplo), como também de re- creação. Na arte da doçaria tradicional, verifica- se com nitidez a relação do produto culinário com o material técnico que o viabiliza: a colher de pau, o tacho de cobre, a panela de barro (como as gran- des cuscuzeiras baianas vedadas com massa de farinha de mandioca), peças regionais que se apre- sentam como indispensáveis ao preparo de quitutes. Nesta íntima aliança entre alimento e utensílio (ligado a uma técnica cultural, inserido ecologicamente em seu meio), pode-se incluir tam- bém a arte do papel recortado, herança portu- guesa largamente utilizada no Brasil ainda agrário e agreste, para enfeitar bolos, cobrir tabuleiros de doceiras de rua, forrar prateleiras. Para Freyre, o doce no Brasil vem adoçar as bocas e, em certo sentido (que ele chamaria de simbólico) adoçar o “coração e os humores”. Ao doce associa-se o chamego e a meiguice, o amo- lecimento das relações interpessoais. Aliás, ao re- ferir-se ao açúcar como “complexo do açúcar” como acima mencionamos, ele não está se refe- rindo somente ao produto em si, o ingrediente, mas considerando-o numa série de aplicações e repercussões) na vida em grupo. Sem a escravi- dão não se explicaria o desenvolvimento da arte do doce, pois este tipo de confeitaria, com suas exigências de mão-de-obra e mesmo de material só foi possível pelas horas de ócio e lazer das sinhás ricas e o trabalho fácil das escravas. As receitas constituem um capítulo particular na história do doce na sociedade brasileira. A imprecisão das medidas numa sociedade ainda pouco envolvida com a linguagem universal matemática – “um prato fundo”, “uma garrafa”, “três palanganas” – , tanto pode nos revelar a pouca instrução das sinhás, como um certo cuidado em se resguardar as re- ceitas. Observa-se freqüentemente a profusão de ingredientes como os ovos (18, 30, até 36 ovos...): origem aristocrática, ou talvez, o contexto rural de abundância de certos víveres. Os nomes das receitas também carregam significados que extrapolam o universo da cozinha: intenções ve- ladas (como já mencionei anteriormente), momen- tos históricos (Bolo Abolicionista, Bolo Republica- no), a realidade colonial (Beijos de Cabocla, Arrufos de Sinhá). As receitas pertenciam ao domínio das mu- lheres. Segredos de família que lhe conferiam dis- tinção. No Nordeste assumiram forma emblemática como se fossem brasões de grandes famílias. Fundavam-lhes a tradição, inacessível a “qualquer um”. Bolos e doces que tomaram no- mes de família, ou de engenho, mantendo-se as receitas como segredo de família, Freyre nos fala de uma “maçonaria” de mulheres guardando re- ceitas e transmitindo-as entre gerações. Compreender o “complexo do açúcar” im- plica a atenção à suas aplicações. Quais frontei- ras se estabelecem nesta profusão de doces, que se tornam repetitivos ao paladar? Freyre nos cha- ma a atenção para este detalhe, relembrando-se de F. Boas, ao estudar a variedade de comidas preparadas com azeite pelos Kwakiutl à base de peixe, e que lhe pareciam, ao paladar do euro- peu, monótonas: “sempre o mesmo gosto de peixe no azeite”(1997:73). Obviamente, não aos olhos do nativo. Assim também são os doces, par- ticularmente os doces nordestinos, cuja diversi- dade associa-se a uma etiqueta social: doces para o almoço, outros para o jantar, doces de festa, de casamento, de Natal, de São João. “Tudo açú- car, mas dentro do gosto uma variedade e hie- rarquia” (op.cit.:74). __________________________ 3 Gilberto Freyre nos fala de um paladar tropicalmente, eco- logicamente condicionado a estimar o doce e até de abu- sar. Há referências de vários depoimentos de estrangeiros sobre o fato de os doces brasileiros serem excessivamente doces, o qual Freyre associa à influência moura na cultura portuguesa. Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 36 Esta sociabilidade fraterna e popular, numa sociedade hierárquica, como a brasileira, é tam- bém vivenciada através dos “usos da comida”. Estou me referindo particularmente à associação entre a hospitalidade – arte de receber bem – e refeição, a arte do bem oferecer. Como Freyre destaca, fazia parte das “leis de nobreza à brasi- leira”, na casa grande, receber o viajante a qual- quer hora com um lugar à mesa. A mesa sempre posta, patriarcal,prontificada a agasalhar paren- tes, visitantes, afilhados. A NARRATIVA GASTRONÔMICA DA MODERNIZAÇÃO DA SOCIEDADE A ênfase na autenticidade, a busca de raízes, presentes tanto em Freyre como em Cascudo, faz transparecer uma certa nostalgia quanto à origi- nalidade do passado, um tanto quanto agreste e tradicional, em processo de descaracterização fren- te ao progresso, à urbanização, à sofisticação tecnológica. Os signos da praticidade, da veloci- dade, “desmoralizando” as demoradas prepara- ções. Para Cascudo, a dita “cozinha internacio- nal” seria principalmente indefinida, sem origem, sem uso habitual. Uma estratégia de estímulo à comercialização da produção enlatada. É em Freyre (1968) que temos uma análise detalhada dos impactos do processo de industria- lização no Brasil do século XIX. Após três séculos de relativa segregação do Brasil do mundo euro- peu não-ibérico, a sociedade brasileira torna-se mercado atraente para uma Europa em plena in- dustrialização: dos tecidos aos alimentos em lata e conservas. O processo de urbanização na socie- dade brasileira pode ser representado pela passa- gem da casa grande do engenho para os sobrados da cidade. Nestes, vida mais social, mais munda- na. O absolutismo do poder patriarcal se diluindo pela presença do médico, do juiz, do chefe de polícia. A máquina vai diminuindo a importância do binômio senhor/escravo e valorizando, princi- palmente, o mulato, capaz dela se ocupar com sua técnica. A padronização empalidecendo o asiático, o africano e o indígena em nossa socie- dade: o brasileiro foi abandonado muito de seus hábitos tradicionais, seja nas cores da moradia, na forma de se vestir, no que comer. Franceses, in- gleses, italianos, desvelando ao brasileiro novas zonas de sensibilidade. Modelos cuidadosamente seguidos, tanto mais alta a posição de prestígio na sociedade. O mulato bacharel que deixa a cacha- ça pelo vinho, o bredo pela carne. A valorização social de novos elementos: o chá, a cerveja, o bis- coito de lata, a batata inglesa, o pão, a manteiga. Como se fosse vergonhoso o hábito agreste do pirão, beiju, “os matos”. Desapareceu o sobrado o costume português da horta junto ao jardim, para que este fosse, enfim, ocupado por plantas finas e européias. Confinadas aos mucambos, as plantas nativas, africanas e asiáticas, úteis à casa, profiláticas, “plantas de negro”, “de mucambo”. A vaca lentamente substituindo a cabra para o consumo de leite. A louça indiana e chinesa trocada pela francesa e inglesa. A cidade imperial oferece uma vida social mais ativa, intensificando-se o contato, o lazer na rua. Estamos numa época em que as cidades mai- ores recebem doceiros e confeiteiros franceses e italianos, vindo oferecer ao espaço público novas possibilidades de sociabilidade. O gelado, os sor- vetes em particular, marcam esta fase. Uma nova vida, que aos olhos de Freyre e Cascudo contri- buíram para a descaracterização de seu país e prin- cipalmente, retiravam-lhe as cores, fazendo com que, exatamente esta singularidade histórica – fruto de confluências no processo de formação desta nação – fosse desprezada, ou até esquecidas. BIBLIOGRAFIA BASTIDE, Roger. El projimo y el estraño. El encuentro de las civilizationes. Buenos Aires: Ammnorritu, 1973. CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação no Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: Editora USP/ Itatiaia, l983. FRYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. FREYRE, Gilberto. Problemas Brasileiros de Antropo- logia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973a, 16ª ed. FREYRE, Gilberto. Açúcar. Uma Sociologia do Doce, com Receitas de Bolos e Doces do Nordeste do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. LÉVI-STRAUSS, Claude. L’Origine des Manières de la Table. Paris, Plon, 1968.
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