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WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e direitos sociais no Brasil. São Paulo: Acadêmica, 1989. --. História do direito no Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. --. Ideologia, Estado e direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. --. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002 (8. ed., 2012). --. Pluralisn10 jurídico - fundamentos de uma nova wltura no direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001. --. Pluralismo jurídico: novo marco emancipatório na historici- dade latino-americana. Revista do SAJU. Porto Alegre: UFRGS, n. 01, dez. 1998. --. Sobre a teoria das necessidades: a condição dos "novos" direitos. Alter Ágora. Revista do Curso de Direito da UFSC. Florianópolis, n. 1, p. 42-47, maio 1994. WUCHER, Gabi. Minorias. Proteção internacional em prol da democracia. São Paulo:Juarez de Oliveira, 2000. 48 CAPÍTULO 2 Os Direitos da Criança e do Adolescente: Construindo o Conceito de Sujeito-Cidadão J osiane Rose Petry Veronese Professora Titular de Direito da Criança e do Adolescente dos cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito da UFSC. Doutora em Direito. Subco- ordenadora do curso de Direito ela UFSC. Coordenadorn do NEJUSCA- Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais ela Criança e do Adolescente/CCJ/UFSC e sub- coordenaelora do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade/CCJ/UFSC. Sumário: Introdução. 1. Uma breve incursão histórica. 2.A Convenção Internacional dos Direitos da Criança. 3. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a construção doutrinária da criança-sujeito. Conclusão. Referências bibliográficas. INTRODUÇÃO Primeiramente faz-se necessano propor ao leitor a seguinte questão: trata-se o Direito da Criança e do Adolescente de um direito novo? Não seria um mero sucedâneo do Direito do Menor, já refe- rendado nos Códigos de Menores de 1927 e 1 979? O nascer de um novo direito - o Direito da Criança e do Ado- lescente -, o qual em face de sua especificidade concebe toda a sua fundamentação conceitua! com base na inter e multidisciplinaridade, que, aliás, se apresentam hoje como duas d?s mais importantes discus- sões, sobre as quais nos debruçamos, evidencia não somente a impor- tância mas a imprescindibilidade da conjugação de conhecimentos. O Direito da Criança e do Adolescente se estrutura com vistas ao Direito Internacional Público e Privado, ante os Tratados e as Con- 49 venções Internacionais, ao Direito Constitucional, que no caso brasi- leiro defere absoluta prioridade à criança e ao adolescente; ao Direito Civil, Penal, Trabalhista, Processual e, ainda, a certas leis extravagantes, como a Lei da Ação Civil Pública, de necessária abordagem em se tratando da tutela dos interesses difusos e coletivos. Devemos considerar, ainda, o seu entrelaçamento com outras áreas do conhecimento que não o jurídico, como a Sociologia, a Psi- cologia, a Pedagogia, a Criminologia, etc. O objetivo de um direito novo que contemple a possibilidade de construirmos a criança e o adolescente enquanto sujeitos de direitos significa não visualizá-los como seres simplesmente receptores de ga- rantias; é, acima de tudo, um processo de edificação de suas autonomias. A criança e o adolescente na ótica menorista eram meros objetos de toda uma ideologia tutelar, de uma cultura que coisificava a infân- cia.Já na ótica desse novo direito, a criança e o adolescente são com- preendidos como sujeitos, cujas autonomias estão se desenvolvendo, elevando-os a autores da própria história, enquanto atores sociais. Portanto, este novo direito social, ao garantir o acesso à educação, por exemplo, o faz consciente de que a educação é um dos instrumen- tos mais eficazes para o surgimento do sujeito-cidadão. O verdadeiro projeto pedagógico é aquele que se assenta neste elemento fundamen- tal: suscitar seres autônomos, com capacidade de criticar, de criar, de transformar, enfim_, de realmente fazer este momento histórico em que estamos temporalmente situados. Diante dos dois primeiros questionamentos acima colocados, faremos, ainda que sinteticamente, uma análise sobre a história da proteção ao infante e jovem brasileiros, nas esferas assistencial e jurí- dica. 1. UMA BREVE INCURSÃO HISTÓRICA O resgate histórico das nos~a~ leis e ações em favor da criança brasileira é importante para compreendermos no que consiste, efeti- vamente, a mudança de paradigma ocorrida. Ou seja, do Direito Tu- telar, caracterizador da "Doutrina da Situação Irregular", para um Direito Protetor-responsabilizador, da "Doutrina da Proteção Integral". 50 A reconstrução histórica da atenção dada ~ cria~ç~ e ao _adoles- meio das legislações e iniciativas ass1stenc1a1s surgidas no cente por b Brasil a partir de 1823 - logo após a independência, em 7 de setem ro de l822 - importa em resgatar aspectos específicos que traçaram e estrUturaram essa caminhada. O surgimento das primeiras leis e instituições foi sendo firmado gradativamente. Quando da primeira discuss~o sobre o proble~a da criança - atente-se: da criança negra, eu: virtude do nosso siste~a Crata na Constituinte de 1823 - nao houve uma preocupaçao escravo , , . , . . com a criança negra em si, quando Jose Bomfac}o ~efendia que a es- rava de ois do parto teria um mês de convalescenna, e durante o ano c p . . "d . ,,1 t ue se seguisse não trabalharia longe a ena ; antes, o que se pre en- 1a era zelar por aquele que constituiria em breve força de trabalho gratuita: o escravo. . Em 1871, com a decretação da Lei do Ventre Livre, fruto da campanha abolicionista, os senhores ~e esc~av~s deli_nearam dois ca- minhos: ou recebiam do Estado uma mdemzaçao, deixando no aban- dono as crianças libertas cujos pais permaneciam em cativeiro, ?u as sustentariam e, em seguida, cobrariam tal generosidade por meio de trabalhos forçados até que completassem 21 anos. Ao observarmos o processo de formação das instituições que pres- tavam serviços de assistência a menores, verifica-se que no período colonial e no Império esta se dava em três níveis: uma caritativa, pres- tada pela Igreja pelas Ordens religiosas e associações civis; outr~ filan- trópica, oriunda da aristocracia rural e mercantilista; e a terceira, em menor número, resultado de algumas realizações da Coroa portuguesa. Em face das mutações sociais, políticas e econômicas que se su- cederam à abolição dos escravos (1888) e à Proclamação da Repúbli- ca (1889), a proteção e assistência à criança carente tornou-se cada vez mais uma necessidade, sentida sobretudo pela própria sociedade. A partir de 1920, fortaleceu-se a opinião de que ao Estado cabe- ria assistir a criança. Tanto que surge nesse período o trabalho de 1 Organização social/população: a situação do menor e os órgãos de proteção - nossos pixotes. Revista Retrato do Brasil. São Paulo, n. 26, s/d., P· 303. 51 formulação de uma legislação específica para menores, o que se con- solidou no Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, cuja elaboração foi confiada pelo Presidente Washington Luiz ao jurista Mello Mattos. O Código de Menores de 1 927, considerado o primeiro código da América Latina, uma vez que conseguiu corporificar leis e decretos que, desde 1902, propunham-se a aprovar um mecanismo legal que desse especial relevo à questão do menor de idade, alterou e substituiu concepções obsoletas como as de discernimento, culpabilidade, res- ponsabilidade, disciplinando, ainda, que a assistência à infància deveria passar da esfera punitiva para a educacional, algo extremamente ino- vador à época, fruto da influência do positivismo, que defendia que quanto mais cedo houvesse uma intervenção, no sentido de tratamen- to, sobre este menor de idade - delinquente ou abandonado-, maio- res seriam as chances de sua recuperação e reintegração social. O surgimentodessa lei pôs em relevo questões controversas em relação à legislação civil em vigor. Com o Código de Menores, o pátrio poder foi transformado em pátrio dever, pois ao Estado era permitido intervir na relação pai/filho, ou mesmo substituir a autoridade pater- na, caso esta não tivesse condições ou se recusasse a dar ao filho mna educação regular, recorrendo então o Estado à utilização do internato. Já para o Código Civil (1916), o pai, enquanto chefe da prole, conti- nuava detendo o pátrio poder sobre todos os que compunham a estru- tura familiar: mulher, filhos, agregados, pessoas e bens sob o seu domí- nio, o que era específico do patriarcalismo. Sob o prisma constitucional, as Cartas Políticas de 1824 e 1891 são omissas em relação à criança. A primeira a referir o assunto foi a Constituição de 1934, ao proibir o trabalho para os menores de 14 anos.A partir de 1937, é ampliada a esfera de proteção à criança desde a infància, ficando ao encargo do Estado assisti-la nos casos de carên- cia. A Constituição de 1946 continuou, de igual modo, protegendo-a desde a maternidade. Já a Constituição Federal de 1967, seguida pela Emenda Constitu- cional n. 1, de 1969, ao instituir a assistência ao universo infantojuvenil, não seguiu no todo as Constituições precedentes, determinando duas modificações específicas: a primeira referente à idade mínima para a ini- ! . ciação ao trabalho, que pa~sa a ser de 12 a~os; e a segu~~ instituin~o o ensino obrigatório e gratmto nos estabelecimentos ofic1a1s para as cnan- as de 7 a 14 anos de idade. A postura assumida pelo Estado brasileiro de ç ermitir o trabalho de crianças com 12 anos, a partir de 1967, significou ~m retrocesso com relação às legislações da maioria dos países. A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, significou um grande avanço nos direitos sociais, e isto, por sua vez beneficiou, entre outros, a criança e o adolescente. Nessa perspectiva, tem-se, exemplificativamente, que a idade mínima para admissão ao trabalho é, novamente, fixada em 14 anos - art. 72 , XXXIII. Recordemos que, em novembro de 1998, a Emenda Constitucional n. 20 alterou estes limites de idade, determi- nando 16 anos como a idade mínima para o início das atividades la- borais e 14 como aprendiz. Quanto à educação, tal Carta Política, em seu art. 208, determina como dever do Estado garantir ensino funda- mental, obrigatório e gratuito, até mesmo para os que a ele não tiveram acesso na idade própria. De acordo com a presente análise histórica, constatamos que a expressão "menor" fora usada desde as Ordenações do Reino, como categoria jurídica, como caracterizadora da criança ou adolescente envolvido com a prática de infrações penais.Já no Código de Menores de 1927, o termo foi utilizado para designar aqueles que se encontravam em situações de carência material ou moral, além das infratoras. Com o surgimento do Código de Menores de 1 979 aparece uma nova categoria: "menor em situação irregular'', isto é, o menor de 18 anos abandonado materialmente, vítima de maus-tratos, em perigo moral, desassistido juridicamente, com desvio de conduta ou autor de infração penal. O Código de Menores de 1 979, apesar de ter constituído, em re- lação ao anterior (de 1 927), um avanço em algumas direções, continha, no entanto, aspectos controversos que perniitiam questiona1nentos e críticas, corr:io é o _caso das características inquisitoriais do processo en- volvendo crianças e adolescentes, quando a própria ConstituiçãÕ garan- tia ao maior de 18 anos ampla defesa; o referido Código não previa o princípio do contraditório. Outro fato que pode ser colocado como exemplo dessa distorção era a existência para os menores de 18 anos da 53 "prisão cautelar", uma vez que o menor, ao qual se atribuía a autoria de infração penal, podia ser detido para fins de verificação, o que significa- va uma verdadeira afronta aos direitos da criança, na medida em que para o adulto a prisão preventiva só poderia se aplicada em dois casos: fla- grante delito ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente - art. 52 , LXI, da CF O Estatuto da Criança e do Adolescente veio pôr fim a estas si- tuações e tantas outras que implicavam ameaça aos direitos das crian- ças e dos adolescentes, suscitando, no seu conjunto de medidas, uma nova postura a ser tomada, tanto pela fanúlia como pela escola, pelas entidades de atendimento, pela sociedade e pelo Estado, objetivando resguardar os direitos das crianças e adolescentes, e zelando para que não sejam sequer ameaçados. 2. A CONVENÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA Do universo de documentos internacionais que objetivam resguar- dar os direitos infantojuvenis destaca-se a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada com unanimidade pela Assembleia das Nações Unidas, em sua sessão de 20 de novembro de 1989. Se fizermos uma análise pormenorizada desse tratado de direitos humanos constataremos a sua efetiva influência sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, chama atenção o fato de que a Convenção Inter- nacional, diferentemente da Declaração Universal dos Direitos da Criança, não se configura numa simples carta de intenções, uma vez que tem natureza coercitiva e exige do Estado Parte que a subscreveu e ratificou um determinado agir, consistindo, portanto, um documen- to que expressa de forma clara, sem subterfúgios, a responsabilidade de todos com o futuro. A citada Convenção trouxe para o universo jurídico a Doutrina da Proteção integral. Situa a criança dentro de um quadro de garantia integral, evidencia que cada país deverá dirigir suas políticas e diretri- zes ºtendo por objetivo priorizar os interesses das novas gerações; pois a infância passa a ser concebida não mais como um objeto de "medi- das tuteladoras", o que implica reconhecer a criança sob a perspectiva de sujeito de direitos. 54 Ao contrário da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, a qual sugere princípios de natureza moral, sem nenhuma obrigação, representando basicamente "sugestões" de que os Estados poderiam se servir ou não, a Convenção tem natureza coercitiva e exige de cada Estado Parte que a subscreve e ratifica um determinado posicionamento. Como um conjunto de deveres e obrigações aos que a ela formalmente aderiram, a Convenção tem força de lei internacio- nal e, assim, cada Estado não poderá violar seus preceitos, como também deverá tomar as medidas positivas para promovê-los. Há que se colocar, ainda, que tal documento possui mecanismos de controle que possi- bilitam a verificação no que tange ao cumprimento de suas disposições e obrigações. Tudo isso faz da Convenção um poderoso instrumento para modificação das maneiras de entender e agir de pessoas, grupos e co- munidades, produzindo mudanças no panorama legal, suscitando o reordenamento das instituições e promovendo a melhoria das formas de atenção direta. Durante a sua elaboração houve quem indagasse até que ponto · i seria ou não eficaz um documento que definisse critérios universais, ·,,<:,·tendo-se em conta a existência de acentuadas diferenças políticas, ),;J;:~.·C:ulturais, religiosas, sociais e econômicas entre os mais diversos povos '~~!~!~,país~~ fato, a concepção de regras genencas de caráter universal :;~tf ::representou urna tarefa sem precedentes, neste campo, tanto que foram , necessários dez anos de trabalho. No entanto, como afirma Pereira, "a Convenção representa um ,, consenso de que existem alguns direitos básicos universalmente acei- .tos e que são essenciais para o desenvolvimento completo e harmo- . ruoso de uma criança. Representa em definitivo, o instrumento jurí- dico internacional mais transcendente para a promoção e o exercício dos Direitos da Criança"2 • {.\'···. ./_~:·--~- ~:~Convenção e o Estatuto: um ideal comum de proteção ao ser humano cm vias de ~esenvolvimento. ln: PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). Estat11to da Crim1ça e do :.· dolescente: estudos sociojuridicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 69. 55 No Brasil a Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n. 28, de 14 de setembro de 1990 1 sendo que em 21 de novembro desse mesmo ano foi finalmente pro~ mulgada pelo Decreto n. 99.710. A Convenção, enquanto tratado de Direitos Humanos, se cons- titui num documento extrenurnente relevante num todo; no entanto, por questões metodológicas, alguns pontos podem ser salientados: 1) Todas as ações que digam respeito à criança deverão, primor- dialmente, considerar os seus interesses, cabendo ao Estado promover a proteção e cuidados que sejam necessários ao seu bem-estar, sobre- tudo quando os pais ou responsáveis não o fizerem (art. 3º). 2) Os Estado são obrigados a implementar os direitos reconhe- cidos na Convenção, por meio de medidas legislativas, administrativas ou de outra espécie. Para tanto, é necessário que os países destinem parte de seus recursos para tal fim e mais, sendo necessário, poder-se- -á até mesmo recorrer à cooperação internacional (art. 4º). Eis aí uma das grandes novidades trazidas pela Convenção, pois o hermético conceito de soberania se abre para o da solidariedade entre as nações. 3) A criança tem o direito à vida, sendo dever do Estado assegu- rar a sua sobrevivência e o seu desenvolvimento (art. 6º). Aí se cons-- tata a importância dos arts. 5º e 6º da atual Constituição Federal, o primeiro que trata dos direitos individuais e coletivos e o segundo dos sociais, tais como o direito à educação, à moradia, ao trabalho, à saúde pública, à previdência social, ao lazer, à proteção materno-infantil, à assistência aos desamparados. Portanto, o cumprimento de tais precei- tos implica garantia de cidadania, garantia de qualidade de vida. 4) Também é obrigação do Estado garantir proteção especial a crianças privadas temporária ou permanentemente de suas famílias e assegurar-lhes um ambiente familiar alternativo que seja adequado ou, nas hipóteses em que for necessária a colocação em instituições, que estas sejam apropriadas, devendo considerar o meio cultural da criança, bem ~o~mo seus componentes éticos, religiosos e linguísticos (art. 20). 5) Nos países em que a adoção é reconhecida e/ou permitida, esta somente realizar-se-á quando de fato representar um bem, con- soante os interesses da criança, e ainda, deverá ser revestida de todas as garantias e autorizada pelas autoridades competentes. 56 Nesse aspecto, uma das novidades da Convenção está no fato de que para a implementação da adoção internacional poderão, quando necessários, ser realizados ajustes ou acordos bilaterais ou multilaterais, com o fim de assegurar que a colocação da criança em família substi- tuta em outro país seja conduzida por autoridades ou organismos competentes (art. 2º). Pretende tal norma evitar que se realizem adoções revestidas de ilicitudes, lembrando-se que constitui medida excepcional, devendo-se considerar o "interesse maior da criança". Busca-se com isso evitar o tráfico de crianças, pois se é correto afirmarmos que a adoção signifi- ca uma fornia de resolver os problemas de crianças que vivem em condições subumanas, sobretudo nos países marcados pela miséria, também é certo que não seria adequado que a adoção fosse realizada sem nenhuma formalidade legal, sem nenhum compromisso, tendo em conta que se deve impedir os abusos que já ocorreram, e infelizmente ainda ocorrem, em face da falta de escrúpulos de pessoas ou mesmo de entidades que se servem desse mecanismo para auferir vantagens econômicas. Seguindo tal orientação, também o Estatuto da Criança e do Adolescente faz no campo da adoção internacional uma série de exigências (art. 52 do ECA). Alguns juristas são de opinião de que o Estatuto da Criança e do Adolescente foi muito criterioso com a adoção internacional, alegan- do que, num país como o Brasil, com tantos milhões de abandonados, este excesso de zelo será prejudicial, podendo até mesmo interromper as adoções feitas por estrangeiros. Entretanto, entendo que as exigências feitas pelo Estatuto são no sentido de salvaguardar ao máximo os di- reitos dessas crianças e adolescentes, que já sofreram a primeira perda: a da família natural, tanto que estão à disposição para serem adotados e, portanto, seria extremamente traumatizante se novan1ente a situação de abandono, carência ou maus-tratos se repetisse. Dessa forma, os requisitos da nova lei são elogiáveis. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem como uma de suas metas pôr fim ao tráfico de" crianças brasileiras para o exterior, coibindo radicalmente adoções permeadas de engodos e vícios. 6) O art. 23 da Convenção diz respeito ao direito das crianças deficientes - fisicas ou mentais - a cuidados, educação e treinamento 57 especiais para ajudá-las a ter uma maior autonomia, desfrutar de uma vida digna e plena e poderem participar ativamente do corpo social, não obstante suas limitações. A Constituição Federal, em seu art. 227, II, e o Estatuto, no art. 11, § 1 º,também se preocupam, como não poderia deixar de ser, com tal matéria. Todavia, na prática, o que se percebe é uma total incúria com a criança portadora de algum tipo de necessidade especial. E com isso se desencadeia, inclusive, uma "cultura" negativa e individualista, na qual somente as pessoais sadias são consideradas aptas a participar da vida em sociedade. Mas a falta de sensibilidade política para com o portador de ne- cessidades especiais não constitui um fato isolado, isto porque todo o sistema de saúde é deficitário: mesmo tendo a Constituição e o Esta- tuto abordado a matéria, este não tem sido objeto de medidas sérias e complementares. Não conseguimos garantir o acesso de todas as crianças e adoles- centes aos serviços médicos e de saúde, reduzir os índices de mortali- dade infantil, assegurar às mães a adequa_da assistência pré-natal e pós-natal, desenvolver a assistência médica preventiva, combater a desnutrição (art. 24). O mesmo se dá com a educação (art. 28), que de igual modo está sucateada. Portanto, neste contexto, como desenvolver a personalidade da criança, as suas aptidões e todo o seu potencial fisico e mental? Como desenvolver nas crianças o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais, ao meio ambiente; ou mesmo como imbuir na criança e no adolescente o respeito aos pais, a sua própria identi- dade cultural, idioma, valores, se tudo isso é para elas algo inexistente? Analisando a Convenção Internacional, muitos outros problemas se afiguram como emergenciais - citem-se os relativos ao trabalho, à previdência social, ao padrão de vida, ao abuso de drogas, aos maus- -tratos ou à exploração, inclusive abuso sexual, os relativos à Adminis- tr~ção da Justiça etc. · Dessa forma, a Lei n. 8.069/90 significou para o direito infanto- juvenil uma verdadeira revolução ao adotar a doutrina da proteção integral. 58 Essa nova postura tem como alicerce a convicção de que a crian- ça e o adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais, que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvi- mento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferenciada, integral. O surgimento de uma nova legislação que tratasse seriamente dos direitos da infància e da adolescência era de caráter imprescindível, pois havia uma necessidade fundamental de que estes passassem da condição de "menores" para a de cidadãos. 3. O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A CONSTRUÇÃO DOUTRINÁRIA DA CRIANÇA-SUJEITO É importante destacarmos que o Estatuto não apenas reconhece os princípiosda Convenção como os desenvolve, convencido de que a criança e o adolescente são merecedores de direitos próprios e espe- ciais e que, em razão de sua condição específica de pessoas em desen- volvimento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferen- ciada e integral, consoante os ditames da atual Constituição, art. 227. O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao assegurar em seu art. 12 a proteção integral à criança e ao adolescente, reconheceu como funda- mentação doutrinária o princípio da Convenção, que em seu art. 19 determina: "Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência fisica ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do represen- tante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela" .Aliás, tal regra repetiu o que já havia sido colocado na Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, que no Princípio 92 dispunha: "A criança gozará proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma". . A_ ~onstituição Federal de 1 988 dispõe em seu art. 227, caput:" É dever da fanúlia, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à ali- mentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à digni- dade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, 59 além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Portanto, como se verifica, a atual Carta Política tem essa nova base doutrinária, a qual implica que, fundamentalmente, as crianças e adolescentes brasileiros passam a ser sujeitos de direitos. Essa categoria encontra sua expressão mais significativa na própria concepção de Direitos Humanos de Lefort: "o direito a ter direitos" 3 , ou seja, da dinâmica dos novos direitos que surge a partir do exercício dos direi- tos já conquistados. Desse ponto de partida o sujeito de direitos seria o indivíduo apreendido do ordenamento jurídico com possibilidades de, efetivamente, ser um sujeito-cidadão. É oportuno acentuarmos que a lei anterior ao Estatuto da Crian- ça e do Adolescente, o Código de Menores de 1979, fundamentava-se na Doutrina da Situação Irregular, isto é, havia um conjunto de regras jurídicas que se dirigiam a um tipo de criança ou adolescente especí- ficos, aqueles que estavam inseridos no quadro de uma suposta "pato- logia social", elencados no art. 22 do referido Código, o que equivale afirmar, entende Amaral e Silva, que tal doutrina "confunde na mesma situação irregular, abandonados, maltratados, víFimas e infratores. Cau- sa perplexidade que se considerasse em situação irregular o menino abandonado ou maltratado pelo pai, ou aquele privado de saúde ou da educação por incúria do Estado"4 . Salienta o autor citado que estará sim em situação irregular "aquele que descumprir os deveres inerentes ao pátrio poder ou quem negligenciar políticas sociais básicas. Está em situação irregular, de ilegalidade, o pai que abandona ou o Estado que negligencia, nunca o abandonado, a vítima"5 • O Código de Menores de 1 979, ao se dirigir a uma categoria de crianças e adolescentes, os que se encontravam em situação irregular, colocava-se como uma legislação tutelar. Na realidade tal tutela pode ser entendida como culturalmente inf eriorizadora, pois implica o 3 LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia,revolução e liberda- de. Trad. de Eliana M. Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 58. 4 Comentários do debatedor. ln SIMONETTI, Cecília et alii (Orgs.). Do avesso ao di- reito. São Paulo: Malheiros/Governo do Estado de São Paulo/UNICEF, 1994, p. 37. 5 Idem, ibidem, p. 3 7. 60 ~\:'·i::f~~[;; : esguardo da superioridade de alguns, ou mesmo de grupos, sobre :< ":',:' ·,' ·.· r s como a história registrou ter ocorrido, e ainda ocorrer, com ., "· .outro, mulheres, índios e outros. No que concerne a este aspecto, parece muito interessante e oportuna a crítica de Zaffaroni, ao afirmar que: "Ao longo de toda a história da Humanidade, a ideologia tutelar em ualquer âmbito resultou em um sistema processual punitivo inquisi-~rio. o tutelado sempre o tem sido em razão de alguma inferioridade (teológica, racial, cul~ural, bio~ógica, etc). C~lo~iza_dos, mulheres, _do- entes mentais, minonas sexuais etc. foram psiqmatnzados ou conside- rados inferiores, e portanto, necessitados de tutela" 6 • Desse modo, a Lei n. 8.069/90 significa para o direito da criança e do adolescente uma verdadeira revolução ao adotar a Doutrina da Proteção Integral. Esse entendimento tem como alicerce a convicção de que a criança e o adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais e que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvi- mento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferenciada e integral. O surgimento de uma legislação que se ocupasse seriamente dos novos direitos da infància e da adolescência era de caráter imprescin- dível, pois havia uma necessidade fundamental de que estes passassem da condição de menores, da semicidadania para a da cidadania. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem o relevante papel, ao regulamentar o texto constitucional, de fazer com que este último não se constitua em letra morta. No entanto, a simples existência de leis que proclamem os direitos sociais, por si só, não consegue mudar as estruturas; antes há que se conjugar aos direitos uma política social eficaz que de fato assegure materialmente os direitos já positivados. Para tanto é necessário que se dê um impulso aos dois grandes princípios da Lei n. 8.069/90: o da descentralização e o da partici- pação. A implementação deste primeiro princípio - descentralização 6 ZAFFARONI, Raul. Do advogado - art. 206: ln CURY, Munir et alii (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 1 O. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 971. 61 - deve resultar numa melhor divisão de tarefas, de esforços, entre a União, os Estados e os Municípios no cumprimento dos direitos sociais. No que tange à participação, esta importa na atuação sempre progres- siva e constante da sociedade em todos os campos de ação. Assim, faz-se imperiosa a edificação de uma cidadania organizada, ou seja, a própria sociedade a mobilizar-se. Eis aí o porquê do grande estímulo que o Estatuto da Criança e do Adolescente dá às associações na for- mulação, reivindicação e controle das políticas públicas.As associações, ONGs, grêmios, enfim, todos os mecanismos caracterizadores de um movimento social, pautados na compreensão mais moderna de cida- dania, qual seja, a da efetiva participação de cada cidadão, têm lugar de destaque na edificação do Direito da Criança e do Adolescente, pois aí o ser sujeito se consolida, pois não se trata de "aguardar" paternalis- ticamente a ação do Estado, mas antes se constitui num processo de mão dupla: reivindicar e construir. Merece destaque outra relevante questão presente na Lei n. 8.069/90 que diz respeito à possibilidade de os novos direitos da criança e do adolescente serem demandados em juízo. Portanto, ~o tratar da tutela jurisdicional dos interesses individuais, difusos e cole- tivos, chama a atenção o fato de que o Estatuto da Criança e do Ado- lescente está em consonância com as novas diretrizes da processualís- tica civil por três motivos: Primeiro, ao contemplar os meios judiciais garantidores dos in- teresses da criança e do adolescente, sobretudo no que diz respeito aos direitos coletivos e difusos, percebe-seque a natureza privatista do Direito Processual está sendo objeto de profundas modificações, as quais remetem à necessidade de superação de determinadas estruturas tradicionais. Por conseguinte, a Lei n. 8.069/90, ao admitir o ingresso em juízo dos mais variados tipos de demandas que visem à proteção de seus interesses, importa um significativo avanço no campo proces- sual, uma vez que não está presa à ideia de procedimento, de rito, considerando merecedor de atenção o conteúdo do direito que está sendo pleiteado. Segundo, ao se preocupar com o tema do acesso à Justiça, está a nova lei atenta ao fato de que hoje a garantia desse acesso se constitui nun1 dos mais elementares direitos, pois a sociedade pouco a pouco 62 passou a compreender que não mais é suficiente que o ordenamento jurídico contemple direitos; antes é imprescindível que estes sejam efetivados, sendo que a propositura em juízo é, portanto, um dos me- canismos que visam à sua aplicabilidade. Terceiro, o acesso à Justiça na interposição de interesses afetos à criança e ao adolescente constitui, ainda, mais um fator a corroborar 0 processo de transformação do próprio Poder Judiciário, o qual pas- sa a ser um instrumento de expansão da cidadania. Isto se dá porque, saindo da antiga posição de árbitro de litígios de natureza intersubje- tiva, agora é chamado a posicionar-se diante de situações de caráter transindividual como o são os direitos sociais. Dentre as inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Ado- lescente podemos destacar, justamente, a possibilidade de exigir do Estado, por meio, por exemplo, da interposição de uma ação civil pública, o cumprimento de determinados direitos como o acesso à escola, a um sistema de saúde, a um programa especial para portadores de doenças fisicas e mentais etc., previstos na Constituição Federal e regulamentados pela Lei n. 8.069/90. Segundo Nogueira, inegável é o fato de que no Brasil há toda uma produção legislativa "em favor do cidadão, concedendo-lhe os direitos individuais, difusos ou coletivos, através da Constituição Fe- deral, das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas Municipais, além de outras leis ordinárias, como o Estatuto da Criança e do Ado- lescente, mas o que falta, nesse c01nplexo de leis, é fazer justamente o Estado funcionar, através de seus governantes, que conhecem os pro- blemas e têm as soluções, mas que só se preocupam em desfrutar o poder"7 . Afirma De Paula que a lei anterior, ou seja, o Código de Meno- res de 1979, "a despeito de ser tratado, por alguns, como instrumento de proteção e tutela, olvidou que o Estado é o grande responsável por essa degradante situação na qual se encontra a maioria da população infantojuvenil, isentando-o de qualquer responsabilidade. Consideran- 7 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Crian(a e do Adolescente comentado. São Paulo: Saraiva, 1991,p.283. 63 do os pais ou responsável como exclusivos causadores da situação irre- gular, nenhuma menção existe em relação à omissa participação do Estado e, via de consequência, tão pouco contempla o Código de Menores mecanismos jurídicos visando compelir o Poder Público a cumprir suas funções. Assim, restringiu-se a Justiça de Menores ao julgamento de conflitos eminentemente individuais,jamais colocando a Administração no banco dos réus. O Estado nunca foi chamado perante o judiciário, sequer para justificar suas constantes omissões"ª. Entendemos que o postular junto ao Poder Judiciário, visando à garantia dos direitos e interesses individuais, difusos e coletivos, repre- senta todo um processo não linear do processo civilizatório. Eis que se evidencia que não mais é suficiente que os ordenamentos jurídicos proclamem direitos, tornando imprescindível antes que os mesmos sejam concretizados. O acesso à Justiça se coloca como um dos direitos humanos, isto é, consiste num caminho ou numa possibilidade de que os direitos existentes em nível formal, de fato, venham a ter eficácia plena no mundo dos fatos. Diante dessas colocações acerca da interposição de demandas que visam a resguardar os interesses afetos à criança e ao adolescente, o tema conduz também a uma reflexão de que tal acesso constitui um avanço na construção da cidadania em dois planos: o primeiro, no sentido de que torna mais explícitos os direitos da criança e do ado- lescente, possibilitando à sociedade uma maior conscientização no que tange ao seu papel de contínua reivindicação dos citados direitos e interesses. Em segundo lugar, o próprio Poder Judiciário passa a ser encarado como um instrumento de expansão dessa cidadania, pois suas sentenças, se deferidoras dos direitos pleiteados, ensejarão, para a sua eficácia, determinadas realizações por parte do Poder Executivo, no- tadamente no campo social. A questão do acesso à Justiça, o qual não pode ser entendido como mera capacidade çle_ ingres~ar ~~juízo, tem em seu fundamen- 8 DE PAULA, Paulo Afonso Garrido. Menores, direito e justiça: apontamentos para um novo . direito das crianças e dos adolescentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 122. 64 to a necessidade de uma maior politização por parte das camadas populares. Nesse sentido, o entendimento de que toda pessoa humana é sujeito de direitos faz-se imprescindível na formulação do conceito de cidadania, como a condição que identifica os direitos e garantias dos indivíduos, os quais, já satisfeitos em suas necessidades humanas básicas, possam ter condições, quer enquanto indivíduos singularmen- te considerados, quer enquanto organizados em grupos, de participar efetivamente nos destinos da sociedade e da vida política do país. Se- gundo tal leitura, as inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente devem gradativamente revolucionar o modo de a família, a sociedade e o Estado encararem as questões relativas à infância e à juventude brasileiras. Nos últimos anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente tem sido alvo de significativas mudanças com o objetivo de dar uma maior garantia aos nossos infantes e adolescentes, com especial destaque às Leis n. 11.829, de 25 de novembro de 2008, que criou uma série de delitos que envolvem a exploração sexual no ciberespaço, e 12.010, de ~de agosto de 2009, conhecida como Nova Lei da Adoção, a qual provocou significativas alterações, a expressão "pátrio poder" passou a ser a mesma da Constituição Federal, qual seja: "poder familiar"; foi criado o conceito de "família ampliada"; foram estabelecidos prazos ~\'·'.':,:,,~;,.:'"~· 0: ••• es·oe1Clt1CC)S para a destituição do poder familiar e prazo máximo para ~>~'.'.;'<'':':••''.;:··uni.a criança ou um adolescente permanecer nas entidades de acolhi- ·~;;::;,·:.~.,.1mt:~nt:o institucional, entre outras imprescindíveis alterações, as quais longa data já eram objeto de análises por parte dos que operam ;:;~~~~":~;íl.e:sta Diante desse quadro é plausível afirmar que o sistema normativo ·tem sido eficaz nas questões atinentes à infància e à juventude? E se houve alguma preocupação no plano jurídico, até que ponto e em que ; medida esta preocupação tem influenciado a realidade social? Considerando que a Lei n. 8.06.9/90 trouxe uma verdadeira re- iJ}.:'.l!;,,rolucão no que concerne ao universo da criança e do adolescente, a , .. estão que se coloca 21 anos após a sua implementação é, ainda, como ;<?rnar efetivos os novos direitos nela consignados. 65 Como bem assinala Bobbio: "o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los e sim o de protegê-los"9 . Nesse sentido não mais nos deparamos com um problema de ordem filosófica, "mas jurídica e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ouhistóricos, ab- solutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti- los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam conti- nuamente violados" 10• Dentre os ordenamentos legais infraconstitucionais vigentes, 0 Estatuto da Criança e do Adolescente é o que apresenta um maior grau de complexidade e está em harmonia com as mais modernas teorias que tratam dos novos direitos da infância e adolescência. O novo diploma legal se constitui num instrumento legal avan- çado pela sua preocupação com a criança na esfera em que vive - daí a ênfase na municipalização dos serviços, na criação dos Conselhos Tutelares e dos Direitos, enfim, todo um sistema de garantias. A nova lei revela, ainda, outra preocupação com a,. matéria ao possibilitar a propositura de demandas judiciais em defesa dos interesses da criança e do adolescente. Uma preocupação que nos angustia, enquanto pesquisadores do Direito da Criança e do Adolescente, refere-se à análise da doutrina que está sendo formulada, concepções técnicas e conceituais, bem como à construção jurisprudencial, as quais são reveladoras da forma como os juristas têm se posicionado diante da Lei n. 8.069/90: se estão imbuídos deste novo sopro, ou seja, a percepção dos novos direitos, ou se ainda estão presos ao dogmatismo menorista ou, o que seria ainda pior, se estão estruturados a uma dogmática penal conservadora, pau- tada na punição e no afastamento, em forma de institucionalização, dos indesejáveis sociais. 9 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25. 10 Idem, ibidem, p. 25. 66 Como foi possível constatar, o sistema normativo brasileiro legou gum tipo de atenção às questões atinentes à infància e à adolescência. 0 entanto, estas leis apresentavam um caráter discriminador acentu- .'~do: os menores de idade eram objetos tutelados. Quando da promul- .. ~::L~;:r:·~ção do Estatut~ da Cr_ia_nça e d~ ~dolescente, o qu_al se assenta na __ · · :;;.·concepção da cnança sujeito de direitos, a preocupaçao que se apre- ,. ·(/{.'.'t~entava era de que modo e em que grau esta nova postura influencia- : · .:/~1,:i:1fu a realidade. - ,_;:·.~:'~::·~:-· Todos temos consciência de que a lei por si só não opera mu- 'danças ou realizações sociais. Ela é instrumento, é meio. Para que efetivamente essa lei não constitua "letra morta", faz-se continuamen- '\ '• ;.> ~te necessária a constituição de mecanismos, de sistemas facilitadores ~;;··.,riJ':\;.de sua real aplicação, bem como a implantação de políticas públicas ·~.:::,:·'··.;;'~\:.· ..•. ~.:: t acesso à educação à profissionalização à saúde ao ~.·;·<·:f ;_ 9ue garan am o , , , '.:"'ii;.·i.;;\:;·IaZer, ao trabalho e salário justos. Na construção de uma sociedade que efetivamente priorize a ~.- .. ,._ ... ,"" ...... ~,todos somos responsáveis. É justamente por isso que a atual ·-·"-'·'-~"--·- Política visualiza um tripé de agentes asseguradores dos direitos .•• 0 •.•. ~-.. -•·'-"' criança e do adolescente, quais sejam: a família, a sociedade e o ·:,,.,._,Lh> ... 1~.., (art. 227, caput), o que é também repetido pela Lei n. 8.069/90, Nesse processo de conferir à criança e ao adolescente uma série e direitos que vão desde a efetivação dos direitos referentes à vida até ,· convivência familiar e comunitária, há que garanti-los com absoluta . rioridade. A garantia de prioridade, segundo a definição legal, pre- no parágrafo único do art. 42 do Estatuto da Criança e do Ado- ·:::-o····,,,1c~c:enLte, compreende especificamente: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circuns- tâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de rele- vância pública; e) preferência na formulação e na execução das pólíticas ·sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacio- nadas com a proteção à infância e à juventude. 67 • Constata-se por todo o exposto que o Direito da Criança e do Adolescente assenta-se numa nova perspectiva: abandonou-se a con- cepção menorista, da Doutrina da Situação Irregular, para se referendar a ideia fundamental de que estamos diante de um sujeito, um sujeito especial em face de sua condição de pessoa em desenvolvimento. Por ter esta nova concepção teórica, a qual visa a uma formação teórica e práxis diferenciadas, o Direito da Criança e do Adolescente se situa como um dos mais importantes - senão o mais importante - dentre os novos direitos sociais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Couti- nho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CURY, Munir et alii (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente co- mentado: comentários jurídicos e sociais. 1 O. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. DE PAULA, Paulo Afonso Garrido. Menores, direito e justiça: aponta- mentos para um novo direito das crianças e dos adolescentes. São Paulo: Revista do Tribunais, 1989. LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revo- lução e liberdade. Trad. de Eliana M. Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente comen- tado. São Paulo: Saraiva, 1991. 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