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Fronteira da fé – Alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje - Carlos Rodrigues

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ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 261
Algumas trilhas no campo do sagrado
UERO RETORNAR por um momento a uma celebração havida no Rio de
Janeiro, em julho de 1992, quando autoridades de todo o mundo e mais
um número expressivo de pessoas e de pequenas e grandes ONGs, vie-
ram reunir-se no Rio de Janeiro para a grande Conferência Mundial sobre o Meio
Ambiente, a Eco-92. Muito menos oficial do que outros, o evento que quero
apresentar aqui foi um grande encontro religioso em torno ao sentido da Vida e
ao destino do Planeta Terra.
Com o olhar voltado para o céu e dançando ao ritmo de cânticos espirituais,
uns 3000 fiéis de 25 religiões e credos tão diversos como o catolicismo, o
hinduísmo, o judaísmo e o candomblé, esperaram o amanhecer desta Sexta-
feira como a chegada de “um novo dia para a Terra”.
Foi desta maneira que a edição de Terra Viva, o jornal alternativo do Fórum
Global celebrado durante a Eco-92, anunciou o que acabara de ser a “celebração
inter-religiosa: um novo dia para a Terra”. Eram muitas as pessoas presentes e
havia gente de vários credos e religiões. Mas não todas. E as razões de suas au-
sências devem ser assunto das páginas que nos esperam adiante. Por que motivo
estavam ali presentes líderes e seguidores de uma religião oriental chamada Brahma
Kumaris, desconhecida de 98 entre cada cem brasileiros, quando, até onde se
saiba, não se fizeram representar os pastores e‘“obreiros” das principais confissões
evangélicas pentecostais, cuja presença é a cada dia mais visível em todo o País?
Porque tantas outras “autoridades religiosas” não teriam sido convidadas, enquan-
to outras preferiram não aderir a uma cerimônia múltipla de ritos e preces desti-
nados, segundo os organizadores do evento, a “mudar o curso materialista da
Fronteira da fé – Alguns sistemas
de sentido, crenças e religiões
no Brasil de hoje
CARLOS RODRIGUES BRANDÃO
Dentro de nós há também um Universo
Daqui nasceu nos povos o louvável costume
De cada um chamar Deus, mesmo o seu Deus,
A tudo aquilo que de melhor ele em si conhece
E deixar aos seus cuidados o céu e a terra.
Ter-lhe temor e, talvez até mesmo – amor.
J. W. Goethe
Proêmio
Q
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004262
sociedade a que se atribui o caos ambiental, e lutar pela causa de um renascer es-
piritual que torne o nosso planeta um lugar habitável”.
As autoridades religiosas fizeram alternar (depoimentos) de pastores protes-
tantes, rabinos judeus, teólogos islâmicos, mamos indígenas guaranis, sacer-
dotes do bramanismo hindu e do budismo japonês, espíritas, irmãos do Santo
Daime amazônico1.
O croques que o Instituto de Estudos da Religião publicou a respeito do
que ele mesmo chamou de: “aldeia sagrada”, montada para uma semana de ou-
tros acontecimentos menores, no Aterro do Flamengo, ilustra de uma maneira
muito simples este raro ajuntamento de pessoas e de grupos entre a religião
conhecida e a unidade esotérica recém-inaugurada, que repartiram por sete dias
os espaços e cenários dados a todas e a cada comunidade de crença e culto.
Dificilmente teria sido possível colocar em uma grande praça pública, en-
tre a montanha e o mar do Rio de Janeiro, uma imagem melhor do que está
acontecendo no multiforme universo dos sistemas religiosos de sentido no Brasil
de hoje, do que o desenho que retratou a distribuição dos espaços na tarde e
noite de um dia de julho durante a Eco-92. Muito embora ele nem de longe re-
trate os nomes e desenhe as presenças de todas as religiões, os credos e os outros
sistemas espirituais de sentido que constituem ou que atravessam em alguma
latitude o mapa do campo religioso brasileiro de agora.
É possível que este detalhe coreográfico não seja um espelho fiel do cená-
rio de escolhas e de espaços da experiência religiosa no Brasil. Alguém poderia
argumentar, e com bons motivos, que ademais de várias confissões de crenças
evangélicas e, mais do que tudo, pentecostais, cuja atividade e cuja crescente
relevância na formação de culturas no Brasil é inegável, não estavam representa-
das no grande do Aterro do Flamengo. O mesmo terá por certo acontecido com
religiões e igrejas mais ortodoxas, mais “fechadas” e, portanto, menos sensíveis a
tais tipos de representação em público. De outra parte, muito provavelmente a
imprensa e os turistas de evento terão dado mais importância ao que interpretam
com os olhos do desejo do exótico, do que com um critério de avaliação mais
compreensivo. Uma festiva dança dos Hare Krisna, ou uma tenda de adeptos do
Candomblé, assim como a inesperada presença de alguns xamãs indígenas lhes
poderá haver chamado a atenção mais do que o papel reservado às comunidades
eclesiais de base, seguidoras de uma Teologia da Libertação.
Ao lado dos pequenos e grandes encontros uniconfessionais, como um
Congresso Ecumênico católico ou uma das grandes concentrações dos Testemu-
nhas de Jeová em um estádio de futebol; ao lado de alguns mais raros encontros
de vocação ecumênica e inter-eclesial, começa a ser um costume de tendência
crescente, o convite à participação de pessoas e equipes de sistemas de sentidos
as mais diversas, as mais originalmente distantes, pelo menos até então. Algo
como se uma vocação ecumênica de partilha ritual de momentos devotados a um
sagrado generosamente polissêmico, fosse alargada ao máximo de suas frontei-
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 263
ras. Alargado até onde elas fossem estendidas até limites onde o religioso-
confessional por um instante compartilhasse um mesmo cenário de festa e rito
com espiritualidades não-confessionais (embora francamente confessantes); com
grupos nativos cujos rituais até hoje são vistos pela ortodoxia cristã menos tole-
rante como “cultos de feitiçaria”; com pessoas e pequenas comunidades
autodefinidas como esotéricas ou praticantes de uma das vertentes do universo
de símbolos e de gestos, aqui e ali associados à Nova Era.
Tudo se passa – e é justamente isto o que torna tão fecundo e atraente o
mundo das invenções culturais do sagrado – como se afinal lograssem estar próxi-
mos, quase irmanados os campos de vocação antes e até hoje tão conflitados.
Cenários de crença e prática dos mistérios de alguma forma de fé, onde se congre-
gam usuários ou seguidores na, através da ou ao redor da religião: o profeta crí-
tico do estabelecido e enunciador da emergência do novo, do heterodoxo e, não
raro, do neosectário; o sacerdote consagrador do sistema religioso estabelecido
como uma igreja; e o feiticeiro, profanador da pureza pretendida da religião. É
como se estes atores do sagrado legítimo, emergente ou impuro, sempre em luta
uns contra os outros, segundo Max Weber, pelos direitos de posse e uso do capi-
tal-de-sentido com valor-de-fé, recomeçassem a estabelecer, pelo menos em re-
cantos menos ortodoxos da praça social das crenças, um estranho acordo de paz.
Pelo menos “ali” e pelo menos “por agora”.
E, como tantas outras pessoas à minha volta, quando eu salto de um cená-
rio de multidões e de um raro evento ocorrido há alguns anos atrás, para o que
me acostumo a assistir acontecer e mudar à minha volta, no círculo mais próxi-
mo de quem sou e desde onde convivo com as pessoas mais íntimas, o que tenho
para dizer não é muito diferente.
Antes de chegar a uma reflexão mais detalhada a respeito do que parece
estar configurando e do que parece estar acontecendo entre os sistemas culturais
de sentido, tomando como um exemplo o universo religioso brasileiro, que o
leitor me permita desenhar à sua frente um mapa bastante sumário, mas suficien-
te, espero, do que seria agora um campo de composição das alternativas religio-
sas mais visíveis no Brasil.
O mundo das religiões no Brasil de hoje
Ao desenhar com algumas palavras e muitos exemplos um mapa sumário
das religiões no Brasil de agora, pareceu-me sugestivo começar por uma lista
simples e nada completa de nomes de livros de e artigos sobre religiões no País.
Escolhi-osao acaso e vários deles são trabalhos de antropólogos e sociólogos
meus amigos. Vejamos: Os errantes do novo século; Milagre em Juazeiro; A comu-
nidade eclética espiritualista universal; O vale do amanhecer, A marginália sa-
grada; O carnaval devoto; Os cavaleiros do bom Jesus; A morte branca do feiticeiro
negro; Vovô Nagô, papai branco; O mundo invisível; Os deuses do povo; Os deuses
canibais; A Terra sem males; Rezadores, pajés e puçangas; Religioso por natureza;
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004264
A obra e a mensagem; A experiência da Salvação; Dentro de um ponto riscado; O
refúgio das massas; Fazendo estilo, Criando gênero; Guerra de Orixás; Os escolhidos
de Deus; Comunidade eclesial, comunidade política; Tempo de Gênesis; Religião e
dominação de classe; Os santos nômades e o Deus estabelecido.
Eles poderiam ser muitos outros, mas por enquanto esta lista nos serve.
Temos aí uma intrigante coleção de nomes de estudos sobre religiões indígenas,
de origem afro-brasileira, sobre o espiritismo, as várias confissões evangélicas, o
catolicismo, os movimentos messiânicos do passado e novas religiões que dificil-
mente poderiam se enquadrar no mesmo setor do campo de qualquer uma das
outras já existentes. Tomado no seu todo e na multiplicidade de suas diferenças,
existem muito mais alternativas de afiliação religiosa. Afora as religiões, confis-
sões e igrejas tradicionais e mais visíveis, como o Cristianismo Católico e o Evan-
gélico (não-pentecostal e Pentecostal), o Judaísmo, o Espiritismo Kardecista e
outras, é a cada dia mais viva a presença de antigas religiões orientais revisitadas
e recém-estabelecidas no Brasil (o Budismo em suas diferentes variações seria o
melhor exemplo) ao lado de neoreligiões de tradição oriental e, em menor nú-
mero, ocidental. Como seria possível descrever este universo rico e diferenciado,
não tanto pela quantidade de semelhanças, mas pela qualidade das diferenças?2
Para começarmos a compreender primeiro a estrutura e depois a dinâmica
do campo religioso no Brasil, proponho que imaginemos o espaço em branco de
uma folha de papel deitada na horizontal. Coloquemos no extremo à esquerda
as religiões dos primeiros povoadores do que veio a ser, depois, o Brasil: os
povos e as nações indígenas. Aprendemos na escola que os muitos grupos tribais
ao tempo da chegada dos europeus tinham uma vaga espécie única de religião,
com um misterioso deus supremo: Tupã e uma perigosa tradição de fazer mata-
rem e comerem os seus prisioneiros. Nada mais falso, antes e agora. Subsistem
hoje em dia pessoas e tribos em um número muito pequeno, face ao que houve
antes. Eles não são mais do que algo entre 170 e duzentos mil. Mas, ao contrário
do que muitos imaginam, estes remanescentes de quase cinco séculos de geno-
cídios e agressões, distribuem-se em diferentes etnias e algumas nações indíge-
nas; distribuem-se por praticamente todo o País em várias tribos com culturas
próprias e, em seu interior, com sistemas religiosos peculiares, alguns deles de
uma bela e rara complexidade.
Mesmo depois de muitos anos de trabalho catequético e conversionista,
católico e protestante, muitas culturas indígenas preservam ainda as suas religiões,
mesmo nos casos em que vários de seus membros já se converteram a alguma
confissão cristã. Algumas destas religiões possuem um profundo sentido proféti-
co, como é o caso dos Guarani. Na história recente do Brasil houve mesmo al-
guns surtos indígenas de tipo messiânico.
Coloquemos no extremo oposto, ao lado direito de nosso mapa, outras
religiões de grupos étnicos ou de grupos culturais minoritários. Mas ao contrá-
rio dos nossos povos indígenas, essas pessoas, suas unidades culturais e as suas
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 265
religiões vieram da Europa e também da Ásia e aportaram no Brasil isolados ou
em levas de migrantes, entre meados do século XIX e os últimos anos do século
passado. Pensemos nos judeus e sua religião, nos diversos migrantes muçulma-
nos, árabes ou não. Lembremos o Cristianismo Ortodoxo dos libaneses e de
europeus mais a Leste da Áustria. Não esqueçamos o Budismo, o Xintoísmo e o
Confucionismo e outras confissões trazidas ao Brasil como os migrantes japone-
ses e de outros povos vindos da Ásia há muito tempo, ou em anos recentes,
como os coreanos.
Urbanas em sua imensa maioria, essas religiões, majoritárias ou ativamente
presentes na cultura de seus países de origem, possuem em comum com as dos
povos indígenas, aqui no Brasil, o fato de que quase sempre estão restritas ao
âmbito de suas próprias comunidades étnicas e culturais. Algumas arcaicas ou
recentes tradições religiosas em geral classificadas como “orientais” poderiam
estar sendo agora uma exceção. Assim, existem entre nós alguns budistas não-
orientais e nem descendentes de orientais. Eles serão ainda demograficamente
muito poucos, mas a qualidade do que eles e outros, vizinhos ou próximos,
inauguram nas culturas religiosas no País é de um valor bastante grande. A um
primeiro olhar, não confundamos estas religiões muito antigas e de minorias
culturais entre nós, como o Budismo ou o Xintoísmo, com outras religiões che-
gadas a pouco “de fora” e que, ao contrário das primeiras, mesclam-se com a
vida cotidiana e fazem inúmeros convertidos, como a Seicho-no-Iê e a Igreja
Messiânica. Elas nos esperam adiante.
Voltemos por um momento à nossa margem esquerda. Bem ao lado de
uma linha imaginária, vizinha ao território cultural das inúmeras religiões indí-
genas, seria oportuno colocarmos alguns tipos e variações de cultos e de práticas
que nem sempre chegam a constituir religiões formais. No entanto, sobretudo
em toda a Amazônia, a presença deles é bastante considerável. Exemplos: a Page-
lança Amazônica e os Cultos de Jurema.
Ao lado deste novo espaço, coloquemos algumas religiões de uma visibili-
dade cultural muito maior. Elas constituem hoje as variedades e transformações
de culturas e sociedades que foram um dia também tribais nos seus cenários de
origem: a África. Algumas chegaram a graus de complexidade e diferenciação
muito pouco reconhecidos pelos conquistadores, que por séculos aprisionaram
os seus homens e as suas mulheres, e os roubaram de suas tribos e terras para
virem a ser escravos nas Américas. Com os negros escravizados vieram tradições
culturais, ainda autóctones ou já mescladas, de cultos tribais que, mesmo perse-
guidos com intensidade até poucos anos atrás, sobrevieram e souberam difundir-
se por todo o território do País. Elas se associaram de diferentes maneiras, aqui e
ali, com outras tradições de crença e culto, estendendo-se para além das frontei-
ras étnicas e conquistando um número crescente de adeptos brancos em todas as
camadas sociais. O exemplo mais conhecido dentro e fora do Brasil é o do Can-
domblé. Mas existem outros, como é o caso da Casa de Minas, do Maranhão, o
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004266
Xangô do Nordeste e, como uma derivação posterior e já inventada criada no
Brasil, mais ou menos a partir dos anos de 1920, a Umbanda3.
O que existe em comum entre todas elas? Talvez o princípio da comunica-
ção entre deuses e homens e entre vivos e mortos através de meios mais diretos
e em situações mais freqüentes do que em outras religiões. Todas elas, cada uma
a seu modo e com base em seus mitos e teologias, aceitam e possessão como o
modo mais adequado por meio do qual uma divindade, o espírito de mortos ou
outros tipos de seres, entram em comunicação com os humanos vivos, incorpo-
rando-se ao seu ser, falando através de seu corpo, induzindo-os a tipos peculiares
de comportamentos, dentro de cerimônias rituais ou fora delas.
Muito mais do que nas religiões indígenas e mesmo mais do que em religiões
como o Judaísmo, o Budismo ou o Islamismo remanescente no País, existe no
Candomblé e mais ainda, na Umbanda, uma abertura não hierarquicamente con-
trolada de inovação, diferença e divergência. Um paralelo semelhanteexistirá
apenas, agora, no Pentecostalismo Evangélico. Assim, a própria Umbanda é,
vimos, uma mescla aberta e dinâmica de combinações articuladas de “elemen-
tos” dos cultos afro, do Espiritismo Kardecista e do Catolicismo. A possibilidade
de combinações e a oferta diferenciada de tipos e de alternativas corre por conta
da iniciativa de agentes de culto e uma hierarquia sacerdotal para além de cada
“centro” ou “terreiro” é bastante frágil.
Em seguida, devemos convocar ao nosso mapa outras religiões onde o
mesmo princípio da possessão é essencial ao sistema de crenças e à lógica dos
cultos. Seu representante mais visível é o Espiritismo Kardecista. Ele chega ao
Brasil muito depois das religiões africanas, entre fins do século XIX e os começos
do XX. Vem da Europa e a sua origem está na “codificação” de uma nova doutri-
na feita na segunda metade do século XIX por Allan Kardec, em uma assumida
comunicação com espíritos superiores. Mais do que em qualquer outro país do
mundo, no Brasil, o espiritismo difundiu-se como uma religião francamente
confessional, ainda que muito moderadamente conversionista.
Este “espiritismo de mesa branca”, muito diferente do “espiritismo de ter-
reiro”, em geral associado sem rigor à Umbanda em suas várias formas, resiste a
ser pensado como uma religião até mesmo vizinha dela e, mais ainda, de qual-
quer uma das religiões de origem e simbologia “afro”. Quase todos os seus
adeptos negam qualquer aproximação entre o Espiritismo e todas as outras reli-
giões de possessão. Alguns afirmam até que o mesmo que lhes é comum: a posse
da pessoa humana por espíritos, lhes traça a diferença. Os espíritas recebem sem-
pre o espírito de pessoas, para serem ajudadas em seu caminho de aprimoramen-
to espiritual, ou para ajudarem os vivos, como no caso dos espíritos superiores,
“espíritos de luz”. Enquanto isso, nos outros cultos “baixam” apenas espíritos
inferiores, não raros travestidos de deuses, de deidades, de “orixás”. Claro, agen-
tes e praticantes dos cultos dos orixás negam esta qualificação negativa em todo
o seu alcance.
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 267
Quando mais adiante eu estiver falando em religiões eruditas e em religiões
populares (um outro jogo de opostos nem sempre feliz) será importante lembrar
os termos, ditos de um lado e do outro dos cultos de possessão, que estabelecem
as diferenças e justificam, entre opostos próximos, uma ativa divergência de iden-
tidades religiosas.
O Espiritismo Kardecista, a Umbanda e o Candomblé são as três religiões
mediúnicas e de possessão mais difundidas e melhor conhecidas no Brasil. Da
primeira à terceira, elas fazem imperfeitamente o trajeto do mais “erudito” ao
mais ao mais “popular”, do mais escrito ao mais oral, do mais eticamente branco
ao mais negro, da maior autoproclamada proximidade íntima do Cristianismo ao
mais distanciado, pelo menos do ponto de vista de uma doutrina confessional
explícita. Mas elas não são as únicas. Sabemos que desde diferentes origens afri-
canas e desde o período histórico da escravidão na Colônia e, depois, no Império
do Brasil, recriam-se em todas as regiões geográficas diversos sistemas de tradi-
ção afro-brasileira. Tal como acontece entre as tradições de confissão cristã, elas
reclamam o direito às suas identidades peculiares. De outra parte, um interesse
primeiro acadêmico e, depois, pessoal pelos sistemas religiosos afro-brasileiros
de parte de um número crescente de estudiosos brasileiros e estrangeiros, aca-
bou por atribuir a essas religiões uma aura de respeitabilidade antes inexistente.
Deve ser acrescido a isto o fato de que, sobretudo o Candomblé tem sido associa-
do de maneira crescente aos diferentes movimentos sociais de etnia negra no Brasil.
Prossigamos. Coloquemos ao lado das religiões de possessão mais difundi-
das, outras ainda. Elas são mais recentes e menos conhecidas e algumas surgiram
de fato e se disseminaram há muito poucos anos. Entre as mais conhecidas ou,
pelo menos, as mais estudadas, aqui estão: A Fraternidade Eclética Espiritualista
Universal, O Vale do Amanhecer, e a Legião da Boa Vontade, que recentemente
teve o seu nome mudado para Religião de Deus. Se as coloco ao lado direito das
religiões tradicionais de possessão, deixando o Espiritismo Kardecista em sua
linha de fronteira, é porque todas elas evocam os dois traços constitutivos dos
sistemas confessionais anteriores: a possessão e a mediunidade. Isto é, a evidên-
cia do poder da relação sagrada na incorporação de espíritos de outros humanos
ou de seres divinizados em agentes e/ou adeptos do grupo religioso; a necessi-
dade da qualificação de agentes religiosos, realizada através de um “desenvolvi-
mento de mediunidade” para a adequada e eficiente relação de possessão.
Que este simples sumário de um mapa de sistemas religiosos de sentido
sirva à lembrança de que, a não ser em tipos de culturas muito simples ou muito
fechadas, onde havia antes uma certa unidade e uma estabilidade consolidada,
não raro à força, existe agora uma franca diversidade no interior de algumas e
entre as religiões. Ao lado de “formas puras” e “de origem”, existem derivações,
divergências, novas experiências pessoais e coletivas de lidar com o sagrado e
tornar uma experiência de sentido, tornada uma fé partilhada como uma crença,
em uma religião em que elas acabam se configurando culturalmente. Ao mesmo
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004268
tempo isto acontece, tal como costuma ocorrer em toda a história das relações
sociais através da religião, todo este processo de surgimentos e inovações é acom-
panhado de esforços dirigidos à conquista de legitimidade. Em um universo de
relações ainda francamente classista, a adesão de agentes e de prosélitos de “clas-
ses mais altas” e culturalmente mais complexas e eruditas, desempenha aqui um
papel da maior importância. Vimos isto acontecer com o Candomblé. Veremos,
adiante, acontecer com o Santo Daime e a União do Vegetal.
Se o desenho imaginário que estou propondo até aqui está claro, sugiro
que entre os espaços já ocupados à direita e à esquerda de nossa folha imaginária,
sejam colocadas outras tradições religiosas bastante conhecidas em toda a Amé-
rica Latina. Eis o lugar onde cabem as religiões mais abertas e mais oficialmente
identificadas como cristãs: o Catolicismo (e seus vários modos diferentes de “ser
católico”); as denominações protestantes ou evangélicas e suas derivadas, com uma
ênfase sobre as que se autodefinem como pentecostais e, finalmente, um pequeno
conjunto de outras religiões onde uma idéia de classificação é mais difícil. Por-
que sendo todas elas confessionalmente cristãs, não se identificam nem com o
Catolicismo e nem com as confissões evangélicas. Seus exemplos: As Testemu-
nhas de Jeová, os Mórmons, os Adventistas do Sétimo Dia e mesmo os Batistas,
que apenas com muita dificuldade aceitam uma origem comum com os protes-
tantes.
Sabemos que, juntas, essas religiões envolvem a imensa maioria das pessoas
que afirmam possuírem uma religião. Seriam quantos? 90%, 95%? Um pouco
menos ou um pouco mais?
O Catolicismo e a sua Igreja Católica Apostólica e Romana são considera-
dos até hoje como o sistema religioso e a instituição confessional demografi-
camente majoritários e culturalmente hegemônicos. Conhecemos todos uma divi-
são entre um catolicismo erudito ou oficial e um catolicismo popular, que alguns
estudiosos preferem chamar: catolicismo de folk. Convivemos na atualidade com
vários estilos culturais de “ser católico”. Mesmo no interior de um catolicismo
mais canônico, praticado em linha direta de relação com o corpo sacerdotal,
subsistem modalidades de tendências não raro de difícil integração no corpus de
doutrina, gestos e ritos de uma mesma religião e de uma mesma igreja. Olhado
de perto, isto a que damos o nome de catolicismo popular possui tantos matizes
quantas são as culturas em que vivem as suas pessoas reais: no campo ou na cida-de, na Amazônia ou em Minas Gerais, em áreas de uma marcada influência de
tradições negras, como a Bahia, ou de migrantes italianos, como em São Paulo.
Uma de suas características comuns, no entanto, está em que este catolicis-
mo ancestralmente laico e rural, quase chega a constituir um pára-sistema religio-
so setorialmente autônomo frente a uma igreja de que ele sempre se reconhece
parte. Ali estão tanto as crenças populares e alguns costumes patrimoniais, como
sistemas sociais de trocas de atos, de símbolos e de significados que, no seu todo,
recobrem quase tudo o que uma pessoa necessita para sentir-se de uma religião e
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 269
servir-se de seus bens e serviços. Mas, à diferença do que acontece no campo
evangélico, mesmo nos surtos messiânicos históricos do catolicismo camponês,
sempre os seus agentes se reconhecerão subordinados às autoridades da igreja
oficial e sempre se levará em conta que alguns rituais de importância essencial
somente podem ser ofertados pelos sacerdotes eruditos.
Certa feita, um teólogo de confissão evangélica disse em uma de nossas
reuniões que o Catolicismo fazia gerar e preservava a sua diversidade, não se di-
vidindo, enquanto o Protestantismo garantia a sua unidade, dividindo-se. Ele
queria sugerir algo que parece ser comum no Brasil e, convenhamos, em toda a
América Latina. Sabemos que apesar de todas as diferenças culturais e divergên-
cias de imaginários – na teologia, na pastoral, na doutrina social, na definição do
sentido de presença e compromisso do cristão – o Catolicismo mantém-se como
uma religião única de uma só igreja. A única cisão conhecida foi, no começo do
século, a que deu origem à Igreja Católica Brasileira, cuja presença no mundo
religioso do País é quase invisível. De sua parte, as igrejas evangélicas chegaram
ao Brasil em momentos diferentes, estabeleceram-se através de projetos de pre-
sença e missão muito desiguais, e seguem hoje trajetórias de afiliação confessional
e de consolidação de seu lugar confessional também diversos.
No espaço que nos resta em nossa folha imaginária, ao lado do Catolicis-
mo e suas variantes internas, podemos colocar o ramo mais antigo dos evangéli-
cos no país. Nas classificações mais conhecidas eles são lembrados como protes-
tantes de imigração. Vieram com os europeus do Norte a partir dos fins do
século XIX. Os luteranos e os episcopais são os mais conhecidos. Logo abaixo,
escrevamos os nomes das igrejas e denominações também do Protestantismo
Histórico ou tradicional (ligadas de origem às reformas protestantes de Lutero e
Calvino), várias delas identificadas também como igrejas protestantes de missão.
Há uma diferença muito importante entre estes dois ramos de evangélicos entre
nós. Os primeiros, concentrados mais no Sul do Brasil, estão situacionalmente
próximos das religiões de minorias étnicas. Eles não se preocupam muito com
um trabalho de conversões para fora das fronteiras de seus grupos étnicos (ale-
mães, ingleses etc. e descendentes) e, em vários casos, o círculo cultural da reli-
gião confunde-se com o da comunidade étnico-cultural.
Ao contrário, os primeiros evangélicos “de missão” vindos da Europa e
dos EUA chegaram ao Brasil para instaurarem uma presença religiosa ativa e
francamente proselitista dirigida a um trabalho evangélico de conversão entre
“os brasileiros”, em um país então considerado como “terra de missão”. Entre
eles estão, entre outros, os Presbiterianos, os Congregacionais e os Metodistas
Irmamente próximos dos anteriores, e ainda mais ativos no trabalho
proselitista, um lugar no mesmo espaço evangélico de nosso mapa deve ser reser-
vado aos ramos originais do protestantismo de conversão. Eles se originam de ci-
sões protestantes e de divisões tardias, em boa medida já nos EUA. Os mais
conhecidos são aqueles que, tomados em conjunto, costumamos associar ao Pro-
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004270
testantismo Pentecostal. Em 1910, quando eles começam a chegar ao País, através
de missionários que irão criar a Assembléia de Deus e a Congregação Cristã no
Brasil, havia apenas dois templos pentecostais, contra cerca de 1.100 das deno-
minações evangélicas anteriores. Em 1970, contavam eles já com cerca de 1.100
templos, contra 1.400 dos evangélicos não-pentecostais. Em 1999, com certeza
já haverá bastante mais templos, mais tipos de igrejas, mais agentes religiosos e
mais fiéis convertidos entre os pentecostais do que em todas as igrejas anteceden-
tes do Protestantismo no Brasil.
Em algum sentido não seria errado pensá-los como sistemas religiosos tam-
bém de possessão, embora qualquer aproximação com tudo o que esteja à sua
esquerda, em nosso mapa imaginário, cause aos seus dirigentes algo entre a es-
tranheza indignada e a fúria sagrada. Difícil estabelecer normas de compreensão
das vertentes pentecostais, tomadas em seu todo. Sobretudo nos últimos vinte
anos o cenário pentecostal do universo cristão na América Latina tomou a forma
de um aglomerado muito variado. Um multiforme cenário de criação e recriação
contínua de igrejas, de ministérios, de grupos e de congregações emergentes,
quase sempre através de cismas de pequena escala.
Uma presença ativa do Espírito Santo na vida e na pessoa do “crente”, da
pessoa integralmente convertida e “entregue” ao Deus de Jesus Cristo, através
da afiliação irrestrita a uma de suas pequenas igrejas, aproxima os pentecostais,
mesmo entre confissões e igrejas em relações de conflito aberto entre elas, em
alguma coisa comum que qualifica o “crente”, separa-o dos outros “irmãos evan-
gélicos” e o afasta dos católicos, constituindo-os ainda como rivais militantes de
todas as religiões de possessão mediúnica4.
Para um bom exercício de compreensão dos ritos e dos jogos que presidem
as alianças, as proximidades, os distanciamentos, ou mesmo as relações de confli-
to aberto no interior dos tecidos e das teias de trocas de serviços e de sentidos
através da religião, nada melhor do que considerar a maneira como os pentecostais
evangélicos estabelecem graus e gradações entre a legitimidade e a ilegitimidade
religiosa, dentro e fora dos espaços proclamados por eles como cristãos e não-
cristãos, em um campo religioso que o imaginário coletivo do “crente” ao mes-
mo tempo constitui e consagra. Vejamos como.
Há um centro da experiência universal do sagrado legítimo. Um primeiro
núcleo de excelência religiosa situado no exato interior do “ministério da minha
igreja”. Ele se estende a um eixo de eleição divina que coloca esta “minha igreja”
(com os seus outros eventuais ministérios) em um segundo círculo de verdade
confessional. A seguir, no quase limite da restrita vocação ecumênica, ele dese-
nha o círculo que acolhe os pentecostais de modo geral, em suas inúmeras alter-
nativas de afiliação, como sendo a múltipla religião verdadeira e a tradutora úni-
ca, em nossos dias, da vontade de Deus e da ortodoxia fiel do Cristianismo. Um
círculo seguinte, na divisa entre a experiência religiosa acreditada e a falsa, habi-
tado ainda por parentes de fé, mas já distanciados demais, credita aos outros
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 271
evangélicos, os não-pentecostais, o atributo de praticantes da verdadeira reli-
gião. Mas, fora do domínio pentecostal, o protestantismo “extracrente” obede-
ce a escolhas confessionais racionalmente corretas e, entanto, destituídas do po-
der do Espírito Santo e enfraquecidas em sua capacidade de traduzirem com
fidelidade absoluta “à vontade de Deus”. Logo, de estabelecerem uma separação
indispensável e radical entre o mundo da fé e a falsa fé no mundo. Por isto mes-
mo, porque mesmo sendo ainda a fração limite da verdadeira religião, os protestan-
tes-não-pentecostais cederam ao Mundo e, entre ouras conseqüências, perde-
ram o “poder do Espírito Santo” de converterem e afiliarem, com sucesso, levas
de novos “irmãos” arrancados do mal do Mundo para a única salvação possível:a submissão plena aos mandatos do Cristianismo em sua versão pentecostal.
Considerada ainda uma religião, o Catolicismo lhes aparece como um des-
vio do sentido cristão da fé e da vida da Graça: uma‘“falsa religião”, portanto. Se
o Catolicismo traça a fronteira simbólica entre a religião verdadeira (o Cristianis-
mo) desviada de sua verdade essencial (o Catolicismo), as outras grandes religiões
universais são consideradas como desvios essenciais de crença. A simples não-
adesão definitiva à pessoa em um deus Jesus Cristo, único e suficiente “Salvador
do Mundo”, torna todas as outras, “falsas religiões”. Alguns pregadores mais ra-
dicais traçarão entre elas a divisa entre a religião (sempre ligada a um deus, mes-
mo quando perdida dele) e os sistemas enganadores de sentido: a feitiçaria, a
magia, a bruxaria, a macumba, não raro tidas como uma criação das próprias pes-
soas e forças demoníacas.
Assim, todos os outros estilos de tradição religiosa mais propriamente popu-
lares, e associados seja às culturas afro-brasileiras, seja às de uma real ou suposta
origem indígena (Santo Daime, União do Vegetal), ao lado do Espiritismo
Kardecista e, mais do que todas, da Umbanda, todos eles ocupam o círculo já
francamente exterior do universo religioso. São formas demoníacas de perversão
do sagrado. São criações fraudulentas do próprio Satanás, onde a ilusão do poder
benéfico dos deuses, na verdade apenas encobre e disfarça a ação do Demônio e
de seus sequazes.
Mais do que qualquer outro domínio confessional do universo religioso
no Brasil, o Pentecostalismo é bom para se pensar a trama complexa de alterna-
tivas, assim como de inovações e transformações. Nem mesmo o mundo profano
dos negócios é tão capaz de transitar com tanta criatividade entre as alternativas
de um franco e aberto mercado de bens simbólicos. Nenhum outro é tão capaz
de atualizar e trazer de um plano de relações para outro as próprias “leis do mer-
cado moderno”. Um mercado de compra e vendo de tudo, a qualquer custo, cu-
ja lógica “mundana” os pentecostais justamente configuram como sendo uma
das evidências da presença dos seres do sagrado satanizado entre nós.
Novas agências de tipo pentecostal, dotadas de um poder nunca visto antes
de conversões em massa, como a Igreja Universal do Reino de Deus, adotam pa-
drões de expansão dignos das mais modernas empresas de oferta de serviços
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004272
profanos. E, ao lado de outras, mais moderadas na geometria de sua espantosa
expansão, é ela quem propõe um tipo de pregação salvacionista que separa o
sujeito “entregue e salvo” de um mundo de ambição satânica, regido pelas leis e
misérias da economia de mercado e pela ética perversa de tudo está para além
dos limites do Pentecostalismo. Mas, condenada de perto pelas igrejas pentecostais
mais antigas, é a mesma Igreja Universal do Reino a que no momento obtém
mais sucesso no esquecer os rigores da vida do “crente” e no substituir, pouco a
pouco, os desafios contidos nas promessas de salvação eterna mediante a adesão
irrestrita a uma rigorosa “lei-do-crente”, por uma oferta generosa de sucesso
imediato nesta vida terrena, em troca de uma prestação pessoal de serviços pes-
soais e financeiros à igreja, que em muito pouco difere dos padrões éticos da
lógica capitalista aparentemente condenada.
Fora os casos raros e atuais, entre pessoas, grupos e igrejas, os Pentecostais
resistem, mais do que os Batistas e os praticantes de outras denominações tradi-
cionais, a qualquer tipo de aproximação ecumênica.
Estranho que isto possa parecer, este princípio de separação radical vale até
mesmo dentro de seu universo. Há uma ausência quase absoluta de relaciona-
mentos entre a Assembléia de Deus e a Congregação Cristã no Brasil. Há mesmo
uma frouxa aliança e há mínimas trocas entre os três ministérios da Assembléia de
Deus. Nisto eles copiam em tudo a tradição de confissões protestantes tradicio-
nais onde há uma quase nenhuma relação entre “igrejas” de uma mesma deno-
minação.
Estamos próximos agora de nossa margem direita, onde havíamos deixado
desde o começo do desenho deste mapa, as religiões de minorias étnicas e cultu-
rais. Ei-nos diante de um último espaço deixado ainda em branco. Que o leitor
recorde em sua porção mais à esquerda o lugar reservado a novas tradições religio-
sas surgidas, quase todas entre o Centro-Oeste do País, especialmente em Brasília,
e a Amazônia. Recordemos alguns de seus nomes: Santo Daime, União do Vege-
tal (UDV, para os íntimos), Vale do Amanhecer, Fraternidade Eclética Espiri-
tualista Universal. Quase todas possuem nomes oficiais bastante mais longos e
sugestivos de uma afiliação cristã e espírita. Emprego aqui os nomes pelas quais
são conhecidas em todo o país.
Sobre as duas primeiras seria oportuno tecer alguns comentários. Trata-se
de uma forma religiosa original e uma outra, derivada. Mas, sobretudo na Ama-
zônia, são já várias as novas ramas saída do tronco inicial. O Santo Daime foi
criado no Acre, depois que um seringueiro vindo do Nordeste do Brasil sentiu-
se convocado a instaurar um novo estilo de vida religiosa, fundado, em boa me-
dida, em cultos de ingestão ritual da Ayuasca. Dela derivaram, depois, algumas
outras formas variantes, e pelo menos as duas citadas aqui, o Daime e o Vegetal
difundiram-se por várias regiões na Amazônia e por todo o Centro Sul do Brasil.
São casos, não raros no cenário da vida espiritual brasileira, em que uma neotra-
dição de vida religiosa surgida no campo ou na floresta e criada através da inicia-
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 273
tiva de agentes francamente populares, ou de pequena classe média (como é o
exemplo da Fraternidade Espiritualista e da Vale do Amanhecer) migra para a
cidade e conquista adeptos de vocação cultural bastante mais erudita, não raro,
universitária.
Reconheçamos entre as novas criações religiosas brasileiras pelo menos duas
vertentes.
Na primeira, o grupo ou a rede de agentes e de adeptos segue uma orien-
tação mais Espírita e reencarnacionista, abolindo de suas crenças qualquer imagi-
nário voltado ao messianismo ou a qualquer tipo de milenarismo, correntes em
outras tradições populares do passado e mesmo atuais. Ele tende a multiplicar-
se, a sair fora dos seus cenários de origem e a, eventualmente, atravessar degraus
de classe social e fronteiras de cultura. Nunca tão ativamente proselitista quanto
os evangélicos “de missão” do passado próximo e quanto os pentecostais de
agora, essas novas comunidades religiosas são, em princípio, avessas a grandes
rebanhos unificados e, principalmente, a cultos de multidões. Ao contrário, devo-
tadas a seu modo à difusão de crenças onde uma lenta trajetória de “desenvolvi-
mento espiritual” e mediúnico (em várias delas as duas qualidades se identifi-
cam), tendem a tomar a forma de pequenas agências de serviços semanais, ao
estilo dos centros espíritas, ou adotam o estilo das comunidades semi-isoladas,
em geral na periferia distantes de uma cidade, como Brasília, por exemplo, ou
em algum local bastante ermo, nos sertões áridos ou úmidos do Nordeste ou da
Amazônia. O que as diferencia das religiões da segunda vertente, assim como
dos pentecostais evangélicos, é o fato de que tais agências ou comunidades de fé
deslocam um final dos tempos de valor histórico ou cosmicizante para uma traje-
tória de evolução pessoal de valor individualmente purificador. Aqui, as guerras
travadas entre o bem e o mal são sempre duelos individuais entre forças personi-
ficadas de um lado e do outro. Voltemos a alguns nomes. Coloquemos aqui a
religião do Vale do Amanhecer, o Santo Daime, a Fraternidade Eclética Espiri-
tualista Universal, a União do Vegetal.
Tal como no caso dos pequenos surtos da bandeira verde na Amazônia, a
unidade religiosa de origem resiste a dividir-se e, mais ainda, a multiplicar-se e a
se expandir. Ela tenderá a tomar então a forma de uma comunidade carismáticaerrante, em busca de um lugar sagrado e redentor, ao estilo das tradições Guarani
da busca da Terra-sem-Males. Ou poderá, segundo o padrão de espera de surtos
milenaristas como o de Canudos, estabelecer o eixo do lugar sagrado no centro
do lugar de vida da comunidade original, destinando todos ou quase todos os
outros a uma destruição com data prevista.
Que um último espaço em nosso mapa das crenças seja reservado ao lugar
de algumas religiões de uma marcada vocação urbana, trazidas quase todas de
fora do País em anos mais ou menos recentes. Tanto pelos seus adeptos quanto
pelas outras pessoas, elas costumam ser sempre consideradas como “religiões
orientais”. Na verdade, no coração de alguns seguidores, é justamente este ser
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004274
“oriental” o que lhes dá a sua qualidade de um sistema que supera a tradição das
religiões ocidentais, tomadas em seu conjunto. Esta poderá ser uma razão a mais
para a associação sempre presente entre sistemas de sentido de real ou suposta
origem oriental e algumas vertentes de vocação ambientalista, de tipo Ecologia
Profunda, Hipótese Gaia e outras, semelhantes. Ao contrário do que ocorre em
no caso de religiões populares de tradição recente no País, os seus agentes e
seguidores são, em maioria, pessoas de camadas médias, muitos deles jovens e
adultos urbanos das grandes cidades. Algumas dessas religiões neo-orientais, prove-
nientes em de países do Oriente, em um início faziam sentar nos bancos de seus
templos uma quase totalidade de adeptos entre orientais e seus descendentes:
coreanos e japoneses quase sempre. Seus exemplos: a Seicho-No-Iê, a Perfect Liberty,
a Igreja Messiânica. Hoje em dia, as suas congregações de fé, aumentadas sobre-
tudo nas grandes cidades através de um conversionismo moderado, estão pre-
sentes por toda a parte, principalmente nas regiões Sudeste e Sul do Brasil.
À outra metade deste último território de nosso mapa, devem ser convocadas
ainda outras religiões de origem oriental, chegadas ao Brasil por via direta, ou
através dos Estados Unidos da América. Entre elas as mais conhecidas serão: a Fé
Bahaí, a Hare Krishna, o Sufismo, a Ananda Marga e a Brahma Kumaris. Que
estes poucos nomes nos sirvam como um indicador de uma pequena fecunda
pluralidade de neotradições que, ao contrário das suas vizinha no mapa dos cren-
tes e dos buscadores da fé, preferem adeptos jovens e bastante mais intelec-
tualizados. Digamos que há muito mais comerciantes de pequena monta e pe-
quenos funcionários públicos na Seicho-no-Iê, contra um número bastante maior
de jovens, não raro universitários, entre os Hare Krishna. Não esqueçamos tam-
bém que, no grande encontro espiritual durante a Eco-92, eram muito mais os
adeptos de grupos desta última categoria do que os da primeira, aqueles que se
dispuseram a vir juntar-se a fiéis indígenas, negros ou brancos católicos das co-
munidades de base5.
Temos afinal completo o quadro de um mapa sempre incompleto. Consi-
deremo-lo, no entanto, por agora, um esboço aceitável e oportuno, para nos
ajudar a percorrer com menos sustos os territórios das crenças religiosas e de
espiritualidades que importam aqui.
Ao revisitá-lo agora, concluído, lembro que deixei no seu centro imaginá-
rio as religiões cristãs de um suposto maior peso cultural e, conseqüentemente,
um maior valor simbólico na determinação de orientações de destino de pessoas
e de grupos sociais. Esta é, na prática, a motivada oposição que coloca ao lado de
um outro mapa dos crentes, as religiões ideologicamente voltadas aos direitos
humanos, às lutas pela terra e pelo emprego em nome dos “excluídos e margina-
lizados pelo sistema capitalista”, à difícil conquista da cidadania em um país não
muito distanciado de anos de ditadura, e a um apelo à paz mundial a ser realizada
através da justiça, da liberdade e de uma fraterna igualdade entre todos, pessoas,
etnias, povos e nações. E coloca, do outro lado, as religiões mais voltadas a uma
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 275
individualização de valores humanos, com o suposto de que os ideais de paz
internacional, de justiça e de igualdade somente serão instaurados e consolida-
dos através de um crescimento espiritual realizado através da religião no espírito
e no coração de cada pessoa.
Para não sairmos de um mesmo quadrante do universo confessional no
Brasil, tomemos o Catolicismo como um bom exemplo. Mas estejamos atentos
ao fato de que o que se passa agora em seu interior (e que apenas atualiza divi-
sões e tendências antecedentes de alguns ou de muitos anos) acontece também
dentro de e entre outras tradições religiosas, de vocação ecumênica ou não.
Em meio aos jornalistas, mas também, de maneira mais discreta, entre os
próprios bispos católicos,‘é costume o classificar prelados e sacerdotes, assim
como fiéis leigos e “linhas da Igreja”, com estes nomes: “conservador”, “mode-
rado” e “progressista”. Como em toda a boa política, conservadores e progres-
sistas polemizam e os moderados decidem.
Em uma igreja nacional que ora se alça e ora se espanta de reconhecer-se
um dos lugares universais de nascedouro das idéias teológicas e das experiências
de prática cristã mais avançadas, segundo o juízo de aliados e de inimigos da
Teologia da Libertação, das Comunidades Eclesiais de Base, da Teologia da
Inculturação, e de uma vocação crescentemente pan-ecumênica, tudo sugere
que uma outra velha e nova série de indicadores de diferenças parece haver se es-
tabelecido. Um breve exame de suas diferenças poderá ser útil para compreen-
dermos alguma coisa a mais sobre a lógica dos imaginários e dos relacionamen-
tos dentro e fora de um mesmo território confessional.
Os agentes (“padres carismáticos” e, em segundo plano, religiosas) e os
adeptos mais fervorosos da Renovação Carismática Católica tendem a seguir um
padrão de limite das fronteiras do sagrado cristão legítimo, próximo ao estilo
pentecostal evangélico6. Claro, dificilmente serão tão restritivamente não-
ecumênicos quanto uma Congregação Cristã no Brasil ou uma Igreja do Evange-
lho Quadrangular. Não esquecer que mesmo entre os pentecostais evangélicos,
algumas antigas igrejas antes extremamente fechadas até mesmo a outros minis-
térios da mesma denominação, hoje ensaiam um esboço tímido de ecumenismo
cristão.
No interior mesmo do círculo dos católicos, adeptos e dirigentes fervoro-
sos da RCC limitam o seu diálogo com “irmãos de fé” de outras “linhas”. Com
bastante menos ênfase e maior tolerância do que os pentecostais evangélicos,
eles se reconhecem, no entanto, como uma frente profética, carismática e defini-
tivamente renovadora de toda a catolicidade. Eles retomam e reacendem na Igreja
o “fogo e as luzes do poder do Espírito Santo”. Eles se reconhecem como a
única alternativa católica frente ao poder proselitista das unidades evangélicas
pentecostais, e criticam as outras “linhas de Igreja” pelo descuido da dimensão
propriamente religiosa na vida do fiel. Criticam, mais ainda, uma aberta “intro-
missão na política” e a adesão a posições teológicas e sociais mundanas e, por isto
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004276
mesmo, indevidas. Nesta mesma direção, voltados bastante mais para o interior
de sua própria modalidade carismática do “ser católico”, voltados mais para o
interior de sua Igreja Católica e para o interior de sua religião, o Catolicismo, os
pentecostais católicos sentem-se muito pouco atraídos para qualquer apelo de
tipo ecumênico, mesmo entre cristãos e com outras confissões pentecostais.
No extremo oposto estão os bispos, sacerdotes e leigos originalmente as-
sociados à Ação Católica dos anos de 1950 e 1960, aos movimentos populares
religiosos, às comunidades eclesiais de base e às teologias de fronteira, como a
“da libertação” e a “da inculturação”.
Considerados os seus agentes e fiéis mais extremos, a questão religiosa dei-
xa de ser confessional e passa a ser confessante. Ou seja,a vocação e o dilema da fé,
cristã ou não, deixam de ser um atributo exterior ao sujeito e interior às institui-
ções religiosas, e passam a ser um direito livre de pessoas, de grupos culturais –
onde a face étnica tem sempre um valor muito forte – e de comunidades sociais.
Uma crescente vocação ecumênica inaugurada nos anos de 1950 e 1960
salta os seus próprios primeiros limites cristãos e se abre a todas as religiões. Na
verdade, ela se volta de mãos abertas a todos os sistemas de sentido orientados a
um ideal de construção de direitos e de valores humanos em sua plenitude, in-
clusive os não-religiosos. Evocando sentidos evangélicos profundos e arcaicos, o
lugar sagrado da vida religiosa deixa de ser as e de estar nas instituições sociais
confessionais e passa a construir e ser construído por redes de fiéis, por teias de
pessoas voltadas ao amor de Deus e ao amor de todos, através dele.
Um relativismo científico e, no limite, humanista, que nutre concepções
da Antropologia Social, passa a ser o substrato do direito teórico e da vocação da
prática entre tais cristãos pan-ecumênicos. A mesma realidade universal de um
deus de todos e de tudo se manifesta no tempo das histórias e no espaço das
culturas através de uma infinidade de sistemas de sentido, de espiritualidades, de
místicas, de religiões.
Assim sendo, uma vocação ecumênica deixa de ser um ato concessivo da
catolicidade em direção a outras religiões‘“irmãs”, “separadas”, e tende a se tor-
nar uma obrigação constitutiva do próprio sentido do amor, da liberdade e da
solidariedade, valores e sentimentos universais, multiplamente revestidos de di-
reitos a uma adesão religiosa. O verdadeiro sentido da experiência da fé da pes-
soa e da pessoa de fé, em um mundo culturalmente plural, está justamente na
realidade e no direito à diferença, à peculiaridade cultural, à pluralidade das ma-
nifestações da fé em inúmeras religiões convergentemente diversas. A unidade a
ser buscada deve ser mais a de horizontes de sentido do destino humano, de
felicidade de tudo e de todos em nome de um Deus uno, único e culturalmente
múltiplo do que as de unidades forçadas (regidas sempre pelo poder da palavra
ou pelo poder que torna legítima uma palavra frente a outras) entre as divergên-
cias de crenças e de credos.
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 277
Teólogos da inculturação, leigos e missionários nacionais e europeus em
toda a América Latina, evocam hoje uma espécie de prática missionária às aves-
sas. Ela parte do reconhecimento do valor pleno da tradição religiosa de cada
grupo cultural autóctone e sugere uma atitude para além da respeitosa tolerân-
cia. Ela obriga a uma prática em que o esforço missionário vai no sentido de
procurar recuperar e reforçar a integridade dos valores religiosos do grupo autóc-
tone, no suposto de que a plena realização cotidianamente humana e espiritual e
de cada pessoa, grupo ou comunidade cultural, está na vivência íntegra de sua
própria e dialógica experiência do sagrado.
O Mosteiro da Anunciação do Senhor, de tradição beneditina francesa e si-
tuado em uma pequena cidade do Centro-Oeste do Brasil, acolhe “irmãos” evan-
gélicos e de cultos afro-brasileiros. Ele incorpora (“incultura”) as tradições cultuais
de seus visitantes não-católicos no coração dos ritos diários do Mosteiro, e publi-
ca um calendário em que estão marcadas, para serem lembradas e rememoradas,
as festas cíclicas de inúmeras outras religiões, inclusive orientais.
Assim, de um lado e de outro de pessoas que comungam a mesma hóstia
de pão e bebem o mesmo vinho, e também partilham os mesmos princípios de
crenças e doutrinas, existem diferenças quase radicais a respeito de questões que
estão entre as mais importantes dentro de uma religião. Assinalei linhas acima
como entre os pentecostais evangélicos, onde o leque do direito à diferença
legítima é bastante menor, cresce a tendência a uma abertura limitadamente
ecumênica em duas direções.
Primeiro em uma difícil direção de diálogo, no que respeita confissões
mais tradicionais e bastante mais solidamente estabelecidas no campo religioso
cristão, como é o caso da Assembléia de Deus. Depois, em uma direção franca-
mente mercantil e oportunista, como acontece segundo um padrão rotineiro
entre as religiões de Cura Divina e, em sua roupagem importada de menos tem-
po, de uma “teologia do sucesso”. Ali, diante de uma platéia mais de clientes dos
usos do que de fiéis do culto, os agentes religiosos falam e pregam: “aos irmãos
crentes de nossa igreja”, “aos irmãos das outras igrejas evangélicas”, “aos irmãos
católicos”, até “aos irmãos da Umbanda e do Candomblé” e mesmo “a todos os
irmãos sem religião”.
Uma questão que nos aguarda adiante poderia ser antecipada aqui. Prova-
velmente mais agora do que no passado recente, quando o Catolicismo constituía
a religião de um quase absoluto poder demográfico, político e simbólico no País,
a própria dinâmica do ritmo, da direção e da lógica de combinações internas e
exteriores de um mundo religioso como o do Brasil realizava-se através da ma-
neira como cada unidade confessional de crença (a Igreja Católica), cada religião
múltipla (o Cristianismo) e, afinal, todas elas, no seu conjunto, estabeleciam
uma poética de imaginários, uma lógica de identidades e uma ética de relações.
Primeiro no interior de seu próprio domínio (entre católicos de diferentes
tendências e estilos). Depois, no âmbito do círculo de seu sistema ampliado de
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004278
crença e de culto (os cristãos, suas confissões, igrejas, ministérios e vertentes de
opção). Depois, ainda, no campo propriamente religioso (entre “cristãos”, “afros”,
“orientais”, e todos os outros). Depois, finalmente, entre os sistemas de sentido
“de religião” e outros sistemas de sentido visíveis e levados em conta – contra ou
a favor – por esta ou aquela religião.
Encerremos por aqui esta geografia do sagrado, que tomou o caso brasilei-
ro como um exemplo. Procuremos daqui em diante compreender alguns fenô-
menos presentes na dinâmica de sua geologia.
Transformações e tendências recentes
Que me seja permitido retornar sobre alguns passos percorridos até este
ponto, e propor em uma pequena seqüência algo que me parece importante,
quando se pensa a respeito das recentes transformações e tendências no mundo
religioso no Brasil. Um olhar um pouco mais estendido poderia perguntar se
algo semelhante, guardadas as proporções e as peculiaridades de cada cultura,
não é o mesmo que sucede agora em toda a América Latina.
1º) Muito mais do que em anos passados, até mesmo as religiões tidas
como tradicionais e consagradas tendem a se diferenciar bastante no interior de
suas ortodoxas, de modo a oferecerem, sobretudo aos leigos, uma multiplicidade
de afiliações de significado e prática da fé. Tornando mais acelerado e permissivo
algo que já vinha ocorrendo desde pelo menos o começo do século passado e,
mais ainda, desde os últimos sessenta anos, religiões mundiais, como o Catolicis-
mo, deixam-se penetrar por visões e versões vizinhas, diferentes e mesmo antes
muito antagônicas a uma ortodoxia tradicional. Elas envolvem novos significa-
dos de crença e novas sensibilidades de fé a respeito do próprio sentido do sagra-
do. A respeito da lógica das relações entre a pessoa e os seres celestiais e, final-
mente, a respeito da gramática espiritual e prática das regras de adesão e das
opções de destino pessoal, com sentidos e valores: ético, social ou político, e
voltadas para “o compromisso com o Mundo”.
2º) sobretudo nos últimos anos, há uma quase explosiva polissemia religio-
sa. Ora, se ousarmos pensar as outras dimensões de criação institucional da cul-
tura, como as dos campos da política, da arte, ou da ciência, nenhum outro é tão
democrática e tão escancaradamente aberto à adesão de tudo e todos, como a
religião. Muito mais fácil é ingressar em qualquer uma religião do que em umaacademia. Muito mais depressa hoje em dia se faz um convertido do que um
padeiro e muito mais longa é a carreira de um doutor do que a de um pastor.
Muito mais urgente e radicalmente alguém “muda de vida” através da religião
do que por meio da psicanálise, enganando-se ou não... de um lado ou do outro.
Ao alcance de pessoas de qualquer categoria social e de qualquer tradição
cultural, o universo religioso brasileiro acelera muito agora o que vinha já multi-
plicando desde antes, em termos de ofertas de tipos de agências de conversão, de
afiliação, ou de usos de serviços de ajuda ou salvação. Não apenas multiplicam-se
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 279
unidades de crença partilhada com conteúdos de imaginário diversos, mas tipos,
estilos e estratégias de afiliação, de presença e de vivência através de uma fé.
Pode-se escolher estar em pequenas seitas emergentes e rigorosas; em igrejas
estáveis, mais frouxas e melhor consagradas; em agências fechadas em um círculo
de iniciados, ou abertas a multidões de clientes em busca de prestações fáceis de
serviços; em difusos sistemas comunitários de afiliação. Este amplo universo de
eixos e fronteiras do sagrado abre-se também a uma variedade crescente de no-
vas incorporações de sistemas de sentido confessionais, importados ou autócto-
nes. Se em uma direção isto propicia uma introdução, ou a criação local, de
novas variantes de grupos evangélicos de tipo pentecostal, trazidos dos EUA ou
as unidades esotérico-ambientais inesperadas na Índia, em uma outra direção
crescem sempre as alternativas de criação de novos estilos de crença e prática
religiosa francamente autóctones.
Este é um aspecto tão importante e nem sempre levado em conta entre
nós. Ao lado de uma infatigável multiplicidade de escolhas de crenças tornadas
religiões, e diferenciadas através dos conteúdos simbólicos de seu corpus de ima-
ginários, de saberes, de valores e de sentidos de afetos, é importante considerar a
desigualdade de maneiras e de estilos através dos quais uma religião em nossos
dias faz variar as suas instituições. Faz com que elas oscilem ou se diferenciem
entre alternativas de relacionamentos às vezes quase antagônicos.
3º) No entanto, há algo mais importante do que este duplo processo atual
de modernização da oferta e da composição cultural diferenciada do universo
religioso, no interior de cada uma religião, através da flexibilização e da polissemia
interna de alternativas de afiliação e partilha. Ou no interior do próprio campo
religioso, através da multiplicação de tipos de agências e de variações de crenças,
religiões e igrejas.
Este “algo” está situado em uma crescente mudança, hoje bastante acentua-
da, da própria qualidade de composição da estrutura dos cenários de oferta religio-
sa. De uma oferta de bens espirituais e materiais, de sentidos de vida e de serviços
rituais que vão da cura do câncer a um casamento de sábado, quando eles são
afinal pensados, experimentados e vividos como uma parte importante do cotidi-
ano das pessoas de vida religiosa. Isto é, das diferentes modalidades do ser, hoje
em dia, uma versão de si-próprio para si-mesmo revestida da aura do sagrado as-
sumido. E também das identidades sociais dadas ao círculo dos outros através,
também da religião e, de uma maneira mais ativa, a sim mesmo. como um sujeito
participante da vida social através do ser, também e, em muitos casos, essencial-
mente, uma pessoa religiosa: um convertido, um fiel, um devoto, um afiliado, um
fanático, um militante, um sectário, um suplicante, um “pecador contrito”. um
homem-de-fé, um leigo, um diácono, um sacerdote de carreira, um profeta alu-
cinado ou lúcido., um “salvo no Senhor”, um “iluminado”, um “espírito de luz”,
um emissário de uma religião de ets, um ambientalista-esotérico-vegetariano-anun-
ciador da Nova Era, um feiticeiro, um buscador, um santo, e, até mesmo... um
descrente.
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004280
Ora, uma certa, relativa e sempre não previsível lógica de mercado vivida
como experiência cultural da busca-de-sentido-de-vida-através-da-fé, faculta a
que as pessoas possam se relacionar com a religião de uma tal maneira que, ao
mesmo tempo e em a só momento de suas vidas, elas se reconheçam partilhando
mais de um sistema religioso. Vivendo a experiência pessoal de dirigir a vida
segundo os valores e as sensibilidades de mais de uma religião, sem se reconhece-
rem necessariamente fiéis a uma única. Ainda que esta possibilidade não seja por
agora a norma, há uma tendência crescente a que as pessoas creditem um amplo
e generoso valor potencial do sagrado a todas as religiões de seu campo visível de
escolhas. E, ao pensarem assim, optem por relacionar-se com algumas delas, de
acordo com a lógica pessoal de suas próprias necessidades, sentindo-se, no limi-
te, vinculadas a duas ou mesmo três delas a um só tempo ou entre movimentos
pendulares de adesão provisória.
Em uma outra direção próxima, é crescente uma tendência próxima à an-
terior, onde cada pessoa, potencialmente senhora de seu próprio destino religio-
so, transita ao longo de um momento da sua vida, de um a outro, entre diferen-
tes sistemas de sentido, adotando, no entanto, uma única opção de sentido a
cada vez. Ela realiza esta “busca” aderindo a um e a seguir, a outros sistemas reli-
giosos e/ou espirituais, em nome da avaliação individual sobre cada um seu
momento de vida, num confronto com as alternativas de sua realização subjeti-
va, através do trabalho iniciático ou de aperfeiçoamento que ela acredita estar
produzindo sobre si mesma através de uma religião, através de uma “mística” ou
através de uma “espiritualidade”. Os dois últimos termos, postos entre aspas, são
palavras muito comuns e sugerem sistemas de imaginários não fatalmente atrela-
dos à religião e, em especial, a uma única religião.
Desde uma ótica do ator cultural, mais do que da instituição social, isto
tem a ver com todo um processo bastante atual de individualização que, com o
atraso de vários anos chega, afinal, também à América Latina. Em síntese, uma
dívida de crença do sujeito para com instituições que começam com a sua família
e podem terminar com a sua pátria, pensada e vivida através da religião, tende a
tornar-se o seu oposto. Isto é, tende a converter-se em um direito de fé franca e
crescentemente individualizado.
Estamos agora diante de um processo antigo na história das relações hu-
manas entre deveres e direitos associados ao pensado, ao confessado e ao vivido.
Não se trata, creio eu, de um perverso individualismo confessional, dado que na
maior parte dos casos a adesão a uma religião e/ou igreja sugere a partilha e a
reciprocidade de sentidos, de destinos e de compromissos. Sugere, não raro, um
certo sacrifício pessoal tão propalado por algumas religiões. Será, antes, uma
abertura da sociedade ao sujeito no que toca as opções legítimas de sentido-de-
vida e de deve-de-crer-em-algo para se-ser- quem-é. Algo que em boa medida
responde pelos novos termos em que se processa a própria dinâmica da experiên-
cia cotidiana e da cultura religiosa em um País que, parodiando William James,
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 281
através de Cliffford Geertz, crê em tudo o que pode e acreditaria em tudo, se
pudesse.
Quando, há anos atrás, Peter Fry e Gary Howe, dois antropólogos ingle-
ses, fizeram uma breve, mas muito importante pesquisa sobre as escolhas religio-
sas de boa parte das pessoas das classes sociais mais populares, eles se viram frente
a um destes dilemas que sempre parecem espreitar quem se aventure por estes
terrenos.
Eles investigaram pessoas afiliadas a dois sistemas religiosos sempre tidos
como antagônicos. Sistemas opostos e publicamente inimigos, do ponto de vista
de aspectos centrais de suas crenças, de orientações éticas para a eternidade e o
cotidiano, e de cerimônias cultuais. De acordo com os dois autores, a Umbanda
pode ser caracterizada pela crença fundamentalna existência de entidades espiri-
tuais múltiplas, com diferentes nomes e poderes. Também por um sistema de
crenças francamente eclético e pela proliferação de grupos autônomos e frouxa-
mente associados a federações fracas. Por uma visão do universo terreno e sagra-
do como sendo arbitrário e manipulável por meio do jogo das relações entre os
homens e as entidades do panteão sagrado, benéfico ou malévolo. Finalmente
uma ética ritualística de barganhas entre favores e poderes, sem maiores obriga-
ções de participação na vida religiosa do grupo e sem deveres de conduta social
devidos à adesão religiosa.
Por seu turno, o Pentecostalismo caracteriza-se por uma forte crença
monoteísta em uma única divindade; por um sistema de crenças ia identidade do
fiel aos cânones de sua adesão religiosa7.
Por opostas que sejam estas duas agências de afiliação (o termo é dos auto-
res), elas atraem quase indiferentemente fiéis das mesmas classes sociais, das
mesmas extrações de cultura, das mesmas origens regionais. Não importa aqui
discutir as razões encontradas para explicar porque os mesmos tipos de sujeitos
buscam, em estilos tão antagônicos de sistemas de sentido, de conduta e de
oferta de bens religiosos dirigidos à felicidade cotidiana ou à salvação eterna, a
solução de suas aflições. E não apenas isto, convenhamos, mas o encontro de um
lugar de devoção e de partilha religiosa da vida. Mais ainda. Pois devemos consi-
derar com cuidados especiais estas supostas diferenças. Estas supostas oposições,
tão ao nosso gosto de antropólogos.
O próprio jogo actancial entre pessoas do bem (Deus Pai, Jesus Cristo) e
do mal (Satã, “o Diabo”, a multidão, nominada ou não, dos demônios) toma
toda uma forma teatral nos ritos de cura divina que, em certos momentos, pouco
tem a ver de diferente com o que acontece em uma sessão de luta entre espíritos
na Umbanda. De fato, a tal ponto a própria pessoa malévola do Diabo é tão forte
e tão absolutamente essencial na lógica de crenças, afetos e cultos pentecostais,
que mais do que um agente do mal e um oposto absoluto à pessoa de ao poder
de Jesus Cristo, ele se converte no operador central e no ator principal através de
quem, afinal, tudo acontece8.
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004282
Importa considerarmos o fato universal de que uma transformação
atualizadora do universo religioso no Brasil não observa uma tendência única de
variações, mas, ao contrário, diferencia alternativas de composição confessional
por meio de seqüências de estilos e de sistemas religiosos, real ou aparentemente
opostos, desde o ângulo da lógica da crença, do estilo do culto e da ética social
derivada. Assim sendo, se estas idéias fazem sentido, podemos supor que conti-
nuamente acontece que tanto na variação modernizante das religiões tradicio-
nais, quanto no advento e na incorporação de neo-religiões estrangeiras ou au-
tóctones a um múltiplo cenário de escolhas confessionais, há uma tendência acen-
tuada à reiteração de sistemas religiosos consagrados, de maneira contínua aber-
ta ao surgimento simultâneo e a uma moderada difusão de unidades de crença de
“estilo pentecostal”, por oposição aos seus equivalentes de “estilo umbanda”.
Nesse sentido, o Catolicismo parece ser a religião com a mais aberta capaci-
dade de ajustamento aos “novos tempos”, embora seja a confissão religiosa que
mais “perde fiéis para as outras”. Quando observada de perto, vemos como ela
se abre e se permite diversificar, de modo a oferecer, em seu interior, quase todos
os estilos de crença e de prática da fé existentes também fora do Catolicismo.
Uma pessoa adepta da Congregação Cristã no Brasil quase só pode, na
prática, variar entre um ou dois estilos muito próximos de identidade religiosa e
de vivência de sua religião, dentro e fora do âmbito direto da comunidade religio-
sa. Não há subestilos, não há um gradiente flexível de‘“modos-de-ser-da-Con-
gregação” e, principalmente, não há lugar a um par de opostos como as comuni-
dades eclesiais de base e a renovação carismática católica.
Fotos Cortesia do Autor
Casal da Irmandade Religiosa na Festa de São Benedito, Itapira (SP).
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 283
Toda a associação entre classe social e opção religiosa diz sempre meias
verdades. Que eu possa aqui, por um momento, ousar as minhas. No presente
momento, as pessoas e famílias do que nos acostumamos a chamar no Brasil de
“as classes trabalhadoras”, ou a que se dá nas Comunidades Eclesiais de Base o
nome de “excluídos e marginalizados”, restam as opções entre: permanecer “cató-
lico”, converter-se a uma confissão evangélica (quase sempre pentecostal, cada
vez mais raramente não-pentecostal), voltar-se para ou manter-se em algum sis-
tema religioso de possessão (mais os de tradição afro-brasileira do que o Espiri-
tismo Kardecista), transitar entre confissões e igrejas e, finalmente, preservar um
moderado agnosticismo confessional. De outra parte, entre as pessoas de classes
médias para cima, o leque de opções visíveis é extraordinariamente mais aberto9.
Afora todas as escolhas anteriores, todo um leque de vocações individuais
ritualmente partilhadas está aberto e disponível. E, cada vez mais, ele oferece
alternativa inclusive bastante heterodoxas, do ponto de vista, por exemplo, das
tradições familiares de origem da maioria das pessoas.
Vimos o tempo todo que vivemos hoje em dia um tempo de história e
cultura com duas características essenciais: a) do ponto de vista de cada um de
nós, individualmente, há uma abertura crescente em direção à individualidade,
aos direitos pessoais de opção e compromisso de tal sorte que cada vez mais a
obrigação social (familiar, parental, comunitária etc.), de “ser religioso” e “ser
desta religião”, desloca-se aos poucos, e mais nas cidades do que no campo, para
o direito individual de “fazer-se religioso”. De escolher a sua adesão confessional
e um modo ou um feixe pessoalmente significativo de modos interligados de
Rei e Rainha da Festa de São Benedito, Machado (MG).
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004284
viver (menos quando se ingressa por conversão em uma religião de tipo sectá-
rio); b) do ponto de vista objetivo, o cenário das religiões abre-se ao movimento
a possibilidade crescente de transformações e a uma conseqüente diversidade.
Aos poucos uma hegemonia católica estende-se em culturas tradicionalmente
cristãs-católicas um universo multiconfessional entre tipos de religiões e de agências
religiosas em concorrência, em conflito, em aliança e também em diálogo. É
bem certo que todo este movimento de novidade sobre a tradição e de re-tradicio-
nalização religiosa da novidade, tende a operar entre dois pólos opostos: o de
sistemas de sentido voltados para ou estrategicamente obrigados a um diálogo
teórico e prático, como escolha criadora de toda uma teologia do outro versus o
de sistemas carentes de sentido de exclusividade, sectários e fechados. Afinal, o
mundo das religiões não é muito diferente, pelo menos no que toca este ponto,
do das ciências ou mesmo do dos negócios.
Para além da religião, o tempo cultural em que vivemos e para onde nos
dirigimos, inclui cada vez mais um número maior de estilos de espiritualidades,
de outros sistemas de sentido, de combinações pessoais e coletivas de saberes e
valores que não apenas permitem, mas obrigam a própria pessoa-religiosa a
interações de sentido, a integrações de escolhas, a indeterminações de seu pró-
prio destino como um indivíduo e uma identidade.
Eis um dilema: tudo muda, mas tudo permanece mais ou menos igual. Anun-
ciou-se em séculos e décadas passadas o “fim da religião” e a “morte de Deus”!
Ei-los vivos por toda a parte e gozando de boa saúde. A religião convive com
ciências e as ideologias e não parece perder terreno, mas antes revigorar-se e
abrir-se a um mundo de idéias e de desafios humanos sem dúvida mais difícil do
que os “mundos culturais” que nos antecederam. Ao contrário,os imaginários
do sagrado parecem hoje mais resistentes às crises da pós-modernidade do que as
ciências e as ideologias. O surgimento de tantas outras formas de pensar, de
sentir e de traduzir isto de muitas maneiras, tem criado inúmeras novas alterna-
tivas de conversão e “descoberta”, de adesão religiosa e de afiliação confessional.
Isto acontece dentro e fora dos círculos mais marcados pela religião, como vimos
aqui. Este fenômeno de retorno ao sagrado, revestido agora de uma extraordiná-
ria plasticidade, de um antes impensável poder de criação e de diferenciação,
envolve pessoas, grupos sociais e comunidades culturais as mais diversas. Poucas
seriam as regras que poderiam ser dirigidas com algum acerto a uma única cate-
goria de atores sociais.
Uma idéia neste mesmo sentido sugerida por Manuela Cantón Delgado
deve ser citada aqui.
O previsto “ocaso” do sagrado tem uma outra leitura, também ela em meios
termos: aquela segundo a qual o processo de modernização e o de seculariza-
ção constituem um binômio indissociável. A América Latina se propõe como
um imenso espaço no qual a suposta modernização (seja ela o que for) não
apenas mostra-se incapaz de liquidar os movimentos convercionistas, como
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 285
parece mesmo propiciá-los. Neste sentido, a criatividade religiosa contempo-
rânea não deveria ser explicada a partir dos supostos fracassos dos ideais da
modernidade, senão que desde esta mesma modernidade, que foi ingenua-
mente assimilada a uma perda irreversível de presença do religioso, enquanto
o religioso se assimilava-reduzia ao eclesiástico10.
Ora, sem que isto queira representar uma supervalorização do que chamei
até aqui de sistemas de sentido religiosos, uma ousada questão poderia ser mes-
mo levantada agora. Já não se trata de procurar a todo o momento estabelecer
quais e em que medida certos fatores e determinantes políticos, econômicos ou
de natureza semelhante atuam sobre a lógica e o ritmo das existências, das rela-
ções e das transformações no campo múltiplo e difuso das religiões. Talvez im-
porte reverter a pergunta. Como e de que maneira o fenômeno religioso consti-
tui possivelmente – e hoje, mais talvez do que no passado – o eixo dos degraus
mais profundos desde onde as lógicas, os imaginários e os preceitos de sentido e
de valor de outras instâncias da vida social são produzidos, postos em vigência e
transformados? Pois não é, a meu ver, que apenas a religião, as espiritualidades e
as suas intercombinações estão vivas e tenham atravessado os tempos da
modernidade e da pós-modernidade com um vigor surpreendente, no Brasil e
nos Estados Unidos, na Espanha e na Argélia. Tais sistemas de pensar a vida e
viver o pensamento recriam hoje um poder vigente de presença em todas as
esferas da história e do cotidiano que apenas uma interpretação muito estrita do
que seja a religião e o ser-religioso hoje entre nós, pode considerar como algo de
menor importância e como algo cuja razão de ser e se transformar está sempre
situada fora dela mesma.
Notas
1 Ver Leilah Landim (org.), Sinais dos tempos e tradições religiosas no Brasil, São Paulo,
Instituto de Estudos da Religião –ISER, 1989.
2 Uma pesquisa do Instituto Gallup, publicada em março de 1990, envolvendo res-
postas não-estimuladas, revela uma porcentagem de 76,4% de católicos romanos;
8,5% de protestantes ou evangélicos, incluídas aí as confissões pentecostais, 4,6% de
espíritas kardecistas, 0,4% de adeptos de religiões de origem afro-brasileiras (can-
domblé, umbanda, tambor de mina, xangô e outras); 0,2 de budistas e finalmente,
9,2% de pessoas que se reconhecem como “sem-religião”. Outras várias religiões
teriam apresentado cifras quase invisíveis.
Com respostas estimuladas, dois anos depois, uma pesquisa semelhante, realizada
pelo mesmo Instituto Gallup, revelou dados que alteram de maneira surpreendente,
para muitos, os números da pesquisa posterior. Os católicos descem para apenas
58,8% (com o que as autoridades eclesiásticas não concordam em absoluto), os evan-
gélicos descem para 5,6 (idem, com imensas ênfases entre os pentecostais), os espí-
ritas vão para 3,5% (curiosamente divididos então entre “espíritas científicos” e “es-
píritas cristãos”); os adeptos dos cultos afro crescem para 1,5% e os “sem-religião”
dobram o número e atingem 18,7%.
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004286
Algumas outras investigações semelhantes, no entanto, realizadas por instituições
confiáveis, colocam os católicos entre 78% e 85%, elevam os evangélicos para algo
entre 10% e 20%,com uma crescente proeminência dos pentecostais e, hoje em dia,
das igrejas de cura divina e de teologias populares do sucesso, e alteram as cifras de
outras confissões religiosas.
3 Para ser fiel a um cenário bastante multiforme, quero lembrar aqui um sistema
classificatório sugerido por Olga Gudolle Cacciatore, em seu Dicionário de Cultos
Afro-Brasileiros, entre as páginas 22 e 23. Dentro de uma escala de tempos, ela
começa pelos cultos indígenas anteriores à chegada dos conquistadores e, a seguir,
anota os sistemas como o da Pajelança. Entre os sistemas religiosos de origem e
tradição afro-brasileira, reconhece, diacronicamente, os seguintes: a) Candomblés de
origem sudanesa (de tradição Nagô, de tradição Jeje-Nagô, de tradição Mina-Jeje –
Casa das Minas, e de tradição Muçumirim (muçulmano); b) os candomblés de ori-
gem Bantu, a partir do século XIX; c) os cultos de Nagô e de Pajelança (Candomblé
de Caboclo) e os cultos de tradição Angola-Congo, como o Toré e o Catimbó, do
Nordeste e do Norte do País; d) A Macumba; e) a Umbanda típica do Rio de Janei-
ro, já como mescla da Macumba Primitiva, do Catolicismo, do Espiritismo Kardecista
e doOocultismo, e a Macumba Transformada, como a Quimbanda.; f) os cultos de
Umbanda cruzados com o Candomblé, ou tendentes a mesclas com o Espiritismo
Kardecista (Umbanda de Branco ou Umbanda de Caritas.
4 Mas chama a atenção a maneira como hoje as pequenas novas e mínimas igrejas de
Cura Divina, ao estabelecerem as religiões de possessão e os agentes rituais dos cul-
tos de tradição afro-brasileira como os seus inimigos prioritários, acabam por gerar
uma retórica de combate e uma simbologia ritual quase equivalentes.
5 Luis Eduardo Soares escreveu dois artigos cuja leitura será de uma boa importância
aqui. Foram ambos publicados no Sinais dos tempos e Tradições religiosas no Brasil, já
citado aqui. Um deles aborda justamente a questão sumarizada acima: “Religioso
por natureza – cultura alternativa e misticismo ecológico no Brasil (pp. 121-144). O
outro envolve um dos melhores estudos sobre as religiões amazônicas centradas na
ingestão ritual da Ayuasca: “Santo Daime no contexto da nova consciência religio-
sa” (pp. 265-274).
6 Atrasada quanto a este aspecto, quando comparada com a Assembléia de Deus de
anos atrás, ou a Igreja Universal do Reino de Deus de agora, finalmente começam a
surgir e a se propagar pelo Brasil, sacerdotes católicos liberados pela hierarquia (não
sem problemas, conselhos e divisões) para uma propaganda proselitista da fé ao esti-
lo mais agressivo. Surgem aqui e ali sacerdotes carismáticos com um grande poder
de atração sobre multidões de fiéis. O caso atual mais notável é o padre Marcelo
Rossi, de São Paulo. Suas missas e pregações em lugares públicos chegam a atrair
quarenta mil fiéis, de acordo com as manchetes dos jornais. Divulgador de um “ter-
ço bizantino” e difusor de velhas e novas práticas carismáticas de prece, os seus livros
estão entre os mais vendidos entre os de teor religioso.
7 Remeto o leitor a Duas respostas à aflição – Umbanda e Pentecostalismo, publicado
no n. 6 de Debate e Crítica, jul. 1975, pp. 75-94.
8 A este respeito, em um artigo mais ou menos recente, Otávio Alves Velho oferece
uma interpretação que me parece bastante oportuna. Ele diz o seguinte: “A oposi-
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004 287
ção radical entre

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