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ANA CAROLINA CARVALHO JOSCA AILINE BAROUKH ANTES SABER OITO MITOS LER ESCOLARES SOBRE A LEITURA LITERÁRIA impressão PANDA educação© Ana Carolina Carvalho e Josca Ailine Baroukh Diretor editorial Conselho editorial Marcelo Duarte Josca Ailine Baroukh Diretora comercial Marcello Araujo Patth Pachas Shirley Souza Projeto gráfico Diretora de projetos especiais Tatiana Fulas Marcello Araujo Coordenadora editorial Diagramação Vanessa Sayuri Sawada Rafi Achcar Carla Almeida Freire Assistente editorial Tavares Preparação Beto Furquim Revisão Carmen T.S. Costa Juliana de Araujo Rodrigues Impressão Cromosete CIP BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Carvalho, Ana Carolina Ler antes de saber ler: oito mitos escolares sobre a leitura literária / Ana Carolina Carvalho, Josca Ailine Baroukh 1. ed. São Paulo: Panda Books, 2018. 128 pp. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7888-535-9 1. Leitura Estudo e ensino. 2. Interesses na leitura. 3. Crianças Livros e leitura. Baroukh, Josca Ailine. 15-27924 CDD: 028.55 CDU: 028.5 2018 Todos direitos reservados à Panda Educação Este livro traz as vozes de muitos professores Um selo da Editora Original Ltda. e de muitos companheiros de formação. A Rua Henrique Schaumann, 286, cj. 41 05413-010 São Paulo SP eles, dedicamos estas reflexões. Tel./Fax: (11) 3088-8444 www.pandabooks.com.br Visite nosso Facebook, Instagram e Twitter. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou compartilhada por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Original Ltda. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do CódigoSumário 9 Primeiras palavras 11 Leitura literária na escola 24 Visitando oito mitos escolares Primeiro Mito 26 Para as crianças pequenas é melhor contar do que ler histórias 30 Leitores, certamente! 31 A linguagem escrita e os bebês Segundo Mito 36 Livro na mão do aluno some ou estraga 41 que faz de um livro um bom livro? 45 que mais? 48 Livros ou revistas? 48 Livros ou imagens de livros? Terceiro Mito 54 Na educação infantil, é preciso oferecer livros fáceis 58 Ampliar ou reduzir vocabulário? Quarto Mito 60 É preciso poupar as crianças dos horrores do mundo 63 Atira ou não o pau no gato? 65 Adequado ou inadequado? Quinto Mito 70 Livro bem colorido: é disso que os pequenos gostam Sexto Mito 76 Conversar é pouco: sempre é preciso fazer uma atividade depois de ler 77 Leitura e desenho? 78 Peça teatral ou dramatização? 80 Conversa é conteúdo escolar?82 Então, que fazer depois de ler? 85 Literatura e moral. De onde isso vem? 91 Histórias que facilitam ou restringem 92 Comportamento leitor é mito? Sétimo mito 99 Na escola, quem escolhe a leitura é 0 professor 100 As escolhas do professor 102 E a leitura pelo aluno? 104 Como escolher as leituras? 106 Como compartilhar leituras solitárias e pessoais Oitavo Mito 107 Ler é sempre prazeroso 109 Mesmo 0 que é prazeroso precisa ser planejado 111 Para continuar a conversa 116 Referências bibliográficas Acho que escritor volta sempre ao território da infância, que é território do desejo de contar história. O desejo de ver o mundo convertido numa história é absolutamente vital, quer dizer, tão vital quanto comer ou dormir. Mia Couto A leitura, cito novamente a Emília Ferreiro, é um direito, não é um luxo, nem uma obrigação. Não é um luxo das elites que possa ser associado ao prazer e à recreação, tampouco uma obrigação imposta pela escola. É um direito de todos que, além disso, permite exercício pleno da democracia. Silvia CastrillónPRIMEIRAS PALAVRAS Um convite Temos visto um intenso movimento a favor da formação do leitor literário na escola, fruto de uma discussão iniciada há cerca de quatro décadas, em torno da leitura escolar em nosso país. Tal discussão propunha trazer para dentro da escola a leitura literária de maneira contextualizada, ou seja, baseada em práticas sociais. Apesar de avanços notáveis, OS livros ainda não povoam todas as escolas, especialmente no caso da educação infantil e dos primeiros anos do ensino fundamental. A lei nº 12.244, de 24 de maio de 2010, sanciona que "as instituições de en- sino públicas e privadas de todos OS sistemas de ensino do país contarão com bibliotecas" até 2020. Porém, segundo Censo Escolar 2016, apenas 37% delas (67.088 escolas) con- tavam com bibliotecas quando levantamento foi realizado. A aproximação entre ensino formal e leitura literária apresenta um amplo leque de práticas didáticas que co- existem: aquelas que consideram a leitura literária como fim em si mesma atividade que envolve contato subje- tivo com texto, a fruição e o conhecimento desse modo de expressão, bem como intercâmbio entre leitores e outras práticas mais tradicionais. Primeiras palavras 9Neste livro, compartilhamos nossas experiências como LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA professoras de educação infantil e dos anos iniciais do en- sino fundamental e formadoras de educadores no tema da leitura literária, principalmente a de quem ainda não lê autônoma e Foram inúmeros OS en- contros com outros professores, com suas (e nossas) ansie- dades, dúvidas, desejos de acertar e tropeços em relação ao trabalho de formação de leitores. Como base do diálogo que propomos, trazemos aqui Certa palavra dorme na sombra de um livro raro. OS relatos de formação que nos possibilitaram tecer nos- Como desencantá-la? sa posição a respeito do ensino de leitura literária desde É a senha da vida cedo. Acreditamos que tais relatos iluminam e revelam A senha do mundo. muito do que se faz com a literatura em sala de aula. Co- Vou procurá-la. nhecer essas práticas permite questionamentos que podem Carlos Drummond de Andrade nos fazer avançar nesse campo. Nas próximas páginas, convidamos você, leitor, a re- fletir sobre suas práticas na seara do ensino de leitura lite- Atualmente, a leitura é um dos principais assuntos da es- rária. Acreditamos que a constante reflexão sobre fazer cola e tem estado presente talvez como nunca no contex- e as concepções que o embasam são a saída para a qualifi- to de nosso país: nos cenários de formação de professores; nos cação do ensino e, portanto, das aprendizagens das crian- meios universitários que se dedicam a pesquisas nos âmbitos ças em nosso país. escolares; em programas de incentivo à leitura subsidiados pe- los governos nas esferas federal, estadual e municipal. A tarefa de formar leitores em todas as etapas da educação básica tem sido ampla e profundamente discutida em debates, em torno de pesquisas, na mídia e nos meios acadêmicos. Embora tenhamos avançado, ainda há muito a percorrer. Formar leitores é um desafio, a despeito de tantos es- forços em relação a essa função fundamental da escola. Na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamen- 10 Ler antes de saber ler Leitura literária na escola 11tal, nos deparamos com um público que, por muito tempo, escritor Ricardo Azevedo (2003, p. 6) afirma: acreditou-se não ser possível ou necessário ter acesso dire- É preciso dizer que as implicações cognitivas im- to aos livros. Como formar leitores entre aqueles que ainda postas pela aquisição da escrita e da leitura são não leem por conta própria? fatores a serem levados em conta. Pesquisas ini- Mas, o que significa formar leitores? O processo de ciadas por Luria, e estudos recentes de psicólogos formação de leitores envolve, antes de mais nada, uma e antropólogos como Walter Ong, David Olson, J. mudança de perspectiva na vida de uma pessoa, que pas- Peter Denny e Jack Goody, entre outros, mostram que certas características normalmente atribuídas sa a ter acesso a muitas informações em um mundo letra- às crianças reaparecem em adultos provenientes de do. Ainda que atualmente muito do que conhecemos nos culturas ágrafas. Isso quer dizer que atributos como alcance por meio das mídias audiovisuais eletrônicas, re- a capacidade de descontextualização, o pensamento conhecemos que a escrita ocupa um lugar importante em abstrato e o pensamento por silogismos não têm nossa cultura. O fato de ser ou não ser alfabetizado possui necessariamente a ver com etapas do desenvolvi- relação direta com o próprio modo de pensar do sujeito. mento cognitivo infantil, mas sim com um certo Segundo o psicólogo e pesquisador russo Lev Vygotsky, o tipo de cognição, em suma, com determinados mo- dos de ver e captar a vida e mundo. aprendizado da linguagem escrita desempenha grande sal- to no desenvolvimento de uma pessoa: Além de ser esse divisor de águas em relação à manei- [...] a linguagem escrita é um sistema particular de ra de pensar, contato com a linguagem escrita aproxima símbolos e signos cuja dominação prenuncia um o sujeito de grande diversidade de textos, de informações ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da e de modos de se relacionar com tudo o que é produzido criança. Um aspecto desse sistema é que ele consti- pela cultura escrita. jornalista e escritor Alberto Manguel tui um simbolismo de segunda ordem que, gradual- (2006, p. 89) reitera essa ideia. Em seu livro Uma história mente, torna-se um simbolismo direto. Isso significa da leitura, ele escreve: que a linguagem escrita é constituída por um siste- ma de signos que designam sons e as palavras da Em todas as sociedades letradas, aprender a ler tem língua falada, quais, por sua vez, são signos das algo de iniciação, de passagem ritualizada para fora relações e entidades reais. Gradualmente esse elo de um estado de dependência e comunicação rudi- intermediário (a linguagem falada) desaparece e a mentar. A criança, aprendendo a ler, é admitida na linguagem escrita converte-se num sistema de signos memória comunal por meio de livros, familiarizando- que simboliza diretamente as entidades reais e as -se assim com um passado comum que ela renova, em relações entre elas. (VYGOTSKY, 1998, p. 140) maior ou menor grau, a cada leitura. 12 Ler antes de saber ler Leitura literária na escola 13A formação de leitores implica oferecer condições ao e escrever, apontou a dificuldade que tais textos apresen- sujeito para circular com autonomia pelas leituras, com- tam àqueles que estão se apropriando do sistema de escrita preendendo a função social dos textos, entendendo-os e alfabético. A repetição da mesma sílaba, tão presente nos formando uma opinião a partir daquilo que lê. Estamos fa- textos das cartilhas, por exemplo, é um complicador para lando da formação de leitores críticos, que têm acesso aos crianças que têm a hipótese de que, para que algo esteja es- textos e selecionam informações, conseguem avaliar o que crito, é necessário que haja uma variação de letras. é pertinente nas diferentes fontes, um leitor que estabele- Para alunos já alfabetizados, muitas vezes, a leitura ce relações entre aquilo que lê, confronta dados e tira suas era utilitarista, vista como meio para se ensinar determina- conclusões. Acreditamos que esse leitor se torna apto a ex- do conteúdo, para treinar a fluência da leitura em VOZ alta pressar suas opiniões, argumentando seus pontos de vista. sem preocupação com a compreensão leitora, para morali- zar ou, ainda, para "formar a consciência" dos leitores, im- PROPÓSITOS LEITORES pingindo uma interpretação única. Não lemos todos textos da mesma maneira e nem com os No Brasil, Marisa Lajolo escreveu, no início da déca- mesmos propósitos. Pode-se ler para estudar, por exemplo, como acontece com textos informativos e científicos; ler para da de 1980, célebre artigo "O texto não é pretexto", no se divertir ou para se emocionar, como costuma acontecer com qual critica as práticas de leitura literária comumente en- a leitura de ficção ou de poesia; ler para se informar, como se contradas nas escolas daquela época, na maioria das vezes faz com textos jornalísticos; ler para dramatizar, caso dos ro- teiros de teatro e cinema. Na tarefa de formar leitores, preci- maçantes e muito distantes das práticas sociais, que devem samos dar conta desses propósitos, que devem fazer parte do envolver, antes de tudo, um encontro entre que está es- cotidiano escolar de maneira contextualizada e com sentido. crito e quem lê. Embora escrito há quarenta anos, a leitura do texto nos remete a práticas recorrentes encontradas ain- Nem sempre se pensou a leitura na escola desse modo. da hoje em muitas salas de aula. A atualidade desse tema No Brasil, ela passou por um forte questionamento na déca- mostra quanto as transformações no âmbito da educação da de 1980. Até então, a leitura na escola estava a serviço de escolar ocorrem a passos lentos. uma alfabetização baseada na decodificação. Ou seja, para Na década de 1980, momento de abertura política em ser alfabetizado, bastava juntar letras, sílabas, palavras. A nosso país, as ideias dessas pensadoras, entre outros tan- leitura apoiava a alfabetização por meio da oferta de textos tos autores, produziram um intenso movimento que pro- simplificados, fora de contextos sociais, produzidos unica- punha tratar a leitura na escola atrelada aos seus usos mente para fins didáticos, apresentados nas cartilhas. sociais, sem pretextos pedagógicos que a escamoteassem, Emília Ferreiro, psicolinguista argentina que pesqui- resguardando OS propósitos leitores e as especificidades sou OS mecanismos pelos quais as crianças aprendem a ler dos textos. 14 Ler antes de saber ler Leitura literária na escola 15Como já afirmamos, ainda hoje é comum que as práticas texto convoca leitor. Diante de um jornal, lemos as man- de leitura contradigam esse movimento. É frequente encon- chetes, escolhemos cadernos e as notícias que nos inte- trar na prática escolar textos elaborados apenas para uso in- ressam. Não é comum ler um jornal de cabo a rabo. Já um terno, com o único fim de ensinar a ler, destituídos de sentido. romance precisa ser lido do início ao fim, mas o leitor pode Ou a utilização de bons textos literários a serviço do ensino pular páginas, se assim desejar. da gramática, como quando um poema de Manuel Bandeira é A escola é lugar de circulação de vários tipos de textos: usado apenas para que aluno encontre (e sublinhe) adje- ficção e não ficção. Sem desmerecer todo acesso que a di- tivos. Muitas vezes, ainda, textos literários são usados com versidade de textos promove, escolhemos como tema deste fins moralistas, utilitaristas. Isso fica claro quando, ao final da livro a formação de leitores literários. Leitores que podem leitura de um conto tradicional, como "Três porquinhos" ou navegar por romances, contos, novelas, peças de teatro, fá- "Chapeuzinho Vermelho", em vez de professor propor uma bulas, mitos e lendas, narrativas de aventura e de enigma, conversa sobre que as crianças sentiram como medo do biografias romanceadas, crônicas, poemas, enfim, um largo Lobo Mau -, ele destaca que não se deve desobedecer aos pais espectro de gêneros textuais. (como Chapeuzinho) e que não se deve ser (como mercado editorial oferece uma variedade imensa de porquinhos que perderam as casas de palha e de madeira). títulos de literatura, nos quais estão incluídos best-sellers, Em suma, em vez de conversar sobre como texto nos toca, reedição de clássicos, adaptações, lançamentos de autores foco é que texto supostamente ensina. novos ou consagrados. Outro aspecto recorrente é que, em geral, o ensino for- Essa variedade de títulos é acompanhada por uma di- mal preconiza uma única interpretação, quando sabemos que versidade de leitores e de propósitos leitores. A leitura não sentido atribuído não está apenas no texto, mas na relação é uma seara onde cabe a censura. Cada leitor tem direi- que cada leitor estabelece com ele, com base em sua histó- to de se encantar e escolher seus gêneros e autores. Entre- ria de vida e de leituras, no momento histórico e na cultura tanto, acreditamos que o acesso a textos de qualidade é em que está inserido. A leitura é um processo de produção de importante para a formação de novos leitores, já que eles sentidos, em que leitor não apenas reproduz ou reconstrói precisam conhecer para poder escolher. Falar de qualidade sentido supostamente pretendido pelo autor. Ela é fruto de de textos, de ilustrações e de livros não é assunto simples, uma ação do leitor, que imprime sentidos pessoais ao que lê, exige reflexão e definição de padrões que trataremos ao por meio de um trabalho criativo: leitor é coautor do texto. longo do livro. Por isso, a seleção de livros a serem apresen- Também é comum estabelecer que os alunos leiam de tados às crianças é uma importante tarefa da escola. uma única maneira, solicitando, por exemplo, que leiam to- A leitura literária de textos de qualidade pode oferecer dos OS textos do início ao fim, sem considerar como cada momentos de respiro em nossa realidade. Toda ficção é uma 16 Ler antes de saber ler Leitura literária na escola 17criação sobre humano: material da literatura é a vida em Volpi é uma experiência diferente para cada um. Além dis- suas várias manifestações. A literatura possibilita conhe- so, conhecer a vida do artista, a relação que ele tinha com cimento de vidas que não as nossas, enriquecendo nossas ofício, a conjuntura política e cultural e OS movimentos perspectivas. Ler é envolver-se nas tramas de uma história, artísticos da época, certamente traz mais elementos para a viver as agruras e as conquistas de diferentes personagens, apreciação da obra. rir, chorar, ficar com raiva, surpreender-se, apoiar, discordar Do mesmo modo, conhecer gêneros literários e suas dos trajetos da narrativa. A leitura literária pode ser uma características, contexto de produção de uma obra, a con- ação libertadora e singular para cada leitor. juntura política e cultural da época, a biografia, OS gostos Ao entrar em contato com diversos gêneros literários e o estilo do autor ampliam a possibilidade de relações es- que circulam na escola, o leitor dialoga, à sua maneira, com tabelecidas entre o leitor e a obra e repertório literário aquilo que ele vive e que encontra expresso na estética e pode expandir a compreensão e a construção de sentidos do poética de cada autor. É um encontro muitas vezes inten- leitor. Tomernos um exemplo sobre intertextualidade. Ricar- so, pois a literatura convoca a subjetividade do leitor. Ela 0 do Azevedo (2007) escreveu "Quadrilha da sujeira", breve toca e emociona, fazendo-o pensar sobre si, sobre a vida e a poema narrativo cujos personagens são: João, Teresa, Rai- morte, sobre seus sentimentos, de maneira singular. mundo, Joaquim, Lili e J. Pinto Fernandes. Conhecendo a Por que dedicar tanta atenção à leitura literária na es- trajetória do autor, pesquisador da cultura popular de nosso cola? Acreditamos que a fruição é grande objetivo da li- país, pode-se inferir que texto esteja relacionado às tradi- teratura e que a escola deve garantir momentos dedicados ções populares brasileiras. Quadrilha é uma das danças típi- a ela. Segundo dicionário Houaiss (2009), fruição signifi- cas da festa junina. Ampliando ainda mais: quem conhece a ca "ato de aproveitar satisfatória e prazerosamente alguma obra de Carlos Drummond de Andrade, facilmente estabe- coisa". Então, fruição do texto literário significa aproveitá- lece a relação entre o texto de Ricardo Azevedo e poema -lo e embarcar sem amarras no encanto que ele proporcio- "Quadrilha", de Drummond (2001). Os personagens e a es- na. Também sabemos que quanto mais conhecemos sobre trutura do texto que apresenta uma troca constante, como textos e sobre mundo, mais ampla é a rede que po- acontece na dança de quadrilha são OS mesmos! E quem demos tecer em cada leitura. Sendo a literatura uma ex- não conhece essas referências? Também aprecia texto, mas pressão cultural tão significativa, é importante apresentar a deixa de perceber diálogo entre OS dois autores. variedade de textos produzida por diferentes culturas e as Para estabelecer essas relações, estudantes precisam inúmeras relações que podem existir entre eles. ter acesso aos livros. A presença da literatura na escola e Vejamos uma analogia com que acontece na fruição sua importância para a vida das pessoas têm sido foco de de uma obra de arte. Estar diante de uma pintura de Alfredo atenção da sociedade. Em relação à educação, foram imple- 18 Ler antes de saber ler Leitura literária na escola 19mentadas inúmeras políticas públicas, em especial ao lon- Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), em 1992; Pro- go das duas últimas décadas. Pouco pouco, esse discurso grama Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), em 1997; Plano Na- cional do Livro e Leitura (PNLL), em 2006; e 0 Pacto Nacional pela tem penetrado na escola e contagiado professores e educa- Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), em 2012 (IZUMI, 2015). dores em geral. Podemos dizer que, como nunca, a litera- Segundo sítio do MEC (BRASIL, 2015), tura está na escola, por meio da organização de espaços de 0 PNBE tem 0 objetivo de promover 0 acesso à cultura e 0 leitura, da ampliação do acervo, do acesso aos livros e de incentivo à leitura nos alunos e professores por meio da mediação de leitura. distribuição de acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência. atendimento é feito em anos alternados: Atualmente, na escola há desejo de oferecer um en- em um ano são contempladas as escolas de educação in- contro genuíno entre texto literário e alunos, embora fantil, de ensino fundamental (anos iniciais) e de educa- nem sempre sustentado em práticas efetivas. Pretende-se en- ção de jovens e adultos. Já no ano seguinte são atendidas as escolas de ensino fundamental (anos finais) e de ensi- sinar, e espera-se que OS alunos aprendam. No caso da leitura no médio. Hoje, programa atende de forma universal e literária, como descobrir que OS alunos aprenderam? gratuita todas as escolas públicas de educação básica ca- dastradas no Censo Escolar. Dá para medir a relação dos estudantes ou de PNLL tem como meta acesso de todo cidadão ao livro qualquer pessoa com texto literário? O que e à leitura. Trata-se de um conjunto de projetos, programas, acontece quando lemos literatura? Para que cami- atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e bi- nhos ela pode nos levar? Que conhecimentos, pen- bliotecas em desenvolvimento no país. 0 plano implanta e samentos, experiências acionamos? Será que nós moderniza bibliotecas, concede bolsas e prêmios literários a mesmos, enquanto leitores, temos consciência de escritores e cria Pontos de Leitura. tudo o que pensamos quando entramos em contato 0 PNAIC, por sua vez, é um compromisso formal assumi- do pelos governos federal, do Distrito Federal, dos estados e com a literatura? Como ela nos emociona, de que municípios de assegurar que todas as crianças estejam alfa- maneira nos toca? Temos consciência de algumas betizadas até os oito anos de idade, ao final do terceiro ano coisas, mas não de todas.¹ do ensino fundamental. Suas ações organizam-se em qua- tro eixos de atuação: formação continuada presencial para professores alfabetizadores e seus orientadores de estudo; LIVRO NA ESCOLA materiais didáticos, obras literárias, obras de apoio pedagógi- 0 fomento à leitura vem se consolidando como uma área de atu- jogos e tecnologias educacionais; avaliações sistemáticas; gestão, mobilização e controle social. ação de políticas públicas no Brasil. As primeiras ações federais, No que diz respeito à literatura, 0 Fundo Nacional de De- como 0 Programa Salas de Leitura, iniciaram-se nos anos 1980. Daí em diante, houve a criação de programas federais como senvolvimento da Educação (FNDE) adquire livros, que são en- viados para a sala de aula, para apoiar a alfabetização dos estudantes no âmbito do PNAIC. Há, ainda, vários planos municipais e estaduais do e 1 Trecho originalmente publicado no artigo "Que conversa é essa depois da leitura, que contribuem para a construção de salas de leitu- da leitura?", de Ana Carolina Carvalho (2014). ra e bibliotecas escolares. 20 Ler antes de saber ler Leitura literária na escola 21Eis paradoxo: a escola se propõe a medir o ensino de em relação à formação de leitores literários já está bastan- algo subjetivo como a leitura literária, um terreno em que te absorvido pela maioria dos educadores, mas na prática, cada sujeito trilha seu próprio e singular percurso, sem lugar a situação ainda costuma ser bem diferente. Isso nos re- para certo ou errado. É algo que escapa ao controle escolar mete a como professores viveram a leitura literária em usual, que se expressa por meio de notas e conceitos. Então, suas vidas, inclusive na escola. O desejo de acertar é sem- quais critérios usar para esta avaliação? Como professor pre grande, mas a experiência vivida aliada à falta de re- pode ter acesso à relação do aluno com a literatura? ferências de como tratar tema muitas vezes faz com que A grande maioria dos professores que conhecemos cos- práticas antigas persistam. tuma buscar indicadores visíveis para a avaliação do encon- No antigo modelo escolar que muitos dos professores tro do aluno leitor com a literatura: a fluência da leitura frequentaram, não se considerava a formação de leitores em VOZ alta, a compreensão do conteúdo da história (mui- ativos, que estabelecem uma relação singular e pessoal tas vezes, considerando apenas um ponto de vista), seja por com texto, escolhem e pensam sobre que leem, com- meio do desenho, da dramatização ou da escrita ou ainda partilham suas leituras. Há ainda muitos professores que da famigerada "prova do livro". Mas esses indicadores não precisam percorrer um longo caminho para se descolarem dão conta da complexidade das relações que se estabele- de suas vivências enquanto alunos e se aventurarem em cem durante a leitura literária. práticas desconhecidas em sala de aula, criando novas O professor deve tratar a leitura literária dos alu- estratégias, experimentando novos modos de tratar a lei- nos como a tratamos na vida, avaliando as ações que OS tura literária. alunos estabelecem quando leem, ou seja, consideran- do comportamentos leitores. Sabemos que isso exige que COMPORTAMENTO LEITOR professor seja um leitor proficiente, tenha consciência Comportamentos leitores são as ações daqueles que leem. Por de seus comportamentos leitores e os partilhe intencio- exemplo, antes de ler, escolher livro a partir da capa, do tex- nalmente com seus alunos, assumindo seu papel de mode- to de orelha ou de contracapa, ou ainda com base no autor, no lo. Isso implica, também, muita observação e registro das tema, em recomendações de amigos ou por causa de um fil- me assistido; folhear livro, passeando olhos para conhe- rodas de troca de impressões e opiniões depois da leitura cer 0 texto. Durante a leitura, marcar, anotar ou ler em voz alta compartilhada ou individual; a história e trajetória de leitu- trechos significativos, a fim de compartilhar com alguém; reler ra de cada aluno, suas preferências, escolhas; OS comentá- partes do livro. Após a leitura, comentar 0 livro, trocar opiniões com outros leitores, indicar a leitura, fazer resenhas. rios e as indicações; escrita de dicas de leitura e resenhas. Em nossas andanças como formadoras de professo- Em encontros de formação e visitas a escolas, fre- res e de gestores escolares, temos notado que o discurso quentemente observamos práticas de leitura calcadas no 22 Ler antes de saber ler Leitura literária na escola 23antigo modelo escolar, realizadas como se fossem verdades 1. Para as crianças pequenas é melhor contar do que ler absolutas, inquestionáveis. A persistência e a força des- histórias. sas práticas nos leva a chamá-las de mitos. Segundo di- 2. Livro na mão do aluno some ou estraga. cionário Houaiss (2009), uma das acepções da palavra mito é "construção mental de algo idealizado, sem com- 3. Na educação infantil, é preciso escolher livros fáceis. provação prática; ideia, Percebemos que 4. É preciso poupar as crianças dos horrores do mundo. discutir esses mitos durante as formações promoveu uma mudança positiva no trabalho com a leitura literária. Se- 5. Livro bem colorido: é disso que pequenos gostam. lecionamos oito desses exemplos recorrentes para tratar. 6. Conversar é pouco: sempre é preciso fazer uma ativi- Vamos a eles! dade depois de ler. 7. Na escola, quem escolhe a leitura é professor. Visitando oito mitos escolares 8. Ler é sempre prazeroso. Nas próximas páginas, discutiremos algumas práticas recorrentes de leitura literária que têm seu lugar garantido no dia a dia da educação infantil e dos anos iniciais do ensi- no fundamental e que muitas vezes parecem naturalizadas. Sempre se fez assim e funcionou, portanto, a fazê-lo. Funcionou para quem? De que modo? São o que chamamos de mitos escolares, pseudoverdades que estão impregnadas nas escolas e que, se não forem visitadas e cri- ticamente analisadas, impedirão as transformações neces- sárias para a formação de alunos leitores. Vamos analisar como surgiram essas práticas, a que concepções estão atreladas e que é necessário propor em termos da formação dos professores para que possam pen- sar em alternativas a elas. Os mitos não estão apresentados em ordem de importância e muitas vezes se entrelaçam não há fronteiras claras entre eles. 24 Ler antes de saber Leitura literária na escola 25PRIMEIRO MITO complexas, apresentando palavras difíceis e expressões des- Para as crianças pequenas, é conhecidas. Por isso é melhor contar uma história de modo melhor contar do que ler histórias simplificado do que lê-la em um livro. As histórias conta- das, ou narrativas orais, possuem linguagem mais acessível e envolvem mais as crianças, principalmente quando OS pro- fessores lançam mão de recursos como fantasias, fantoches, objetos de cena, músicas. Será mesmo? E será que tanto faz para as crianças que leiamos ou contemos uma história, uma vez que ambas são formas de aproximação com a literatura? Anne-Marie fez-me sentar à sua frente, em minha cadeirinha; inclinou-se, baixou as pálpebras Evidentemente há muitos pontos de contato e seme- e adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma lhanças entre essas duas formas de abordar as narrativas: voz de gesso. Perdi a cabeça: quem estava ler e contar. A começar pela possibilidade de exercício da contando? O quê? E a quem? Minha mãe imaginação que as histórias promovem e de identificação ausentara-se: nenhum sorriso, nenhum sinal do ouvinte com enredos e personagens, sem deixar de de conivência, eu estava no exílio. Além disso, lado fato de serem situações que envolvem uma experiên- eu não reconhecia a sua linguagem. Onde é cia afetiva rica entre adultos e crianças, que demanda emo- que arranjava aquela segurança? Ao cabo de um instante, compreendi: era livro que falava. ção e sentimentos dos dois lados, tanto do adulto que lê ou conta, quanto da criança que ouve. Jean-Paul Sartre Ainda, contato com as histórias insere a criança no contexto maior dessa produção humana que existe desde que homem inventou a linguagem e começou a contar Ao longo de todos esses anos trabalhando como for- histórias para falar de si mesmo e do mundo. madoras de professores da educação infantil e dos anos ini- Percebemos ainda uma relação intrincada entre as his- ciais do ensino fundamental, ouvimos muitas vezes essa tórias contadas e a busca por seus enredos nos livros, que afirmação. Pensamos que este é um dos mitos mais fortes da reforça a necessidade de ambas as formas estarem presen- escola. Ainda vemos poucos livros nas salas de educação in- tes no cotidiano escolar. escritor e contador de histórias fantil e muitas justificativas sobre a dificuldade de se colocar Ilan Brenman, em seu livro Através da vidraça da escola for- as crianças menores em roda para ouvir uma história lida. mando novos leitores, revela que certa vez, depois de con- Os professores frequentemente afirmam que elas têm tar histórias para um grupo de crianças, elas lhe pediram pouca concentração, que as narrativas escritas são muito que voltasse mais vezes. Sem saber quando isso aconteceria, 26 Ler antes de saber ler Primeiro mito 27combinou que deixaria livros para que pudessem visitar as e frases quando alguém abre livro diante dela e passa a histórias que haviam conhecido naquele dia. Ele nem bem ti- lê-lo em alta. caráter fixo do texto proporciona uma nha terminado de falar, as crianças correram para os livros, referência cultural e linguística da qual ela poderá se valer Esse caso exemplifica como uma história ouvida seja em suas produções escritas seja oralmente, com alguém por meio da narração oral ou da leitura em alta pelo como escriba, seja grafando autonomamente. professor pode ser a chave ou 0 estímulo para que a crian- É importante lembrar que a leitura em alta é a ça, mais tarde, busque livro para recuperar aquela expe- transmissão vocal de um texto escrito e não se configura riência. Em parte, ela a encontrará, pois reaverá o enredo; em leitura para quem ouve. Por meio da transmissão vo- em parte viverá algo muito diferente: a intimidade solitária cal, a criança descobre a função da língua escrita e algumas com livro, o encontro de novas expressões, e fato inexo- de suas especificidades, como a precisão do vocabulário e rável de que nunca somos mesmos quando retornamos a a maneira como se organiza cada gênero. O benefício da uma leitura ou a uma história. No mínimo, já fomos modi- transmissão oral do texto é que ela apresenta a cultura es- ficados por ela uma vez. crita e sua diversidade para as crianças, introduzindo-as no Se há pontos de aproximação, há também pontos de fuga mundo letrado, que pode incentivar a aprendizagem da entre ler e contar histórias. Aprendizagens muito distintas es- leitura. Por meio da leitura em VOZ alta, os ouvintes têm tão em jogo. Para começo de conversa, quando contamos uma acesso ao sentido do texto, mesmo sem saber ler. história, usamos a linguagem oral. Dependendo das circuns- Além de ler diariamente para as crianças, é preciso tâncias, modificamos nosso modo de contar, acrescentamos considerar a necessidade de terem contato direto com novas palavras, retiramos outras, utilizamos expressões típi- livros, de forma a poder investigá-los, levantando suas hi- cas da fala, gírias, fazemos relações com situações de nossa póteses e validando-as ou não. Por isso, é fundamental época, por exemplo. A criança aprende que a linguagem oral que haja atividades permanentes de biblioteca, em que as tem mobilidade é permeável à situação em que está inseri- crianças tenham a oportunidade de manusear OS livros, da e pode mudar de acordo com quem e para quem se conta a para que possam reencontrar uma história lida pelo pro- história. Quando se conta uma história ou se lê um livro sem fessor, apreciar as ilustrações, escolher livro ou outra pu- ilustrações, o ouvinte no nosso caso, a criança a imagina: blicação que queiram ler ou explorar melhor. cria mentalmente cenários, personagens, climas. Com a linguagem escrita é diferente. O texto é sem- É PRECISO FANTASIA? pre mesmo, independentemente de quem e quando se lê. Uma prática recorrente na educação infantil é uso de fantasias A linguagem escrita é fixa, estável. A criança, desde tenra na hora de ler ou contar uma história para as crianças. Há a cren- ça de que, fantasiado, professor vai conseguir chamar a aten- idade, aprende que encontrará sempre as mesmas palavras 28 Ler antes de saber ler Primeiro mito 29ção das crianças, fazendo-as se interessarem mais pelo enredo. meio da entonação de VOZ, das pausas, do ritmo e da ênfa- Pensamos que aqui pode residir uma desconfiança em relação se em certas palavras. Por tudo isso, existe uma diferença ao poder de encantamento de um texto lido ou falado. Uma des- confiança em relação ao poder da palavra, como se a história não entre ouvir uma história lida e encontrar silenciosamente bastasse para que as crianças se concentrem naquele momento. texto este último, entendido como leitura autônoma. Com um bom livro em mãos ou com uma boa história, belamen- Muitas vezes, percebemos uma confusão entre ler e te narrada, não será preciso chamar a atenção das crianças com nenhum elemento a mais: a imaginação e a fruição que a história contar e a presença do livro, objeto cultural, nos dois ca- proporciona já dão conta e muito da experiência. Já presenciamos situações em que professores conta- vam história sem ler o texto, utilizando apenas as ilustrações como apoio. Ao fazer isso, o adulto descaracteriza as duas Leitores, certamente! situações. No caso da leitura, suprime trabalho do escri- É comum as crianças se apropriarem de textos que ou- tor, a relação do ilustrador com texto e a permanência da linguagem escrita. No caso de contar, as imagens do livro vem repetidas vezes. E como gostam de ouvir as mesmas subtraem livre exercício da imaginação um dos atribu- histórias! Chegam a repetir texto escrito de memória, re- tos do ouvir histórias. produzindo ato da leitura, ainda que sem saber decodifi- Reafirmamos a importância da existência e constância car texto leitores em formação. das três maneiras de apresentação das narrativas às crianças Aos dois anos, Teresa tinha dois livros favoritos, que de qualquer idade: a transmissão oral da história, que cha- sabia de cor (de coração). Um dia, sua mãe fez uma brin- mamos muitas vezes de "contação", e que deve ser feita sem cadeira: com um dos livros em mãos, começou a contar o a presença do livro; a leitura em VOZ alta feita pelo professor texto do outro. Imediatamente, Teresa se levantou e pe- ou por outra criança mais experiente; e contato direto com gou livro que tinha texto que estava sendo recitado pela mãe, dizendo: "É este, mamãe!". os livros, mesmo quando as crianças ainda não leem conven- cionalmente tema que trataremos adiante. Essas práticas Também é muito frequente que as crianças que conhe- devem ser atividades permanentes na rotina de todas as es- cem um texto de cor reclamem quando se muda uma pala- colas de educação infantil e ensino fundamental. vra. Logo dizem: "Tá errado! Não é assim!". Isso mostra o conhecimento que vão adquirindo acerca da permanência da linguagem escrita: não importa a situação, o texto escri- A linguagem escrita e os bebês to é sempre mesmo. Entretanto, ainda que o texto seja sempre o mesmo, No caso das crianças bem pequenas, o contato com aquele que lê em alta imprime sua interpretação por a estabilidade da linguagem escrita redunda em outras 30 Ler antes de saber ler Primeiro mito 31aprendizagens. O psicanalista francês René Diatkine (apud A APROXIMAÇÃO DA CRIANÇA COM A LINGUAGEM DEVE SER BRESCIANE, 2006) foi um dos especialistas que se debru- GRADUAL DO MAIS SIMPLES AO MAIS COMPLEXO? çou sobre essa questão. Ele e seu grupo de pesquisadores Na década de 1980, as ideias de Emília Ferreiro (2002) aportaram afirmaram que retorno ao mesmo texto escrito pode tra- em nosso país. Por meio de seus estudos com crianças a partir dos três anos, a pesquisadora concluiu que elas pensam sobre zer a noção de algo que a criança pequena ainda não cons- e investigam ativamente a escrita, porque vivem em um mun- truiu dentro de si: a permanência dos objetos. do letrado, em uma cultura construída sobre a escrita. Um novo Para bebês, por exemplo, quando sua mãe se ausen- paradigma se estabeleceu, colocando em xeque a concepção em- pirista que justificava uso de cartilhas na alfabetização. ta, não há a ideia de que mais tarde ela retornará, que 0 empirismo baseia-se na premissa de que as crianças são causa angústia. O retorno ao mesmo texto escrito, de tem- páginas em branco e aprendem por acumulação e de forma trans- pos em tempos, vai ajudando a criança a construir a noção missiva e, por isso, os conteúdos devem ser apresentados do de estabilidade, de retorno e de permanência. mais simples ao mais complexo. Nessa perspectiva, para apren- der a ler e escrever, aluno deve conhecer as letras individual- Vários pesquisadores, entre eles a psicóloga francesa mente, depois as famílias silábicas que juntam duas letras Marie-Claire Bruley, a especialista brasileira em cultura da apenas -, em seguida, palavras formadas por sílabas simples e fi- infância Lydia Hortélio e colombiano radicado na Fran- nalmente frases com essas palavras. Não é preciso dizer que tais frases soltas não fazem parte do repertório cotidiano. ça, doutor em linguística e mestre em filosofia e psicolo- Por exemplo, para a família do B, propõe-se às crianças a gia Evelio Cabrejo Parra, afirmam que OS adultos utilizam leitura da frase "A bebê baba na babá". Entretanto, estudos re- uma linguagem simples e factual para se comunicar coti- velaram que a repetição de sílabas nas palavras e a descontex- tualização da frase complicam a compreensão da criança sobre dianamente com bebês, referindo-se ao que está acon- sistema de escrita. A língua é complexa e assim deve ser apre- tecendo no presente. Dizemos com frequência: "tá com sentada à criança: em seus usos sociais, sem artificializá-la. fome"; "tá com frio"; "vamos trocar a fralda"; "que sono!"; A crença de que a leitura de narrativas escritas, por apre- sentarem uma linguagem diversificada e complexa, não é e por aí vai... adequada para as crianças até que estejam plenamente al- O contato com textos literários, e incluímos aqui fabetizadas justifica erroneamente a ausência de livros e de tanto de tradição oral canções, parlendas, acalantos, leitura em voz alta para os grupos da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Muitos professores optam brincos quanto autorais, constitui a primeira aproxima- por contar as histórias de forma simplificada, usando apenas ção de bebês e crianças muito pequenas com textos narrati- palavras "fáceis" e "conhecidas". É hora de mudar. vos mais complexos. Não importa tanto aqui que bebês entendem, mas sim contato com a língua, com a sonori- dade, sua musicalidade, e a riqueza da construção de nos- sa linguagem verbal. 32 Ler antes de saber ler Primeiro mito 33DIÁRIO DE FORMAÇÃO Ler autonoma- Ouvir a transmissão Ouvir um contador mente vocal do texto de histórias ou um declamador Ler e ouvir histórias ouvinte amplia seu re- 0 ouvinte amplia pertório e seu conheci- seu repertório e seu Formador: Josca mento, aprende a ouvir conhecimento e Grupo de coordenadores pedagógicos da educação infantil. e tem a oportunidade de aprende a ouvir. São Paulo, 2007 perceber a permanência do texto escrito. Para discutir com as coordenadoras pedagógicas a dife- rença entre ler e ouvir uma história usei como estratégia a lei- Avançamos, discutindo que ler é compreender, cons- tura silenciosa do poema "Num meio-dia de fim de primavera", truir sentidos, atribuir significados. Como diz Frank Smith de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (2003), lemos com que temos por trás dos olhos, usando (1997); sua declamação por Maria Bethânia (CD "Maricotinha nossa cultura e conhecimento que possuímos sobre as- ao vivo"); e fiz a leitura em VOZ alta do poema. Coletivamente, sunto época, momento histórico, moda, profissões, deco- fomos percebendo as diferenças entre as três situações: ração etc. Ler é um ato complexo, que envolve: Ler autonoma- Ouvir a transmissão Ouvir um contador Saberes sobre a escrita; mente vocal do texto de ou um Saberes sobre os conteúdos; declamador Impressões pessoais. É um ato soli- A leitura com ritmo aju- 0 declamador tário, um en- da ouvinte a entender transforma 0 texto, Foi um encontro muito produtivo, no qual aprofunda- contro entre poema. pula algumas estro- mos nosso olhar sobre as diferenças entre essas maneiras leitor, autor fes, muda a sequên- de aproximação com texto escrito. Ficou claro que to- e o texto. cia de alguns versos recria texto. das são importantes, ao mesmo tempo que são diferentes. Uma conversa 0 leitor apropria-se, coloca A apresentação da pessoal com sua VOZ como intermediá- história ou do poe- texto, sem in- rio entre texto e ouvin- ma encanta, há en- te. Mas mantém um com- cenação, ritmo etc. promisso com que está lendo: não muda as pala- vras, não muda texto. 34 Ler antes de saber ler Primeiro mito 35SEGUNDO MITO toriador francês contemporâneo que se dedica ao estudo da Livro na mão do aluno OU, estraga leitura e do livro, desenvolve muito bem essa questão. Segun- do ele, a forma do livro impõe certos "protocolos de leitura": [...] não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele chega ao seu leitor. [...] Reconstituir [a lei- tura] exige considerar as relações estabelecidas entre três polos: texto, objeto que lhe serve de suporte e a A vida está pulsando ali.[...] O livro faz prática que dele se apodera. (CHARTIER, 1990, p. 8-9) parte da casa, da comida, da experiência, da maternidade, do cotidiano. Quando entramos em uma livraria ou em uma biblio- teca a fim de escolher um livro, certamente gostamos de Adélia Prado² contemplar sua edição qualidade da capa, do papel e da impressão, da diagramação -, folhear alguns exemplares, Não raro, nossas memórias leitoras passam pela nossa ler as primeiras frases ou páginas, texto da orelha do li- história com livros: quanto nos encantamos pela capa e vro ou da quarta capa. Deixamos livro por um instante, pelo título, exploramos suas ilustrações, guardamos a lem- pegamos outro, voltamos a ele. Enfim, temos, ao escolher o brança de quem nos presenteou com eles, quanto OS dese- que vamos ler, uma relação direta e importante com o ob- jamos. Seus aromas, a textura das capas, toque das folhas, jeto livro. Tê-lo ao nosso alcance ajuda a decidir, mostra ca- OS tamanhos das margens, as anotações que muitas vezes fa- minhos e desperta nossa vontade em relação à leitura. zemos em suas páginas marcam nosso percurso leitor. A construção do leitor e de sua autonomia passa pelo Alguns livros chamam a nossa atenção, nos convocam a manuseio do livro, que pode ser lido aos pedaços, tocado, lê-los seja pela apresentação, seja por seu conteúdo. Temos trocado, apreciado em sua edição mais ou menos cuida- uma história com objeto e o modo como livro é concebido dosa, em suas ilustrações. As crianças da educação infantil e organizado interfere em nossa relação com a leitura. O livro e dos anos iniciais do ensino fundamental, enquanto não é também a forma como foi editado, é o modo como, enquan- dominam completamente a leitura, lançam mão das ima- to objeto, apresenta-se aos seus leitores. Roger Chartier, his- gens para entrar em contato com a história. Levando em conta a importância do objeto cultural li- vro na formação do leitor, nos perguntamos: por que 2 Entrevista a Eder Chiodetto (2002). 36 Ler antes de saber ler Segundo mito 37muitas escolas ainda encontramos livros confiscados, fecha- Oh! que saudades que tenho dos em armários, longe do acesso das crianças, guardados Da aurora da minha vida, Da minha infância querida nas salas dos professores, da coordenação ou da direção? Que anos não trazem mais. Em geral, isso é justificado por uma preocupação com a ma- [...] nutenção do acervo. Há medo da perda de exemplares, de que eles estraguem quando postos em circulação. A escola é, por excelência, lugar em que as crianças Foram incontáveis as vezes que observamos a persis- devem ter acesso ao patrimônio cultural da humanidade tência de uma concepção ultrapassada, de que as crianças esse é um direito que lhes cabe desde momento em que que ainda não sabem ler autonomamente não são capa- pisam em sua primeira instituição escolar. A escola é o locus zes de manusear os livros com cuidado necessário elas fundamental para a democratização do acesso à cultura e, os rasgam, sujam, perdem. Por isso, a situação em relação portanto, para a diminuição da desigualdade social. Anto- à circulação do acervo nas escolas costuma sofrer muitas nio Candido (2011, p. 189) afirma que: restrições, que inibe, também, trabalho com emprésti- Em princípio, só numa sociedade igualitária produ- portanto, o acesso democrático à leitura. tos literários poderão circular sem barreiras, e neste Se por muito tempo pensou-se que apenas aqueles que sa- domínio a situação é particularmente dramática em biam ler poderiam dar valor aos livros e, portanto, cuidar de- países como o Brasil, onde a maioria da população é les adequadamente, hoje sabemos que é preciso ter livro nas analfabeta, ou quase, e vive em condições que não per- mitem a margem de lazer indispensável à leitura. [...] mãos para aprender a ler e a manuseá-lo. Manipular um livro Pelo que sabemos, quando há um esforço real de igua- é um dos comportamentos leitores e, portanto, deve ser con- litarização há aumento sensível do hábito de leitura, e teúdo de aprendizagem e de ensino. Se não favorecermos o portanto difusão crescente das obras. contato com o objeto, como as crianças vão aprender a usá-lo? Vejamos, por exemplo, uma criança que vive em uma Acreditamos que as crianças são potentes. A primeira casa sem livros não vamos entrar no mérito do porquê. infância não é um período preparatório para a vida adulta. Ela é em si mesma e é vivenciada intensamente. O conheci- Onde mais ela teria a possibilidade de conhecer e criar in- timidade com esse objeto cultural, tão presente na vida mento de mundo que as crianças deixam de construir quan- de outras crianças? Concordamos com Sandra Medra- do não têm acesso a experiências diversificadas não pode no (2015, informação verbal), quando afirma: "Enquan- ser reparado. Diferentemente de outros conteúdos que po- to algumas crianças estão muito próximas do livro, para dem ser aprendidos em diferentes idades, que a criança outras, ele aparece como objeto santificado". É preciso pequena não viveu não pode ser compensado. Como diz mudar isso. Casimiro de Abreu (2010): 38 Ler antes de saber ler Segundo mito 39O cuidado legítimo da escola com a manutenção que faz de um livro um bom livro? dos livros de uma sala de aula ou de uma biblioteca es- colar deve ter como fim a organização desse acervo para A escolha do que se vai ler em sala de aula traz neces- atividades de empréstimo e promoção do acesso das crian- sariamente a questão da qualidade literária, que diz respei- ças aos livros. Fica evidente a necessidade de um trabalho to ao livro, como objeto cultural. A leitura literária é uma específico com as crianças no sentido do cuidado e ma- ação complexa e um bom livro também é resultado de nutenção dos livros. Esses também são comportamentos uma complexa rede de fatores, que revelam uma proposta leitores. Leitores cuidam dos seus livros, valorizam, se comprometida do autor, do ilustrador e do editor. afeiçoam e podem retornar mais de uma vez a eles. No en- Muito se fala a respeito da qualidade literária de um tanto, se OS livros são objetos sociais utilizados, é espera- texto. Mas, o que é isso? Analisemos duas versões do início do que se desgastem. do conto "Pele de asno", de Charles Perrault. Fazemos coro ao escritor, poeta, tradutor, crítico literá- 1. "Era uma vez rei mais poderoso que já houve na terra. rio e ensaísta argentino Jorge Luís Borges, quando afirma: Amável na paz, terrível na guerra, não havia outro que se Pegar um livro e abri-lo guarda a possibilidade do comparasse a ele. Seus vizinhos temiam, seus súditos fato estético. O que são as palavras dormindo num eram felizes. Em seu reino, à sombra de suas vitórias, as livro? O que são esses símbolos mortos? Nada, ab- virtudes e as belas-artes por toda parte floresciam. A es- solutamente. que é um livro se não abrimos? posa que escolhera, sua fiel companheira, era tão encan- Simplesmente um cubo de papel e couro, com fo- tadora e tão bela, de índole tão serena e tão doce, que ser lhas; mas se lemos acontece algo especial, creio que muda a cada vez. (BORGES apud MACHADO, o esposo dela fazia ainda mais feliz do que ser rei. Do 2002, p. 7) terno e casto enlace desse casal, que foi pleno de afeição e contentamento, nasceu uma menina. Eram tantas e tais Se acreditamos que é a leitura que dá vida ao livro, é as suas virtudes, que rei e a rainha logo se consolaram natural que seu uso constante gere sua deterioração. Isso por não ter mais filhos." (TATAR, 2004, p. 215) acontèce com livro como acontece com todos objetos da escola: brinquedos, mobiliário, materiais expressivos. 2. Em um reino distante, um rei e uma rainha que se Os livros não duram para sempre, mas a relação que pode- amavam muito tiveram uma linda filha. A menina era mos ter com eles, a intimidade com próprio objeto per- tão perfeita que pais não quiseram mais ter filhos. dura e reedita-se em leituras futuras. Qual dos dois trechos envolve mais leitor no uni- verso da história? Qual aproxima mais as personagens de 40 Ler antes de saber ler Segundo mito 41uma realidade possível? O primeiro, texto original, ou bém, se há uma escolha por materiais não tóxicos, já segundo? Acreditamos que primeiro é muito mais que as crianças pequenas costumam levar tudo à boca. sedutor. Envolve leitor pelos detalhes, informações, Projeto gráfico linguagem e forma utilizada para apresentar os perso- nagens e cenário, que alimentam e cativam o seu ima- Um belo livro envolve a escolha das fontes, das cores, ginário e levam para dentro da história. dos formatos, do papel, das técnicas de ilustração em É um texto que convoca leitor, sem menosprezar sua diálogo com texto. Tudo isso faz parte do projeto de leitura do livro. capacidade de entendimento da história. Há trabalho a ser feito por ele. O significado de palavras pouco comuns, Autoria como "casto" e "enlace", pode ser inferido pelo leitor, a partir Alguém assina texto? Sem assinatura, não há compro- do sentido geral do texto. O desconhecimento do vocabulá- metimento, nem reconhecimento do autor. É comum rio específico não impede a compreensão da história. ver livros sem autoria sendo vendidos a baixíssimo A segunda versão não tem palavras difíceis a maioria custo, com textos extremamente reduzidos, empobre- das crianças as conhece -, mas também não enreda leitor. cidos e até mesmo com erros. É um resumo genérico, conhecido e previsível, que poderia ser início de qualquer história. Ilustração Além das características apontadas linguagem e for- A ilustração tem uma autoria, que traz compromisso ma de construção do texto; ricos detalhes e informações na do ilustrador com a obra? Amplia OS sentidos que os descrição dos personagens e cenário -, há outros aspectos leitores podem construir naquela leitura? que podem ser considerados como critérios para a escolha Narrativa de bons livros literários. É certo que não há receitas para se- lecionar livros e leituras, mas a observação de um conjunto Nos livros de literatura, é preciso que ponderemos se de fatores pode ajudar na empreitada. eles consideram as crianças como interlocutoras, tra- zendo aspectos com quais elas podem dialogar a Editora partir de sua própria experiência, estabelecendo iden- Cada editora possui uma linha editorial, uma intenção tificações, refletindo e ampliando seus olhares para em relação ao que publica. Esses princípios ajudam a mundo e para si mesmas. Além disso, podemos apren- identificar editoras comprometidas com a publicação der a observar que tipo de livro toca nossas crianças de obras literárias de qualidade. Procure conhecer ca- leitoras. Emocionam, encantam, divertem? tálogo e posicionamento das editoras. Repare, tam- É fundamental analisar texto do ponto de vista de 42 Ler antes de saber ler Segundo mito 43sua complexidade e elaboração (textos ricos X tex- obras para serem utilizadas em sala de aula, abordando tos empobrecidos), além, é claro, de prestar atenção temas como Ética, Pluralidade Cultural, Trabalho e Consu- mo, Saúde e Sexualidade. na maneira como a temática é tratada. Por exemplo: A utilização dos livros paradidáticos também aumentou livro é preconceituoso? Desrespeitoso com algum na rede pública de ensino a partir da descentralização dos segmento da sociedade, como mulheres, crianças, recursos do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) e a decisão de alguns estados, como São Paulo, de investir pessoas com deficiência, afrodescendentes, homos- nesse tipo de livro. (MENEZES, 2002) sexuais? Apresenta OS personagens de forma estere- No mercado existem livros paradidáticos, publicações in- otipada? A família é sempre composta por pai, mãe fantojuvenis, de diferentes esferas textuais, como os informa- e filhos? As meninas sempre brincam de boneca ou tivos e os literários. Na escola, deve haver espaço para todos, pois é importante que as crianças tenham acesso a eles. Entre- casinha e meninos, com carrinhos? É importante tanto, possuem propósitos distintos. que livro não negue a diversidade humana. Os textos informativos abordam um tema com objetivo As crianças, desde muito pequenas, querem histórias de transmitir informações: reportagens, verbetes, manuais, ar- tigos são alguns exemplos de textos informativos. leitor que que possam dar contorno ao que vivem, enriquecer recorre a eles tem a expectativa de aprender algo. sua experiência, apresentar um mundo novo. Como Há vendidos como literatura, livros de histórias, que já disse Madalena Freire (1983), elas são apaixonadas não se constituem como narrativa. É caso de imagens com por conhecer mundo! legendas, como cores: sob uma forma colorida, aparece seu nome (amarelo, azul, vermelho, verde etc.). Cuidado! Esses não são livros de literatura. Ainda: será necessário usar livros Ressaltamos mais uma vez: é importante olhar para to- para ensinar cor para pequenos? Ou as cores estão no mun- dos esses indicadores conjuntamente. do, no cotidiano, nos objetos, são escolhidas, preferidas? LIVROS DIDÁTICOS E PARADIDÁTICOS Livros didáticos são aqueles que têm caráter pedagógico e são E o que mais? utilizados para 0 ensino formal. Os paradidáticos são aqueles adotados de forma paralela aos didáticos. Tanto livros lite- Beatriz Helena Robledo (2012), especialista e pesqui- rários quanto os informativos são paradidáticos. sadora colombiana nas áreas de literatura infantil e juvenil A importância dos livros paradidáticos nas escolas au- e leitura, apresenta um critério muito interessante: efei- mentou principalmente no final da década de 1990, a to de duração que um texto produz em seu leitor. Por esse partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que estabeleceu Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) efeito de duração, podemos entender que algo muito espe- e orientou para a abordagem de temas transversais re- cial "fica no leitor", ou seja, a obra de alguma forma per- lacionados ao desenvolvimento da cidadania. Dessa for- manece nele. Uma frase que reverbera, um modo de narrar, ma, abriu-se espaço para aumento da produção de as tramas dos personagens, tal como foram contadas. A his- 44 Ler antes de saber ler Segundo mito 45tória, ou algo dela, perdura no leitor, segue com ele. Mui- Para as crianças da educação infantil e dos primeiros anos tos de nós certamente nos lembramos de obras que ficaram do ensino fundamental, é o caso de apresentar livros que pos- em nós, trechos, frases, destinos dos personagens que nos sam esbarrar em seus sentimentos. Por exemplo, que abor- acompanham vida afora. Há livros, por outro lado, que es- dem alguns medos típicos da faixa etária: do abandono, de quecemos por completo. Não nos marcaram. Não ficaram. ficar sozinho, do escuro, de monstros, de entrar na escola, Não nos habitam. de se perder dos pais, de ganhar um irmão. Ou, então, que O efeito de duração de um texto relaciona-se com outro toquem em suas alegrias: a alegria da brincadeira, da desco- critério que professor deve considerar quando seleciona li- berta de algo novo, de sentir-se maior, acompanhado, amado, vros para ler com alunos e sugere leituras para seu grupo: da alegria da amizade, da brincadeira com as palavras, de próprio envolvimento com aquele título. O quanto professor entrar em contato com humor e com o absurdo. As histó- está ligado afetivamente a ele, quanto a obra tocou, quais rias podem ajudar a elaborar essas questões, mesmo quando são suas lembranças enquanto leitor daquele livro. não tratam delas diretamente. O professor precisa circular entre que necessita ler, As crianças também gostam de histórias que tratem como parte do plano curricular da escola, por exemplo, e das questões do crescimento, das perdas, das lutas, dos O que ele deseja ler. O ideal é que essas duas esferas se co- conflitos, das descobertas (que podem ser elaboradas, por muniquem. Por exemplo, dentro do gênero que deverá ser exemplo, em histórias de aventura), da amizade, do afas- apresentado aos alunos de determinado ano escolar, é im- tar-se gradualmente da família, dos múltiplos olhares que portante que professor eleja títulos que envolveram e se pode ter para mundo, para outras culturas, outros que ele realmente gostaria de compartilhar com seus alu- modos de vida e de infância. nos e que ele explicite isso, comunicando efeitos que títulos escolhidos tiveram nele. LIVROS "CAFÉ COM LEITE" Robledo (2012) também afirma que se deve avaliar se Uma das práticas recorrentes que observamos nas escolas é a obra escolhida abre possibilidades de leitores estabe- a circulação de livros de origem duvidosa entre as crianças. lecerem relações com a própria vida, se eles poderão atri- Livros com imagens estereotipadas, textos e por vezes preconceituosos, em geral sem autoria. São livros buir sentidos pessoais. Títulos que falem com as crianças, e de baixo custo, que professores entendem que podem ser não sobre elas. Livros que considerem as experiências que perdidos ou estragados, sem pesar. Nessa leva, incluem-se li- as crianças já têm e que respeitem sua inteligência. Livros vros incompletos, com páginas faltando, rasgados e riscados. A pergunta que ecoa é: se livro pode ser estragado, já que que não busquem apenas ensinar algo, repletos de mensa- é de má qualidade, por que oferecê-lo às crianças? Se nosso gens moralizantes, mas que tratem do cotidiano das crianças objetivo é formá-las como leitoras, nosso dever é colocar lite- e dialoguem com elas. ratura de excelente qualidade na mão delas! 46 Ler antes de saber ler Segundo mito 47Livros OU revistas? contra a última justificativa, mas contato do leitor com Uma prática comum nas creches é oferecer revistas livro e tudo que se aprende com seu manuseio derrotam qualquer defesa do uso de uma projeção. para as crianças "aprenderem" a virar as páginas sem Quando conversamos com OS professores a esse respei- rasgá-las. Muitas vezes, são revistas já utilizadas para re- to, costumamos brincar dizendo que a imagem projetada cortes ou rasgaduras. Algumas observações: não tem cheiro, nem podemos folheá-la. Como dissemos, relacionar-se com livro faz parte do Quem cuida de algo que já está deteriorado? Quem processo de se tornar leitor. Lembrando prazer com que guarda revistas recortadas caindo aos pedaços? O tomamos certos livros em nossas mãos, alguém duvidaria que ensinamos às crianças oferecendo esse tipo de dessa afirmação? material para leitura? A habilidade de aprender a virar as páginas deve acontecer de modo contextualizado, ou seja, com um livro nas mãos. Livros e revistas são portadores de textos diferentes, que devem estar presentes no cotidiano escolar as crianças pequenas adoram ver as fotografias e ilustra- ções das revistas! E amam ouvir a leitura das histórias. Mas essas duas ações não se confundem. Livros OU imagens de livros? Temos ouvido muitas vezes OS professores dizerem que usam datashow para projetar livros na hora da leitura. As alegações são variadas: as crianças podem visualizar me- lhor as ilustrações e por isso prestam mais atenção, li- vros são preservados, pode-se apresentar mais histórias do que as existentes no acervo da escola. É difícil argumentar 48 Ler antes de saber ler Segundo mito 49DIÁRIO DE FORMAÇÃO que apresenta repetição em especial no caso das crian- ças menores, que adoram esse tipo de história porque a narrativa constitui um jogo de palavras do qual elas podem participar. Por exemplo: "A velha a fiar". Para escolher livros Temas que: Formador: Josca Grupo de coordenadores pedagógicos da educação infantil. agradam ao professor e às crianças; São Paulo, 2007 são relacionados à fantasia e à imaginação encan- tamento; Estávamos discutindo critérios de escolhas de livros têm relação com cotidiano das crianças; para crianças. Como orientar professores? Como ir além têm relação com interesse das crianças; do gosto pessoal e escolher que ler para as crianças? Propus, apresentam outras realidades; então, uma roda de livros. Apresentei vários títulos e pedi tratam da diversidade humana; que escolhessem um para ler para um grupo de crianças, emocionam, encantam, fazem pensar, provocam medo contando a faixa etária e justificando a escolha. As justifi- são misteriosos; cativas, quando refletidas, são pistas potentes para boas propiciam diversão, alegria são engraçados. escolhas. As coordenadoras elencaram: Essa lista é fruto de uma reflexão do grupo, em meio Beleza do livro: a um processo de formação. Como tudo na vida, está sujei- capa, papel, cores, diagramação, formato. ta a mudanças: novas ideias, mais critérios, reformulações. Assim, alguns aspectos da lista podem ser problemati- Ilustrações: zados. Por exemplo: quais critérios considerar para afirmar diversidade de técnicas e de materiais (lápis, aquarela, que um título é acessível a determinada faixa etária? Isso bordado, colagem, giz de cera etc.); depende da concepção de criança e de aprendizagem que diversidade de tipos redundantes (que confirmam se assume. Depende também do leitor, considerando sua texto escrito) e complementares (que trazem mais experiência de vida e suas referências literárias. elementos que texto escrito). Há crianças pequenas, de quatro anos, que gostam Texto: de ouvir longas e elaboradas narrativas, como Alice no acessível à faixa etária; País das Maravilhas, de Lewis Carroll. E adolescentes que bem-escrito, com bom vocabulário; preferem narrativas amplamente ilustradas e com pouco texto. A maneira como livro é apresentado e contextua- 50 Ler antes de saber ler Segundo mito 51lizado, a paixão de quem indica, também influi no mergu- rasgam, não sabem cuidar. E não temos recursos para repor os lho de uma leitura de fôlego. Esse é o papel do mediador. que são estragados. Por isso deixamos melhores livros em Vale a pena mencionar que pode ser questionado cri- lugares protegidos, e mais baratos, ou então OS de pano e tério de que tema precisa agradar ao professor e às crian- de plástico, para as crianças manipularem, pois nós não sabe- ças. Muitas vezes, professor pode se esquivar de alguns mos quando vamos poder adquirir um livro mais caro". Muitas temas que considera "difíceis" como morte, separação dos concordaram, dizendo que precisavam manter livros caros pais, raiva etc. -, mas que são importantes para seu grupo. bem protegidos. Talvez essa afirmação sirva de fato, para al- Adiante, no quarto mito, trataremos desse assunto. guns poucos livros, como de pop-ups, por exemplo. Mas esses são pouquíssimos, em geral, a minoria numa biblioteca. Se as crianças somente têm acesso a livros baratos ou de Acesso aos livros pano e de plástico, que, em geral, não contêm histórias, mas Formador: Ana Carolina apenas imagens estereotipadas e seus nomes, será que se Grupo de professores e de coordenadores pedagógicos. sentirão interessadas e compelidas a ler? Se o professor leu Interior paulista, 2009 uma história bacana, de um livro bonito, não é de se espe- O objetivo dessa formação era implantar bibliotecas em rar que as crianças queiram voltar a ele, em outro momento? creches de duas cidades do interior de São Paulo. Uma das Nesse dia, tinha comigo a imagem de uma obra que questões discutidas dizia respeito à acessibilidade dos livros. datava da transição do período medieval para a Idade Mo- Apresentei imagens de crianças com bastante autono- derna. Um religioso lia, em um púlpito, um livro lindo e mia em um espaço de leitura crianças bem pequenas, em grosso, certamente manuscrito; OS alunos estavam senta- torno de três anos, escolhendo livros em estantes baixinhas, dos no chão, segurando em suas mãos livros mais simples. "lendo" com um colega, trocando de livro. Crianças que fre- Em que pesem as diferenças de tempo e de práticas quentam desde bebês espaços de leitura, que têm desde de leitura, as educadoras começaram criticando a imagem: cedo contato com a leitura e com OS livros, sempre ao al- "Que absurdo! livro bonito só nas mãos do professor!". cance de suas mãos. Crianças que, desde muito pequenas, Em seguida, uma delas completou: "Parece a gente, com os estão aprendendo comportamentos leitores. livros caros que queremos 'esconder' das crianças!". As cenas foram uma surpresa agradável para a maioria Se concordamos que é função da escola introduzir as das educadoras, que olharam para a potência das crianças. Al- crianças no universo da leitura e da literatura, precisamos ga- gumas comentaram: "Como é bonito ver crianças com li- rantir 0 acesso pleno aos livros, desde sempre. Na escola públi- vros na mão! Mas aqui na escola, quando damos OS livros, elas ca e privada. Não há formação de leitor sem livro. Vale muito mais a pena um livro na mão do que milhares em armários... 52 Ler antes de saber ler Segundo mito 53TERCEIRO MITO XO para elas, com palavras difíceis e construções elaboradas. Na educação é preciso Junte-se a isso desconhecimento de boa parte da produção oferecer livros fáceis de literatura infantil adequada a essa faixa etária. No entanto, presenciamos inúmeras vezes crianças mui- to pequenas bastante atentas a histórias bem escritas e encan- tadoras para sua faixa etária. Em uma creche, observamos a professora ler sapo bocarrão (FAULKNER, 1996) para seu grupo de bebês de um ano, que a escutavam atentamente, Era uma vez uma criança... que estava com um adulto... ansiando pelo final conhecido e divertido, no qual sapo e adulto tinha um livro... e adulto lia. E a criança, pula na água para se salvar de um jacaré faminto. As crian- fascinada, escutava como a língua oral se faz língua ças repetiam a seu modo a onomatopeia lida pela professora: escrita. A fascinação do lugar exato onde conhecido "Splash!". Riam, apontavam para a ilustração do sapo pulan- se torna desconhecido. ponto exato para assumir 0 desafio de conhecer e crescer. do no rio e pediam de novo a cena final, mostrando-nos o quanto um bom enredo, com sua sonoridade, e quanto um Emília Ferreiro livro bem ilustrado pode, sim, agradar aos menores, ainda que eles não conheçam todas as palavras do texto e que nós não tenhamos certeza se compreenderam a história, como Em uma creche, ciente da importância de as crianças é a experiência de fato com a narrativa literária. pequenas, de até dois anos, terem contato com livros, a pro- No caso de crianças um pouco maiores, a partir dos fessora mostra um em que aparecem imagens de veículos: cinco anos, os textos literários já costumam povoar as sa- automóvel, caminhão, carro de bombeiro, bicicleta, moto- las há acervos específicos para cada faixa etária, e no caso cicleta, com seus respectivos nomes. Em seguida, organiza da escola pública, resultado de um investimento público na a sala para que as crianças explorem vários exemplares: li- ampliação do acervo, nos últimos anos. Todos acreditam vros de pano, de plástico, com recortes de revista que a que é muito importante ler para elas, mas o que ler? professora fez com muito capricho, e aqueles em que apare- Em uma escola de São Paulo, as crianças de cinco anos cem imagens de objetos com seus nomes escritos embaixo. ouvem a professora ler a versão da Odisseia, de Homero, Nessa coleção, não se encontra nenhum livro literário, como adaptada por Ruth Rocha. É um grupo que está envolvido contos de fada ou contos modernos. Por quê? com um projeto sobre mar. Os alunos elaboraram ques- Ainda hoje, muitas pessoas acreditam que crianças pe- tões: "Como surgiu o mar?", "Por que mar é salgado?", quenas não entendem um texto literário. Seria muito comple- "Como surgiram os peixes, as pedras, as conchas e as se- 54 Ler antes de saber ler Terceiro mito 55reias?". Para responder as perguntas, além dos textos infor- No entanto, abrir novas perspectivas de leitura para mativos, a professora leu vários mitos de origem e escolheu as crianças pode se tornar um desafio instigante na sua a Odisseia, uma vez que essa narrativa épica se relaciona relação com livros, parceiros significativos em nosso com alguns mitos lidos e por ter como personagens, em um trajeto na escola e na vida. Livros que tragam desafios aos dos trechos da história, as sereias. As crianças ficaram fasci- alunos podem e devem ser sugeridos pelo professor. Esta nadas pela história, repleta de aventuras cativantes. pode ser uma ótima chance para que a leitura do professor Em outra escola, crianças da mesma faixa etária se en- seja compartilhada com a turma. cantam com livro Minha vida de menina, diário escrito por De maneira geral, nas escolas há um consenso de que Helena Morley. Esse livro certamente não foi escrito para determinados livros são mais adequados a certas faixas etá- crianças dessa idade e nem mesmo a professora havia plane- rias do que a outras. As editoras também organizam seus jado lê-lo com seu grupo de alunos. No entanto, em uma catálogos de livros infantojuvenis por idade, sugerindo faixas roda de conversa após as férias de julho, quando comparti- etárias mais adequadas aos seus livros, em geral conside- lhavam as leituras que haviam feito, a professora contou que rando a maior ou menor autonomia dos leitores, de acordo havia lido Minha vida de menina. Apresentou a autora, a épo- com a complexidade do texto e a quantidade de ilustrações. ca e lugar em que havia vivido. Reconhecendo a dificuldade dos adultos avaliarem se um Coincidentemente, uma das alunas havia escrito um di- livro é ou não pertinente a determinada faixa etária, as edi- ário de férias e então todos ficaram muito curiosos para co- toras acabam cumprindo esse papel. nhecer tal diário. Ficou combinado que a professora traria Ainda que a divisão da literatura em faixas etárias possa livro no dia seguinte e escolheria um trecho bem bacana funcionar como uma orientação, é importante considerar que para ler na roda. Eles amaram! E pediram outro e mais ou- encontro entre sujeito e literatura não pode ser definido ape- tro trecho. E assim, o grupo teve a oportunidade de conhe- nas por esse critério. Se assim fosse, as crianças das duas es- cer e se encantar com boa parte dessa bela obra literária. colas citadas provavelmente não estariam ouvindo as histórias Tanto a Odisseia, mesmo em versão adaptada, quanto Mi- de Helena Morley e de Homero. A mediação do professor, bem nha vida de menina, não costumam ser oferecidos para crian- como interesse e a experiência leitora dessas crianças, per- ças dessa faixa etária. Muitas vezes um professor pode se mitiu acesso e a fruição desses textos. A orientação de idade, questionar quanto à pertinência de textos complexos na edu- portanto, não deve funcionar como uma camisa de força! Ao cação infantil ou nos primeiros do ensino fundamental, escolher um livro, é fundamental olhar para leitores que te- principalmente tratando-se das crianças menores de seis anos. mos: onde vivem, como são, pelo que se interessam, que já É claro que não são todos OS textos que interessam a elas ou leram. E sempre perguntar: O que esses leitores gostariam de que lhes são acessíveis, assim como acontece com OS adultos. ler? que já sabem? O que querem saber? 56 Ler antes de saber ler Terceiro mito 57A experiência de vida, lugar onde moram, a cultura em começa a fazê-lo muitas vezes influencia professor a substituir que vivem tornam OS leitores diferentes, singulares. Dessa for- palavras mais complexas por outras mais fáceis, em geral em- ma, a escolha do que vai ler é complexa e deve considerar que pobrecendo a narrativa e certamente descaracterizando texto. que costumamos chamar de infância, adolescência, vida adul- Se pensarmos em como nós mesmos lemos um texto, ta e velhice são categorias que abarcam grande heterogeneida- perceberemos que não conhecemos significado de todas as de. Os seres humanos, mesmo OS que têm a mesma idade, são palavras que lemos, mas construímos seu na leitu- diferentes basta olhar para seus companheiros de geração. ra. Com as crianças também é assim! Quando elas realmen- Como diz escritor Ricardo Azevedo (2003, 5): te não compreendem sentido da palavra pelo seu contexto, É preciso lembrar o óbvio: uma criança é um ser hu- é muito provável que nos perguntem. Essa situação pode se mano e não uma categoria abstrata e lógica. Logo, configurar como um bom problema a ser solucionado com está exposta a inúmeros fatores: contextos sociais e uso do dicionário. familiares, seu próprio temperamento, acasos e aci- Ler também pode se traduzir em uma boa oportunida- dentes, sentimentos, experiências concretas de vida, de de conhecer palavras novas. Mas não fica só nisso! No traumas, concepções culturais, entre outros fatores. ensino fundamental, é muito comum ouvirmos essa justifi- A aproximação de cada um com a literatura é uma ex- cativa para a importância da leitura, que acaba escamo- periência subjetiva, por isso, não é possível cercear ou de- teando o seu real objetivo. Nós não lemos para aprender finir peremptoriamente se um livro é ou não adequado palavras novas. Lemos em busca de alguma experiência ou apenas considerando a idade. conhecimento, lemos para nos divertir, para nos encantar. No entanto, podemos nos perguntar: Não há pontos A leitura literária também promove outras aprendizagens: em comum em uma faixa etária? Sim, é evidente que há ampliação do vocabulário é uma delas. muitos, assim como muitas diferenças entre as pessoas des- sa faixa etária. E, se consideramos o diálogo com a litera- LITERATURA OU RESUMO? tura como algo da esfera do pessoal e do subjetivo, essas Teresa, seis anos, recebeu de presente um livro de contos clás- diferenças precisam ser levadas em conta. Sempre. sicos, em uma edição que trazia histórias excessivamente redu- zidas e simplificadas, com ilustrações pouco atrativas. Ao ler um dos contos, comentou: "Por que ler este livro, se já conheço a história da Branca de Neve?". Ampliar OU reduzir vocabulário? Importante dizer que Teresa gostava de ler várias versões des- se conto e se deliciava com a qualidade literária das diversas A ideia de que a leitura de literatura introduz palavras mui- narrativas. Sabemos que um bom texto literário, mesmo que to difíceis para aluno que ainda não lê convencionalmente ou nhecido, pode provocar emoções em seus leitores. Quem dese- ja livros feios, com textos pobres e ilustrações estereotipadas? 58 Ler antes de saber ler Terceiro mito 59QUARTO MITO da, de Jutta Bauer (2008), inadequado para crianças de dois É preciso poupar as crianças e três anos. livro trata da briga entre uma mãe pinguim e dos horrores do mundo seu filhote, que se sente despedaçado com acontecimento. A narrativa versa sobre a busca dos pedaços e na ação de reparação da mãe, que remonta o pinguinzinho. A professora relatou que a coordenadora da escola em que trabalhava havia considerado a narrativa muito agres- siva e inadequada, porque pinguinzinho se despedaça, as crianças poderiam se identificar com ele, que as assusta- Nenhum livro para crianças ria. E elas deveriam ser preservadas de situações violentas. deve ser escrito para crianças. O pensamento dessa coordenadora é compartilhado por Fernando Pessoa vários adultos. Podemos dizer que existe uma idealização da criança ser puro, que deve ser protegido dos horrores Viver é muito perigoso... do mundo -, que desencadeia em nós uma necessidade de controlar que chega a ela. Essa questão delata, também, João Guimarães Rosa medo que temos, nós adultos, de entrar em contato com OS assuntos difíceis da condição humana: a morte, o ódio, a vontade de morrer, a inveja, as violências que cometemos Acreditar que existem assuntos proibidos na literatura contra nossos semelhantes e por aí vai. revela uma determinada concepção de criança e de infância Na infância, a criança vive as mesmas contradições que é sempre fruto de uma construção social. Uma concepção humanas que os adultos, possui sentimentos ambivalen- que entende que a criança deve ser poupada das "agruras da tes, negativos, sofridos e medos: da morte, de não ser vida", protegida. Por isso, temas considerados "difíceis" pelos amado, de ser abandonado, entre outros. Qualquer um adultos, como morte, guerra, despedidas e doenças, de- que convive com crianças experimenta sua intensidade vem ser evitados. Será que as crianças não pensam e sentem emocional, a complexidade de seus afetos. Dessa manei- em relação a esses temas? A perda de um ente querido ou a ra, não há assuntos que não possam estar presentes nos violência humana também as atinge e, por isso, são temas que livros dedicados ao público infantil. Há, sim, formas de devem ser tratados. serem abordados, escritos, compartilhados. Mas a neces- Uma professora de educação infantil entrou em contato sidade de se olhar para assuntos difíceis é igualmente ne- perguntando se nós considerávamos livro Mamãe zanga- cessária para todos. 60 Ler antes de saber ler Quarto mito 61Pode se falar tudo às crianças, desde que de uma ma- Ultimamente, politicamente correto tem estado neira acessível a elas, à sua compreensão. A criança pode se presente nas discussões em torno da produção literária beneficiar bastante ao ler um texto que a ajude a nomear, a destinada ao público infantil. Adaptações de histórias tra- dar um contorno a uma emoção ou a um sentimento, e per- dicionais, de cantigas e surgimento de uma literatura "do ceber que que sente não é fruto de uma monstruosidade, bem" tem deixado muitos educadores de cabelo em pé, mas algo humano. com receio de que a literatura feita para crianças pudesse Não é a literatura que apresenta esses temas, tão árdu- perder que há de mais valioso: o diálogo com a subjetivi- OS para OS adultos nos dias de hoje. Ela apenas trata deles. dade, com a vida e toda sua complexidade. São temas tão universais que OS encontramos em histórias A necessidade de retirar palavras ofensivas, expressões de todas as culturas. Podemos evitar ler sobre a morte, mas duras e de suavizar as histórias acaba por fazer calar sen- não podemos evitá-la. Podemos evitar ler sobre abandono, timentos que de fato a criança sente, fazem parte dela O mas não podemos evitar medo dele. Se as crianças não po- tiro pode sair pela culatra. Sem lugar para dar forma ao que dem falar sobre a morte, a raiva, medo, onde elas vão ela- sente pela palavra, a criança precisará dar vazão de outra borar esses sentimentos? A literatura pode oferecer espaços maneira ao que está presente em sua vida. de elaboração dessas questões. psicanalista Bruno Bettelheim (1980), em seu céle- bre livro A psicanálise dos contos de fadas, apontou para a Atira OU não o pau no gato? experiência que esses textos literários propiciam às crian- Quem não conhece a versão original da canção Atirei ças, lembrando que esse gênero já foi muito criticado pela pau no gato? Acreditamos que ela fez parte da infância de crueldade de suas histórias. Em seus estudos, Bettelheim todos. Para relembrar, a letra é: defende a ideia de que a trajetória dos personagens na luta do bem contra O mal e no confronto com as adversidades da Atirei pau no gato-to-to vida pode revelar para as crianças (e OS adultos) alguns Mas o gato-to-to caminhos que precisamos percorrer para crescer. Não morreu-reu-reu Dona Chica-ca-ca Ítalo Calvino (1998) constrói uma imagem semelhante Admirou-se-se na bela introdução que faz em seu livro Fábulas italianas, Do berro, do berro associando enredos e personagens das histórias tradicio- Que gato deu: miau! nais ao "catálogo de destinos humanos" de que podemos dispor, ou seja, essas histórias trazem à tona tanto a diver- Quem trabalha com criança certamente já ouviu a sidade quanto a universalidade humana. versão politicamente correta que anda circulando: 62 Ler antes de saber ler Quarto mito 63Não atire o pau no gato-to-to uma criança o mundo em que está inserido, é possível Por que isso-so-so "reelaborar que vem como um 'dado', possibilitan- Não se faz faz faz. do que não sejamos meros reprodutores" (LOPES e O gatinho-nho-nho PAULINO, 2009). É nosso amigo-go-go As autoras concluem artigo afirmando que "a valoriza- Não devemos ção de nossa herança cultural ainda é preferível em relação Maltratar OS animais, jamais! à tentativa de tornar as letras de algumas cantigas politica- Sabemos que as crianças experimentam comportamen- mente corretas". tos que revelam certa crueldade, mas não é possível atribuí- Acreditamos que as crianças devem ter acesso aos tex- -la a uma canção. Quantos de nós efetivamente atiraram o tos de tradição oral que fazem parte de nossa cultura. Não pau no gato ou maltrataram animais por causa da canção? há por que censurá-los! A segunda versão, politicamente correta, censura a possibilidade de as crianças brincarem com textos da tra- dição oral transmitidos de geração a geração. Esse tipo de Adequado inadequado? "mudança" também revela uma concepção moralizante, que busca atribuir ao lúdico um caráter educativo. O que fazer quando as crianças querem ler livros que, Em seu artigo "Discurso e formação de valores nas do nosso ponto de vista, não são adequados à sua idade? canções de ninar e de roda", Lopes e Paulino (2009) apre- que pensar disso? sentam uma pesquisa realizada em São Paulo, com pessoas Presenciamos e protagonizamos muitas vezes essa dis- de várias classes socioeconômicas, sobre suas vivências e cussão, na qual frequentemente a opinião dos professores o que pensam atualmente a respeito das canções infantis. se divide. A fim de evitar acesso aos livros considerados As autoras ressaltam que: inadequados, muitos professores optam por selecionar pre- viamente acervo, distribuindo-o em estantes ou caixas Na maioria das entrevistas, quando perguntados so- classificadas por faixa etária deixando disponíveis somente bre que tipo de mensagem as cantigas transmitem às crianças, muitos alegam só ter percebido a presença os títulos aos quais as crianças devem ser expostas (segun- de versos sobre violência e a presença de persona- do o ponto de vista deles). gens ligados ao medo depois que se tornaram adul- Outros tantos professores se indignam com a censura tos. A partir desse dado pode-se considerar que, para e justificam: se nosso objetivo é fomentar a leitura literá- a infância, importante é a brincadeira, a socializa- ria e ampliar acesso dos alunos aos livros, por que não ção, enquanto para adulto, que conhece mais que permitir que todos circulem livremente pelo acervo, esco- 64 Ler antes de saber ler Quarto mito 65lhendo que querem ler? Mesmo esses educadores depa- em português. Isso porque eu lia! Lia com fluência. ram-se com a questão: o que fazer quando um aluno faz Peguei um livro e 0 levei para a bibliotecária registrar. uma escolha polêmica, pega um livro que é considerado Ela disse: "Esse não pode". "Como não pode?!" "Não inadequado para a sua idade, naquela escola? pode, porque não é para você." "Como não é para Uma mistura de receios toma conta do professor. Eles mim? Não uma biblioteca circulante?" "É, mas não é para você. É impróprio." "Existem livros impróprios vão desde a apreensão da introdução precoce de temáticas, numa biblioteca de escola? O que é impróprio?" Não passam pelo despreparo do professor para responder per- entendi. Já tinha 11 anos, 11 anos e meio. Ela disse: guntas constrangedoras, e chegam ao temor da reação dos "É impróprio e não é para menina". Eu disse: "Existem pais e de outros membros da equipe escolar. livros masculinos e femininos?". A bibliotecária ficou Vamos analisar esses receios. Para começo de conver- irritada e disse: "Ponha esse livro de volta. Livros para sa, precisamos ter claro que as referências utilizadas pelos você são esses aqui". E me mostrou uma estante bai- professores para categorizar um livro como adequado ou xinha. "Ali você pode pegar qualquer coisa." Fui lá, resignada, peguei dois livros. Eram tão femininos, tão inadequado são datadas e situadas, ou seja, revelam ideias, de meninas, que até as capas eram cor-de-rosa, eu crenças, princípios e valores de determinado grupo, em de- acho. Olhei a capa e lá dizia não-sei-o-quê, senhora terminado tempo e espaço não são absolutas. Leandro Dupret. Eu disse: "Como?! Senhora?! Ela Vejamos um exemplo interessante que pode parecer não tem nome?". Desde quando a autora é senhora? absurdo nos tempos atuais. É depoimento da escritora Ta- Senhora para mim é madame da cozinheira. Fiquei tiana Belinky para o Museu da Pessoa (2009, 194-196), meio escandalizada. Ela disse: "Pega esses livros e não se fala mais nisso". no qual ela conta a experiência de ter sido "censurada" pela Peguei, levei para casa, li e odiei. Nem me lembro bibliotecária da escola: mais do que se tratava. Queixei-me ao meu pai, por- A primeira coisa que fiz, assim que entrei na escola, que assunto de livros era com ele. Não que minha foi correr à biblioteca. E Mackenzie tem uma bi- mãe não lesse muito, mas ela não tinha tempo, por- blioteca de três andares, uma maravilha de biblioteca. que era dentista. Eu disse: "Olha, aconteceu isso. E Chispei para lá. Além disso, meus pais se inscreveram desse aqui não gosto, detesto, não quero. Que faço?". em duas bibliotecas circulantes: uma russa e outra Papai disse: "Você não faz, mas eu faço!". Sentou e alemã. Entrei naquela biblioteca enorme, fui direto escreveu uma carta em um português muito ruim, para uma estante, procurei, procurei, sem falar por- dizendo: "Minha filha Tatiana está autorizada a reti- tuguês, e achei um livro que me pareceu interessante. rar da biblioteca qualquer livro que ela queira". Fui Sem ler, não ia nem aprender a língua. Porque na es- triunfalmente para a biblioteca com esse bilhete do colinha, já no terceiro trimestre, era a primeira aluna meu pai. Foi um escândalo. Onde já se viu uma fe- delha de 12 anos poder ler qualquer coisa?! Mas a 66 Ler antes de saber ler Quarto mito 67última instância era o pai, o pátrio poder. Não tinha ser relativizado. Por exemplo, para adeptos de algumas cren- juiz de menores bobo para atrapalhar. ças religiosas, certos personagens típicos do folclore brasilei- E tirei 0 que queria, aventura, bons livros. Eram de ro não devem ser apresentados às crianças, pois representam meninos, de homens, não eram de nenhuma senho- ra Leandro. Tornei-me frequentadora da biblioteca, mal, do qual elas devem ser protegidas. Outros demoni- o que me ajudou a aprender português muito de- zam as religiões africanas. Nos dois casos, desconsidera-se pressa. E mesmo na escola davam livros para lermos, a liberdade e a pluralidade cultural de nosso país. É preciso livros bons. Tanto assim que na escola americana, na lembrar que nem todos temos as mesmas crenças, e que a di- última série em que estive lá quarta série, acho -, versidade deve fazer parte da formação das crianças. ganhei um prêmio por ser a primeira em português, A escola é lugar em que aluno deve ter a liberdade por estranho que pareça. Ganhei um livro assinado de exercer suas escolhas. Ele pode contar com a mediação³ por todas as professoras e todas as colegas. Tenho até hoje. O livro: Eurico, o presbítero, de Alexandre de um professor que observa suas preferências, faz sugestões, Herculano. Difícil, português de Portugal antigo. E emite opiniões, estimula trocas e dicas entre OS alunos. Nes- claro que engoli, li do começo até fim, e aprendi sa mediação, é evidente que professor exercerá sua opinião, português pra burro. E tenho o livro até hoje. Essa demonstrará seu gosto por certos livros. E isso é muito impor- foi a minha experiência com a biblioteca. E, de resto, tante, pois trata-se de importantes comportamentos leitores, tinha a biblioteca circulante. O primeiro dinheirinho ou seja, de ações que fazemos como leitores. Agora, leitor que ganhava, comprava livros. Não comprava sapa- também deverá contar com a liberdade de realizar suas esco- tos. Aliás, fiquei sem comprar sapatos por dois anos. Nem havia dinheiro. Mas para livros tinha. lhas e até de exercer a crítica em relação a elas. Refletir sobre OS livros que retira, se gostou ou não gostou, se entendeu ou Na época em que se passa relato, nos anos 1930, ha- não, faz parte do caminho de qualquer leitor e, mais que isso, via uma grande cisão entre mundo feminino e masculi- vai ajudando a criar OS próprios critérios de leitura, a apurar no. A sociedade era patriarcal e O lugar da mulher era muito o gosto, a saber que tipo de obras podem dialogar mais com distante do lugar do homem. Lê-lo causa-nos estranhamento, a sua experiência. Essa necessidade da liberdade do leitor de- revelando que as ideias que sustentam as escolhas que faze- verá ser assunto para toda a comunidade escolar refletir em mos se transformam. Como poderá causar estranhamento, conjunto, e as situações polêmicas devem nos ajudar a pensar dentro de alguns anos, a "censura" de títulos que parece, aos sobre elas e não nos paralisar e negar livre acesso aos livros. olhos de alguns, natural e inquestionável. Quem escolhe OS livros que ficam ao acesso dos alunos é 3 A bibliotecária francesa Geneviève Patte, citada por Cecília Bajour a equipe de professores. E eles fazem com base nas crenças (2012) em livro aqui abordado, aponta para a diferença entre sele- e valores próprios ou da instituição de ensino, que precisa cionar e valorizar uma leitura este seria papel da mediação, por exemplo e restringir ou censurar livros para alunos. 68 Ler antes de saber ler Quarto mito 69QUINTO MITO encontra nas estantes das escolas. O que será que está por Livro bem colorido: é disso trás de afirmações como essas e de ideias a respeito do que devemos ler para os pequenos? que OS pequenos gostam Em uma formação de professores de educação infantil, depois de termos discutido longamente critérios de quali- dade de texto e de ilustração, passamos para a escolha de quais títulos os professores levariam a seus alunos. Curio- samente, uma das professoras escolheu um livro com texto simplificado demais, ilustrações sem autoria e com imagens [...] eu convivia com eles todas as horas do dia, de desenhos animados, justificando que, embora não fosse a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na um livro que ela considerava bom, achava que seria mais verdade, se não me trai a vã memória, de certa palatável para as crianças menores, já que elas reconhece- forma lendo, porque quando havia figuras, eu riam os personagens da televisão e poderiam, assim, enten- inventava as histórias que elas ilustravam e, ao der e fruir melhor a história. olhar para as letras, tinha a sensação de que Esse acontecimento nos fez refletir: por que será que, entendia nelas que inventara. mesmo sabendo que livro não tinha qualidade, a profes- João Ubaldo Ribeiro sora o selecionou para seus alunos de quatro anos? Chega- mos à conclusão de que, antes de discutir a qualidade do livro, precisamos descobrir e discutir qual é a ideia corrente "O que importa mais em um livro para crianças bem do que as crianças devem gostar: qual a representação das pequenas são as ilustrações coloridas." professoras sobre que as crianças gostam. "É preciso ter cores que elas reconheçam, desenhos claros A afirmação da professora traz em seu bojo a ideia de e de fácil compreensão." que a nossa aproximação com a literatura se dá por meio "Os textos precisam ser curtos, com frases simples." do "entendimento", quando, na verdade, não é bem assim: "Os pequenos gostam mesmo é de livros pop-ups, com nós nos encantamos com o texto, entramos na história, via- sons, texturas e formas." jamos com as imagens e, claro, pensamos e atribuímos pen- Muitas vezes ouvimos frases como essas circulando samentos ao que lemos ou ouvimos. Por que um texto e entre professores e coordenadores de educação infantil, ilustrações bem elaborados não podem ser oferecidos às ao mesmo tempo que percebemos que as ideias que elas crianças, para que elas também entrem em contato com a expressam também estão presentes na escolha do que se beleza da língua e das imagens? 70 Ler antes de saber ler Quinto mito 71Foram inúmeras as vezes em que vimos professores ferências distintas da grande mídia, o que torna esse papel apostarem em textos e ilustrações simplificados, com de- da escola ainda mais premente. senhos que estão presentes na mídia, imagens chapadas, A educadora colombiana Yolanda Reyes (2011) afirma quase como um carimbo do que se deve oferecer à infância. que "os bons livros de imagens podem ser museu de uma Quanto menor é aluno, mais ele corre risco de ter aces- criança". Essa bela frase nos faz pensar, no caso das ilustra- so apenas a esse tipo de livros, escolhidos com base na ideia ções, tanto na qualidade artística que essas imagens podem de que oferecemos às crianças somente aquilo que elas já possuir, quanto no alcance que podem ter para a criança conhecem, porque é daquilo que elas "gostam". Mas como que as observa. podemos gostar daquilo que não conhecemos? Quanto aos detalhes... Não nos enganemos. As crianças Aqui encontramos outro equívoco frequente, que já ouvi- OS apreciam muito! Basta pensarmos em livros clássicos que mos em várias situações de formação: não é importante partir há anos encantam OS alunos da educação infantil, como A daquilo que a criança sabe e se interessa? Sim! Mas para que casa sonolenta; O rei Bigodeira e sua banheira; A bruxa Salo- ela conheça e faça suas escolhas, precisamos oferecer outras mé; Bruxa, bruxa, venha à minha festa; entre outros. possibilidades para além do que já faz parte de seu repertó- Alguns aspectos podem ser considerados quando ana- rio precisamos alimentar seu repertório. lisamos a qualidade de uma ilustração. Muitas vezes, ela A escolha de um livro é algo complexo, que abrange di- é apenas um traço, um elemento que revela diálogo que versos aspectos: conhecimento do que tem sido publicado ilustrador estabeleceu com texto, sua visão da histó- no mercado de livros, um repertório amplo, que permite ria, outros elementos que agregou, que escolheu ressal- reconhecimento de quais são OS bons autores e ilustradores, tar, a técnica que elegeu utilizar: desenho, pintura, recorte um olhar "treinado" para as qualidades textuais e narrativas, e colagem, fotografia de personagens feitos de massinha, de ilustração e de edição e é isso tudo que o professor ajuda entre outras. Mas uma coisa é certa: as ilustrações têm as crianças a conhecerem quando escolhe um livro. Afinal, autoria. Trazem o olhar de um artista para a história, re- são conhecimentos que as crianças estão adquirindo e nosso velam a forma como se aproximou daquela narrativa; su- objetivo é que elas, aos poucos, construam essas referências. gerem emoções ao leitor, oferecem novas aproximações e É papel da escola e, portanto, deve ser do conheci- apreciações sobre livro. mento dos professores, coordenadores pedagógicos e dire- Há ilustrações que só explicam a história, são as re- tores oferecer livros de qualidade para seus alunos, para dundantes. E há as complementares, como gato de Eva que possam ampliar suas referências estéticas, tanto em re- Furnari no livro de Lia Zatz, que complementam a histó- lação ao texto quanto à ilustração. Sabemos que muitas das ria essas ilustrações enriquecem a narrativa escrita por crianças que chegam às nossas escolas terão somente ali re- meio da narrativa de imagens. 72 Ler antes de saber ler Quinto mito 73TEM GATO NA HISTÓRIA? Não esqueçamos também OS livros em que as imagens são a narrativa os livros sem texto. Flop, de Laurent Car- Em um dos encontros de formação de professores do Proje- to Memórias da Literatura Infantil e Juvenil, pelo Museu da don, é um deles. Nesses casos, quem cria texto é leitor, Pessoa, em São Paulo, grupo realizou uma entrevista com que pode construir uma história enquanto se deixa levar a autora Lia Zatz. Ela contou que, em uma de suas muitas visitas às esco- pela sequência de imagens. las para conversar com alunos, uma criança the perguntou a respeito de seu livro "Lia, qual é LIVROS OU BRINQUEDOS? personagem de que você mais gosta?". Antes de responder, Lia devolveu a pergunta ao menino: "Antes quero saber, qual E os sons, pop-ups e outros recursos que fazem do livro um é personagem de que você mais gosta?". 0 menino não titu- brinquedo? Será que sua simples existência garante mesmo beou: gato!". Lia levou um susto: gato? Mas não tem qualidade ao livro? Muitos desses livros se encaixam na ca- gato na minha história! Tem só a mãe e duas filhas". Porém, tegoria de livro-brinquedo, que tem, entre outras, a função de menino continuava impávido: "Tem sim, em todas páginas, e aproximar as crianças do livro como objeto social. que eu mais gostei foi ele, gato!". Não é raro observar a presença dos sons, pop-ups e outros Lia achou que menino estava confundindo as histórias, recursos, como critérios centrais na escolha de livros para a mas resolveu olhar mais de perto as ilustrações de Eva Furra- educação infantil, o que nos leva a questionar: que não ri, E não é que o menino estava certo? Curioso como todos persistem aqui as mesmas ideias que sustentam outros mitos gatos, lá estava personagem preferido daquele leitor mui- escolares? Por exemplo, a crença de que a criança pequena to atento: numa página, o gato estava atrás do sofá, na outra, não vai se interessar tanto pelo texto e pelas ilustrações, mas embaixo da mesa, atrás da cortina, em cima da cama... E ce- pelo brinquedo em que livro poderá se transformar? pois dizem que as crianças não percebem os detalhes! Aliás, Os livros-brinquedo não devem tomar lugar de narrati- é justamente 0 oposto: amparadas pelas ilustrações, inclusive vas que oferecem outro tipo de experiência há espaço para para compreender e apropriar-se melhor das histórias, as crian- os dois. Uma boa história, um enredo bem elaborado e uma narrativa bem escrita certamente chamarão a atenção das ças costumam ser muito mais atentas a elas do que nós, adultos já viciados em obter todas as informações por meio da escrita. crianças e darão a oportunidade de imaginar, pensar e sonhar. Um bom livro oferece experiências complexas e ricas, que se renovam a cada aproximação. 0 brinquedo também Há, ainda, livros em que imagem e texto são orgâni- tem a sua função e 0 seu momento. cos: na falta de um, não se consegue entender a história, ou ela fica muito empobrecida. São chamados livros ilustrados. Neles, a imagem não é coadjuvante, mas ele- mento preponderante na compreensão da obra. Embora esse tipo de livro não seja novo, vem ganhando espaço de publicação e é cada vez maior a recepção pela crítica especializada de literatura e arte. A princesinha medrosa, de Odilon Moraes, é um exemplo disso. 74 Ler antes de saber ler Quinto mito 75SEXTO MITO são desenhos de autoria. No ensino fundamental, as propos- tas costumam mudar um pouco. Depois de ler, vale fazer um Conversar é pouco: sempre é preciso fazer uma atividade depois de cartaz, escrever uma frase sobre a história, o nome do perso- nagem preferido, um final diferente ou um resumo, além, é claro, da conhecida "prova do livro". Ou dramatizar a história. Será que essas atividades de fato ampliam OS sentidos que leitor pode construir sobre texto literário? O que leitores costumam fazer depois de ler? Quantos de nós desenhamos? Escrevemos um final diferente? Encenamos regresso ao texto por meio da conversa sempre traz trechos da história no cotidiano? Se queremos evidenciar algo novo. A princípio para quem fala, já que escuta e ensinar aos alunos as múltiplas dimensões da leitura li- enquanto diz a outros o que o texto suscitou em si e desse modo ensaia a sua leitura como um músico terária, em que tais atividades contribuem? quando lê uma partitura. Cecília Bajour Leitura e desenho? Já nos deparamos com professores que ficam indigna- Cena um tanto comum nas escolas, depois de o profes- dos quando questionamos as propostas de desenho após sor ou a professora ler um texto literário para as crianças, uma leitura. "É importante para as crianças desenharem!" é a proposta de uma atividade gráfica ou dramatização. justificam. E continuam: "Se desenho é tão presente para Quando perguntamos a eles porquê, se surpreendem com as crianças, por que não aproveitar essa forma de expressão a questão, pois parece ser necessário que alunos produ- para que revelem o que pensaram sobre a leitura?". zam algo tangível na escola. De preferência, usando papel. Logicamente, desenho tem de habitar o cotidiano da Ao passar pelas salas de educação infantil, é frequente escola, deve ser foco de investimento constante, diário, per- encontrarmos desenhos da cena preferida, do personagem manente do professor, que precisa também conhecer a evo- mais marcante ou de um cenário da história lida. Muitas ve- lução do desenho infantil e percurso das crianças nessa zes, esses desenhos são cópias das ilustrações do livro; outras, linguagem para propor atividades que possam instigá-las, oferecer desafios e condições para que elas utilizem essa 4 Trechos deste capítulo foram publicados em CARVALHO, Ana Carolina. modalidade para se expressar. Mas 0 desenho, em toda sua "Que conversa é essa depois da leitura?". Revista Avisalá, 58, maio importância, não faz parte dos comportamentos leitores. de 2014. 76 Ler antes de saber ler Sexto mito 77Em encontros de formação, algumas vezes propusemos postas de dramatização de histórias que os alunos acabaram que adultos desenhassem depois de uma leitura literária de ouvir ou de ler: afinal, elas não ajudam OS alunos a se compartilhada. Quanta reclamação! Não era raro ouvir, em apropriarem do texto literário? uníssono: "Nós não queremos desenhar, queremos falar so- Podem ajudar na apropriação do conteúdo do texto, mas bre texto, conversar sobre o que sentimos, contar algo de será esse objetivo último da formação de leitores? É para que nos lembramos, trocar impressões com outros leitores". isso mesmo que lemos literatura? que mais importa numa E é muito lógico que professores queiram fazer tudo história é a maneira como foi escrita, trabalho do autor, isso depois de uma leitura, pois é de fato que fazemos jeito como ele conta algo, a forma como nos enreda em suas quando lemos e desejamos compartilhar nossas impressões tramas. Quando escolhemos propor uma atividade de drama- com outras pessoas. Esses são comportamentos leitores tí- tização, em geral descartamos esse precioso trabalho, que picos, que utilizam a linguagem oral, em conversas. Não define a qualidade do texto literário. desenhamos, nem escrevemos outro final. Então, por que Na maioria das vezes, OS professores assumem papel pedir isso às crianças? do narrador nas dramatizações, enquanto as crianças "atu- am" como personagens de histórias conhecidas frequen- FAZER LIVROS NA ESCOLA? temente, contos tradicionais. Quando as crianças falam, em Propor desenhos sobre a história após a leitura é diferente de geral repetem as frases ditas pelo professor. Tais narrativas promover atividades que envolvem a elaboração de livros. É fre- quente vermos crianças juntando páginas e produzindo os pró- eliminam texto, simplificando a linguagem, substituindo prios livros, com inúmeros desenhos, espontaneamente. Isso expressões que marcam diferentes gêneros, descaracte- nos mostra que elas estão observando os vários elementos que rizando trabalho do autor. compõem um livro como a capa, a contracapa, diálogo en- tre texto e imagem. professor atento pode lançar mão desse Mas não existem romances e contos adaptados para recurso, entendendo 0 desenho ou 0 uso de qualquer outra téc- teatro? Sim, evidente. E esses se prestam à dramatiza- nica das artes visuais como ferramenta para a ilustração. No en- ção. Seria preciso realizar a adaptação do texto lido, que tanto, é preciso ter claro que apenas propor a produção de ilus- trações às crianças é um procedimento que deixa de lado 0 uso em geral não acontece em sala de aula. Certamente, cabe- de vários e importantes comportamentos leitores. ria muito mais dramatizar textos teatrais que, aliás, costu- mam entrar pouco na escola. Escrever e montar uma peça teatral implica usar diversos conhecimentos, incluindo OS Peça teatral OU dramatização? desse gênero textual específico. É importante conhecer a linguagem do teatro para dra- Em encontros de formação, também é frequente ouvir- matizar. Assistir a boas peças teatrais amplia o repertório mos afirmações dos professores sobre a pertinência de pro- das crianças, possibilitando que usem sua experiência de 78 Ler antes de saber ler Sexto mito 79espectadores como referência para participar de alguma Cabe à escola ensinar aluno a utilizar a linguagem dramatização. Ler para conhecer como texto teatral se or- oral nas diversas situações comunicativas, especial- ganiza é fundamental. Há, hoje, no mercado, vários livros mente nas mais formais: planejamento e realização com peças teatrais infantis. de entrevistas, debates, seminários, diálogos com Vale a pena fazer uma distinção entre a dramatização autoridades, dramatizações etc. Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas atividades façam proposta pelos professores e a brincadeira criada pelas crian- sentido de pois seria descabido "treinar" ças em torno de personagens de livros. É comum, em mo- uso mais formal da fala. A aprendizagem de pro- mentos de faz de conta, ver as crianças assumindo papel de cedimentos eficazes tanto de fala como de escuta, algum personagem marcante. O brincar é atividade espon- em contextos mais formais, dificilmente ocorrerá se tânea das crianças e deve assim ser respeitado. Observan- a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la. do as escolhas de seu grupo, professor pode planejar uma (BRASIL, 1997, p. 27) sequência de leituras que dialogue com a brincadeira. Por exemplo, percebendo que grupo tem brincado de lobo ou Os Referenciais Curriculares Nacionais, por sua vez, indicam a necessidade de um trabalho sistemático de príncipes e princesas, professor pode planejar ler vários com a linguagem oral desde a mais tenra idade, com contos com esses personagens, apresentando uma variedade objetivo de a criança ampliar gradativamente suas de lobos e de príncipes e princesas, de maneira a "alimentar" possibilidades de comunicação e expressão, interes- a brincadeira. faz de conta das histórias alimenta faz de sando-se por conhecer vários gêneros orais e escritos conta das brincadeiras. e participando de diversas situações de intercâmbio social nas quais possa contar suas vivências, ouvir as de outras pessoas, elaborar e responder perguntas. Conversa é conteúdo escolar? (BRASIL, 1998, p. 131) Até pouco tempo atrás, a linguagem oral não era vista O ensino da conversa passou, então, a figurar como como conteúdo escolar: não era necessário ensinar a con- objetivo didático lembrando que conversa não é um gê- versar. aluno estava na escola para aprender e falava ape- nero, mas uma mistura deles, a depender do que se fala, nas quando professor assim o solicitava, em chamadas em que situação, com quem. No que tange à leitura, a con- orais, por exemplo. Em 1997, Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa incluíram intencionalmen- 5 Quando se usa aqui a expressão "de fato", a intenção é marcar a existên- te a oralidade entre seus conteúdos, incentivando trabalho cia sociocultural extraescolar dessas atividades discursivas, sua existência no interior de práticas sociais comunicativas não escolarizadas. Ao longo com gêneros orais no ensino fundamental: deste documento a expressão foi usada também referindo-se a textos, a usos da linguagem, a circunstâncias de enunciação etc. 80 Ler antes de saber ler Sexto mito 81versa é foro privilegiado de troca de impressões, indica- maneira como é construído são alguns dos fatores que de- ções e opiniões. terminam aproximações subjetivas, e se a escola pretende Na escola, existe uma crença de que a produtividade formar leitores, terá de lidar com este fato inexorável: não escolar está atrelada a produtos tangíveis, registros em pa- vai ter acesso a tudo o que texto provoca em seus leitores. pel material nobre, cujo destino são as pastas, OS murais A crítica literária infantojuvenil Cecília Bajour, em seu e, finalmente, a casa, em que a família poderá reconhecer e livro Ouvir nas entrelinhas valor da escuta nas práticas comprovar trabalho realizado. Essa crença reduz o reco- de leitura, afirma que falar sobre um texto é, de certa for- nhecimento das aprendizagens das crianças a algum vestí- ma, "voltar a lê-lo" e a conversa pode ser muito revelado- gio: é preciso uma prova concreta, registrada, para que se ra sobre como nos relacionamos com aquela leitura, de que avalie avanço ou não. Nesse sentido, a escrita ganha um maneira aquele texto nos tocou, o que pensamos sobre ele. lugar de destaque na hierarquia dos conteúdos afinal, fa- Quando conversamos sobre uma leitura, nos apropriamos lar todo mundo sabe; mas escrever é outra história. dela de outra maneira, reconhecemos seus efeitos em nós. A explicitação daquilo que sussurra nas cabeças dos leitores ou seja, a manifestação da palavra, do silên- Então, que fazer depois de ler? cio e dos gestos que o encontro com os textos sus- cita leva-me a compartilhar a afirmação de Aidan Em suas palestras, escritor Bartolomeu Campos de Chambers de que ato de leitura consiste em grande Queirós frequentemente questionava a necessidade de a medida na conversa sobre os livros que lemos. Em seu escola medir tudo, dar nota para tudo. No caso da litera- livro Diga-me, imprescindível para pensar o tema da tura, é possível medir a relação dos alunos ou de qual- escuta, ele inclui o texto de um colega que cita Sarah, quer pessoa com texto? Para que caminhos um texto uma menina de oito anos: "Não sabemos que pen- pode nos levar? Que conhecimentos, pensamentos, expe- samos sobre um livro até que tenhamos falado dele". riências acionamos quando lemos? Será que nós mesmos, (BAJOUR, 2012, p. 22) como leitores, temos consciência de tudo que pensamos Bajour vai um pouco mais longe ao desenvolver a ideia quando lemos um livro literário? Temos consciência de al- de que a conversa com outros leitores também possibilita gumas coisas, mas não de todas. novas construções de sentido. Por meio de conversas, tro- Temos que considerar que muito do que os alunos pen- cas de impressões sobre texto que incluem fragmentos sam ou sentem pode nos escapar. Não porque fomos dis- de ideias, sensações, associações -, podemos ampliar nossa plicentes ou maus professores, mas porque essa é uma relação com ele, expandir OS sentidos, dialogando com condição da literatura. Os silêncios do texto, sua força, a olhares de outros leitores. 82 Ler antes de saber ler Sexto mito 83A conversa entre leitores é um comportamento, uma Literatura e moral. De onde isso vem? ação a ser aprendida e aprimorada. Se a escola pretende A literatura infantil nasceu no final do século XVII, formar leitores, é também sua função proporcionar trocas como importante aliada dos adultos na formação moral da significativas, conversas entre leitores que possam ressigni- criança e do jovem, configurando-se em um instrumento ficar e enriquecer OS entendimentos e as associações possí- poderoso para a perpetuação das normas e dos valores pre- veis que texto pode propiciar. dominantes da classe burguesa em ascensão. Textos edi- Na conversa após a leitura, as crianças colocam em ficantes, moralizantes, em que a criança ora é mostrada jogo muitas habilidades: perceber o efeito da leitura, o como ser idealizado a criança limpinha, boazinha, com que sentiram, pensaram, associaram; elaborar um dis- boas maneiras -, ora é mostrada como ser selvagem, que curso para compartilhar essas ideias; ouvir e entender precisa ser exemplarmente corrigido pelo adulto. o que outros têm a dizer; formar uma opinião; fazer É a literatura escrita como "exemplo" de vida: a pre- uma parada para olhar para a beleza do texto e conver- miação pelo trabalho e pela obediência. Se buscarmos em sar sobre modo como o autor nos apresenta aquilo que nossa memória textos com esse caráter, encontraremos al- deseja contar. guns exemplos, pois, embora tenhamos nascido em outros Para promover um rico momento de aprendizagem, tempos, esse tipo de literatura ainda perdura. é preciso que professor tenha clareza da complexidade Há que se diferenciar a literatura moralista escrita envolvida numa roda de conversa, e que ele mesmo parti- para crianças dos textos de tradição oral, como contos cipe usualmente de situações semelhantes. Sabemos que tradicionais e fábulas. A partir do século XVII, OS con- muitos professores não tiveram essa oportunidade na vida tos tradicionais foram compilados e escritos por auto- e estão se experimentando leitores, ao mesmo tempo que estão no papel de formadores de leitores. Nesse sentido, res, com base em pesquisas com pessoas do povo. Esses textos eram originalmente destinados tanto aos adultos cabe muito bem a expressão "trocar pneu com carro andando". É preciso que espaços de formação na es- quanto às crianças, que se reuniam para ouvi-los. Robert cola promovam e incentivem a constituição desses pro- Darnton, historiador norte-americano especializado em fessores leitores. história da França do século XVII, afirma que OS campo- neses do Antigo Regime francês A conversa após a leitura existe na escola, mas, mui- tas vezes, ela costuma seguir contornos específicos, que se tentavam entender mundo em toda sua barulhen- relacionam com a própria história de inserção da leitura ta e movimentada confusão com materiais de no meio escolar. que dispunham. Esses materiais incluíam um vasto repertório de histórias tiradas da antiga tradição 84 Ler antes de saber ler Sexto mito 85indo-europeia. Os contadores de histórias campo- Benjamin⁶ nos lembrou que a moralidade referen- neses não achavam as histórias apenas divertidas, dada nos contos de fadas não está isenta de com- assustadoras ou funcionais. Achavam-nas "boas plicações e complexidades. Embora possamos todos para pensar". Reelaboravam-nas à sua maneira, concordar que promover o "bom humor" é uma coi- usando-as para compor um quadro da realidade e sa boa para a criança fora do livro, podemos não mostrar o que esse quadro significava para as pes- concordar necessariamente que a "astúcia" seja uma soas das camadas inferiores da ordem social. No qualidade que desejamos encorajar ao exibir suas processo, infundiam aos contos muitos significa- vantagens. Os primeiros comentadores dos contos dos cuja maioria se perdeu, porque estavam inse- de fadas não demoraram a perceber que seus en- ridos em contextos e desempenhos que não podem sinamentos morais não coincidiam necessariamente ser reconstituídos [...] Os contos franceses [...] com OS programas didáticos. mostram como é feito mundo e como se pode enfrentá-lo. (DARNTON, 2011, p. 92-93) Ler e conversar sobre que texto nos havia feito pen- sar, imaginar e sentir era melhor caminho para que aqueles Nas diferentes épocas em que foram compilados e rees- professores experimentassem variadas abordagens da litera- critos, OS contos tradicionais foram adquirindo propósitos e tura em sala. Foram inúmeras rodas de leitura, de conversas características distintos. Para citar dois exemplos conheci- e reflexões sobre as razões históricas de a literatura ainda dos: Charles Perrault (1623-1703), autor francês, pesquisa- servir como desculpa para uma lição de moral. va, registrava e contava histórias orais para a corte, visando Havia chegado o momento de Clara, uma das professo- ensinar as regras de civilidade, assunto em pauta naquela ras, realizar a roda de leitura para grupo e preparar uma época. Já OS irmãos alemães Wilhelm Grimm (1786-1859) conversa. Eu havia levado livro círculo dos mentirosos e Jacob Grimm (1785-1863) escreveram versões dos contos contos filosóficos do mundo inteiro, de Jean-Claude Carrière, tradicionais locais para serem lidos pelas famílias, visando que traz uma seleção de contos tradicionais de vários luga- à educação das crianças. res do mundo e costuma fazer muito sucesso entre leitores À medida que OS contos tradicionais foram sendo in- das mais variadas idades. Escolhido conto, Clara prepa- corporados pela literatura infantojuvenil, seu caráter edu- rou a leitura, pensou em como a apresentaria para cole- cativo e moralizante foi se consolidando. Ainda assim, gas tudo feito com o maior cuidado e envolvimento. como as fábulas, são histórias que oferecem muitas cama- A leitura foi linda! Clara leu com entonação, preo- das de leitura, para além da puramente moralizante. Se- cupando-se com a escuta dos outros, fazendo algumas gundo Tatar (2004, p. 10-11), 6 Walter Benjamin (1892-1940) foi ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu-alemão associado à Escola de Frankfurt. 86 Ler antes de saber ler Sexto mito 87paradas estratégicas, olhando para seu público, atenta esse texto me fez pensar foi como nós, muitas vezes, nos que estava à maneira como seus ouvintes relacionavam- aferramos às regras sem contestá-las, como no caso desses -se com 0 texto que lia. Ao final da leitura, a conversa. pombos da história, que, para seguirem as regras da hospi- Clara também havia planejado esse momento e deu sua talidade, acabaram morrendo. Será que às vezes não vale interpretação: conto nos mostrava quanto devería- revermos certas regras? quanto elas fazem sentido?". mos cuidar de nossas crianças na escola. Outras opiniões e exemplos retirados da própria vida sur- Já havíamos discutido muito sobre a liberdade do leitor giram e conseguimos, juntos, ampliar OS sentidos e associa- frente a um texto, e tido conversas em que muitos sentidos ções daquele texto. E superar uma abordagem reducionista. diferentes haviam sido construídos com base nas experiên- Esse relato aponta para algumas questões: a necessi- cias de vários leitores. No entanto, naquele momento, pa- dade de planejar a conversa; a importância de professor se receu que a interpretação de Clara era a única possível, e colocar como leitor que entra em contato com o texto e pen- resvalava em uma lição de moral. Por que essa aproxima- sa sobre ele, sem procurar encontrar uma verdade, uma li- ção havia prevalecido? Uma prática tão comum de acon- ção; a importância da circulação de opiniões e da construção tecer! Notei que corríamos risco de a conversa virar um de múltiplos sentidos por todos; a necessidade e ao mes- monólogo, com a professora "decifrando" texto, contan- mo tempo, condição de escuta em uma roda de conversa. O do ao grupo que "na verdade" aquele texto queria dizer. que será que outro tem a dizer? Como cada um ouviu e se É necessário que professores vivam muitas vezes a aproximou da história? A escuta deve estar sempre em pau- experiência de troca entre leitores, em especial aqueles que ta, fazer parte dos objetivos do professor. não tiveram tal oportunidade. A explicação de Clara teve o Como professor pode se colocar em relação a um tex- mesmo efeito que a fala de um professor costuma ter nas to, de maneira a propiciar uma boa troca? A dúvida é recor- crianças: todos se calaram, aceitando suas colocações como rente, o que revela quanto OS professores não vivenciaram verdade. Esse é o efeito mais sério que tal direcionamento conversas significativas e subjetivas depois de ler. Para co- da leitura literária pode causar: calar-se sobre o texto. É meçar, cada um deve se fazer muitas perguntas depois de sério porque mina que há de mais rico em relação à litera- ler um texto, expandindo suas opiniões para além dos me- tura: a construção de uma experiência, um diálogo pessoal ros "gosto ou não gosto". Alguns questionamentos podem com OS textos. ajudar o professor a planejar esse momento: Para mudar rumo da prosa, propus caminho oposto: Por que eu gosto deste texto? O que me encanta nele? "Nossa, eu pensei algo totalmente diferente; já que andamos falando sobre diferentes modos de um texto tocar seus lei- No que ele me faz pensar? tores, acho importante circular outras aproximações. que 88 Ler antes de saber ler Sexto mito 89Há algo de que ele me faz lembrar? Um fato ou história? texto que acabaram de conhecer. Por mais que a conversa tenha sido bem planejada, elemento surpresa precisa es- Algum trecho me emocionou? Por quê? tar presente: seguir rumo da prosa do grupo é importante. Será que modo como o autor escreveu o texto, esco- O professor não precisa preocupar-se em fechar a conversa, lheu as palavras, a sonoridade, me tocou? em concluí-la. Conversas sobre leituras não precisam ofere- cer respostas. Os alunos podem sair com muitas perguntas Levando em conta que conheço das crianças, qual sobre si mesmos e sobre a vida. Por que não? personagem as encantaria? Por quê? Sentiriam medo? Empolgação com determinado trecho? Poderiam se lembrar de outra história que já li para elas? Qual? Histórias que facilitam OU restringem Por que achei o texto engraçado? O que, na forma Além do planejamento da conversa, a escolha do texto como autor escreveu, torna engraçado? Há pala- pode ampliar ou reduzir OS caminhos de troca entre leito- vras inventadas? Partes absurdas? Junção de situações res. Anteriormente, apresentamos dois exemplos de rodas esquisitas, improváveis? de conversa baseadas em bons textos literários, que conse- Como essas aproximações poderiam ser compartilha- guiram superar, a partir da reflexão sobre a prática, uma das com alunos? abordagem reducionista. A qualidade literária dos textos escolhidos abre caminho Enfim, são muitas possibilidades. O professor escolhe para conversas mais ricas depois da leitura. Muito mais do alguns caminhos, dependendo do texto, da conversa que que dar respostas, OS dois textos ofereceram espaços, respiros deseja propor, considerando que é sempre interessante va- para pensar sobre a vida, sobre as pessoas, as relações entre riar modo de iniciá-la, para que algo não se fixe de modo elas, diferentes maneiras de estar no mundo possibilitando absoluto. Por exemplo, se o professor faz sempre uma as- ao leitor um diálogo que aciona suas percepções e pensamen- sociação da leitura com outras histórias, alunos acabam tos e colore a leitura com as tintas de sua experiência. achando que esse é único modo de conversar sobre que Além da conversa depois da leitura, a escola também leram, quando, na verdade, há diversas possibilidades. É pode e deve ensinar outros comportamentos leitores, como texto e a maneira como ele nos convoca que pedem uma indicações literárias de alunos e professores, por meio de ou outra abordagem. mural localizado em local acessível, no site ou blog da esco- Algo precisa sempre estar presente: contato pessoal do la, na sala de leitura ou biblioteca, na entrada da escola ou professor com o texto e uma curiosidade em relação ao que no pátio; a leitura de resenhas e de textos de opinião sobre seus alunos acharam daquela leitura, da experiência com o 90 Ler antes de saber ler Sexto mito 91OS livros oferecidos, seja como parte importante do proces- observando professores que nos servem de modelos, adul- so de escolha ou para subsidiar reflexões posteriores sobre tos à nossa volta, colegas mais velhos etc. Por isso dizemos que foi lido; produção de resenhas e textos de opinião dos que ensinar comportamentos leitores é parte inextricável do formar-se como leitor. livros preferidos pelos alunos. No entanto, ainda que surjam como conteúdos escola- res, eles não podem ser vistos como fins, mas como meios Comportamento leitor é mito? que garantem a experiência da leitura. Nesse sentido, con- cordamos com Teresa Colomer (2007, p. 38), quando ela diz: Considerar que a leitura vai além da aquisição de certas É necessário partir da ideia de que "saber como habilidades de decodificação trouxe novos aspectos a serem se faz". Ou seja, como se estrutura uma obra ou apreciados e aprendidos pelos leitores durante sua forma- como se lê um texto, não é um objetivo prioritário ção. A ideia de que não lemos todos OS textos da mesma ma- em si mesmo, senão um meio para participar mais neira e de que desenvolvemos diferentes ações frente a eles e plenamente de experiência literária, um instrumento aos objetivos que temos em relação às leituras nos impõe ou- a serviço da construção do sentido e da interpretação tras tramas a serem consideradas quando estamos formando pessoal das leituras. OS nossos alunos como leitores. Para encerrar e contextualizar um pouco melhor que Ler e ser leitor não significa somente ser alfabetizado, afirmamos quando receamos que OS tais comportamentos mas saber diferenciar OS textos e suas funções. Ler impli- leitores, quando não encarnados, podem virar novos mitos, ca atribuir sentidos, pensar sobre aquilo que lemos a partir ou algo que fazemos, mas não entendemos muito bem por de nossa própria experiência, como já falamos tantas vezes que, repetindo, simplesmente, a missa, trazemos um relato por aqui. Ler e ser leitor significa tomar um livro em mãos de uma experiência de formação. e saber reconhecer as informações que ele traz: localizar in- formações sobre o autor, índice, os títulos do capítulo, o ilustrador. Ler e ser leitor significa saber o que dizer sobre uma leitura, conversar, trocar informações e impressões so- bre que lemos, ouvir sugestões e sugerir, saber encontrar um livro numa biblioteca ou livraria. Podemos, portanto, exercer muitas dessas ações, ou comportamentos leitores, muito antes de sabermos decodificar um texto, porque po- demos aprender todos esses comportamentos, por exemplo, Sexto mito 93 92 Ler antes de saber lerDIÁRIO DE FORMAÇÃO que faz uma pergunta ser boa? Formador: Ana Carolina Grupo de professores de escola de educação infantil. Município da Grande São Paulo, 2013. leitor: em permanente construção Temos analisado algumas rodas de leitura com foco na Formador: Ana Carolina Grupo de professores de uma escola de educação infantil. conversa entre as crianças e OS professores. Ontem, senti Município da Grande São Paulo, 2013. que todos saíram felizes e cheios de questões sobre as ma- neiras de conduzir conversas após a leitura, e como pode- Em um grupo de formação, abordei várias vezes com mos elaborar boas perguntas para as crianças. as professoras tema do que fazer depois de ler uma histó- A conversa que analisamos coletivamente nos permitiu ria com as crianças. considerar em que lugar a professora, ao realizar diferentes Conversamos muitas vezes sobre casamento que en- tipos de perguntas, colocava seus alunos e como entendia contramos na escola entre literatura e moral. Por que caía- papel do leitor. A história escolhida O Grúfalo, de Ju- mos tão facilmente na armadilha de usar a literatura para lia Donaldson e Axel Scheffler (1999) fez maior suces- lições de moral? Em uma de nossas conversas, uma das so entre as crianças e permitiu intensa aproximação com professoras disse: "Porque essa foi a aproximação que tive- mundo infantil, ao tratar de temas como medo, monstros, mos com a literatura na escola, isso está muito marcado na as artimanhas do pequeno em relação ao grande, a relação gente e na hora da conversa é muito difícil fazer diferente, com o fantástico. propor outra discussão para as crianças, pensar texto de Algumas perguntas formuladas qual seu sentido? outro modo, diferente da lição de moral". O ratinho fez certo ao enganar 0 Grúfalo? Nesses encontros de formação, procurávamos en- É certo enganar as pessoas? tender ao que respondia a necessidade de moralizar as Que outra coisa ratinho poderia ter feito? crianças via literatura, quais eram as origens da união Vocês se lembram de outras histórias com monstros? entre literatura e moral e para que ela servia. Além Eles eram parecidos com Grúfalo? Em quê? de procurar compreender esse contexto, também líamos Eram diferentes? Como? muito, sempre propondo outras formas de aproximação com texto. Percebemos que, nas primeiras perguntas, a professo- ra se ateve ao modo tradicional de a escola pensar o leitor: como aquele que dá as respostas "corretas", de acordo com 94 Ler antes de saber ler Sexto mito 95conteúdo da história, bem ao modo antigo da "interpre- medo de bichos muito menores do que a gente. Eu, tação de texto". por exemplo, tenho medo de barata! Na medida em que a leitura do registro da roda evoluía, Lembrei-me de outras histórias que lemos e que falam observamos que a professora passou a realizar perguntas mais de personagens pequenos e mais espertos do que os pessoais, que procuravam ouvir a opinião das crianças e que grandes. Por que será que isso é comum nas histórias? as levavam a estabelecer relações com monstros de outras histórias. Analisar cada pergunta e refletir sobre o lugar em que a criança era colocada como leitora ativa ou não nos Comportamento leitor é antes de tudo ação ajudou muito no trabalho de tematizar a prática. (depois é que virou teoria) Saímos com uma boa estratégia para planejamen- Formador: Ana Carolina to da próxima roda de conversa: não apenas elaborar Formação de professores da educação infantil. perguntas, mas refletir sobre que respostas a pergunta São Paulo, 2012. permite. Será que ela promove o pensar sobre que o lei- tor sentiu, traz à tona as associações que estabeleceu com Depois de ler para o grupo de professores, fiz uma re- aquela leitura? tomada sobre meu planejamento dos três momentos da A análise de outras rodas de leitura e a discussão so- roda: o antes, durante e depois da leitura. Procurei bre o texto "A arte de conversar com as crianças sobre suas evidenciar como eu havia formulado as intervenções, des- leituras", de Ana Garralón (2012), ajudaram em nossas re- tacando a abordagem dos comportamentos leitores. flexões. Em conjunto, pudemos pensar em algumas possibi- Durante os comentários do grupo, percebi que os pro- lidades para encaminhar a conversa depois da leitura de O fessores, assim como tantos e tantos por aí, sabiam rezar Grúfalo. Por que não falar sobre medo? Por que não falar a missa direitinho, ou seja, falavam e refalavam, de trás sobre a diferença de tamanhos ratinho, tão pequeno, e para a frente, os tais comportamentos leitores, quais são e o Grúfalo, tão grande e assustador? Eis algumas perguntas por que é importante que sejam praticados. sugeridas pelo grupo de professores: No entanto, na atividade seguinte, quando pedi que planejassem uma roda de leitura, atentando para os com- O ratinho era tão pequenino, tão frágil. Por que será portamentos leitores, as intervenções trazidas estavam re- que ele não tinha medo dos outros animais nem do duzidas a antecipações muito simples sobre texto: nome Grúfalo, que era tão monstruoso? do autor, ilustrador, editora. Depois da leitura, o mais co- E Grúfalo, então, com medo do ratinho? Quando mum eram perguntas sobre se haviam gostado ou não. estava lendo, lembrei-me de que nós também temos Tudo isso diz respeito aos comportamentos leitores, mas o 96 Ler antes de saber ler Sexto mito 97planejamento poderia trazer mais elementos para as con- SÉTIMO MITO versas, aprofundando sentidos e aproximações. A dificuldade de planejar intervenções mais elaboradas Na escola quém escolhe a leitura é professor para momento da leitura mora no mesmo lugar da difi- culdade de planejar conversas. São vizinhas geminadas! Se 0 professor não lê com frequência, tais comportamentos acabam ficando externos, aprendidos como teoria, mas não encarnados como ação, que é que eles são de verdade. Comportamento leitor não é que devemos fazer com as crianças, porque está escrito no livro, virou teoria é Naquele dia descobri que há caminhos entre os que fazemos quando lemos. livros e que, entre os caminhos, há sempre um caminho pessoal para transitar nesse bosque. María Teresa Andruetto É muito frequente conversarmos com professores que se sentem inteiramente responsáveis pela escolha da lei- tura literária, seja porque se colocam nessa posição ou porque a instituição em que trabalham assim exige. Por isso, é comum que já tenham uma lista de livros que com- partilham com os alunos, ano após ano. É evidente que muitas escolhas de leituras literárias serão inevitavelmen- te feitas pelo professor, uma vez que sua função é ensinar e apresentar conhecimento já construído pela humani- dade no nosso caso, conhecimento literário: obras e autores consagrados, reconhecidos pela crítica ao longo da história. Mas e a produção literária contemporânea? Ela deve ser deixada de lado? Mais uma pergunta importante: será que apenas professor é responsável pelas escolhas dos títulos literá- 98 Ler antes de saber ler Sétimo mito 99

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