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C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r ít ic a d e P sic o l o g ia E s c o l a r : C o n t r ib u iç õ e s d a P e d a g o g ia H is t ó r ic o -C r ít ic a e d a P s ic o l o g ia S o c io H is t ó r ic a Marisa Eugênia MeliUo Meiru O objetivo principal deste texto é o de delimitar algumas das condi ções que consideramos necessárias a um posicionamento afirmativo em relação à construção do pensamento crítico no campo da reflexão sobre- as relações e interfaces possíveis enitre a Psicologia e a Educação. A análise do movimento de crítica em relação à Psicologia Es colar, que se intensificou a partir da década de 1980, nos coloca um alerta muito importante: a intenção de buscar a construção de uma Psicologia mais comprometida com a finalidade de transformação por si só não é suficiente. Uma análise mais detida da produção teórica da área indica cla ramente que o discurso da crítica muitas vezes não passa de uma adesão, sem maiores significados e conseqüências, a uma tendência que tem sido considerada como atual ou mesmo “moderna”. É muito importante estarmos atentos para não incorrermos no erro de simplesmente adotarmos o discurso da transformação sem alcançarmos a consistência teórica e filosófica necessária para concretizá-la. Esta é uma reflexão que exige, antes de mais nada, uma radicalidade na explicitação das raízes de nossos pressupostos e com promissos sociais. É exatamente esta tarefa a que estamos nos pro pondo neste texto. M a r is a E u g ê n ia M kixilo M e ir a I )¡ul;i ¡i complexidade desle objetivo e as múltiplas possibilida des de análise que se apresentam, delimitamos quatro questões que consideramos imprescindíveis: A clareza sobre o significado do pensamento crítico e a compreensão de suas expressões na produção das áreas de Educação e Psicologia; • A delimitação e a apropriação, pelo conjunto dos psicólogos escolares, dos elementos teórico-críticos já desenvolvidos; • A compreensão das finalidades, da função social e do objeto de estudo e da atuação da Psicologia Escolar; O enfrentamento do desafio de se formar psicólogos competentes e eticamente comprometidos com processos de humanização. 1. O PENSAMENTO CRÍTICO E SUAS EXPRESSÕES NO CAMPO d a E d u c a ç ã o e d a P sic o l o g ía Considerando que esta reflexão deve necessariamente respaldar se em bases teóricas e filosóficas sólidas, partiremos de urna breve retomada de algumas questões, apresentadas em trabalhos anteriores (Ragonesi, 1997; Meira, 2000), procurando evidenciar tanto a necessi dade quanto alguns dos principais fundamentos do pensamento crítico. A análise da realidade capitalista contemporânea coloca-nos di ante da ampliação dos níveis de miserabilidade que devastam nações inteiras do chamado terceiro mundo e que também começam a amea çar setores das populações dos países desenvolvidos; do aumento cres cente e generalizado do desemprego e subemprego; da destruição do meio ambiente; das guerras e conflitos étnicos; do recrudesci mento do racismo e da discriminação; da regressão na distribuição de renda e a conseqüente marginalização das camadas majoritárias da população. A concentração do poder tecnológico e militar, das riquezas e do capital financeiro vem aumentando cada vez mais a distância social entre a minoria que os detêm e a maioria da humanidade, coni- pondo-se um cenário que combina, por um lado, a mais alta modernidade tecnológica e, por outro, a mais profunda devastação social. Não há como negar que vivemos em um mundo no qual absolu tamente tudo, inclusive os direitos à educação e a própria vida em um sentido mais amplo, são entregues sem nenhuma cerimônia ao espírito mercantilista do capital. Diante da evidência de que as forças do mercado não têm como resolver o mal-estar estrutural do capitalismo, faz-se necessária uma firme contraposição ao conformismo, à resignação, ao encantamen to com os valores do mercado e à intoxicação ideológica provocada pelas teses neoliberais, as quais, como aponta Fernandes (1995 ), cum prem a função de escamotear a produção de lucro e pobreza em escala geométrica, buscando dar uma aparência de sentido ao pro cesso de devastação da classe trabalhadora. Nesse contexto, a reflexão crítica impõe-se como necessida de imperiosa para toda a sociedade e, muito mais particularmen te, para aqueles que têm a educação como seu espaço de atua ção profissional. Contrariando as tendências hegemônicas, consideramos que é pos sível empreender a tarefa da crítica neste momento histórico. Isto não significa que esta empreitada seja fácil ou tranqüila. Ao contrário, atu almente é preciso um grande esforço para impedir que as visões pro gressistas sejam diluídas pela onda conservadora que varre o mundo, e a reflexão teórico-crítica tem um papel privilegiado neste processo. O conceito de crítica pode assumir múltiplos sentidos em função das orientações teórico-filosóficas adotadas. Neste trabalho, toma remos como referência principal parte do conjunto de formulações filosóficas, sociais, econômicas e políticas desenvolvidas por Karl Marx e de algumas obras de autores que, de alguma forma, se fun damentaram nessa mesma fonte. A partir desse referencial propomos que um pensamento que se pretende crítico deve contemplar, pelo menos, os seguintes elemen tos principais: C o n s t r u in d o i j m a c o n c e i ç ã o c r í t i c a d e P s ic o l o g ía E s c o l a r . . . I S M a r is a E u c í n i a M r:i i i l o M u ir a • Reflexão e método que apreendam o movimento das contradições dos fenômenos como fatos sociais concretos, sínteses dc múltiplas determinações e que como realidades históricas podem constituir-se em objeto da ação humana transformadora; • (Yíl ica tio conheciníento que possa apontar para o caráter ideológico da ciência. A compreensão de que as idéias são produtos situados cm relações sociais que se desenvolvem históricamente e que, portanto, todo o processo de produção científica é determinado por compromissos bem definidos é condição fundamental para que possamos desvelar estruturas subjacentes à historicidadedo real, indo à raiz do conhecimento e localizando a perspectiva de classe que o construiu (Forachi e Martins, 1983). Desta forma, como aponta Marx (1989), podemos ultrapassar a mera compreensão das aparências e pelo pensamento teórico apreender a essência dos múltiplos fenômenos que se constituem na realidade social; • Denúncia da degradação, da alienação e da heteronomia humana nas condições postas pelo capitalismo. Na sociedade contemporânea há muitas maneiras pelas quais o indivíduo aliena-se de si mesmo e dos produtos de sua atividade e todas elas expressam a mesma coisa: a clivagem entre o homem e sua humanidade. Uma teoria crítica deve necessariamente desvendar o caráter alienado deste mundo em que as coisas se movem como pessoas e as pessoas são dominadas pelas coisas que elas próprias criaram (Marx, 1962) e, ao mesmo tempo, constituir-se em um caminho possível para a defesa radical da dignidade da vida, da justiça, da igualdade e da liberdade para todos os homens; • Possibilidade de ser utilizado como instrumento no processo dc transformação social, já que, além de desvelar a realidade, permite apontar as possibilidades de transcendência. Na tese XI, sobre Feuerbach, Marx (1987) forneceu os elementos necessários para pensarmos a conexão histórica entre a filosofia e a ação. Nessa direção de reflexão. C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s i c o u x a a E s c o l a r . . . Vázquez (1977) evidenciou que é preciso ter claro que a teoria em si não transforma o mundo, mas só pode contribuir para transformá-lo exatamente como teoria. Poderíamos dizer, em síntese, que uma concepção ou teoriaé crítica à medida que transforma o imediato em mediato; nega as aparências ideológicas; apreende a totalidade do concreto em suas múltiplas determinações e compreende a sociedade como um movimento de vir-a-ser. Com base nesse conceito, sustentamos que um caminho possí vel para uma fundamentação mais consistente de uma nova pers pectiva de Psicologia Escolar pode ser buscado no recurso a con cepções críticas de Educação e Psicologia. Partimos do pressuposto de que o recurso à Filosofia da Educa ção é indispensável ao psicólogo escolar, já que este só poderá defi nir com clareza seu papel profissional a partir de uma reflexão rigo rosa sobre a função da escola e, fundamentalmente, dos elementos que facilitam e dificultam seu pleno exercício. Encontramos na pedagogia histórico-crítica1 os elementos ne cessários à compreensão de três proposições fundamentais: a rela ção entre educação e sociedade deve ser pensada no interior do processo de produção e reprodução do capital; a educação é socialmente determinada de forma dialética e contraditória; a educação escolar constitui-se em uma instância fundamental para a socialização do conhecimento historicamente acumulado. Conforme aponta Oliveira (1995), a concepção histórico-crítica permite-nos analisar a educação como uma atividade mediadora que se insere de forma contraditória na organização social, o que torna 1 A expressão pedagogia histórico-crítica foi cunhada por Dermeval Saviani. Este autor divide as teorias educacionais em três grandes grupos: liberal, crítico-reprodutivista e histórico-crítica. Enquanto a concepção liberal advogou a autonomia da educação em relação à sociedade e a colocou como um elemento de correção das distorções sociais (Saviani, 1982) e os crítico-reprodutivistas denunciaram-na como um instrumento de reprodução dessa sociedade (Saviani, 1982), a concepção histórico-crítica supera a articulação mecanicista entre educação e sociedade, defendendo a possibilidade de, ao analisar essa re lação com o essencia lm ente d ia lé tica e con trad itó ria , pensar em transformações no quadro educacional e social. (Saviani, 1984, 1991, 1992) Mahiua I'.uoénia Mi i mío Mhha possível colocar como mela não imediata da educação a transforma- ção social, oti soja, uma niela mediatizada pela ação educativa sobre a consciência dos sujeilos. À medida que a concepção histórico-crítica expressa uma ten- tativa de compreensão da totalidade dos fenômenos educacionais ela não pode ser simplesmente somada ou justaposta às proposições teóricas tradicionais de Psicologia. Falar de educação e cidadania é falar de um novo compromisso da Psicologia. Em consonância com Goldman (1977) e Shuare (1990), acredi tamos que o ponto de partida para a construção dessa nova forma de pensar a Psicologia deve ser a busca de bases filosóficas sólidas. Conforme aponta Sève (1977), à medida que a Psicologia tem neces sariamente que se interrogar sobre o que é o homem, acaba se colocando um problema que só |xxle ser resolvido com o suporte de outras áreas do conhecimento, em especial das correntes histórico-críticas da Filosofia. Emlx)ra sob influência do ideário positivista a Psicologia tenha histori camente buscado uma espécie de liberação de toda ingerência filosófica, é preciso ter clan) que toda e qualquer teoria é produzida a partir de uma determinada concepção de mundo e um certo enfoque filosófico. Não é suficiente, entretanto, nos remetermos aos grandes te mas tratados pela Filosofia apenas tomando-lhes emprestados cer tos conceitos. É fundamental a realização de um esforço teórico no sentido de nos apropriarmos desses conhecimentos, não para usá-los como verdades acabadas, mas para ampliar nosso processo de re flexão e construção de novas perspectivas. Encontramos em Marx 2 as primeiras referências para compre endermos o homem como ser social que se constrói nas e pelas condições sociais e que, portanto, não pode ser tomado como um ser-em-si, já que necessita entrar em relação com a natureza e com outros homens para que suas necessidades sejam atendidas. E importante ressaltai- que, na perspectiva marxista, o processo de determinação social do homem não pode ser apreendido de forma 2 Ver em especial o prefácio e 1“ capítulo do Capital (Marx, 1983) e 3o Manuscrito Filosófico (Marx, 1982). C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s ic o l o g ia E s c o l a r . . . 19 mecânica. Embora defendesse que a estrutura e as relações econômi cas determinam e condicionam a existência e as formas do Estado e da consciência social, em momento algum elas foram enfocadas isola damente. Deste modo, ainda que a instância econômica consiitua-se 11a base da vida social dos homens, ela rião pode ser compreendida sem a referência a todas as demais instâncias da superestrutura. Buscando trazer as questões postas pela filosofia marxista para nos so próprio terreno, defendemos que uma perspectiva crítica de Psicologia deve dar conta de esclarecer pelo menos duas questões: a relação entre indivíduo e sociedade e o papel possível do homem no processo histórico. Consideramos que a Psicologia já dispõe de elementos teórico- críticos importantes que nos permitem pensar dialeticamente a inser ção do sujeito no contexto histórico. Essa concepção crítica traz a compreensão de que a relação entre o homem e a sociedade é de mediação recíproca, o que significa que os fenômenos psi cológicos só podem ser devidamente compreendidos em seu caráter fundamentalmente histórico e social. Assim, é possível compreender que os homens não se consti tuem nem como criadores da realidade, nem como reflexos passi vos da infraestrutura, meros suportes das relações sociais. Exata mente por isso é possível a afirmação de um sujeito consciente que pode ter um papel ativo no processo histórico. As ten dências objetivas que se apresentam no curso da história por si mesmas não são capazes de provocar transformações, motivo pelo qual necessitam da ação humana. É preciso considerar a possibilidade de pensar o papel fundamen tal do homem na construção da história, e ao mesmo tempo, compre ender o quanto a sociedade impede das mais diferentes formas a emer gência e o desenvolvimento de processos de humanização.3 As dificul dades que se colocam no sentido do indivíduo fazer as rupturas ideológi cas para que se tome de fato humano não invalidam a necessidade da 3 Consideramos que é fundamental estarmos atentos para o gradativo desaparecimento das forças críticas na sociedade capitalista avançada apontado pelos teóricos da Escola de Frankfurt. A este respeito pode-se consultar as obras de Adorno e Horklieimer. M a h iü a E u o Ên ia M i i i .u i o M e ir a transformação social. Ao contrário, como aponta Duarte (1993), é pre ciso lutar pela realização ao máximo possível, ainda no seio das rela ções sociais de dominação, das possibilidades de formação e desen- volvimentoda individualidade humana Com base nos pressupostos teórico-filosóficos da Pedagogia his- tórico-crítica e da Psicologia sociohistódca, propomos que a apre ensão d» educação como instrumento mediatizado de trans formação social e do homem como sujeito histórico que se insere dialetieaniente na complexa trama social podem orien tar o psicólogo escolar tanto na definição das áreas mais im portantes que exigem sua intervenção, quanto na escolha das alternativas teóricas e metodológicas que possam concretizar suas llnialidudes profissionais. 2 . E l e m e n t o s t e ó r ic o c r ít ic o s d e se n v o l v id o s n o c a m p o d a P sic o l o g ía E sc o la r /E d u c a c io n a l O objetivo deste item é o de delimitaras principais proposições que já foram desenvolvidas na área e que devem ser apropriadas pelo conjunto dos psicólogos escolares comocondição para novos desen vo I v i mc ntos teóricos. A análise de parte das produções teóricas mais recentes que, de variadas formas, têm buscado uma aproximação diferenciada da Psicologia coin a Educação indica o desenvolvimento de posturas mais críticas, especialmente no que se refere à discussão dos se guintes temas fundamentais: • Fundamentos da Psicologia Escolar; • Papel da Psicologia na formação e atuação docente e nos ideários pedagógicos; • Análise crítica da produção teórica na área; • Subjetividade e educação. Embora alguns desses assuntos venham sendo trabalhados por outras áreas do conhecimento, como Pedagogia, Filosofia da Educa C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r i t i c a d e P s ic o l o g ia E s c o l a r ... 2 1 ção e Sociologia, entre outras, neste trabalho nos interessa ape nas destacar linhas de reflexão crítica especificamente no campo da Psicologia. É importante ressaltar que buscaremos não enveredar pela dis cussão mais individualizada do grau de relevância das contribuições, embora algumas sejam mais significativas que outras, quer pela pro fundidade teórica revelada, quer pela clareza dos pressupostos filo sóficos que as norteiam e pelo posicionamento político mais global e firme diante tanto da ciência psicológica e de seus usos possíveis quanto da sociedade e das demandas a quem se destinam, ou ainda, pelo nível de pertinência com a proposição da transformação e os caminhos teórico-metodológicos escolhidos para se alcançar sua concretização. Desta forma, não estamos considerando que os diferentes posicionamentos sejam consensuais ou equivalentes entre si, nem muito menos que já se tenha conseguido um grau razoavelmente significativo de consistência que nos permita afirmar a hegemonia da concepção crítica em nossos meios. Ao contrário, as análises reali zadas indicam não apenas que estas posições são minoritárias, como ainda que, mesmo nesse restrito grupo coexistem perspectivas dife rentes. Parece haver, no entanto, um elo comum a todas as elaborações que discutiremos em seguida, que é o fato de partirem do pressupos to da necessidade da Psicologia Escolar romper com um modelo de atuação tradicional. Análise crítica dos fundamen tos da Psicologia Escolar Embora desde o fim da década de 1970 e início dos anos 80 tenha se iniciado todo um processo de discussão sobre os caminhos e descaminhos da Psicologia Escolar, só a partir da publicação, em 1984, do livro Psicologia e Ideologia - uma introdução crítica ü Psicologia Escolar de Maria Helena de Souza Palto, é que, de fato, M a r is a E u g ê n ia M u l u l o M e ir a se desvelou sua tendência histórica de se colocar a serviço, das rnais diferentes formas, da conservação tanto da estrutura tradicional da escola quanto da ordem social na qual está inserida. A necessidade de se analisar com profundidade a realidade educacional brasileira em toda a sua extensão e de se assumir um posicionamento político definido em relação à educação e ao pa pel social da Psicologia parece ter se constituído no passo inicial de um movimento de crítica a Psicologia Escolar em uma pers pectiva tradicional. Na década de 1980, autores como Patto (1984), Khouri (1984), Urt (1989), Antunes (1988), Ferreira (1986) e Almeida (1985) de ram início a um processo de discussão que evidenciava que as trans formações necessárias à Psicologia Escolar demandavam, antes de mais nada, a busca de pressupostos críticos no que se refere a con cepções de homem e das relações entre escola e sociedade no con texto histórico do capitalismo. A conseqüência mais importante dessas reflexões iniciais foi o destaque da necessidade de rompimento com o modelo clínico de atuação, que se expressa em seus pressupostos que se concretizam em práticas profissionais de psicólogos e nas produções e abordagens teóricas que fundamentam ou orientam propostas educacionais. Esse modelo vem sustentando os processos de culpabilização dos alunos pela via da psicologização e patologização dos problemas educacionais. Partindo desse olhar, problemas de aprendizagem e ajustamento dos alunos à escola são explicados como conseqüência de dificuldades orgânicas; características individuais de persona lidade, capacidade intelectual ou habilidades perceptivo-motoras; problemas afetivos e vivenciais; comportamentos inadequados; ca rências psicológicas e culturais; dificuldades de linguagem; desnutri ção; despreparo para enfrentai' as tarefas da escola; falta de apoio da família; “desagregação” familiar. Conforme aponta Patto (1984). esta aparente diversidade teórica e metodológica encobre uma uni dade ideológica: a ênfase dada à adaptação dos indivíduos à escola e à sociedade. C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s ic o l o g ia E s c o l a r ,., As expressões desse enfoque estritamente psicológico por dife rentes caminhos levam a uma visão clínica tradicional do trabalho do psicólogo escolar, a partir da qual ele se volta para o diagnóstico (ainda que utilizando diferentes recursos teóricos) e tratamento dos problemas que se supõem serem dos alunos. O rompimento com esse modelo de atuação, centrado nos alunes considerados proble máticos, levou ao redirecionamento do olhar e das análises da Psico logia Escolar para os processos educacionais. A partir do fim da década de 1980 e início da década de 1990 surgem produções que buscam compreender as maneiras pelas quais as dificuldades escolares, sobretudo das crianças pobres que freqüentam as escolas públicas, são produzidas pelas condi ções e práticas escolares ineficientes e preconceituosas. Dentre os estudos produzidos nesse período, destacamos os trabalhos de Campos (1989); Patto (1990, 1992); Souza (1989); Boarini (1992); Masini (1986); e Collares e Moysés (1992). Na parte final do texto “A produção do fracasso escolar - histó rias de submissão e rebeldia”, Patto (1990, pp. 340-52) apresenta, à guisa de conclusão, algumas questões que nos parecem funda mentais e que representam uma síntese dos avanços teóricos conquistados até aquele momento: as explicações do fracasso escolar baseadas nas teorias do déficit e da diferença cultural precisam ser revistas a partir do conhecimento dos mecanismos escolares produtores de dificuldades de aprendizagem; o fracasso da escola pública elementar é o resultado inevitável de um sistema educacional congenitamente gerador de obstáculos à realização de seus objetivos; o fracasso da escola elementar é administrado por um discurso científico que, escudado em sua competência, naturaliza esse fracasso aos olhos de todos os envolvidos nesse processo. Para Patto, embora este seja um quadro complexo, já que as explicações ideológicas encontram-se profundamente arraigadas nos meios escolares, é possível superá-lo pela via da reflexão crítica so bre as práticas escolares, dos direitos da cidadania e das relações de poder em uma sociedade de classes. Para a autora, “a convivencia 2 4 M a r tsa E u g ê n ia M i i j .h o M e ir a de mecanismos de neutralização de conflitos com manifestações de insatisfação e rebeldia faz. da escola um lugar propício à passagem ao compromisso humano genérico” (Patto, 1990, p. 348). No fim da década de 1990 e início dos anos 2000, surgem estudos que buscam compreender de maneira mais detida os fenômenos psico lógicos no interior dos processos de produção do fracasso escolar. Machado e Souza (199 7) destacam a importância de problematizar acontecimentos e relações cristalizados nos casos em que o fracasso escolar já se instalou. Para as autoras, compreender como alunos e professores se constituem nesse processo permite movimentar históri as escolares, por mais graves que sejam as dificuldades econômicas, intelectuais ou afetivas por que passam algumascrianças. Para Souza (2000), embora a Psicologia tenha ampliado seu olhar e incorporado a análise dos determinantes sociohistóricos, a presença de concepções críticas sobre a queixa escolar ainda per de espaço para leituras psico logizantes do processo de escolarização. Para a autora, o discurso crítico sobre a escola pre cisa vir acompanhado do questionamento dos “problemas de apren dizagem”, compreendendo-os no conjunto de relações institucionais, históricas, psicológicas e pedagógicas que constituem o dia-a-dia escolar. Desta forma, a intervenção do psicólogo deve possibilitar o “pensar junto” com as crianças e professores as relações estereoti padas e produtoras de repetência, bem como as práticas que estig matizam e excluem. Junto com as queixas relacionadas a dificuldades e problemas de aprendizagem de conteúdos, outras demandas escolares têm se colocado, especialmente, para os profissionais da Psicologia. Agres sões, indisciplina, atitudes violentas e desrespeito a professores e funcionários, atualmente, têm se tornado a principal queixa das esco las em relação a seus alunos. Consideramos que uma discussão adequada sobre essa questão demanda, em um primeiro momento, a análise das relações sociais no contexto das escolas. A atividade educacional em sala de aula se constrói nas e pelas relações sociais; por isto há uma clara correspondência entre a qualida C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s ic o l o g ía E s c o l a r ... de das práticas pedagógicas e os di ferentes tipos de relações interpessoais que se estabelecem cotidianamente entre professores e alunos. As relações sociais na escola podem constituir-se tanto em fon tes de independência e autonomia quanto de alienação e subal- tcrnidade. Quando professores e alunos não se envolvem de manei ra firme e consciente com a construção de relações recíprocas de respeito, cooperação e solidariedade e se voltam de maneira simplista para a adoção de medidas coercitivas de controle e punição, refor ça-se o circuito de alienação do qual todos participam ainda que inad vertidamente. O não rompimento com essa situação tende a “explodir” das mais diferentes formas: a dificuldade de construir com os alunos re gras e normas coletivas, o que leva ora ao autoritari smo, ora ao aban dono da autoridade dos professores; o predomínio de climas defensi vos, já que tanto alunos quanto professores se sentem ameaçados; a agressividade; a indisciplina; a apatia; a violência. É preciso ter claro que relações interpessoais humanas e huma- ni/.adoras não emergem de forma espontânea ou natural no cotidiano das salas de aula; elas precisam ser intencionalmente construídas. Parece, no entanto, que essas questões não estão claras para a maioria dos educadores, que continua a esperar um aluno “natural mente disciplinado” (Boarini, 2002). Boarini (2002) analisou dados provenientes de várias pesquisas sobre indisciplina e constatou que a maior parte das explicações e propostas de soluções apresentadas por pais e professores estão cir cunscritas à escola, à família e, às vezes, à sociedade, que aparece como algo abstrato. Para a autora, não há como discutir a questão do aluno “indisciplinado” sem uma leitura clara do contexto da sociedade, da escola e da família nos dias de hoje. É preciso considerar, entre outras coisas, que o homem contemporâneo valoriza pouco os problemas cole tivos e os espaços públicos; que a desconsideração pela dignidade alheia foi banalizada e tornou-se algo corriqueiro; que o desejo e a motivação do indivíduo são colocados acima do interesse coletivo; que a escola como espaço público está claramente fragilizada; que a escola deixou de acompanhar seu tempo histórico; que o professor trabalha os “limites do 2 6 M a r is a E u o ê n ia M k l u l o M e ir a não pode”, em vez de privilegiar os “limites da possibilidade”; que a escola não respeita diferenças e naturaliza os individuos. Para Boarini é preciso questionar a escola, a sociedade e o pró prio conceito de disciplina. A disciplina é importante para se desen volver qualquer atividade, seja individual ou em grupo, e não simples mente para obter comportamento padronizado e rígido. Disciplina não é um fim em si mesmo, mas um exercício diário a ser construído por todos os envolvidos, com respeito e reflexão. Uma outra contribuição importante deste último período foi dada por autores que passaram a denunciar a existência de preconceitos, que são, freqüentemente, apresentados como explicações plausíveis para o fracasso escolar. Collares e Moysés (1996) indicaram, com base no referencial de Agnes Heller e em extensa pesquisa empírica, que o cotidiano escolar é permeado por preconceitos e juízos prévios sobre os alunos e suas famílias, que se mantêm inabaláveis mesmo diante de evidên cias que os refutam racionalmente. Assim, culpam-se as crianças por não aprenderem (são pobres; negras; nordestinas; da zona rural; imaturas; não se interessara; são doentes; preguiçosas; seus pais são analfabetos; suas mães trabalham fora; são desnutridos; têm proble mas neurológicos e psicológicos, etc.) e a escola apresenta-se para a sociedade praticamente como uma vítima de uma clientela inade quada e despreparada. Para as autoras é fundamental analisar essas concepções da vida cotidiana da escola para compreender mitos que impedem o avanço das discussões e de propostas que possam impulsionar trans formações no sistema escolar. Partindo da perspectiva frankfurteana, Crochik (1995) destaca que, embora o preconceito seja um fenômeno psicológico, suas ori gens devem ser buscadas no processo de socialização. Da mesma forma, o combate a ele não pode se dar apenas no âmbito individual. É preciso combatê-lo em várias instâncias e, em especial, na escola. O autor coloca ainda, que as atividades cotidianas desenvolvidas nas es colas apresentem aspectos marcadamente regressivos., já que nesse C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s ic o ix x jia E s c o l a r .. tíspaço a apropriação da cultura acaba se concretizando como assimi lação de um bem de consumo banal e superficial, é possível pensar em uma educação que se volte para a subjetividade e a reflexão, o que pode se constituir em um antídoto que permita, ao menos, frear a destrutividade do preconceito. Com base nesses desenvolvimentos teóricos, podemos afirmar que a primeira condição para que possamos desenvolver práticas criticamente comprometidas é a compreensão do fracasso esco lar a partir de uma análise aprofundada do fenômeno educa cional como síntese de múltiplas determinações e que se si- lua em um contexto histórico concreto. A medida que avançamos 11a crítica ao modelo de atuação e à produção do fracasso escolar torna-se mais do que evidente a ne cessidade de uma redefinição dos processos tradicionais de avalia ção e diagnóstico. Encaminharemos a análise crítica desses processos consideran do inicialmente quatro questões: o que é avaliado; como é feita a avaliação; critérios e bases conceituais dos testes e conseqüências dos exames psicológicos para as crianças envolvidas. Cada vez mais os psicólogos têm sido procurados em clínicas e instituições educacionais para atuar de alguma forrna com crianças e adolescentes que são encaminhados por não se enquadrarem no modelo desejado pela escola ou pela família, em função de dificuldades que se supõe serem deles próprios, seja de aprendizagem ou comportamento. Na grande maioria dos casos, os profissionais limitam o pro cesso de avaliação ao diagnóstico do aluno. Desta forma, aceitam a queixa como um dado real, concreto, verdadeiro e se tornam inca pazes de compreender o contexto e as relações que produzem os motivos para se encaminhar alunos para atendimento, ou seja, todoo processo de produção da queixa escolar. O psicodiagnóstico usual avalia fundamentalmente os conheci mentos e habilidades já adquiridos pela criança, visando medir respos tas, resultados, o produto final, ou seja, pauta-se pela idéia da falta; da anormalidade; da doença. Nas palavras de Machado (1997, p. 88): I H M a r i s a E u g ê n ia M e u ü jO M e i r a Quando impera a pergunta o que a criança tem?, pre domina um trabalho em relação ao que ‘‘falta a ela ter”. Dessa forma, tornamo-nos capazes de criar um juízo a respeito da criança, mas não de transformar aquilo que está sendo produzido. Assim, cria-se um ciclo vicioso no qual nossos discursos tendem a intensificar aquilo que queremos mudar. As palavras criam realidades. Assim, nesta perspectiva o objeto de avaliação é o aluno, já que conforme destacamos, pressupõe-se que a origem dos problemas es colares se encontra em seu interior. No que se refere à segunda questão, o tipo de avaliação psi cológica, que tem sido realizado nas escolas e serviços de saúde, revela desde a falta de um mínimo de qualidade até infrações éticas graves. Para Patto (1995), esta forma de atuação do psi cólogo chega a se constituir em um verdadeiro crime de lesa ci dadania. Em suas palavras: Laudos invariavelmente ausentes de substrato teórico; mergulhados no senso comum; lacônicos; arbitrários; ca rentes de critica; feitos com uma displicência reveladora de desrespeito pelo cliente e de certeza de que as vitimas destas práticas não têm nenhum poder a opor ao poder técnico, servem, na verdade, para estancar a carreira es colar de tantos pequenos brasileiros (Patto, 1995, p. 16). Em relação às bases conceituais* os testes pressupõem a crença em pelo menos duas assertivas: que os sujeitos apresentam natural mente características ou potencialidades (tais como inteligência, per sonalidade, capacidades, etc.) e que elas podem ser medidas. A primeira delas revela claramente que se toma como natural o que, na verdade, foi produzido socialmente, o que conforme apontam Collares e Moysés (1997), permite que se possa acreditar que a vida humana é determinada pela constituição genética dos sujeitos. Desta maneira., a ciência procede à racionalização da desigualdade a até da crueldade, oferecendo-lhe uma falsa aparência de decência e justiça. C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s ic o l o g ia E s c o l a r ... Especialmente no que se refere à inteligência, as autoras desta cam que os testes desconsideram por completo que o pensamento está sempre intrinsecamente vinculado à ação e que suas possibili dades de avanço estão definidas e limitadas pelas necessidades e possibilidades colocadas por contextos históricos e sociais determi nados. Compreender que a inteligência é construída histórica e soci almente significa compreender que crianças que têm seu acesso aos bens culturais bloqueado não são menos inteligentes que outras, ape nas apresentam um desenvolvimento conformado por condições sociais concretas. Essa concepção de desenvolvimento, como processo historica mente determinado, já aparecia na obra de Marx, como se pode depreender da seguinte afirmação: Se as circunstâncias em que um indivíduo evoluiu só lhe permitem um desenvolvimento unilateral, de uma qualidade em detrimento de outras; se estas circunstân cias apenas lhe fornecem os elementos materiais e o tem po propícios ao desenvolvimento desta única qualida de, este indivíduo só conseguirá alcançar um desenvol vimento unilateral e mutilado (Marx, ¡983, p. 45). Em relação à segunda assertiva, ou seja, a possibilidade de me dirmos o potencial dos sujeitos, Collares e Moysés (1997) alertam que em um processo de avaliação a medida a que temos acesso é apenas a expressão do potencial, jamais o potencial. Mais do que isso, temos acesso a uma determinada expressão do potencial que é definida pelo avaliador como sendo a mais importante. Como exemplo, as autoras citam o fato de que algumas crianças fazem pipas enquanto outras desenham, ambas com a mesma coorde nação motora; nenhuma delas pode ser considerada a melhor, à medi da que são apenas expressões diferentes, sem hierarquia entre si, de uma mesma coordenação à qual não se têm acesso. Isso indica que a escolha do profissional por uma delas, longe de ser respaldada em critérios científicos, tem um caráter ideológico, já que é facilmente JO M a k is a E u c é n ia M ellu x ) M e ir a verificável que as preferencias geralmente recaem sobre as formas tle expressão encontradas nas classes sociais privilegiadas. Assim, a avaliação caminha pelo terreno do preconceito, que se volta para a normalização e exclusão de tudo o que é diferente e que foge do modelo ideal e das regias que instituem a normalidade ou anormalidade dos sujeitos (Machado, 1994). No que se refere às conseqüências, essa prática terá resultados diferentes em função da classe social das crianças: para as de ca madas média e alta, terapias e apoio psicopedagógico; paia as po bres está selado um destino de exclusão devida e “cientificamente” justificado (Patto, 1997). Em qualquer um dos casos, o psicólogo em nada contribui para provocar as alterações necessárias nas práticas e concepções pro dutoras do fracasso. Para Patto (1997), além de todas essas críticas é preciso ainda fazer uma critica radical à razão psicométrica, discutindo a concepção de ciência, de homem e sociedade que engendra os testes e que leva a Psicologia a se voltar para li avaliação e classificação de indivíduos e grupos, traduzindo diferenças sociais em diferenças entre os indivíduos. Nessa mesma direção, Sass (1994) destaca a importância de uma reflexão sobre o significado da avaliação em uma sociedade de classes. Para o autor, só conseguiremos evitar a ditadura dos laudos se compre endermos de uma maneira mais profunda de que fonna eles vêm aten der às exigências e interesses de uma sociedade determinada. A compreensão do fracasso escolar não com» um proble ma do aluno, mas como um processo produzido nas condições sociais; nas histórias escolares; nas práticas pedagógicas; nos mecanismos institucionais; nas relações que se constroem cotidianamente nas escolas deve necessariamente se tradu zir em uma redefinição do objeto, do processo e das conseqü ências da avaliação. Em uma perspectiva crítica, como aponta Machado (2000), é preciso considerar que o objeto de avaliação não é o aluno, mas sim as diferentes relações e práticas que produziram a queixa C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s ic o l o g ia E s c o l a r ... em relação ao aluno e que geraram a necessidade de encaminha mento para o atendimento psicológico. A pergunta central já não é mais “o que o aluno tem que não aprende”, mas, como é o campo social no qual esta queixa foi produzida? Machado ainda destaca que os dados a serem coletados devem ser utilizados no sentido de compreender, sem nenhum tipo de julga mento, a situação e o processo que geraram a queixa e não para encontrar motivos que justifiquem o processo de culpabilização da criança ou de sua família. Neste sentido, em nenhum momento os dados podem utilizados para justificar de forma naturalizante as dificuldades escolares do aluno, mas para se entender me lhor as múltiplas determinações presentes neste processo de produção do fracasso. Enquanto no processo de avaliação tradicional enfatiza-se o que a criança não tem e não sabe, em uma perspectiva crítica o psicólo go deve olhar para o que ela sabe e gosta de fazer. Nas palavras de Collares e Moysés: Ao invés de buscar o defeito, a carência da crian ça, o olhar procura o que ela já sabe, o que tem, o que pode aprender a partir daí. O profissional tenta, mais que tudo, encontrar o prisma pelo qual acriança olha o mundo, para ajustar seu próprio olhar Collares e Moysés (1997, p. 86). Visto deste modo, o processo de avaliação terá conseqüências diferentes. SÉ da compreensão das possibilidades de desenvolvi mento de todos os envolvidos que poderão emergir os cami nhos que poderemos trilhar com a criança, a família e a escola para fazer com que esta história escolar que está em um certo sentido paralisada pelo rótulo resultante desta queixa, possa ser movimentada em direção à superação das dificuldades, 1 Consideramos que é nessa caminhada teórica que se iniciou com a crítica ao modelo clínico de atuação e que possibilitou a denúncia da produção do fracasso escolar e o anúncio de novas formas de pensar os processos dc avaliação, que poderemos encontrar os ele mentos necessários à constituição dc um conjunto inicial de pressu postos teóricos e filosóficos que poderão orientar o desenvolvimento de práticas profissionais críticas e comprometidas. O papel da Psicologia na formação e atuação docente e nos ideários pedagógicos Vários estudos vêm apontando a necessidade de repensarmos a inserção da Psicologia nos cursos de formação docente, no sentido de que os conhecimentos psicológicos possam efetivamente contribuir para a elaboração dc propostas mais consistentes que resuUcm em melhorias da prática e do processo de en sino aprendi/agem. As principais críticas que têm sido feitas ao papel cia Psicologia na formação docente apontam para a disseminação de análises psicologizantes (Alvite, 1981); o distanciamento entre a Psicologia e a prática escolar (Goulart, 1985); a ineficácia das disciplinas que tratam do conhecimento psicológico, já que elas não contribuem para um processo mais adequado de capacitação docente (Fini, 1987; Putini, 1988; Montenegro, 1987; loris., 1993); o predomínio de um enfoque clínico-terapéutico (Gouveia. 1992); e ainda paia o fato de que, em geral, a disciplina caracteriza-se por conteú dos fragmentados, tratados a partir de temas não articulados entre si, fun damentados em uma visão eclética e carente de um aprofundamento teó rico mais consistente (Caparro/., 1992). Para Franco ( 1984) e Montenegro ( 1993) a Psicologia pode cons tituir-se em um elemento importante na definição de conteúdos, currículos e sistemáticas de avaliação, desde que seja capaz de contribuir para a compreensão do psiquismo humano em uma pers pectiva histórico-dialética. Além dessas contribuições ao processo de formação docente, a Psicologia também pode desempenhar um papel importante junto a professores que já estão atuando. C o n s t r u in d o u m a c o n c e i ç ã o c r í t i c a d e P s ic o l o g ía E s c o l a r ... 3 3 Torezan (1991) destaca que a Psicologia pode ajudar os profes sores a refletirem sobre suas ações em confronto com o conheci mento teórico disponível, de modo que ele possa reconhecer a teoria que perpassa sua prática. Ao compreender melhor por que age de determinadas maneiras terá mais condições de buscar de forma de liberada caminhos para a transformação de sua ação. Nessa mesma direção, Andaló (1989) e Aguiar (2000) destacam que a Psicologia deve atuar de modo a criar condições para que os docentes possam repensar e problematizar suas práticas e, a partir daí, buscar os conhecimentos teóricas para as transformações necessárias. Para Aguiar (2000), o psicólogo que desenvolve trabalhos com professores deve ter como objetivo contribuir para que eles cons truam condições de se apropriarem de suas histórias e assim transformá-las. Para tanto, devem ser favorecidos processos cole tivos de reflexão que considerem tanto as condições objetivas quan to as significações e sentidos que são construídas pelos docentes. Martins (2002) analisa que a Psicologia também pode ajudar na compreensão do importante papel que o processo de personalização do professor desempenha na objetivação de sua atividade como educador. A autora defende que processos de educação dos educa dores podem devolver a eles sua qualidade de agentes da história, que como tal podem modificar as condições exteriores e a si mesmos. Conforme já destacamos em trabalho anterior (Meira, 1998), a Psicologia também deve contribuir para a construção de um proces so pedagógico qualitativamente superior trabalhando com os educa dores uma compreensão crítica do psiquismo, do desenvolvi mento humano e de suas articulações com a aprendizagem e as relações sociais, já que não se pode ensinar verdadeiramen te se não se considerar como o aluno aprende, ou ainda, porque, às vezes, ele “não aprende”. Desta forma, os conhecimentos psicológi cos colocam-se como elementos importantes para o cumprimento da função social da escola. A crítica à maneira como a Psicologia tem se colocado na forma ção e atuação docente é fundamental. No entanto, é preciso ir mais M a r is a E u g ê n ia M i;ia il o M e ir a além c discutir como as idéias psicológicas circulam nos meios educa cionais fíela vía dos ideários pedagógicos e a que fins elas servem. Conforme aponta Antunes (2000), as relações entre Psicologia e Educação no Brasil são estreitas a tal ponto que, ao longo da história, a Psicologia tornou-se parte constitutiva do pensamento educacional e da prática pedagógica. Isso significa que, certamente, podemos localizar com maior ou menor grau de clareza e importancia diferentes contribuições da Psicologia provenientes de variadas tendencias teóricas nos proces sos constitutivos dos idearios pedagógicos que fundamentam práti cas e propostas educacionais no Brasil. Como esse é um tema bastante complexo, neste trabalho vamos nos deter em três questões que, por sua atualidade, nos parecem especialmente relevantes: o construtivismo, a teoria do professor re flexivo e a apropriação das idéias de Vigotski no Brasil. Para iniciarmos a discussão sobre o papel da Psicologia no construtivismo, buscaremos apontar, ainda que de forma breve, para as origens das principais idéias que lhe dão sustentação. Concordamos com Duarte (1998, 2000) no sencido de que o construtivismo retoma idéias essenciais do movimento escolanovista, embora essa filiação nem sempre seja explicitada ou mesmo assumi da e aceita pelos próprios construtivistas. Para a Escola Nova, o objetivo principal do processo educacio nal deve ser a garantia do pleno desenvolvimento das potencialidades dos alunos, o que só se considera possível à medida que o professor consiga deixar de lado seu papel dirigente e se colocar como facilitador, que terá como única função garantir, pela utilização de métodos não-direrivos, a criação de um clima de liberdade e não ameaça, A ênfase na idéia de que os homens são naturalmente diferen tes colocou a exigência de se considerar essas diferenças também do ponto de vista psicopedagógico, o que demandou, e vem deman dando até hoje, a utilização de distintas teorias da Psicologia, Saviani (1982, p. 10) explica que a visão humanista moderna C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s ic o ix x jia E s c o l a r ... que sustenta o escolanovismo, ao se contrapor à pedagogia tradicio nal, deslocou o eixo da questão pedagógica ... do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivism o para o não diretivismo... Em suma, trata-se de uma teoria pedagógi ca que considera que o importante não é aprender, mas aprender a aprender. Conforme aponta Duarte (2000, p. 34), esse lema do aprender a aprender também aparece no ideário construiivista, envolvendo os seguin tes posicionamentos: é mais desejável a aprendizagem que o indivíduo realiza sozinho, sem a transmissão diretade outros; para o aluno é mais importante desenvolva- um método de construção de conhecimento do que aprender conteúdos elaborados por outras pessoas; os interesses e necessidades da criança devem dirigir sua atividade educativa; a educa ção deve preparar indivíduos para acompanharem as mudanças sociais. É evidente que a negação da transmissão do conhecimento e a valorização das chamadas aprendizagens significativas (aquelas que o aluno faz por si mesmo, sem interferência do professor) estão pre sentes tanto no ideário escolanovista quanto no construtivista. Por isso, Duarte (1998) afirma que ambos apresentam um posicionamento negativo em relação ao ensino e ao papel do professor. Assim, embora essas idéias sejam apresentadas como pro gressistas, seus resultados não são os esperados,, pois acabam provocando um esvaziamento do papel da escola de transmissão do conhecimento historicamente acumulado pela humanidade. Miranda (1999) destaca que é preciso compreender que a re percussão do construtivismo nos meios educacionais não significa apenas uma opção dos educadores que se limita e se esgota no pro cesso pedagógico. Para a autora, o construtivismo atende às novas necessidades e exigências postas pelo capitalismo contemporâneo, MAMUJA E uOÉNIA M uIJJIjO M bira especialmente na América Latina, no sentido dc manter a crença de que 6 possível mudar a educação de um determinado país mudando apenas a concepção dc aprendizagem predominante. Para a autora, o impacto da globalização do capital sobre as políticas educacionais na América Latina incide diretamente sobre a concepção de conhecimento. Nesse contexto, impõe-se um novo padrão de conhecimento que deve ser menos discursivo e intelectivo, mais operativo e pragmático. Em suas palavras: Adaptado às demandas sociais e económicas atuais o “aprender a aprender ” passa, a incorporar a necessi dade do conhecimento ser previamente definido por sua operacionalidade. Mais importante do que saber, é sa ber fazer, saber informações, saber produzir resultados, saber manejar equipamentos, saber se adaptar a novas Junções (Miranda, 1997, p. 43). Buscando compreender as razões da adesão entusiasmada e do sucesso do construtivismo entre educadores e estudiosos da área, Hosller (2003) desenvolveu um estudo no qual analisou, à luz da teo ria do cotidiano de Agnes Heller, a presença de processos de sedu ção e alienação na inserção e difusão desse ideário. Para Hosller, o poder de sedução do construtivismo está no fato de que ele se aproximaria, por meio de um discurso filosófico, psicológico e pedagógico bastante retórico, ao universo ideológico da sociedade contemporânea vivenciado pelos indivíduos em sua vida cotidiana. Além de apresentar em detalhes o que seduz no construtivismo, o autor ainda analisou por que e como esse ideário seduz, indicando que é o processo de alienação das condições objetivas de vida dos homens e das formas de pensamento, sentimento e ação cotidianos, que predispõem os educadores ao poder de sedução das idéias construtivistas. Assim, é a inserção dos educadores num cotidiano alienado que cria as condições psicológicas, afetivas e cognitivas favoráveis a uma adesão por sedução. C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r ít ic a d e P s ic o l o g ía E s c o l a r ... 3 7 Para Hosller, o único “antídoto” possível para esse processo é a reflexão teórica e filosófica, a análise crítica e consistente, o estudo sistemático por parte dos educadores sobre os vários Ambitos de seu trabalho educativo. Além das aproximações entre construtivismo e escola nova, al guns autores vêm alertando para a necessidade de fazermos um exa me mais detido das proposições contidas na chamada teoria do pro fessor reflexivo. Facci (2003) desenvolveu uma análise crítico-comparativa en tre a teoria do professor reflexivo, o construtivismo e a Psicologia vigotskiana no que se refere às suas implicações para o trabalho docente. A teoria do professor reflexivo surgiu 11a década de 1980, com o objetivo de resgatar o professor como profissional em contraposição a teorias que não lhe davam o tratamento devido, ora porque valori zavam mais os conteúdos (caso da pedagogia tradicional), ora por que o mais importante era o aluno (caso da escola nova) ou ainda a eficiência e competência técnica (caso da pedagogia tecnicista). No entanto, Facci aponta várias questões que fazem com que esta teoria tenha como resultado exatamente o contrário do que pro clama, ou seja, ela acaba promovendo, ou pelo menos permitindo, o esvaziamento da função social da escola e do professor. Dentre es tas questões destacamos: • A concepção de conhecimento que fundamenta essa teoria o compreende como algo que vem da prática, desconsiderando a importância do saber cient ífico que já foi acumulado; • O conceito de reflexão é bastante restrito e se refere apenas ao pensar do professor como forma de resolver problemas práticos do cotidiano. Refletir sobre a prática não é o mesmo que teorizar e compreendê-la; • O conceito de prática restringe-se a um conjunto dc atividades desenvolvidas individualmente pelos professores em função de suas preferências, inclinações e valores; 3 8 M a r is a E u g ê n ia M i x i .il d M u irá • O ensino reflexivo considera as crenças e suposições que os professores têm sobre ensino-aprendizagem, escola, alunos, etc., que estão na base de sua prática em sala de aula, mas não se pergunta como elas forarn construidas; • A subjetividade do professor é tratada como uma particularidade desconectada da realidade social; • Não se consideram as condições histórico-sociais ñas quais a profissão se desenvolve. Parte-se do principio de que as mudanças na educação são possíveis se houver uma formação reflexiva do professor; • Vários autores consideram que os estudos da profissão docente têm sido marcados por uma separação entre o “eu pessoal” e o “eu profissional” e defendem que a maneira de ser e a de ensinar do professor se cruzam continuamente. No entanto, essas análises não levam em conta o processo de construção da identidade docente e dos significados sociais da profissão. As conclusões de Facci apontam para uma grande afinidade entre a teoria do professor reflexivo e o construtivismo, já que ambas acabam negando a importância do conhecimento científico tanto na formação do educador quanto na formação do educando. Em síntese, Facci adverte que a teoria do professor reflexivo trata de fenômenos psicosociais focalizando apenas o espaço interno da escola e do desenvolvimento profissional, desconsiderando as di mensões políticas e ideológicas da profissão docente. Para Arce (2001) essas teorias centradas apenas na ação e reflexão sobre a prática impedem que o professor possa se embasar em funda mentos filosóficos, políticos, sociais e históricos que lhe permitam teorizar sobre sua ação no contexto das relações entre educação e sociedade. Esse processo de valorização do conhecimento que provém da prática em detrimento de uma formação teórica sólida, configura o que Moraes (2001) denominou de “recuo da teoria”, que pode reper cutir de forma nefasta para a produção de conhecimento na área educacional. Nas palavras da autora: C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r ít ic a d e P s ic o l o g ia E s c o l a r ... 3 9 A celebração do “fim da teoria ” - movimento que prioriza a eficiência e a construção de um terreno consensual que toma por base a experiência imediata ou o conceito corrente de “prática reflexiva’’ se faz acom panhar da promessa de uma utopia educacional alimen tada por um indigesto pragmatismo. Em tal utopia praticista, basta o “saber fazer “e a teoria é considera da perda de tempo ou especialização metafísica e. quan do não, restrita a uma oratória persuasiva,presa à sua própria estrutura discursiva (Moraes, 2001, p. 3). E óbvio que não se trata de negar a importancia da reflexão, nem de desvalorizar a experiência e a participação ativa dos profes sores e alunos. É preciso romper com esse falso dilema a partir do qual os professores teriam de escolher entre serem tradicionais ou construtivistas, ou ainda teriam de buscar um meio-termo entre am bos. O que se coloca é a necessidade de se tratai de forma qualitativa mente diferente a concepção de conhecimento; as finalidades da edu cação; a função dos professores; as relações sociais na escola, etc. Como aponta Facci (2003), trata-se de defender a escola como instituição que deve socializar as formas mais desenvolvidas do conhecimento humano e o professor como o elemento mediador fundamenta] no processo de formação dos conceitos e dos proces sos psicológicos superiores, sem os quais não se pode falar da humanização dos indivíduos. No que se refere à forma como tem se dade» a circulação da teoria de Vigotski nos meios educacionais brasileiros, Duarte denuncia que existem tentativas variadas de apropriação de suas idéias, de forma a tomá-las assimiláveis ao universo ideológico neoliberal e pós-moderno. secundarizando-se a fundamentação marxista de toda a sua obra. Para Duarte (2000), esse processo de “assepsia” tem sido feito de três maneiras complementares: pela substituição dos textos origi nais de Vigotski por textos escritos por seus intérpretes e ainda pela apresentação de traduções resumidas e até censuradas de parte tias suas obras; pela tentativa de afastamento de sua teoria das elabora- 4 O M a r is a E u o ú n ia M b ix u o M u ir á ções de Leontiev e, finalmente, pelo ecletismo, a partir do qual se busca aproximações entre as suas teorias e as de Piaget. Nessa mesma direção de análise, Tuleski (2000) defende que não se pode retirar a formação marxista de Vigotski, pois é déla que decor re sua concepção de homem e sociedade e da própria Psicologia. Consideramos cine o conjunto das reflexões que apontam para uma adesão por sedução, seja ao construtivismo, seja à teoria do professor reflexivo e ate mesmo à teoria vigolskiana, constitui-se em mais um alerta a indicar algo muito sério: a estrutura da vida cotidia na, sem dúvida, penetrou no âmbito da educação de uma forma de vastadora, ou seja, trata-se de uma educação alienada. Essa situação é especialmente grave se considerarmos que a alienação, no caso do trabalho educativo, apresenta especificidades importantes. Duarte (1996, p. 56) explica que, cm outros tipos de trabalho, a alienação do trabalhador não prejudica a qualidade do produto. No entanto, no trabalho educativo a alienação do trabalha dor educador irá gerar alienação do produto, ou seja, a formação do indivíduo educando: Assim, sc o trabalho educativo se reduzir para o edu cador, a um simples meio para a reprodução de sua exis tência, para a reprodução de sua cotidianidade aliena da, esse trabalho não poderá se efetivar enquanto me diação consciente entre o cotidiano do aluno e a atua ção desse aluno nas esferas não cotidianas da ativida de social. A atividade educativa se transformará, tam bém ela, numa cotidianidade alienada, que se relacio nará alienadamente com a reprodução da prática social Isso ocorre porque o processo pedagógico escolar- implica não ape nas a formação do indivíduo educando, mas também o próprio processo de formação e desenvolvimento do educador. Como lembra Hosller (2003), o educador se humaniza quando o educando se humaniza, e isso só se. realiza quando se possibil ita a apropriação pelos indivíduos das objeti vações genéricas para-si e sua formação como individualidade para-si. C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r ít ic a d e P s ic o l o g ía E s c o l a r ... 4 1 Para buscarmos formas de contraposição em relação à aliena ção no processo educativo é preciso compreender, antes de mais nada, que ela é um dos produtos da sociedade capitalista. Conforme aponta Duarte (2000), em sociedades fundamenta das em relações sociais de dominação e alienação, os homens são submetidos a um processo contínuo de esvaziamento material e psi cológico de sua individualidade, que se torna mais intenso quanto mais aumenta a distância entre o desenvolvimento do homem singu lar e as produções simbólicas e materiais conquistadas pelo genero humano. Para o autor, o máximo desenvolvimento possível da indivi dualidade humana é determinado pelas possibilidades que os sujeitos lôm de se apropriarem dessas conquistas da humanidade. Nesse contexto, a educação escolar adquire uma importância fundamental, desde que o educador: • Estabeleça uma relação consciente com seu trabalho, compreendendo seu papel na formação do individuo- educando-concreto. Por isso, a escola não pode se reduzir à vida imediata do indivíduo, mas deve conceber como parte de sua concreticidade as possibilidades de vir-a-ser de sua formação (Duarte, 1996, p. 51); • Mantenha uma relação consciente e reflexiva para com os processos e fundamentos educacionais, pedagógicos e psicológicos envolvidos em seu trabalho, utilizando as teorias como ferramentas prático-intelectuais (Hosller, 2003, p. 269); • Compreenda que o ensino determina o desenvolvimento psíquico da criança e que seu papel é o de ensinar o que ela não é capaz de aprender por si, sendo o mediador dos conhecimentos científicos, intervindo principalmente na formação dos processos psicológicos superiores (Facci, 2003, p. 146). Processos de formação e atuação docente, bem como de cons trução e circulação de ideários pedagógicos, podem constituir-se cm espaços importantes de uma Psicologia criticamente comprometida com a função humanizadora da educação. 42 M a r is a E u g ên ia M iiiu l o M kira Análise crítica de práticas e da produção teórica na área Como já colocamos anteriormente, rio fim da década de 1970 e inicio da década de 1980 surgiram estudos que apontavam para o predominio do modelo clínico e de concepções psicologizantes e adaptacionistas de Psicologia Escolar, tanto no nível da produção acadêmica quanto nas práticas desenvolvidas por psicólogos em di ferentes contextos educacionais. No que se refere à análise de práticas, destacamos o estudo de Almeida (1982) que analisou o trabalho desenvolvido por psicólogos escolares em João Pessoa/PB; Goldberg e colaboradores (1977), que pesquisaram a concepção de psicólogos escolares sobre seu papel como integrantes de uma equipe na escola, e de Patto (1984), que estudou as representações de psicólogos da rede municipal e estadu al de São Paulo/SP sobre a escola, os alunos e o papel do psicólogo. Na década de 1990 surgem outros estudos que buscam dar con tinuidade à tarefa de crítica já iniciada e, ao mesmo tempo, anunciar novas possibilidades de atuação. Neste contexto colocam-se os trabalhos de Moussab ( 1990), que aborda mais diretamente a questão da atuação do estagiário de Psico logia Escolar; de Novaes (1990). que analisa a atuação do psicólogo escolar rta prefeitura de São Paulo, e de Boarini (1992), que analisa a prática sistemática de encaminhamento e o tratamento dado a crian ças com queixas escolares pelas equipes de Saúde Mental das Unida des Básicas de Saúde da rede pública do Estado de São Paulo. Nesse período contamos ainda com trabalhos de caráter mais propositivo, ou seja, que têm um objetivo mais definido de relatar e apresentar propostas de ação. Nesta linha inserem-se os trabalhos de Brotherhood (1994), Fontana (1991) e Machado (1999). Brotherhood (1994) desenvolveu um trabalho com o objetivo de compreender o desenvolvimento cognitivo de crianças do meio rural do nordeste. Partindo de um estudo etnográfico, a autora elaborou e aplicou uma proposta de trabalho voltada para a ampliação douni verso conhecido pelo grupo. Na análise dos resultados, ela indica a C o n s t r u i n d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a n u P s i c o u x í i a E s c o l a r . . . 4 'I possibilidade de favorecer o desenvolvimento de estruturas cognitivas mais complexas pela ação da escola. Também em uma perspectiva sociohistórica, I ontana ( I99 I ) ana lisou o papel da prática escolar rio processo dc elaboração e apropri ação pelas crianças dos conceitos sistematizados no cotidiano da sala de aula. Partindo da compreensão do processo dc conceitua- li/.ação na relação dialética entre as possibilidades dc elaboração no plano individual (com base em Vigotski) e sua dinâmica socioida ilógica (tomando como referência principal Bakhtin), a autora pôde analisar com o professor da classe a emergência e o desenvolvimento dei diferentes processos de elaboração de conceitos. Ao destacar o pa pel construtivo e mediador do trabalho pedagógico, I ontana eviden ciou a possibilidade de se redimensionar o estudo dos processos dei elaboração conceituai de maneira radicalmente diferente daqueles utilizados por autores que partem de perspectivas tradicionais e a- históricas de Psicologia. Machado (1999) apresentou um trabalho de avaliação psicológi ca que envolveu 139 crianças de 22 escolas da rede pública estadual da cidade de São Paulo. A autora relatou em detalhes todas as fases da atividade, que se constituiu em um exemplo concreto da possibili dade de se instituir práticas a partir de uma perspectiva que conside re, de fato, as múltiplas determinações presentes na produção da queixa e do fracasso escolar. Identificamos, ainda, um outro conjunto de trabalhos que não Iratam da prática da Psicologia Escolar em si, mas procuram situá-la no contexto da educação escolar a partir da compreensão de ques tões importantes que fazem parte do cotidiano do profissional da área. líntre estes estudos destacamos os de Torezan (1991), Souza (1991), Cruz (1984) e Menin (1992). Torezan (1991) analisou o papel que professores do então I” grau atribuem a si próprios em relação a situações que consideram problemáticas na ação educativa. Ao auxiliar a explicitação das rela ções entre maneiras de compreender e agir. a autora contribuiu para a problematização da ação dos professores, indicando, desta forma. M a r is a E u g ê n ia M e l u l o M e m a um caminho interessante de ação para o psicólogo escolar ern dire ção à melhoria da qualidade de ensino. Souza (1991) analisou a estruturação do trabalho pedagógico em uma classe do ciclo básico. Ao voltar-se especialmente para ações pedagógicas que podem facilitar bons resultados do processo ensi ne (-aprendizagem, a autora procurou evidenciar as relações diretas entre a maneira como se organiza o trabalho pedagógico e o desem penho escolar dos alunos. Cruz (1984) tomou como objeto de análise a forma como se deu a apropriação pelos educadores do projeto pedagógico do ciclo bási co, buscando apontar elementos importantes que devem ser consi derados em processos de implantação de propostas educacionais voltadas à transformação educacional, inclusive no que se refere ao papel do psicólogo escolar. Menin (1995) desenvolveu em estudo sobre as representações de alunos de uma escola pública sobre política e economia a partir do qual apontou que as tendências predominantes são acentuadamente conservadoras. Para a autora, a escola deve oferecer condições que favoreçam a superação de uma consciência heterônoma dos alunos pelo fortalecimento de um tipo de fala argumentativa e da constru ção e reflexão de valores e crenças democráticas que possam orien tar sua vida coletiva. É possível verificar ainda que, nesse período, ganhou destaque a necessidade de compreendermos melhor as representações da soci edade sobre a Psicologia Escolar. Temos como exemplo o trabalho de Caetano (1992), que evidenciou que as representações de pais sobre a atuação do psicólogo da escola de seus filhos são determina das fundamentalmente por uma imagem social de um profissional da área clínica que deve desenvolver preferencialmente atividades indi viduais de caráter psicoterápico. Em 1994, por solicitação do Conselho Federal de Psicologia, Maluf (1994) analisou práticas de Psicologia Escolar desenvolvidas em diferentes regiões do país e concluiu que a reflexão sobre elabo rações teóricas mais críticas e a análise da própria ação desenvol- C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r ít ic a d e P s ic o l o g ía E s c o l a r . .. vida pelos profissionais já começava, nesse momento, a provocar alterações significativas na área, de modo a torná-la mais contextualizada. Em 1997 realizamos uma pesquisa (Ragonesi, 1997) com o ob jetivo de conhecer algumas práticas de Psicologia Escolar a partir de relatos de 21 psicólogos sobre as ações que desenv olviam no campo da educação no município de Bauru/SP, em vários espaços sociais tais como escolas, clínicas particulares e serviço público. A análise dos dados indicou que, embora as posturas de caráter mais transfor mador fossem minoritárias e que muitas questões importantes não estivessem sendo devidamente exploradas, havia várias evidências de que a reflexão crítica já vinha gerando novas formas de atuação. Consideramos que o estudo de práticas concretas deveria ser mais incentivado e valorizado, já que pode trazer contribuições para o forta lecimento de uma concepção critica de Psicologia Escolar, uma vez que indica elementos importantes, tanto para o aprofundamento da compreensão das possibilidades e limites que se coíocam no contexto histórico atual em relação à proposição e implementação de propostas de intervenção com finalidades transformadoras quanto para uma re flexão mais contextualizada a respeito do tipo de formação que vem sendo oferecida nos cursos de graduação em Psicologia e das trans formações que se fazem necessárias. No que se refere à análise de produções teóricas, encontramos um primeiro estudo realizado por Sonsogno (1987), que analisou dis sertações de mestrado e teses de doutorado na área de Psicologia Escolar em programas de pós-graduação entre 1970 e 1982. Seus resultados indicaram que a grande maioria dos trabalhos fundamenta- se em abordagens reducionistas que levam a elaborações teóricas par ciais e à construção de conhecimentos marcadamente fragmentados. Gatti (1996) analisou artigos de trinta periódicos nacionais e in ternacionais do campo da Psicologia, Psicologia da Educação e Psi cologia Educacional no período de 1987 a julho de 1998 e concluiu, que a grande maioria dos trabalhos, parte de dois pontos dc partida dicotômicos. Em um grupo, a Psicologia volta-se para um determina- 4 6 M a r is a E u g ê n ia M ki.i .i u > M e ir a do problema educacional e depois retorna à Psicologia com suas contribuições. Já no segundo grupo, a educação busca na Psicologia questões que possam ser agregadas ao olhar educacional. Para Gatti. seria importante romper com essa visão dicotomizada e desenvolver estudos em uma nova perspectiva, que integre Psicologia e Educa ção, sem que ambas percam de vista suas especificidades. Tanamachi (1992) tomou como objeto de estudo dissertações de mestrado e teses de doutorado que revelassem uma preocupação explí cita em relacionar a Psicologia à educação escolar. A autora analisou criticamente as concepções de Educação; Psicologia e Psicologia apli cada à Educação, sobre as quais se assentam os trabalhos produzidos no período de 1984 a 1989 em diferentes programas de pós-graduação., concluindo que, embora o número de estudos mais críticos fosse reduzi do, era possível detectar uma nova tendência na Psicologia Escolar, que busca superar as posturas tradicionais pela via da contextualização his tórica do homem e de seu encontro com aeducação. Dando continuidade aos seus estudos, Tanamachi (1997, 2000) analisou trabalhos desenvolvidos nos programas de pós-graduação no período de 1990 a 1994, a partir de perspectivas críticas de Psico logia e Educação fundadas no materialismo histórico-dialético, iden tificando elementos que revelam novas possibilidades já existentes de pensar e fazer Psicologia Escolar e explicitou algumas mediações teórico-práticas de uma visão crítica em Psicologia Escolar. Na tese de doutorado que apresentamos em 1997 (Ragonesi, 1997), além da pesquisa com profissionais, desenvolvemos urna aná lise da produção na área, evidenciando que, naquele momento, as contribuições críticas voltavam-se prioritariamente para a análise crítica dos pressupostos mais gerais da Psicologia Escolar; do mode lo clínico de atuação; da produção do fracasso escolar; dos proces sos de avaliação e diagnóstico; para a discussão de questões mais específicas que se constituem em uma parte importante dos funda mentos do cotidiano do trabalho do psicólogo escolar (relações entre processos de cognição e fracasso escolar; condições de ensino e zona de desenvolvimento próximo; processo de alfabetização; desen C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s ic o l o g ia E s c o l a r . . . 4 7 volvimento cognitivo e afetivo; práticas escolares; problemas de apren dizagem; preconceitos no cotidiano escolar; tendências ideológicas, valores e crenças, entre outras); para o papel da Psicologia da Educa ção na formação docente e para formação do psicólogo escolar. Viotto Filho (2001) analisou contribuições de autores nacionais e internacionais que produziram trabalhos em uma perspectiva crítica nos últimos cinco anos da década de 1990. Para Vi oto Filho, as con cepções apresentadas pelos autores estrangeiros podem ser consi deradas críticas, já que discutem a necessidade de a Psicologia trans formar-se para assumir uma função social mais definida em favor de grupos minoritários da população (gays; mendigos; crianças aban donadas, etc.) a quem historicamente a sociedade vem excluindo e oprimindo. No entanto, eles limitam-se a criticar o fato de os grupos marginalizados não terem acesso aos serviços psicológicos, mas não fazem uma crítica consistente à Psicologia, nem aos rumos tomados pela produção do conhecimento psicológico. A comparação desta produção com a produção brasileira (Meira; Viotto Filho, 2000) indica que os autores nacionais apresentam um tom mais forte e vigoroso tanto na crítica social quanto na crítica à Psicologia. Os autores nacionais apontam para as transformações necessárias à Psicologia Escolar a partir de um referencial que bus ca contribuir para a superação das condições sociais que provocam o fracasso escolar, a miséria humana e as injustiças sociais. Consideramos que a análise das produções teóricas que vêm sendo construídas é extremamente relevante, já que permite revelar tendências de desenvolvimento teórico-prático, identificar aspectos que ainda não foram devidamente aprofundados e ainda apontar para novos temas e campos de pesquisa e reflexão. Subjetividade e educação Desde que a Psicologia constituiu-se como ciência, sucederam- se variadas proposições de análise que, em urn certo sentido, 4 8 M a r e s a E u g ê n ia M k l iil o M e ir a recolocam antigas questões já pensadas ao longo da história no âm bito da Filosofia e que traduzem muitas vezes, e por diferentes canti nhos, urna dicotomía que se instaurou artificialmente no plano teórico entre indivíduo e sociedade, expressa em duas vertentes principais: objetivista e subjetivista. A vertente objetivista, fundada em uma tradição quase biológica da Psicologia assenta-se em uma concepção de homem como um organismo que interage com o meio como sujeito passivo e receptivo e de fenômeno psicológico como reação direta aos fatos exteriores. Já a vertente subjetivista fundamenta-se na idéia do predomínio dc* sujeito sobre o objeto, colocando-o como um ser psíquico indepen dente, criador da sua própria realidade. A análise histórica da inserção da Psicologia na educação não deixa dúvidas de que, neste campo, a visão hegemônica tein sido a subjetivista. Conforme aponta Bock (2000), essa visão idealista tem levado os psicólogos a compreenderem e definirem o fenômeno psicológico a partir de uma idéia de natureza humana que torna natural e univer sal tudo aquilo que é social e histórico. Nesta perspectiva, o mundo psicológico é pensado a partir da idéia de que haveria dentro de nós uma “semente de homem” que pode desabrochar se for devidamen te estimulada pelo meio cultural e social. Para a autora, é preciso romper com essa visão liberal e construir uma visão sociohistórica de homem que tenha como categoria central a idéia de condição humana, ou seja, a compreensão de que o homem é um ser histórico que se constrói na sociedade e nas relações sociais. Como resultado dessa visão liberal e idealista de indivíduo, o profissi onal da área acabou, muitas vezes, atuando como um clínico na escola, como um psicólogo do escolar e não como um psicólogo da escola» Essa abordagem mais propriamente clínica inicia-se com a rea lização de um diagnóstico ao qual se segue o tratamento das dificul dades do aluno (que pode ser realizado dentro ou fora da escola) sempre partindo do pressuposto de que as origens dos problemas devem ser buscadas em sua história de vida. C o n s t r u in d o u m a c o n c e p ç ã o c r í t i c a d e P s i c o i o g i a E s c o l a r ... As duras críticas dirigidas a essa forma de pensar a atuação da. Psicologia Escolar, que é claramente conservadora e adaptad onista, levaram muitos autores da área a abandonar o tema da dimensão afetivo/emocional. Embora a questão do papel das emoções seja extremamente importante não apenas para a Psicologia Escolar, mas para a Psico logia como um todo, até pelo menos o fim da década de 1980. poucos autores que partem de uma perspectiva mais crítica voltaram-se pai a seu estudo e, dessa forma, o terreno permaneceu aberto para as elaborações de base idealista que colocam equivocadamente as emo ções como um campo isolado dos demais processos humanos e, em alguns casos, até como determinante último da vida dos indivíduos e da vida em sociedade. Essa lacuna teórica foi se fazendo sentir de maneira cada vez, mais clara. A atuação como psicólogos escolares exige o domínio de um referencial teórico-crítico que garanta a compreensão das gran des questões relativas às formas pelas quais a escola, especialmente a pública, vem organizando seu trabalho e relacionando-se com o sistema sociopolítico no Brasil. Mas, ao nos colocar frente a frente com sujeitos concretos que têm uma história singular; que construí ram uma certa forma de ver o mundo e a si mesmos; que pensam, sentem e sofrem com a ausência de um sentido social que possa orientar o desenvolvimento de sua humanidade, essa atuação tam bém demanda a compreensão de como se dá a mediação da subjeti vidade nesse processo. Acreditamos que foram estas necessidades sentidas tanto no âmbito da prática profissional quanto na produção teórica, que leva ram no fim da década de 1980 e início da década de 1990, ao surgimento de estudos que buscavam resgatar essa questão, sitúan- do-a em suas relações com o contexto educacional e social. Entre os estudos desenvolvidos nesse período, destacamos os trabalhos de Andaló (1989); Cunha (1994); Freller (1993); Kupfer (1990); Machado (1994); Patto (1992), Tanamachi (2000) e Meira (2000) que apontam para a necessidade de: M a r is a E u g ê n ia M e i u l o M e ir a • Analisar a relação entre a subjetividade e os mecanismos escolares de maneira qualitativamente diferente. Não se trata de negar que determinados conflitos psíquicos podem
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