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Concep‡Æo Surdez Lugar Surdo Texto 1

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CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS LIBRAS
DISCIPLINA: INTRODUÇÃO À EDUCAÇÃO DE SURDOS - 2013.2
TEXTO 1
Concepções de Surdez e o Lugar do Surdo na Vida Social: 
a educação em seus começos�
Vanda Magalhães Leitão
A surdez foi tema que ocupou as mentes de grandes pensadores da Antiguidade Clássica. É interessante ressaltar, em primeiro lugar, que, em alguns escritos desse período, encontramos explicitada a relação de interdependência da ausência da fala em relação ao estado de surdez. Sánchez (1990, p.31) relata que em textos filosóficos da Grécia antiga podem-se destacar algumas referências feitas por Aristóteles (384-322 a.C.) ao relacionar a condição de mudez à surdez. Dizia o Filósofo que os indivíduos que não falam não o fazem porque são surdos, denotando assim a impossibilidade de falar por falta da audição. 
Na Roma do século VI, se tem notícias de que, no código legal, havia registro de uma diferenciação entre a surdez de nascença (atualmente chamada surdez pré-linguística) e a surdez adquirida (hoje denominada surdez pós-linguística). O referido código previa melhores condições de desenvolvimento a estes últimos, por terem tido a oportunidade de viver experiências socioeducativas favorecidas pelo fato de terem memória de percepções auditivas. Acreditavam que a esses era possível ensinar a forma escrita da língua, enquanto que aos demais previa-se a impossibilidade do desenvolvimento da linguagem e da cognição. A historiografia nos informa que tal concepção perdura até o século XV; ou seja, até esse período, os surdos pré-linguísticos eram considerados ineducáveis. Acreditava-se que não se desenvolviam, na medida em que não aprendiam a falar, portanto, a eles não era possível oferecer nenhuma proposta educacional. A eles estava reservado o merecimento da cura pela fé religiosa. 
No transcurso do século XVI, sob a influência do Renascimento, emergem outras ideias sobre a surdez, suplantando a concepção religiosa de que “só a fé cura”. A ideia que se tinha, a partir daí, era de que o “surdo-mudo” poderia vir a falar mediante procedimentos pedagógicos especiais. Segundo Pessotti (1984), Jerome Cardano (1501-1578), médico, matemático e filósofo foi o primeiro a proclamar o direito que tem o surdo à educação. Esse parece ser o momento em que, pela primeira vez, a Pedagogia substituía a fé, abrindo-se as possibilidades educativas para surdos. 
Os resultados disso foram evidenciados pelo surgimento dos primeiros métodos para educação de surdos, que pretendiam o desenvolvimento do pensamento, a aquisição de conhecimentos e o estabelecimento da comunicação entre surdos e ouvintes. Para tanto, era preciso ensiná-los a falar e a compreender a fala de outrem, mediante a leitura labial (compreensão da fala), a aquisição da leitura e da escrita, e a utilização do alfabeto manual. A concepção central era a de que, já que os surdos não aprendiam a falar, poderiam aprender a língua escrita. 
É sob essa orientação que, em meados do século XVI, a educação de surdos teve inicio. Surge o primeiro professor de surdos: o espanhol Frei Ponce de León, que viveu entre os anos de 1520 e 1584, atendendo a necessidades das famílias nobres em garantir os direitos legais de seus filhos surdos – direito à herança de bens materiais. 
Segundo Sánchez (1990), os professores-preceptores davam grande importância à escrita como meio de acesso à articulação das palavras, tomada, também, por seu valor e função social. Utilizando-se do alfabeto manual inventado por eles mesmos, acreditavam que era possível extrair significados de textos escritos. A proposta de educação desenvolvida por Ponce de León tinha inicio com o ensino da escrita das palavras, acompanhado da apresentação de objetos ou de figuras correspondentes. 
Seguindo Ponce de León, surgiram muitos outros. Porém, a historiografia dá destaque a Juan Pablo Bonet (1579-1633), como aquele que, algumas décadas depois, retomou o trabalho do pioneiro em educar surdos, Frei Ponce de León. Em 1620, Pablo Bonet divulgou seu método que consistia em ensinar surdos a falar e a escrever, associando fala (oralização), dactilologia (movimento manual), manipulação dos órgãos fonoarticulatórios e gestos. Iniciava ensinando as vogais com o alfabeto manual, em seguida introduzia o ensino das consoantes, formando as sílabas, para depois fazer a transferência da atenção visual para a vocalização de traços distintivos dos sons (sonoridade dos fonemas e das palavras). Segundo Moura et al (1997), independentemente da originalidade e eficiência ou não, a base oralista do método de Bonet deu abertura para o desdobramento do trabalho de educar surdos pela Europa, na expectativa de lhes dar voz. Os principais discípulos de Pablo Bonet foram John Wallis (1616-1703), na Inglaterra, Jacob Rodrigues Pereire (1715-1780), nos países de língua latina, e Johann Conrad Amman (1724), na Alemanha. 
Dos três expoentes ora citados, somente Conrad Amman persistiu no intento de oralização. Dava às palavras um sentido religioso. Como os outros, em seus procedimentos pedagógicos, também usava os sinais e o alfabeto manual. Seu método se diferenciava um pouco dos demais, ao retirar tais instrumentos, na medida em que os considerava desnecessários. Assim procedia por acreditar que, em especial, o uso de sinais pudesse impedir o posterior desenvolvimento da fala e, consequentemente, do pensamento: pois, “para ele a existência do pensamento derivava exclusivamente da fala” (MOURA et al, 1997, p.330). O método de Amman foi seguido pelo alemão Samuel Heinicke (1723-1790), seu principal sucessor. Heinicke, porém, se distinguiu do mestre, por levar ao pé da letra o projeto de oralizar surdos: ou seja, em seus procedimentos não estava incluído o uso de sinais.
É importante também destacar o fato de que, em meio às experiências oralistas, George Dalgarno (1628-1687), partindo, como os demais, das propostas de Ponce de León e Pablo Bonet, propôs-se percorrer outro caminho. Diferenciou-se em seu pensamento, ao dar crédito ao potencial do surdo para a aprendizagem, afirmando que o bebê surdo poderia aprender a se comunicar satisfatoriamente, desde que a mãe ou sua substituta usasse as mãos para com ele interagir. Chegou a comparar a eficiência das mãos à da língua (parte do aparelho fonador) para a comunicação (SÁNCHEZ, 1990).
Das primeiras experiências ora relatadas, chama especial atenção o fato de que todos aqueles que se propuseram educar surdos, o faziam com o propósito de fazê-los falar, sob o argumento de que somente assim poderiam se tornar humanos e partilhar da vida social dos ouvintes. Entretanto, para essa tarefa, não podiam prescindir dos sinais utilizados pelos próprios surdos, que se apresentavam como importante base de apoio para suas práticas pedagógicas. Porém, ao mesmo tempo em que eram reconhecidos como fundamental instrumento mediador, os sinais eram, por outro lado, desqualificados em sua relação com o pensamento: essa foi a ideia de Johann Conrad Amman, médico citado linhas atrás.
É razoável pensar que a utilização dos sinais como elemento importante na educação de surdos, na segunda metade do século XVII e ao longo dos anos de 1800, parece ser a expressão de que a língua de sinais, de alguma forma, era considerada, muito embora as práticas pedagógicas tivessem como objetivo desenvolver a fala na pessoa surda. Tomar os sinais como apoio à oralização e, ao mesmo tempo, desqualificá-los como constitutivo de uma língua espaçovisual, parece ter duas razões principais. A primeira, refere-se à ausência de estudos linguísticos, que só muito tempo depois vieram a se realizar: à época, a língua de sinais não tinha o mesmo status das línguas orais; a outra decorre da supervalorização da palavra.
Tem-se, portanto, um indicativo de que, naquele momento histórico, não falar era intolerável, inaceitável, evidenciando-se o rechaço à surdez e ao surdo. Essa era uma atitude que se estabeleceu, não por desconhecimento, haja vista as experiênciasem que o sistema linguístico gestual do surdo era considerado nas práticas pedagógicas, conforme referência anterior. A intolerância à condição de surdez parece ser decorrente de um processo de construção social pautado nos valores e ideais filosóficos, políticos e sociais da época. A literatura revela que, em tempos idos, os surdos foram confundidos com loucos (SÁNCHEZ,1990; PESSOTTI,1984) e, como tal, viveram internos em hospícios. É possível acreditar que aí estão, portanto, as raízes da construção histórico-social do significado negativo da surdez e do surdo, que permanece até hoje. 
Como os métodos para educação de surdos se desenvolveram e quem tinha acesso a eles? Sánchez (1990), mostra haver como que um verdadeiro “segredo de Estado” acerca dos métodos utilizados na época, os quais eram restritos aos surdos de famílias nobres, e que seus resultados eram duvidosos. E mais, autores como Sánchez (1990) e Sacks (1998) tecem algumas críticas a tais experiências, considerando terem sido isoladas e restritas a alguns surdos de origem nobre. No entanto, apesar de toda restrição, o pioneirismo em educar surdos parece ter deixado como resultado positivo a mudança de concepção acerca da forma de entender a surdez e de compreender o surdo. A partir de então, o surdo saiu do lugar de ineducável para integrar a categoria de educável, abrindo-se, portanto, as possibilidades de desenvolvimento de seu potencial cognitivo, intelectual e socioafetivo. 
A educação de surdos é inaugurada, então, em meados do século XVI, sob a influência das ideias renovadas do Renascimento, nas quais se incluía a supremacia da oralidade, muito embora, se tivesse notícias da existência e uma certa aceitação da língua de sinais utilizadas por pessoas surdas. Mas a historiografia informa ter sido no final do século XVIII que se teve descrições das línguas de sinais como código linguístico. Isto decorre, certamente, do surgimento de estudos linguísticos datados da metade do referido século. Há evidências de que todo contexto ideológico dessa época era desfavorável às pessoas que, de algum modo, se apresentavam impedidas de fazer uso da palavra falada. Sob o ponto de vista religioso, o fato de não falar era tido como castigo de Deus, trazendo como consequência a divinização da palavra. E, do ponto de vista político, aqueles que não falavam, tidos como anormais pela Ciência, eram categorizados como economicamente improdutivos. Então, naquele momento da história, século XVIII, os surdos-mudos, como eram denominados, compunham uma categoria de pessoas castigadas por Deus, incapazes de entendimento e improdutivas, tidas como peso para a sociedade. A ideia de que a fala era a forma superior para as interações resultava na seguinte dedução lógica: se não fala, não tem entendimento. Essa era a ideia fundante das metodologias praticadas naquele momento da história da educação de surdos, e que perduraram por todo século XX. 
Referências bibliográficas
MOURA, M. Cecília de. et al. Escolas e Escolhas: processo educativo de surdos. In: LOPES FILHO, Otacílio de. (editor). Tratado de Fonoaudiologia. 1. ed. São Paulo: Roca, 1997. pp. 359-399 
PESSOTTI, Isaias. Deficiência Mental: da superstição à ciência. São Paulo: EUSP, 1984. 
SACKS, Oliver. Vendo Vozes. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 
SÁNCHEZ G., Carlos. La Increible y triste historia de la sordera. Caracas: CEPORSORD, 1990. 
� Este texto é uma adaptação de parte da tese de doutorado da autora, intitulada “Narrativas silenciosas de caminhos cruzados: história social de surdos no Ceará”.

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