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® BuscaLegis.ccj.ufsc.br Responsabilidade Civil em Meios de Transporte: Ferrovias, Carros Urbanos, Ônibus, Automóveis, Motocicletas, Aeronaves Werson Franco Pereira Rego* 1. Introdução É inolvidável a influência do desenvolvimento contínuo dos meios de transporte para o incremento das questões hoje relacionadas à responsabilidade civil. Os riscos oriundos do transporte coletivo de pessoas e coisas, bem assim, os novos riscos criados pelo uso de automóveis serviram, sobremaneira, de base para a elaboração das modernas concepções sobre responsabilidade civil. Afirmamos, com SÉRGIO CAVALIERI FILHO, que o transporte coletivo urbano tornou- se, nos dias atuais, instrumento fundamental para o cumprimento das funções sociais e econômicas do estado moderno.1 JULLIAN HUXLEY, na mesma ordem de idéias, em arguta observação, ponderou que o insopitável anseio de se transportar fácil e rapidamente é o responsável por essa crescente importância do problema em debate. O tema responsabilidade civil nos meios de transporte, por amplo, deve ser dividido em duas classes: a da responsabilidade oriunda de negócio jurídico celebrado entre o transportador e aquele que sofreu o dano; e a da responsabilidade do transportador para com quem, experimentando um dano, não tem com ele, entretanto, qualquer relação jurídica. À primeira denomina-se responsabilidade contratual; à segunda, responsabilidade extracontratual. 2. O Contrato de Transporte e a Responsabilidade Contratual O contrato de transporte é, nos dias atuais, um dos negócios jurídicos que mais freqüentemente se observa. Paradoxalmente, dele não cuidou o Código Civil brasileiro .2 Entende-se por contrato de transporte aquele em que uma pessoa, física ou jurídica, se obriga, mediante retribuição, a conduzir, de um local para outro, pessoas ou coisas.3 Pode ser realizado por via fluvial ou marítima; terrestre ou aérea. Os sujeitos dessa relação são o viajante ou passageiro, isto é, aquele que será transportado, ou o remetente ou expedidor, que é aquele que contrata a condução da coisa ou da notícia - no pólo ativo -, e o transportador, aquele que é contratado e se obriga a prestar o serviço - no pólo passivo. O destinatário ou consignatário, a quem a mercadoria ou notícia deverá ser entregue, não é contratante. Nada obstante, em determinadas situações, poderá assumir deveres e ser titular de direitos face ao transportador. O objeto do contrato de transporte é a prestação remunerada de conduzir, que, por sua vez, poderá recair sobre pessoas ou coisas. Frise-se, por importante, que o transporte gratuito não se configura em negócio jurídico e, portanto, a responsabilidade civil daí decorrente será extracontratual. Configura-se em contrato por adesão, visto que suas cláusulas encontram-se previamente estabelecidas pelo transportador, às quais o sujeito ativo simplesmente adere, quando da celebração do contrato. É um negócio jurídico bilateral, oneroso, comutativo e não solene. Os contratos de transporte trazem, implicitamente, em seu conteúdo, a chamada cláusula de incolumidade, segundo a qual o viajante tem o direito de ser conduzido, bem assim os seus pertences, são e salvo até o seu local de destino. Logo, há um comprometimento do transportador com o resultado, tendo, desta forma, o dever de zelar pela incolumidade do passageiro e seus pertences até o término da obrigação contratada. 3. A Responsabilidade Civil do Transportador Não é pacífico o entendimento sobre a natureza jurídica da responsabilidade do transportador. Para uns, seria aquiliana a culpa do transportador, ainda que no transporte de pessoas, eis que a incolumidade destas seria indisponível e, portanto, não podendo ser objeto de relação jurídica. Para a maioria, ao revés, seria efetivamente contratual a responsabilidade do transportador perante o viajante ou o expedidor, oriunda de contrato por adesão entre eles celebrado. Perante terceiros, no entanto, tal responsabilidade seria aquiliana. Cremos que a razão está com a maioria. Ademais disso, cumpre verificar, ainda, se esta responsabilidade civil do transportador é objetiva ou, ao contrário, é subjetiva. Posicionamo-nos no sentido de que a responsabilidade civil do transportador, se derivada de infração contratual, será sempre objetiva. No direito pátrio, as origens desta responsabilidade encontram-se no Decreto nº 2.681, de 07 de dezembro de 1912, que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro. PEDRO LESSA, todavia, já asseverava que, mesmo antes do prefalado decreto, já dispúnhamos dos artigos 99 a 111, do Código Comercial e, depois, do Decreto nº 1.930, de 26 de abril de 1857, que aprovou o regulamento sobre a segurança, polícia e conservação das estradas de ferro em tráfego. O Decreto nº 2.681/12, no entanto, poria termo às divergências havidas até então. O contrato de transporte tem, em si, implicitamente, a obrigação de custódia ou cláusula de incolumidade, por meio da qual se transfere para o transportador o risco do negócio implementado. Assume o transportador, pois, verdadeira obrigação de resultado, como já tivemos a oportunidade de assinalar. Não só quanto ao desembarque do viajante ou da coisa no local e hora marcados como, também, de entregá-los a salvo, íntegros, nas mesmas condições em que se encontravam quando do embarque. Não cumprida, pois, a obrigação assumida, exsurge o dever de indenizar do transportador, independentemente da comprovação de culpa sua.4 Todavia, não podemos negar que o conteúdo da segurança varia em extensão, conforme a espécie do contrato. Oportuna, nesse sentido, a lição dos irmãos MAZEAUD, para os quais, "o transportado pretende que transporte não seja para ele causa de acidentes; não só exige que o transportador aja com diligência, para evitar atrasos, mas também que se empenhe em conduzir-se com prudência, para evitar acidentes".5 Partilhamos o entendimento de que a cláusula de segurança é verdadeiro compromisso do transportador que, assim, deve conduzir o passageiro, ou a coisa, são e salvo ao seu local de destino. Sofrendo o contratante algum dano, basta que comprove que o acidente se deu no curso do transporte. Não necessita provar a causa do acidente, a relação de causa e efeito entre o transporte e o acidente. LALOU, MAZEAUD et MAZEAUD e SAVATIER6 comungam do mesmo entendimento. Afirme-se, por importante, que isto não significa que o viajante esteja liberto para acarretar a responsabilidade do transportador já que, como é cediço, pode o transportador exonerar- se de responsabilidade civil se provar, entre outras coisas, a atividade exclusiva do viajante para o acidente. Impõe-se lembrar que a evolução da responsabilidade delitual do transportador para a responsabilidade contratual, proporcionada ao mundo pelos franceses, se deu para beneficiar o viajante, assegurando-lhe maior facilidade na produção da prova dos fatos por este alegados ajustando-se, assim, às novas realidades sociais decorrentes dos novos meios de transporte, então emergentes. A grande questão que se coloca é o momento de início do contrato e o momento da satisfação da obrigação do transportador. Nesse campo, inúmeras são as posições e divergências. Penso que cabe ao Juiz, diante do caso concreto, analisar as fases pré-contratual e pós-contratual no sentido de, tanto quanto possível, assegurar ao transportado a proteção que decorre do sistema jurídico vigente. 3.1. O Transporte de Coisas O Decreto nº 2.681/12 estabelece o princípio da presunção de culpa das estradas de ferro, nos artigos 1o a 4o, com relação ao transporte de coisas - objeto de regulamentação nos artigos 1o a 16, do citado diploma. Destarte, na caracterização da responsabilidade presumida do transportador predomina o princípio do receptum, em que consistem as obrigaçõesde guardar, conservar e restituir. A responsabilidade do transportador tem início quando se lhe entrega a coisa, e perdura até a efetiva entrega da mesma ao destinatário. Admite-se a divisão de responsabilidade, reconhecendo-se a culpa concorrente com a do transportador a do remetente ou a do destinatário. 3.2. O Transporte de Pessoas O contrato de transporte de pessoas é aquele por meio do qual o transportador se obriga a conduzir uma pessoa e seus pertences, de um local para outro, incólume, mediante remuneração. Pode se dar por via terrestre (rodoviária ou ferroviária); por via marítima ou fluvial; ou por via aérea. O transporte de pessoas guarda, em relação ao transporte de coisas, algumas semelhanças. Têm a mesma finalidade, ou seja, o desembarque seguro e incólume daquilo que fora transportado. No entanto, no caso do transporte de coisas, essa obrigação decorre do dever do transportador de guardar, conservar e entregar a coisa ao destinatário íntegra, assemelhando-se à figura de depositário, o que não se dá no transporte de pessoas, cuja respectiva obrigação nasce, exclusivamente, do dever de assegurar a incolumidade do viajante. É, de igual forma, objetiva a responsabilidade civil do transportador e, portanto, basta ao viajante demonstrar, objetivamente, que a sua incolumidade não restou assegurada. Não necessita comprovar a causa do acidente, ou a culpa do transportador, nem a relação de causa e efeito entre o transporte e o acidente.7 Cumpre ao transportador demonstrar que não faltou à sua obrigação, ou que o acidente se deu por caso fortuito ou motivo de força maior, ou, ainda, fato exclusivo da vítima. Em relação ao fato de terceiro, divide-se a doutrina e a jurisprudência. Uns entendem que este se equipara ao caso fortuito e, portanto, exime o transportador de responsabilidade civil. Outros, ao revés, entendem que o fato de terceiro não exime o transportador de responsabilidade, competindo-lhe, apenas, atuar regressivamente em face do efetivo causador do dano. Ombreamo-nos a esta corrente. 4. A Responsabilidade Civil das Estradas de Ferro e dos Carris Urbanos Em relação às estradas de ferro, dúvidas não há que encontram-se regidas pelo Decreto nº 2.681/12. Esta, aliás, a primeira lei a regular a responsabilidade civil do transportador, no Brasil. Entendemos ainda em vigor tal diploma jurídico, não nos parecendo correta a posição daqueles que entendem que tal decreto teria sido revogado pelo Código Civil. A responsabilidade das estradas de ferro é objetiva, com base no contrato e em virtude da cláusula de incolumidade, fundada na teoria do risco, eximindo-se o transportador se provar a ocorrência de caso fortuito ou força maior, ou fato atribuído exclusivamente da vítima, nos termos do artigo 17.8 No caso de transporte de coisas, admite-se a concorrência de culpas e a compensação na proporção de cada uma delas. Todavia, não se admite a concorrência de culpas quando se tratar de transporte de pessoas, embora haja entendimentos doutrinários e jurisprudenciais nesse sentido. Em relação aos carris, a doutrina e a jurisprudência são, hoje, torrenciais no sentido de estender-se a eles, bem assim às demais empresas de transportes urbanos, a aplicação do Decreto nº 2.681/12. A razão é bem simples. O juiz não se exime de decidir um caso por falta de legislação e, nessas situações, autorizado está a julgar por analogia. O contrato de transporte celebrado com as estradas de ferro é em tudo semelhante ao contrato de transporte celebrado com empresas de ônibus ou carris, a exceção do meio utilizado para o transporte. Logo, justifica-se o uso da analogia. 5. A Responsabilidade Civil no Transporte Aéreo O transporte aéreo pode ser classificado em internacional e interno ou nacional. O transporte aéreo internacional encontra-se disciplinado pela Convenção de Varsóvia, de 12 de outubro de 1929, recebida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 20.204, de 24 de novembro de 1931. A responsabilidade contratual do transportador aéreo interno, por danos causados durante a execução do contrato de transporte, no Brasil, está regulada pela Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - o Código Brasileiro de Aeronáutica. Esta lei, todavia, é considerada pela maioria dos autores, tímida e insegura.9 Por ela, o transportador responde pelos prejuízos causados aos passageiros nos limites do Código de Aeronáutica, exceção feita para as hipóteses de ter havido dolo ou culpa grave por parte do transportador ou prepostos seus, casos em que não prevalecem. Tais limites encontram-se previstos nos artigos 257, 260, 262, 269 e 277 do prefalado Código. Importante realçar que o Código Brasileiro de Aeronáutica não é o único instrumento legal a reger a matéria, à qual aplicam-se, ainda, as disposições das Convenções de Varsóvia, de 1929; de Budapeste, de 1930; de Haia, de 1955 e o Protocolo Adicional de Montreal, de 1975. Como já dissemos, o Brasil, em matéria de transporte aéreo internacional, é signatário da Convenção de Varsóvia. Estabelece tal convenção uma característica que lhe é peculiar, em relação à responsabilidade civil nos demais meios de transporte, qual seja, a possibilidade de limitação da indenização. Esta limitação, segundo alguns autores, encontra a sua justificativa no chamado "risco do ar" (tempestades, raios, nevoeiros etc). Veda a Convenção de Varsóvia a estipulação de cláusula que exonere o transportador do dever de conduzir o passageiro incólume a seu destino, eximindo-o de responsabilidade. Na sistemática adotada pela referida convenção, a responsabilidade civil do transportador é subjetiva, com presunção de culpa deste. A presunção é, sempre, de culpa do transportador mas, mesmo assim, poderá eximir-se de responsabilidade se provar que não houve defeito da aeronave, nem culpa da tripulação, demonstrando ter feito tudo que estava a seu alcance para evitar o dano. Assim agindo, e não sendo caso de culpa da vítima, todo o resto será incorporado ao "risco do ar". Felizmente, a doutrina e a jurisprudência têm interpretado os artigos 17 e 20 da convenção mencionada de forma a atribuir ao transportador aéreo responsabilidade civil objetiva, não elidível nem por motivo de força maior. Relevante e aceso debate se trava, nos dias atuais, sobre a eficácia da Convenção de Varsóvia no direito positivo pátrio, a partir da promulgação da Constituição de 1988 e após a entrada em vigor do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Como adiante demonstrar-se-á, é nosso entendimento que não mais se aplicam as disposições daquela convenção. No caso do transporte aéreo interno, a responsabilidade civil do transportador é objetiva. Ademais, a presunção de responsabilidade, nesses casos, é tão forte que só pode ser afastada nos termos do § 1º, do artigo 256, do Código Brasileiro de Aeronáutica, isto é, "se a morte ou lesão resultar, exclusivamente, do estado de saúde do passageiro, ou se o acidente decorrer de sua culpa exclusiva". Não se cogita, portanto, de fortuito interno ou externo, nem de fato exclusivo de terceiro. A responsabilidade do transportador aéreo interno apresenta, ainda, outra peculiaridade, qual seja, a extensão da mesma aos passageiros gratuitos - que viajarem por cortesia -, e aos tripulantes, diretores e empregados que viajarem na aeronave acidentada, sem prejuízo da eventual indenização por acidente do trabalho. 6. A Responsabilidade Civil das Empresas de Ônibus Polêmica, também, é a questão da responsabilidade civil das empresas de ônibus. Atualmente, um pequeno grupo de empresários detém o controle de concessões que lhes permitem explorar o transporte coletivo urbano de passageiros. Explorar, no correto sentido do vocábulo, eis que cobram tarifas absolutamente incompatíveis com o serviço - e, principalmente, a qualidade desse serviço- que prestam à população. Vale dizer que são milhões de pessoas, em todo o país, que fazem uso diário do transporte por ônibus, o que fazem por necessidade, por não se lhes oferecer qualquer outra alternativa de transporte coletivo. A esse respeito, aliás, de se lembrar o surgimento do transporte por meio de vans, crescente em todo o território nacional, mormente nos grandes centros urbanos, procurando-se suprir ou minimizar a inércia do poder público, na fiscalização das empresas de ônibus e no oferecimento à população de alternativas de transporte de melhor qualidade e menor custo. A pressão exercida pelo lobby dos donos de empresas de ônibus é forte, fato que não é negado, sequer, pelos chefes do Poder Executivo, nas esferas estadual e municipal. Prepostos despreparados parecem flutuar acima das leis de trânsito; frotas antigas, desconfortáveis e poluidoras; proprietários e representantes ávidos e avarentos, que desconhecem o significado da vida humana e, não raro, desafiam o próprio poder constituído. Eis o caótico quadro com o qual nos deparamos. Preponderante o entendimento, doutrinário e jurisprudencial, de que a elas se estende, no que se refere ao contrato de transporte, a aplicação do Decreto nº 2.681/12. Portanto, a responsabilidade das empresas de ônibus para com seus passageiros é objetiva. Outra interpretação não seria possível. Como concessionárias de serviços públicos e, desta forma, prestadoras desses serviços, não teria qualquer sentido que, por força de disposição constitucional, respondessem de maneira objetiva, perante terceiros, se tal não se desse com os próprios passageiros e usuários do serviço. Consolidado, enfim, de há muito, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que a responsabilidade civil das empresas de ônibus para com os seus passageiros é objetiva, quer seja por analogia à das estradas de ferro - Decreto nº 2.681/12 -, quer seja, no plano contratual, pela incidência das regras e princípios destinados aos contratos por adesão. Destarte, para a vítima só se faz necessária a comprovação do dano. Ao transportador é que cumpre, para eximir-se de responsabilidade, provar a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, ou, ainda, fato exclusivo da vítima. Como já tivemos oportunidade de assinalar, não há atenuação da responsabilidade dessas empresas transportadoras se verificada a fato concorrente da vítima, visto que a lei menciona, somente, fato exclusivo desta, como excludente de responsabilidade. Cumpre diferenciar a responsabilidade civil objetiva da responsabilidade civil subjetiva, com culpa presumida. Nesta última, exime-se o responsável se provar que obrou com as cautelas e diligências necessárias para evitar o dano. Naquela, não se cogita de culpa de quem quer que seja; a culpa é elemento estranho à responsabilização. Logo, só se eximirá o responsável se provar, inequivocamente, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior ou fato exclusivo da vítima, mesmo que demonstre não ter havido culpa sua. Repetimos que a responsabilidade das empresas de ônibus é objetiva. Afirma CARLOS ALBERTO BITTAR,10 com propriedade, que as atividades relacionadas a transportes coletivos de passageiros encontram-se, hoje, inseridas na teoria do exercício de atividade perigosa ou, segundo outros, na teoria do aproveitamento econômico, segundo as quais, todo aquele que explora economicamente atividade que pode causar dano a terceiros - e dela se beneficiando, portanto -, assume o risco pela produção desses danos. Incide, ainda, à espécie, o verbete nº 187, da Súmula da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que não admite a atribuição de culpa, pelo transportador, a terceiro, de quem, se for o caso, poderá haver-se, regressivamente. 7. A Responsabilidade Contratual nos Transportes e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor O Código de Proteção e Defesa do Consumidor encontra-se assim denominado pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, iniciando a sua vigência a partir do mês de março de 1991, à qual corresponde. É um verdadeiro marco no estudo e na solução das questões consumeiras, no Brasil. A Constituição Brasileira de 1988, a exemplo de outras constituições,11 tal como a da Espanha12 e a de Portugal,13 reconhecendo a nova tendência mundial sobre o direito contratual, de uma maneira geral, pela primeira vez entre nós, elevou à condição de princípio constitucional a proteção ao consumidor. O artigo 5º, da Constituição da República de 1988, que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, traz estampado, em seu inciso XXXII, a necessidade de se promover a defesa do consumidor. Adiante, em seu artigo 170, inciso V, incluiu a defesa do consumidor entre os princípios gerais da Ordem Econômica, atribuindo a tal princípio, portanto, o mesmo status conferido aos princípios da soberania nacional, da propriedade privada, da livre concorrência, entre outros. Os direitos do consumidor, destarte, nitidamente, são direitos constitucionalmente assegurados aos cidadãos. A preocupação do Estado com o ideal implemento desses princípios revela-se no artigo 48, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, onde o legislador constituinte, de maneira clara, estabeleceu um prazo para que o legislador ordinário elaborasse o Código de Defesa do Consumidor. A partir da promulgação do prefalado Código - Lei nº 8.078/90, o Direito do Consumidor ingressa como ramo específico do direito brasileiro. A constatação do forte desequilíbrio da relação contratual entre fornecedor e consumidor impôs a implementação de medidas que, a nosso ver, devem ser estendidas a toda e qualquer relação jurídica consumeira. Trata-se de um ramo do Direito com inequívoca vocação constitucional, o que justifica o caráter de ordem pública e interesse social de suas normas e princípios. Sua principal finalidade, no nosso entendimento, não é privilegiar este ou aquele sujeito que participa da relação jurídica de consumo. Ao revés, visa a estabelecer um equilíbrio entre esses mesmos sujeitos e, na medida em que reconhece a hipossuficiência, em sentido amplo, do consumidor, coloca ao seu dispor institutos e instrumentos que lhe garantirão a efetiva e integral reparação dos danos que lhe tenham sido causados pelo fornecedor de produtos ou serviços. Tarefa tormentosa, entretanto, é estabelecer o campo de incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Isto porque o mesmo varia de acordo com a maior ou menor abrangência que se pretenda dar ao mesmo. Alguns autores tentam atribuir ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor caráter de lei geral e, por isso, não incidente sobre áreas objeto de regulamentação por leis específicas. Alguns outros ponderam ter ele criado um minissistema jurídico, com campo de atuação definido e delimitado, tal qual determinadas leis especiais, como, por exemplo, as leis de locação de imóveis urbanos, falências, registros públicos, entre outras. Sem embargo das doutas posições antes referidas, a que melhor parece atender às exigências da novel legislação é a dos autores que entendem o Código de Proteção e Defesa do Consumidor como criador de um novo ramo do Direito - o Direito do Consumidor, com autonomia e princípios próprios.14 Partilhamos da posição do insigne e emérito professor SERGIO CAVALIERI FILHO que concebe o Código de Proteção e Defesa do Consumidor como uma "sobre-estrutura jurídica multidisciplinar, aplicável em toda e qualquer área do direito onde ocorrer uma relação de consumo".15 Com efeito, a Lei nº 8.078/90 tem vocação constitucional, conforme antes esclarecemos. Versa sobre um tema que se considera direito e garantia fundamental do cidadão.16 Visa à equiparação dos sujeitos que integram uma relação jurídica de consumo, visto reconhecer a hipossuficiência, lato sensu, do consumidor diante do fornecedor, emum mundo globalizado e em uma sociedade absolutamente tomada por relações contratualizadas. Destarte, seria um absurdo tentar-se limitar o Código de Proteção e Defesa do Consumidor apenas às relações nele descritas, o que, na realidade, comprometeria não somente a sua estrutura básica senão, e acima de tudo, a sua correta aplicabilidade. É de se ressalvar, ainda com CAVALIERI, que os diversos institutos jurídicos conservam as suas características básicas, próprias de suas naturezas jurídicas. Nada obstante, devem ser amoldados aos princípios e ao espírito do Código de Proteção e Defesa do Consumidor mas, não apenas quanto às relações de consumo, em sentido estrito, senão, às relações contratuais, de uma maneira geral. Nesse aspecto, conforme adiante tentar-se-á esclarecer, penso que os princípios e as regras que emanam do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, no que se referem às relações contratualizadas, seja, verdadeiramente, o direito comum. É induvidoso, pois, que este código se aplica aos contratos de transporte coletivo de passageiros, por envolver relação de consumo, na modalidade prestação de serviço (público). Fundamenta-se juridicamente tal afirmação no disposto no artigo 3º, § 2º - que define serviço - e no artigo 22 e seu parágrafo único, onde estabelece-se que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, além de serem obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros, respondem pelos danos que causarem aos usuários, de acordo com a sistemática estabelecida no Código de Proteção e Defesa do Consumidor que, como sabemos, imputa responsabilidade civil objetiva ao fornecedor de produtos ou serviços, nos termos do artigo 14. Aparentemente, poder-se-ia imaginar que, em sendo objetiva a responsabilidade civil do transportador, até então, nada teria inovado o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Tal, porém, não é realidade. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor deslocou o centro das discussões, mudando o fundamento da responsabilidade civil do transportador. Esta não mais é o contrato de transporte, senão a própria relação de consumo, contratual ou não. Modificou, também, o seu fato gerador, não mais sendo o descumprimento da cláusula de incolumidade e, sim, o vício ou defeito do serviço,17 sendo irrelevante que esse defeito seja ou não previsível, o que significa dizer que afastou o caso fortuito e a força maior das causas de exclusão de responsabilidade civil nos contratos de transporte. 7.1. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a Convenção de Varsóvia e o Código Brasileiro de Aeronáutica18 Questão bastante discutida, nos dias atuais, é a vigência ou não da Convenção de Varsóvia após a entrada em vigor do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Penso que a discussão, preliminarmente, deve ser outra, qual seja, a recepção ou não das disposições da convenção acima referida pela Constituição da República de 1988. Dúvidas não há que a Carta da República de 1988 é, essencialmente, social, nitidamente orientada pelo Welfare State. Tem por fundamento "a dignidade da pessoa humana" e, por objetivo, a construção "de uma sociedade livre, justa e solidária". Penso que já seria viável considerar a Convenção de Varsóvia, em alguns de seus dispositivos, não recepcionada pela Constituição de 1988 e, no que interessa ao tema em debate, principalmente, no caso de indenização limitada ou tarifada, visto que em oposição aos princípios da Carta Magna, donde se infere que a reparação por danos deve ser a mais abrangente possível. Aliás, a cláusula de limitação tem efeito desestruturador do sistema indenizatório, visto que frustra ou restringe a atuação do juiz ao apreciar o dano, ficando impedido de repará-lo, integralmente. Nada obstante, ainda que se supere a inolvidável inconstitucionalidade de que padecem os diplomas legais que impõe indenização limitada, estes não resistem ao confronto com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Certo é que a Convenção de Varsóvia, ratificada que foi pelo Decreto nº 20.704, de 24.11.1931, encontra-se incorporada ao direito positivo pátrio. Oportuno, todavia, lembrar que equipara-se a lei federal ordinária, nada além disso. Merece especial referência, nesse sentido, magnífico acórdão do Eg. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ao julgar o RE 80.004, que se desenrolou desde setembro de 1975 a meados de 1977, quando firmou-se o entendimento de que as convenções e tratados internacionais são recepcionados dentro do ordenamento jurídico brasileiro no mesmo plano da legislação interna, de tal sorte que podem, perfeitamente, ser afastados pela legislação ordinária superveniente e com eles incompatíveis, sem necessidade de denúncia formal. Assim é porque os tratados, no momento de sua incorporação ao ordenamento nacional (via ratificação), tornam-se the supreme law of the land e, como tal, ficam subordinados à Constituição, tendo força e lei ordinária e, desta forma, revogáveis por disposições posteriores que a contrariem. Particularmente no que se relaciona à integração das convenções e tratados ao direito positivo brasileiro, nosso sistema é dualista - ou, segundo KELSEN, monista, com prevalência do Direito Interno -, que significa dizer que, no confronto entre o Direito Interno e o Direito Internacional, prevalecerá o Direito Interno. Os tratados, no nosso sistema jurídico, bem se sabe, só podem se afastar da Constituição para ampliar as garantias nela asseguradas, jamais para afastá-las, inviabilizá-las ou diminuí-las. Assim sendo, não há como sustentar-se a prevalência das disposições da Convenção de Varsóvia face ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. À uma, em razão da vocação constitucional desta lei, como já mencionamos, sendo a proteção do consumidor um direito e garantia fundamental do cidadão e princípio fundamental da ordem econômica. À outra, porque, sendo lei posterior, que estabelece novos princípios a serem respeitados em matéria contratual, incompatíveis com disposições anteriores, prepondera sobre estas. Em conclusão, o fato de o Governo brasileiro não ter denunciado a Convenção de Varsóvia, como disposto no seu artigo 39, não significa que os limites nela estabelecidos ainda prevaleçam no plano interno, não podendo o Judiciário recusar aplicação à legislação vigente. O mesmo raciocínio é suficiente para afastar, do sistema jurídico pátrio, as disposições do Código Brasileiro de Aeronáutica que contemplam a limitação da indenização no transporte aéreo interno. Considerando-se o contrato de transporte uma relação de consumo, a ele incidem os princípios e regras estabelecidos pelo código com vocação para a regulamentação daquelas relações, resolvendo-se a antinomia entre essas leis pelos critérios da temporalidade e da especialidade. Importante elucidar, ainda, que nos termos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, todos aqueles que forem vítimas de acidente de consumo podem reclamar a indenização a que fazem jus, mesmo não havendo relação de consumo entre estes e o fornecedor do serviço, como é o caso, por exemplo, do chamado bystander (artigo 17, CODECON). 7.2. Conclusões primeiras O contrato de transporte, por qualquer via - aérea, aquática ou terrestre -, é serviço, nos termos do artigo 3º, § 2º, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, sendo o transportador, nos temos do caput, do prefalado artigo, considerado fornecedor. Portanto, no que diz respeito a esse contrato, incidem os princípios e as regras emanadas da legislação consumeira. Consumidor é o usuário desses serviços, sendo a ele equiparados, para efeitos de proteção legal, nos termos do artigo 17, da Lei nº 8.078/90, todas as vítimas do acidente de consumo. A responsabilidade civil dos transportadores, em qualquer caso, é objetiva, bastandoao consumidor provar o dano, já que invertidos os ônus da prova. Eventual indenização não pode sofrer qualquer limitação prévia (artigo 25, § 1º e 51, inciso I, CODECON). Em relação ao transporte aéreo, internacional e interno, a Convenção de Varsóvia e o Código Brasileiro de Aeronáutica continuam a vigorar, tendo sido, apenas em parte, revogados pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor. 8. Alguns Aspectos da Responsabilidade Extracontratual 8.1. A Responsabilidade das Empresas de Ônibus Perante Terceiros A responsabilidade civil do transportador para com terceiros, com quem não guarde a obrigação de condução é extracontratual, ou seja, não existe entre eles nenhuma relação jurídica oriunda de um contrato e, até o momento do fato danoso, eram absolutamente estranhos entre si. Até a Constituição de 1998, essa responsabilidade extracontratual era subjetiva, com base no artigo 159, do Código Civil, fundada na culpa do agente. Desta maneira, a vítima, para fazer jus à indenização, deveria comprovar a culpa do transportador ou de seu preposto. A partir da Constituição de 1988, com fulcro no artigo 37, §6º, transformou-se essa responsabilidade em objetiva, ao estender-se a responsabilidade do Estado, fundada na teoria do risco administrativo, às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. Vale lembrar que o transporte coletivo de passageiros é serviço público, concedido ou permitido. Não há qualquer dúvida que tal dispositivo legal se refere à responsabilidade extracontratual, na medida em que, expressamente, se refere a terceiros e, portanto, estranhos a qualquer relação contratual. Nada obstante isso, pensamos que a discussão sobre responsabilidade contratual e extracontratual, após a entrada em vigor do Código de Proteção e Defesa do Consumidor perdeu qualquer significância, na medida em que a legislação consumeira, em seu artigo 17, equipara a consumidores todas as vítimas do evento e, portanto, gozam estas das mesmas garantias que aqueles, o que se deve à aplicação, ao caso, da teoria do risco criado, ou, para alguns, da teoria do aproveitamento econômico - ou risco do empreendimento, pela qual impõe-se àquele que explora economicamente uma atividade potencialmente lesiva o ônus de suportar os danos dela advindos. A responsabilidade objetiva do transportador, nesses casos, portanto, só pode ser afastada se este comprovar fato exclusivo da vítima, motivo de força maior ou fortuito externo. Não se exime o transportador de responsabilidade se provado fato de terceiro, eis que não mais responde pelo fato do preposto, mas, sim, por fato próprio, qual seja o fato do serviço. Impõe-se, pois, em derradeira análise, a prova de que o acidente de consumo não decorreu de nenhum defeito do serviço mas, por certo, de fato absolutamente estranho a este. 8.2. A Responsabilidade Extracontratual no Transporte Aéreo Sobre a responsabilidade extracontratual do transportador aéreo cuidam os artigos 268 a 272, do Código Brasileiro de Aeronáutica. Pelos danos causados a terceiros na superfície, causados diretamente por aeronave em vôo ou em manobra, ou por pessoa ou coisa dela caída ou projetada, responde objetivamente o transportador, nos termos do artigo 268, CBA. Nesses casos, a responsabilidade objetiva do transportador só pode ser afastada se provar que: a) não há relação direta de causa e efeito entre o dano e os fatos apontados, isto é, comprove a ausência de nexo causal; b) resultou apenas da passagem da aeronave pelo espaço aéreo, observadas as regras de tráfego aéreo; c) a aeronave era operada por terceiro, não preposto nem dependente, que iludiu a razoável vigilância exercida sobre o aparelho, significa dizer, fato exclusivo de terceiro, como furto de aeronave, seqüestro, entre outros. A responsabilidade extracontratual do transportador aéreo, desde a Constituição de 1988, com a extensão às pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviços públicos, da responsabilidade objetiva atribuída ao Estado, nos termos do artigo 37, § 6o, passou aquela a ser integral, isto é, sem o estabelecimento de qualquer limitação, pelo que entende-se não recepcionado, pela Carta da República de 1988, o artigo 269, do Código Brasileiro de Aeronáutica. O mesmo se deu com o artigo 280, II, onde se estabelecia responsabilidade limitada da administração dos aeroportos, em serviços de infra-estrutura, por danos causados por seus agentes a passageiros, pessoas ou coisas dentro do aeroporto. Tal discussão fora absolutamente sepultada após a entrada em vigor do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, vez que este, no seu artigo 17, equipara a consumidor todas as vítimas do fato do produto ou do serviço, mesmo que não tenham esta relação de consumo com o fornecedor. Novamente, a responsabilidade é objetiva, sem limitação de indenização * Prof. Titular das Cadeiras de Direito Civil e de Direito do Consumidor da Universidade Estácio de Sá; Juiz de Direito - RJ Expositor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ; Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais - Universidad del Museo Social Argentino - Buenos Aires. Disponível em: http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista2/artigo12.htm Acesso em: 15 de agosto de 2007
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