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REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL 42 GÊNERO E EDUCAÇÃO SEXUALIDADE, Desafios éticos em tempos de recrudescimento fundamentalista. EM JUNHO DE 2015, A MAIORIA DOS 5.570 MUNICÍPIOS BRASILEIROS APROVOU SEUS PLANOS MUNICIPAIS DE EDUCA҃�ܮ��Ґ���ґ���� ����� ���!�,���!�(�"҃ $�������������������� ��� &���ܮ��Ґ���ґĺ O processo de construção dos planos inclui diversas etapas, desde a formação de comissões de trabalho para elaboração de um diagnóstico local até a cons- trução de uma lei por meio das casas legislativas, a qual é sancionada pelo poder executivo. Convém apontar que os documentos de abrangência mu- nicipal precisam estar alinhados às políticas de educação dos respectivos Estados e, certamente, aos parâmetros curriculares nacionais. Ocorre que nesse ano, os planos municipais de educação foram alvos de pressão política exer- cida por setores conservadores e fundamentalistas da sociedade civil. Líderes religiosos, políticos das bancadas cristãs e seus pares defensores do fun- damentalismo, corrente conservadora que enfatiza a interpretação literal da Bíblia para princípios básicos e obediência; pressionaram as comissões de trabalho a excluírem o termo “gênero” dos pla- nos de educação, justificando serem contra uma “ideologia de gênero”, como assim nomearam. Na realidade, um contrassenso semântico e discursivo, a ser explicado adiante. As propostas substitutivas que extraíram a palavra gênero dos planos de diversas cidades rompem com anos de pesquisas acadêmicas (ORTO- LANO, 2015) no campo da Psicologia, da Sociologia, da Antropologia, da História, do Direito, entre outras áreas. Mostram-se desalinhadas às diversas rei- vindicações de movimentos sociais por igualdade de direitos que despontaram no mundo ocidental desde a década de 1960 e 1970. Além disso, estão desconexas a outros documentos já elaborados para desenvolvimento da educação no país, como os Parâmetros Curriculares Nacionais. As discussões apressadas realizadas na atua- lidade desconsideram também debates que têm sido organizados desde 2009 a partir de conferências com as comunidades escolares, gestores públicos da educação e representantes da sociedade civil, uma vez que as demandas por tratar gênero e diversi- dade sexual emanaram de sua base (ORTOLANO, 2015). Ou seja, não haveria termo mais próprio para designar tal pressão religiosa como um golpe. Golpe pela manutenção de uma verdade dogmática for- jada e justificada em falso testemunho e direito à liberdade de expressão. Cabe mencionar que essa pressão dogmática não tem se limitado à esfera da educação. Ela inse- re-se num tempo de recrudescimento fundamenta- lista que já vem mostrando seu impacto em diver- sos campos. Em 2011, quando o Ministério da Edu- cação lançou o “Programa Escola Sem Homofobia”, o deputado federal Jair Messias Bolsonaro e a ban- cada evangélica pressionaram a presidenta Dilma Rousseff contra o material apelidado de “Kit Gay”, o qual foi vetado. Na Jornada Mundial da Juventude, ocorrida em 2013, representantes da Igreja Católica reforçaram o reducionismo histórico da instituição ao tratar sexualidade e gênero apenas na dimensão REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL 43 “Não é novidade que o cristianismo é a corrente religiosa hegemônica no Brasil desde o genocídio indígena, perpassan- do por toda a história nacional.” da reprodução, distribuindo, aproximadamente, 70 mil manuais por meio dos quais traziam reflexões morais sobre os temas. No mesmo ano, o polêmico pastor Silas Malafaia, apresentador de programa te- levisivo em canal aberto, concedeu uma entrevista em rede nacional, opondo-se à homossexualidade. Incoerente, defende o criacionismo, teologia basea- da no Gênesis bíblico, ideia em que o mundo é cria- do por Deus, mas tenta sustentar seus argumentos na ciência, buscando ludibriar os telespectadores num jogo de palavras e conceitos soltos da Biologia e da Psicologia. Ainda em 2013, o deputado e pastor Marco Feliciano, que ganhou notoriedade nacional por conta de suas declarações homofóbicas e racis- tas, foi eleito para Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). E em 2015, concomitantemente aos PME, tem tramitado no Congresso Nacional um Es- tatuto da Família apresentado pela bancada evan- gélica, o qual define família como a união entre um homem e uma mulher, ignorando os múltiplos arranjos familiares existentes no Brasil. Esse breve panorama, mesmo pouco defla- grador de todas as realidades, serve de base para análise de uma conjuntura em que o fundamen- talismo religioso infiltra no Estado, que deveria ser laico. E tal fundamentalismo é amparado por diversas igrejas, pela mídia e outras instituições da sociedade civil. Não é novidade que o cristianismo é a cor- rente religiosa hegemônica no Brasil desde o geno- cídio indígena, perpassando por toda história nacio- nal. A sociedade brasileira foi colonizada por meio do binômio ibero-cristão. Assim, é compreensível o fácil compartilhamento de seus dogmas, pois eles se apropriam de um imaginário de crenças coletivas cristalizadas. Sob o plano simbólico, as concepções de vida humana e sexualidade são cooptadas e es- sencializadas na cultura. Convém mencionar que apesar do cenário das correntes religiosas ter mudado no Brasil des- de o final do século XIX, como mostra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), os brasileiros ainda são influenciados por culturas colonizadoras, compondo uma nação majoritaria- mente cristã, monoteísta, influenciada por doutri- nas judaico-cristãs. De 2000 a 2010, aponta o IBGE, nota-se um aumento significativo da população brasileira que se declara evangélica, saltando de 15% para 22% do total dos respondentes. Já os declaran- tes pertencentes à religião Católica caíram de 73% para 64%. Contudo, se somarmos católicos, evangé- licos e religiões assimilacionistas, ou seja, que se aproximam ou trazem elementos do cristianismo, chega-se a quase 90% da população. Isso quer dizer que, certamente, a Bíblia, ain- da que desconhecida por muitos, representa para boa parte da população uma verdade sobre a his- tória, sobre a vida, sobre o mundo e sobre si. Logo, representa um instrumento-chave na disputa por dar significado à sexualidade, ao sexo e ao gênero. Diante disso, o problema se dá no âmbito do mul- ticulturalismo quando outras formas de conceber todos esses temas são silenciadas e marginalizadas frente à tal hegemonia cristã, a qual se apresenta como natural e que, de fato, não é. Autores como Foucault (1988[1976]) em A história da sexualidade I – a vontade de saber, Laqueur (2001) em Inventando o sexo – corpo e gênero dos gregos a Freud e Louro (2008) em Um corpo estranho – ensaios sobre a sexualidade e a teoria queer, dentre outros pesquisadores, têm nos mostrado como a experiência e a concepção da sexualidade e do corpo humano associam-se à história, ao tempo e às suas discursividades. Seus estudos, somados aos de outros inúmeros acadê- micos, apontam a incoerência semântica e discur- siva daqueles que, ao defenderem a exclusão da palavra gênero nos PME, se posicionam contra a “ideologia de gênero”. Sem aprofundar a definição de ideologia e aceitando que ela representa a maneira de pen- sar que caracteriza um indivíduo ou um grupo de pessoas, não existe uma única ideologia de gênero própria dos movimentos feministas e LGBT (Lés- DEBATE 44 “Assim, mesmo que tenhamos algumas referências para pensar, nomear e compreender a sexualidade e o gênero como o desenvolvimento psicossexual construído pela psicanálise, a normatização não é uma regra.” bicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), como querem apresentar os fundamentalistas. Em cada tempo e local histórico há um conjunto de ideologias possíveis nas culturas que compreendem.Os fundamentalistas, ao posicionarem-se contra as discussões acerca de gênero e sexualidade, também exercem suas ideologias, infundadas na ciência. Daí a incoerência semântica de seus discursos, pois a defesa de um sentido único e universal para gêne- ro e sexualidade é ideológica. Foucault (1988[1976]) revela como, sobretudo no século XIX, o sexo foi colocado em discurso, estabelecendo relações, não necessariamente explí- citas, de poder. Para ele, a sociedade que produz os discursos como verdades sobre a sexualidade, faz deles dispositivos do conhecimento e mecanismos institucionais de poder. E assim institui-se a opres- são por meio das confissões religiosas, das consul- tas médicas e da ação policial do Estado, quando este criminaliza algumas práticas. Esses dispositi- vos, que define o autor, estão presentes nas ações do legislativo, nos julgamentos do Judiciário, na mí- dia, na família, na ciência e, finalmente, na escola. Laqueur (2001) mostra que por milhares de anos acreditou-se numa explicação metafísica em que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens, invertida, pois lhes faltara o calor vital. Foi no início do século XIX, segundo o autor, que es- critores preocuparam-se em atribuir as diferenças fundamentais entre homens e mulheres. Contudo, essa compreensão das diferenças ocorreu, segundo ele, somente porque se tornou politicamente impor- tante, quando a emergência do capitalismo deman- dava a diferenciação dos gêneros para o trabalho. E o modo de produção operante na sociedade atual ainda prevê uma distinção hierárquica dos gêneros, imputando ao feminino a vida doméstica e ao mas- culino a vida pública, salvas algumas concessões. E o fundamentalismo essencializa essa distinção. Logo, é a um dos argumentos que sustenta o siste- ma produtivo vigente. Louro (2008) fala de uma política pós-identitá- ria, em que se reconheçam as fronteiras que mar- cam as expressões e performatividades dos sujeitos, não fixas e sim fluidas. Para ela, não basta apenas assumir as múltiplas posições, mas entender que essas fronteiras são atravessadas pelos indivíduos. Assim, mesmo que tenhamos algumas referências para pensar, nomear e compreender a sexualida- de e o gênero como o desenvolvimento psicosse- xual construído pela psicanálise, a normatização não é uma regra. Posso isso, observa-se que entre os entendi- mentos fundamentalistas e criacionistas do sexo, gênero e sexualidade e as concepções científicas, baseadas nas ciências sociais, há um desafio ético para as escolas, pois diante de múltiplos embates semânticos e morais operantes na sociedade brasi- DEBATE 45 “Desde o paradigma greco-romano argumentava-se sobre o corpo, o sexo, os papéis dos indivíduos. No judaico-cristão, idem. Criaram-se normas, padrões de condutas e modelos de sujeitos.” leira, cumpre promover a busca pela ética, enquan- to máxima do multiculturalismo, que pressupõe a coexistência de várias culturas num mesmo territó- rio considerando o bem-estar comum. Ao que parece, o princípio da reciprocidade e o cooperativismo, dispostos no quadro conceitual e político dos direitos humanos e das políticas pú- blicas, é uma estratégia discursiva em que concilia ambas as correntes compreensivas e pode ser tra- balhado nas instituições de ensino. E a sexualidade, como dimensão qualitativa da orientação sexual, um dos temas transversais dos parâmetros curri- culares, pode ser abordada junto aos debates sobre direitos humanos e políticas públicas, considerando que tais temas se complementam na leitura da rea- lidade, dos sujeitos e do mundo. Desde o paradigma greco-romano argumen- tava-se sobre o corpo, o sexo, os papeis dos indiví- duos. No judaico-cristão, idem. Criaram-se normas, padrões de condutas e modelos de sujeitos. Não di- ferente, o paradigma moderno, respaldado por sua lógica científica, também produz conceitos sobre a sexualidade, sobre o gênero e, finalmente, acerca dos direitos humanos (ORTOLANO, 2014). Assim, cabe à escola problematizar tais concepções tomando como ponto de partida as trajetórias de vida dos sujeitos, a história em comunicação com as práticas e significados do presente, bem como as novas legitimidades, de modo a refletir sobre os anseios que emanam da sociedade contemporânea. Compete à escola abor- dar, não apenas em disciplinas isoladas, a história e as transformações demográficas vividas pelas sociedades humanas. E qualquer fundamentalismo contrapõe-se à educação crítica e reflexiva, à cida- dania e à práxis cotidiana. Tal como a sexualidade, a compreensão dos direitos humanos está associada ao contexto polí- tico e social, sendo fruto de seu tempo e circuns- tâncias (ORTOLANO, 2014). Dessa forma, alinham-se à sua perspectiva histórica autores como Bobbio (2004) e Fraser (2007), os quais acreditam nos di- reitos humanos como uma construção e artefato humano que demandam constante transformação de acordo com as necessidades da convivência humana. Fraser (2007) pondera que o reconheci- mento é uma questão de status social, no sentido de paridade participativa. E as novas legitimidades carecem da igualdade de participação. Silva (2011), ao tratar de políticas públicas, educação para os direitos humanos e diversida- de sexual, aponta que para as políticas serem de Estado e não apenas de governo, deve ocorrer a participação política. Para tanto, o autor defende DEBATE 46 “Assim, a suposta licença para tratar gênero nas escolas alçada por setores fundamentalistas por meio dos planos municipais de educação não existe, tam- pouco é legitima.” que é preciso considerar o reconhecimento do ou- tro em conjunturas complexas e a incorporação de diversos atores, ponderando a inclusão e não a as- similação, valorizando a diferença, ou seja, as novas legitimidades. Nesse sentido, a escola não pode ser um es- paço de silenciamento, em que se nega o direito à palavra e apenas reforce concepções hegemônicas. É imperativo que as instituições de ensino reconhe- çam as minorias políticas, seu status social e que, ao articularem distintos posicionamentos nos seus debates, materiais didáticos e reuniões pedagógi- cas, incorporem diversos atores da sociedade civil. A escola, enquanto espaço de aprendizado para a cidadania, é responsável por romper a ausência de paridade participativa, pois todos têm o direito de participar em iguais condições. E para tanto, não há como não falar da história dos vencidos, quando apenas são reforçadas as memórias dos vencedo- res. A escola, frente aos riscos e às vulnerabilidades sociais, precisa dar voz aos portadores dos signos de fragilidade, mulheres, homossexuais, deficientes físicos e intelectuais, negros, índios, praticantes de religiões não cristãs, ateus e outras minorias. Uma vez que todos os posicionamentos são considerados numa gestão democrática, não há razão para autorização de ideias. Assim, a supos- ta licença para tratar gênero nas escolas alçada por setores fundamentalistas por meio dos planos municipais de educação não existe, tampouco é le- gitima. A Constituição Federal estabelece no artigo 206 que o ensino será ministrado pelo princípio da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, bem como pelo princípio do “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”. Em outras palavras, nenhum conheci- mento é único e absoluto. Todos os conhecimentos, entendidos como construção social coletiva, são passíveis de serem compartilhados, desde que não incitem o ódio, o desrespeito e o fascismo, o que faz o fundamentalismo. O construcionismo parece ser uma aborda- gem ética a ser trabalhada nas escolas, relacio- nando a complexidade que envolve temas como sexualidade, gênero e educação, uma vez que fun- damenta sua teoria naprática e nas construções sociais. Segundo Vence (1995[1991]), o construcionis- mo como campo teórico é reivindicado por diversas disciplinas científicas, dentre elas a Antropologia, e tem base em várias correntes da Sociologia. Na dimensão do sexo, aponta ela, o construcionismo pretende alcançar uma revisão crítica da relação entre reprodução, gênero e sexualidade, contra- pondo-se ao essencialismo da sexologia, de caráter universalista e ligado às ciências naturais. Consi- derando os constructos sociais, o construcionismo, junto aos debates no campo dos direitos humanos e da sexualidade, abarca múltiplas concepções que emergiram ao logo da história sem a imposição de verdades dogmáticas. Por fim, pondera-se que os planos de educa- ção e as escolas devem assumir um compromisso ético ao se organizarem orientados pela demo- cracia e pelo multiculturalismo. Para tanto, é ne- cessário romper com alguns propósitos narrativos apontados por Silva e Ortolano (2015), a saber: a legitimação exclusiva de ideologias sexuais mo- ralmente aceitas, ou seja, a instituição de padrões de orientação do desejo e identidade de gênero; a exclusão de sexualidades não heteronormativas como, por exemplo, aquelas que não se enquadram no modelo heterossexual monogâmico, formado por um homem e uma mulher; e a forjada inexistência da homofobia – tal como do machismo e da misogi- nia – justificada pelo uso do direito à liberdade de expressão. * Fabio Ortolano é doutorando em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e graduando em Psicologia pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Mes- tre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Hu- manidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e bacharel em Turismo pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É professor na área de turismo e hospitalidade no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial de São Paulo (SENAC SP) e tem in- teresse em temas como: movimentos sociais, multiculturalismo, participação política, sexualidade, identidade de gênero, direitos humanos e processos intersubjetivos. DEBATE 47