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Ética e Política 5 - Locke

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ética puritana e o rule of law
	 Fernando Quintana
O governo da lei encontra-se atrelado ao individualismo jurídico, no sentido do indivíduo ser a fonte criadora e o fim do direito e ao individualismo ético, no sentido da consciência individual erigir-se em tribunal das normas religiosas (Birnbaum; Leca, 1991: 12-13). Ambos os tipos de individualismo caracterizam um tipo de ética, o puritanismo, no marco de um importante evento: a primeira revolução dos tempos modernos - a Revolução Inglesa.[1: A Revolução Inglesa comporta a Revolução Puritana, momento duro, violento, que corresponde às duas guerras civis (1642 e 1648) e, a Revolução Gloriosa, momento suave, não violento (1688). Quanto ao primeiro momento, a primeira Guerra Civil (1642-46), existem dois partidos, o monárquico e o parlamentar. No primeiro, alistavam-se os partidários da monarquia Stuart (Jaime I e Carlos I: 1603-49), em sua maioria anglicanos, membros da grande nobreza, composta de grandes proprietários rurais e cortesãos. No segundo, os puritanos e proprietários agrários da pequena nobreza (gentry), comerciantes da City, os roundheals (cabeças redondas) e outros grupos de extração inferior (artesãos, lojistas, aprendizes). O conflito teve início quando o arcebispo Laud, homem forte no plano religioso de Carlos I Stuart, tentou impor aos calvinistas escoceses ou presbiterianos um livro de preces. Encolerizados com a iniciativa de forçar-lhes a liturgia anglicana (de inspiração papista), os presbiterianos pegam as armas junto com os calvinistas independentes. A Guerra Civil foi dirigida pelo Parlamento e combatida por Oliver Cromwell, fidalgo rural puritano, até a rendição de Carlos I (1646). Na segunda Guerra Civil, Cromwell vence novamente as forças realistas (1648) e, em 1649 Carlos I é condenado à morte. No interregnum, a República (1649-58), Cromwell recebe o título de Lorde protetor da Inglaterra (1653), cargo que ocupa até sua morte (1658). Quanto ao segundo momento da Revolução Inglesa importa dizer que ela se deve ao fato da Restauração (Carlos II e Jaime II Stuart: 1660-88) ter continuado com práticas religiosas papistas (Jaime II era católico) - o que leva à impopularidade da monarquia. No seu lugar são colocados dois monarcas protestantes (Guilherme e Maria) de quem foram “arrancadas concessões políticas críticas com o preço do trono” - o Bill of Rights de 1689 - (Pipes, 2001: 183)]
Assim, procuramos mostrar a afinidade que existe entre puritanismo e governo da lei no contexto de uma revolução que foi religiosa, um exemplo de transformação de revolução religiosa em revolução política, a primeira servindo de base espiritual da segunda. Mais especificamente tratar-se-ia de explorar aspectos do que o historiador Christopher Hill acredita ser uma das causas da Revolução Inglesa: o conflito puritanismo-anglicanismo ou, como o puritanismo, fundado nos escritos de Calvino, representa uma crítica às práticas abusivas dos Stuart (Arruda, 2006: 56-57):[2: Podem ser distinguidos quatro elementos do “governo da lei”, implicitamente contemplados no Bill of rights de 1689, a) o devido processo legal quando se trata de julgar e punir os cidadãos privando-os da liberdade ou propriedade, b) a prevalência das leis diante da discricionariedade do poder real, c) a sujeição de todos os atos do poder executivo à soberania dos representantes do povo (Parlamento) e, d) o direito de acesso aos tribunais por parte de qualquer indivíduo a fim de defender seus direitos (Canotilho, 1999: 24).]
Se procurarmos as raízes (da revolução inglesa), há que destacar como fator importantíssimo o religioso, pois não em vão a luta pela liberdade começou pelo terreno religioso. Mas especificamente, (pelos) “dissidentes”, logo denominados “não conformistas”, os puritanos que não admitiam o controle religioso da Igreja anglicana (Prieto, 1996: 615-616). 
Tal empreitada leva a analisar, mais especificamente, o papel que teve a leitura da Bíblia em setores da sociedade inglesa e o direito à liberdade de credo e prática religiosa, baseada em premissas calvinistas, contra as práticas hierárquicas da monarquia Stuart. Nesse apanhado histórico destaca-se a atuação de dirigentes do puritanismo inglês, John Pym e John Milton, paladinos do rule of law, com base na defesa do direito de liberdade religiosa e, também, John Locke que vai mais longe, uma vez que estabelece os fundamentos gnosiológicos e morais dos principais ideais que marcam a Revolução Inglesa: a liberdade e a propriedade. 
O individualismo, seguindo Louis Dumont, valoriza o ser humano igual a todo homem (homo aequalis). Tal afirmação do indivíduo obedece ao fato de que feito à imagem e semelhança de Deus é depositário da razão – o que traz consequências políticas: o igualitarismo, isto é, o indivíduo submetido a ele mesmo o qual não aceita ser governado por nenhum princípio hierárquico, civil e/ou eclesiástico, o episcopalismo Stuart (1603-42). [3: O conde Sir Thomas Strafford junto com o outro conselheiro de Carlos I Stuart no plano religioso William Laud foram os responsáveis do chamado “Estado episcopal”, ambos defendiam a prerrogativa real e os tribunais exclusivos do monarca e dos bispos.]
A afirmação do indivíduo como agente racional capaz de elaborar normas faz com que o direito inglês, em vez de sustentar-se em antecedentes normativos escritos e não escritos, a ancien constitutio, passe a ser justificado em termos de direitos naturais (o jusnaturalismo): da crença que todos os cristãos nascem de novo livres e iguais, os puritanos começam a defender a ideia que todos os ingleses e também todos os homens nascem livres e iguais (Dumont, 1983: 83-89).[4: Para o estudo do direito inglês como resultado do costume, a “antiga constituição”. QUINTANA, F. Common law e conservadorismo, Revista da Escola da Magistratura Regional Federal, Rio de Janeiro, n.1, vol. 15, 2011, p.115-144. ]
 
O puritanismo, nome dado ao calvinismo na Inglaterra, está na origem da exaltação do indivíduo, bem como da emergência de certos direitos, notadamente, o direito de credo e prática religiosa. Este direito quando usado com propósito político trazendo como consequência que o indivíduo possa expressar pública e livremente opiniões, pensamentos, etc, no marco da lei (rule of law), sem sofrer interferências do governo:
Religioso na sua referência inicial, o livre-arbítrio tende, nos puritanos, a cobrir todos os domínios, inclusive o político. Rejeitando todas as ortodoxias, o puritanismo coloca o político em debate aberto, igualitário e pluralista [...] ele conduz à rejeição das hierarquias pré-estabelecidas até as últimas consequências (Hermet, 1991: 138). 
O puritanismo contribui para a afirmação do individuo na medida em que se opõe a práticas hierárquicas e tradicionais da época ainda sobre forte influência do papismo, no reinado Stuart. Efetivamente, ao pregar o acesso direto à vida eterna, o puritanismo fortalece a ideia da livre e igual comunicação de todos os crentes, leigos, com Deus sem necessidade de mediações temporais que se arrogam o monopólio do ingresso à vida eterna: o puritanismo enfraquece as estruturas coercitivas e clericais, pelo acento posto sobre a educação na fé e a doutrina do sacerdócio universal dos crentes (Carrive, 2003: 437-438). 
O embate contra a autoridade eclesiástica e civil dos Stuarts encontra em Jean Calvino um forte suporte, uma vez que de seus escritos deduz-se a doutrina evangélica da liberdade cristã, ou seja, a religiosidade fica a cargo de Deus e não a uma igreja específica - a congregatio - o que permite questionar a interpretação e prática religiosa defendida pela igreja oficial (anglicana). Trata-se da passagem da interpretação institucional para a interpretação individual da Escritura, em que cada um é livre para seguir sua forma de vida fora de qualquer controle:
 
[...] o homem não tinha obrigação perante qualquer governo que procurassecontrolá-lo para qualquer outro fim que não fosse o seu benefício, e a ideia de auto-suficiência significava que o homem não tinha necessidade de qualquer governo que procurasse controlá-lo por outro fim que não fosse seu próprio benefício - ele era capaz de fazer isso por si mesmo (Wollheim, 1990: 96). 
Calvino segue a máxima paulina de que todo poder vem de Deus, os magistrados sendo os delegados d’Ele na terra, como se lê, por exemplo, em Instituto christiano religioni: os reis obtêm seu poder da providência e da sagrada ordenação de Deus. No entanto, seguindo a tradição tomista, defende também que o poder político provém dos homens de forma imediata, enquanto o princípio do poder vem de Deus de forma mediata. Tal postura significa que o povo pode assumir uma dupla atitude – de submissão ou resistência: 
É verdade que a condenação de Calvino à resistência não é absolutamente inflexível, e parece um tanto exagerado sugerir [...] que essa posição não concede “direito algum contra o magistrado” [...] Calvino, em todos os momentos, é mestre da ambiguidade e, embora não haja dúvidas de que endossa uma teoria da não-resistência, na prática introduz várias exceções em sua argumentação (Skinner, 1999: 468).
Com base nesta observação, podemos dizer que Calvino toma partido também em favor da desobediência ao sustentar que diante do exercício arbitrário do poder este pode ser destituído e ficar em mãos de autoridades legitimamente constituídas para a defesa do povo. Se existem magistrados, declara, não é minha intenção proibi-los quando agem em conformidade com seu dever, mas também resistir quando o furor dos reis e suas ofensas vão contra os interesses do povo. Direi, continua, que tal atitude constitui uma infame traição de seu juramento. Eles estão traindo o povo e lesando-o naquela liberdade cuja defesa sabem ter-lhes sido ordenada por Deus (Calvino, 1995: 127; 136). 
Seguindo Vindiciae contra tyrannos, de inspiração calvinista, aparece a mesma ideia: a desobediência ao soberano tirânico. A este respeito, vale reproduzir uma passagem dessas Reclamações: Há uma obrigação mútua entre o rei e o povo. Se o príncipe não mantém sua promessa, o contrato fica rescindido, e o direito de obrigar se anula. O povo que nomeou o rei e que com seus votos aprovou sua eleição tem o direito de resistir ao tirano. Ou, ainda, o famoso panfleto do século XVI, Antuérpia, também de inspiração calvinista, que legitima a desobediência ao tirano nos seguintes termos: 
Deus criou os homens livres e deseja que sejam governados justa e corretamente, não arbitrária e tiranicamente. Por isso não deu a um único homem deste mundo permissão para fazer o que quiser nem declarou que houvesse alguém isento de punição. Estabeleceu sua Vontade como uma única regra da justiça. Por este motivo, o povo e os Estados das províncias comprometem o rei ou senhor que instalam no poder e o obrigam a condições que julgam úteis para o país. Está claro, portanto, que o rei não é proprietário das províncias, pois, se o fosse, todos nós seríamos não-livres e escravos, todas nossas posses, nós próprios e nossas famílias pertenceríamos ao rei como um cavalo ou uma vaca pertencem aos seus proprietários [...]. Pela lei, portanto, direitos e poderes régios são definidos da seguinte maneira: o povo do país escolheu o rei e a ele confia seu poder, sob as condições costumeiras existentes no país [...] se o rei se tornar um assassino em vez de pai, um açougueiro em vez de pastor, um tirano em vez de príncipe, o povo não mais está obrigado a obedecer-lhe (Chauí, 2003: 265-266).
A doutrina calvinista como prática secular faz com que as instituições hierárquicas percam significado social. Nesse processo, o de secularização, a religião deixa de fazer parte da esfera global, cosmocêntrica, a qual envolve o indivíduo, para fazer parte da esfera individual, antropocêntrica, a qual liberta o indivíduo. Ou seja, a religião se retira para o mundo subjetivo e se converte numa das interpretações da vida que o indivíduo tem a seu dispor. Tal mudança traz como consequência a inserção do indivíduo no mundo com seus direitos inalienáveis (Paiva, 2003: 24). Aspecto este que é destacado por líderes puritanos da época (Milton, Pym) e, também, por John Locke que, com sua teoria dos direitos naturais, contribui para afirmar a existência do indivíduo no mundo. 
Neste contexto, cumpre destacar a importância da doutrina da predestinação, “o mais característico dos dogmas do calvinismo” (Weber, 2004: 90), segundo a qual Deus teria escolhido certas pessoas para a salvação tão só pela força da fé e condenado outras ao eterno inferno ou danação sem consideração de sua fé nem de suas obras, contudo, os escolhidos tinham que dar sinais a Deus em resposta à graça concedida, não para obtê-la, uma vez que concedida era impossível perdê-la. Quanto aos sinais diante de Deus, que permitem maior segurança ao crente quanto a sua pertença aos predestinados, eles se fundam na prática da vida cristã e no Antigo Testamento, que, segundo Calvino, propõe, como sinais muito claros da escolha de Deus, o êxito na vida temporal ou, como dizem estudiosos: o calvinista encontra nos negócios o sinal da graça e da predestinação de Deus (Prieto, 1996: 273). [5: Tal doutrina era colocada, na época Stuart, nos seguintes termos: Deus onipotente na sua presciência, e antes que eu pudesse operar o bem ou o mal, escolheu-me para ser seu filho, predestinando-me à salvação eterna. Tal atitude fazendo do puritano um homem obstinado, seguro da retidão moral de sua causa, que não se dobra facilmente às ordens das autoridades oficiais. Por isso, a superioridade moral, baseada na doutrina da predestinação, era considerada pelos monarquistas perigosa por estar na origem da rebelião (a Guerra Civil). ]
Um dos efeitos da doutrina da predestinação é deixar “no indivíduo um sentimento de inaudita solidão interior”. “Ninguém pode ajudá-lo”. “Nenhuma Igreja”. A relação do calvinista com Deus se dá no isolamento. Contudo, tal situação não implica da parte de Deus não querer do cristão uma obra social neste mundo:
O trabalho social do calvinista no mundo é exclusivamente trabalho in majorem Dei gloriam (para aumentar a gloria de Deus). Daí por que o trabalho numa profissão que está ao serviço da vida intramundana da coletividade também apresenta esse caráter (grifo do autor) (Weber, 2004: 99) 
Estes aspectos da doutrina da predestinação são relevantes para mostrar como se foi forjando, nos fiéis escolhidos, os puritanos calvinistas ingleses, uma moral do esforço centrada no trabalho, uma disciplina impecável de vida sóbria e metódica. Trata-se do “protestantismo ascético” do qual fala Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo.
A este respeito, vale lembrar que um dos sentidos da palavra puritano significa praticar para si mesmo uma moral estrita, austera, uma disciplina rigorosa a qual se estende ao costume, à vida sexual, aos negócios, ao trabalho. Este último tido como um dever religioso: a melhor forma de cumprir neste mundo a vontade de Deus (Pierucci, 2004: 280). Segundo o Cândido de Voltaire, admirador do puritanismo, trata-se da felicidade que passa pela redenção ao trabalho e afugenta três males: pobreza, tédio e vício.
Tal comportamento pode ser observado, na Inglaterra revolucionária, nos grandes e pequenos comerciantes e proprietários de terras, membros da gentry, que encontram no calvinismo uma ética que prega a autodisciplina e não vê negativamente, em contraste com o catolicismo, o ato de desenvolver atividades lucrativas através da prática do empréstimo:[6: A gentry era a pequena nobreza, nobilitas minor, que se distingue da nobilitas maior ou grande nobreza. A gentry era formada pelo gentlemen, o que definia um gentleman era o fato de só trabalhar, segundo Peter Lasllet, com as mãos em atividades recreativas, nunca para o próprio sustento, para ser gentleman bastava estar disposto a comprar uma propriedade rural (Stone, 2000: 300). Cumpre destacar quea ascensão desta classe social deveu-se à política de enclosure ou cercamento de terras que teve seu auge no século XVII. Esta política implicou a divisão de terras em propriedades privadas - anteriormente comunais - à qual todo habitante de uma aldeia tinha direitos não excludentes de pastagem ou de plantio. Nessa divisão seguia-se a proporção de terras que cada beneficiário já possuía como propriedade, de modo que os mais ricos (membros da gentry) ganhavam mais e os mais pobres não só nada recebiam, como ainda perdiam todo e qualquer direito à terra (Hill, 1987:37) ou, na opinião de outros autores: o cercamento de terras implicou a redução da agricultura dos pobres e a expansão dos rebanhos pertencentes aos mais ricos. Ela correspondeu à necessidade de aumentar a área de pastagem, com o crescimento do comércio da lã, o que levou ao surgimento de novos tipos de proprietário rural (gentry) e à expulsão dos pequenos agricultores (yeoman). ]
Enquanto a Igreja Católica proibia seus fiéis de emprestar dinheiro com algum retorno, por considerar a prática sinônimo de agiotagem, o reformador distinguiu claramente uma coisa da outra. Para ele, os empréstimos para produção poderiam gerar um lucro limitado a 5% da soma investida, para não deixar o devedor enforcado. Em contrapartida, Calvino condenava o empréstimo para o consumo, que julgava imoral [...] O reformador tinha assim confiança no homem que, autorizado a emprestar dinheiro, estava em posição de agir de maneira individual, de acordo com sua responsabilidade perante Deus e sua palavra contida na Bíblia (Garrison, s/d: 58-59). 
Empréstimo e lucro caracterizam o puritanismo ascético, que apesar de proibir o consumo de luxo, o uso irracional das posses, valoriza a riqueza como fruto do trabalho para os fins vitais do indivíduo e da coletividade (Weber, 2004: 155-156).
A salvação pelo exercício da fé contém um forte componente individualista, ou seja, a independência do julgamento moral através do qual o problema da salvação torna-se uma questão privada. O julgamento do puritano torna moralmente condenável toda autoridade que abuse do poder no âmbito religioso: o objetivo do indivíduo-crente é o de aperfeiçoar-se no plano da moral até o ponto de saber efetivamente, e cada um por si, o que é bom e o que é mau. Cada indivíduo torna-se juiz - o que significa questionar toda determinação heterônoma, civil ou eclesiástica, que contradiga sua autonomia moral (Koselleck, 1999; 16). O fato de a salvação ser uma questão pessoal trazendo consequências políticas: uma crítica à autoridade civil, o monarca, supremo chefe da Igreja, que era a garantia da última Palavra.
Neste contexto, cabe fazer referência à chamada natureza geminada do rei de Ernest Kantorowicz: um corpo humano, natural, mortal e um supercorpo, sobrenatural, imortal, exemplificada em fórmulas do tipo - deus imago reis, reis imago dei; a deo rex, a rege lex. A segunda natureza, o supercorpo do rei, que se coloca fora ou por cima do reino, pode ser ilustrada no discurso de Jaime I Stuart diante do Parlamento inglês em 1610:
Os reis são com razão chamado deuses porque exercem um poder que é assemelhado ao poder de Deus sobre a terra. Porque se vós Lordes considerardes os atributos de Deus, vós vereis como eles se adéquam à pessoa do rei. Deus tem poder para criar ou destruir, para fazer e desfazer conforme lhe aprouver, para dar vida ou enviar à morte, para julgar e para não ser julgado nem responsabilizado por ninguém [...]; e a Deus são devidos corpo e alma. Poderes semelhantes têm os reis: eles podem fazer ou desfazer seus súditos; têm o poder de elevar e deprimir; de vida e morte; são eles juízes de todos seus súditos e em todos os casos, sem serem responsáveis ante ninguém, exceto Deus. E tem poderes para exaltar as coisas baixas e rebaixar as altas, assim como o de tratar os súditos como os homens às peças de um jogo de xadrez: um peão toma um bispo ou um cavalo [knight]. E também pode valorizar ou depreciar seus súditos como faz com o dinheiro. E ao rei é devida tanto a afeição da alma quanto os serviços dos corpos de seus súditos (Torres, 1989: 288-289). 
	
O puritanismo, segundo o historiador inglês Lawrence Stone, representa uma forma de antimonarquismo pelo fato de inculcar um sentimento de certeza quanto à retidão da causa oposicionista e de indignação moral face à maldade das autoridades constituídas. Prova disso, o grupo puritano dos independentes ou congregacionistas para o qual a igreja não se define pela hierarquia clerical, mas como comunidade ou congregatio dos fiéis, e acredita que o indivíduo sozinho pode salvar-se em sua relação direta com Deus. Tal atitude fortalece a ideia da independência do julgamento moral, baseada na liberdade de credo e prática religiosa, sem mais necessidade de contar com o aval das autoridades instituídas. É a consciência individual que interpreta e aplica a autoridade religiosa suprema – o texto sagrado, lido na congregatio (Prieto, 1996: 265). [7: Os independentes ou congregacionistas, a “ala esquerda” na Câmara dos comuns, defendiam a total separação da Igreja e Estado, assim como a autonomia religiosa da congregação dos fiéis nas paróquias. Acreditavam que os cristãos podiam formar uma igreja, ordenar seu clero e estabelecer um culto reformado, sem necessidade de autorização dos magistrados. Contestavam o establishment anglicano e, o autoritarismo presbiteriano. Os ministros deviam ser eleitos pela congregação dos fiéis e pagos por contribuições voluntárias. Negavam qualquer forma de clero separado da massa dos crentes e, acreditavam que leigos preparados deviam pregar aos domingos, depois de trabalhar nos seis dias da semana. Defendiam a tolerância das seitas protestantes e, uma disciplina interna às congregações sem o aval de nenhuma sanção coercitiva. Atribuíam pouca importância aos sacramentos praticados pela igreja anglicana e, se opunham a que possa moldar a opinião segundo um padrão único: punir o pecado ou proibir a heresia. Dentre outros grupos puritanos encontravam-se também os presbiterianos, a “ala “direita na Câmara dos comuns, que eram contrários à supremacia régia na igreja e ao controle do Parlamento em matéria religiosa querendo com sua igreja, a presbiteriana, ter o monopólio da religião. ]
A Revolução Puritana, para Christopher Hill, foi uma revolução bíblica porque o texto sagrado é utilizado para expressar uma oposição política e revolucionária contra o governo Stuart e estimula o combate: “A Bíblia é uma guerra civil feita à pena, mas que, logo após, desembainha sua espada”, segundo expressão do teólogo anglicano Hooker. Acompanhando ainda o historiador inglês, podemos dizer que a tradução da Bíblia ao vernáculo representou uma mudança cultural importante: a mensagem bíblica a pessoas recém-alfabetizadas com apetite não só de instrução religiosa, mas também de aperfeiçoamento moral e intelectual, o que fez a Bíblia se converter em propriedade de todos os leigos alfabetizados e os pregadores estenderem seu conhecimento a todos os níveis da sociedade. A Bíblia era algo mais que um livro religioso, ela permeia todas as esferas da vida intelectual e social. E arremata: “Pelo fato de a Igreja e do Estado serem uma unidade, a religião tornou-se política e a Bíblia se transformou em um texto útil para ambas as esferas” (Hill, 2007: 83).
Sobre a importância da leitura das Escrituras, convém trazer a opinião do filósofo inglês Francis Bacon quando assinala, no decorrer da revolução, terem sido as práticas puritanas executadas por inovação na religião e por impostos. Tal afirmação pode ser interpretada no sentido da propriedade ser tida como essência da liberdade religiosa: dizer ser algo propriedade de um homem, afirma o autor, é dizer que a propriedade não pode ser tirada sem consentimento e que apropriar-se desta maneira é roubar, transgredir o Oitavo Mandamento (na versão protestante). Esta posição, que liga propriedade e liberdade, é relevante porque mostra uma concepção racionalda religião a qual agrada aos puritanos calvinistas, notadamente, aos membros da gentry, os quais defendiam o famoso brocado jurídico: não existe taxação sem consentimento do Parlamento (contemplado na declaração de direitos de 1689). 
Quando a leitura da Bíblia vai além de uma elite instruída, educada, conhecedora do latim, quando passa a ser, segundo o escritor inglês Daniel Defoe, um texto/impresso que fala a todos ou, segundo Thomas Hobbes, quando a Bíblia se converte num texto em que qualquer rapaz ou rapariga aprende a ler e acredita comunicar-se diretamente com Deus; isso traz como consequência muitas pessoas comuns decidirem por si mesmas a não crer mais no que a igreja oficial diz. Tal situação provocando bispos anglicanos da época a denunciarem que o acesso às Escrituras conduziria à maior audácia das pessoas - uma exigência por mais liberdade, baseada na religião. 
A insistência puritana na alfabetização popular para permitir a leitura da Bíblia trouxe como consequência: a politização de setores inferiores, yomen, artesãos urbanos, e mais radicas da sociedade inglesa, Niveladores e Cavadores,, que culmina em petições de massa, motins, etc, que caracterizam a década de 1640. [8: Os “Niveladores” (Levellers) (to level: nivelar) queriam “‘nivelar” as condições sociais. Defendiam que a soberania real devia ser transferida para a Câmara dos comuns. Seu programa de reforma fazia a defesa da população pobre da cidade e do campo, exigia a completa igualdade dos homens perante a lei, a abolição dos monopólios comerciais (dízimos) e, a plena liberdade religiosa. Os “Cavadores” (Diggers) (to dig:cavar), assim chamados porque, instalados num terreno não aproveitado, preparam a terra para a semeadura numa espécie de reforma agrária feita espontaneamente (1648). Defendiam a abolição da propriedade privada no campo e o estabelecimento de uma sociedade corporativa. E, da mesma forma que o primeiro grupo, defendia a liberdade religiosa. ]
No momento duro da revolução, membros do puritanismo se convertem em porta-vozes da oposição à monarquia Stuart e em favor do governo da lei. Assim, o “cabeça redonda” John Pym, que dirige o Parlamento no início da década de 1640, com destacada atuação na elaboração da Grande Reclamação. Puritano fervoroso, do grupo dos independentes, dirige um discurso no Parlamento, em que se opõe ao homem forte no plano secular de Carlos I, o conde Strafford, nos seguintes termos: [9: Em inglês roundheads (cabeça redonda): termo pejorativo que nomeava os defensores do Parlamento que se opunham aos cavaliers ou realistas, nobilitas maior, favoráveis à monarquia Stuart. ][10: A Grand Remonstrance (1641) foi uma exposição de queixas contra o rei Carlos I pelos atos ilegais praticados contra a Câmara dos comuns. ]
A lei é a fronteira entre as prerrogativas do rei e as liberdades do povo. Enquanto ambas se movem dentro de seus próprios âmbitos, proporcionam apoio e segurança umas às outras, mas quando as prerrogativas do rei oprimem as liberdades do povo transformam-se aquelas em tirania, e quando as liberdades anulam as prerrogativas daquele desenvolve-se a anarquia (Zipelius, 1971: 163). 
A atitude de Pym representa uma crítica aos abusos praticados pelo Estado absolutista que, mediante a praerogative regis e tribunais eclesiásticos, viola direitos e liberdades dos ingleses. Tal intervenção pode ser interpretada como a necessidade de instaurar o rule of law na medida em que se todos respeitam a lei consegue-se viver em segurança e liberdade. 
Pym propõe também a separação do religioso e do secular, ao admitir que o problema da salvação é uma questão privada e também a tolerância, mas com limites, uma vez que o exercício de prática religiosa devia dar-se no marco da lei sem afetar a ordem. Esta posição é importante porque, na sua defesa do direito de liberdade de credo e prática religiosa, apela à figura abstrata do indivíduo portador de uma consciência e capacidade de julgamento moral que lhe é inerente e, isso como base na doutrina do direito natural, o jusnaturalismo, como acontece também com outros representantes do puritanismo inglês, John Milton e, notadamente, John Locke. Todos eles exemplos da “relação umbilical” que mantém o liberalismo clássico com o jusnaturalismo (Azvritzer et alii, 2013: 19). 
A liberdade exigida pelos puritanos calvinistas recebe, depois, com Montesquieu, o nome de liberdade política. Esta liberdade tira a sua fonte daquele conceito, de cunho liberal, segundo o qual a liberdade é o poder de fazer, agir ou escolher de acordo com as inclinações ou desejos pessoais sem sofrer ingerências de terceiros.
A partir desta concepção: ser livre é não sofrer interferências externas, reconhecendo-se que quanto mais ampla for a área de não interferência maior é a liberdade. Ser livre consiste em resolver um problema prático - até onde o governo pode interferir na área na qual cada um pode atuar livremente? Resposta: na menor quantidade possível. Ou, como dirá Montesquieu, com base no governo moderado, a monarquia parlamentar que resulta da Revolução Gloriosa (1688), a liberdade política consiste em ninguém estar obrigado a fazer alguma coisa que a lei não ordene. É a lei que determina o que se pode ou não fazer, contudo, ela não existe para interferir nas atividades ou opções do indivíduo, mas para resguardá-lo de ingerências arbitrárias. 
A liberdade política corresponde a uma concepção liberal da liberdade, uma vez que ela consiste, parafraseando ainda Montesquieu, não apenas no direito de encontrar-se em segurança, mas também, como diz em Espírito, no direito de cada um manifestar o que pensa, de publicar tudo o que as leis não proíbem. Assim, se depreende dessa definição que a liberdade, quando levada ao campo político, implica o direito de todo indivíduo manifestar livremente suas opiniões em segurança legal - o governo da lei - o qual, vale reiterar, corresponde à monarquia limitada oriunda da Revolução Gloriosa, assentada na divisão dos poderes (Livro XI, Capítulo VI).
Reivindicação esta que, antes de Montesquieu, está presente em John Pym e, também, em John Milton, outro importante representante do puritanismo inglês. 
O que vale destacar deste “panfletário da revolução”, do seu Areopagítica (1644), um dos “maiores documentos da história da liberdade”, é a defesa do direito de liberdade de expressão, isso porque do confronto de opiniões sobre o que é certo ou errado é possível não só o avanço do conhecimento, mas também o desenvolvimento moral do indivíduo. O triunfo da censura, pelo contrário, é a servidão. 
De fato, para Milton, todas as opiniões, todos os erros, conhecidos, lidos e comparados são de grande valia, pois contribuem à obtenção da verdade, sendo assim entende que a medida do Parlamento que impôs a censura a seus escritos constituía uma limitação ao conhecimento: esse ato, declara, serve para desencorajar todo e qualquer estudo, ele dificulta as descobertas possíveis de serem feitas no campo do saber. Mas também tal ato é criticado, do ponto de vista moral, já que para Milton a pluralidade de opiniões permite chegar a uma opinião mais apurada sobre o bem e o mal. Assim, a liberdade de expressão é importante pelo efeito salutar que traz tanto no campo moral quanto do conhecimento: 
	Se o conhecimento e o exame do vício (do mal) são, neste mundo, tão necessários à formação da virtude humana; e se é preciso escrutar o erro para a confirmação da verdade, como fazer para explorar mais seguramente e sem maiores riscos os domínios do pecado e da falsidade, senão lendo toda e qualquer espécie de tratados e ouvindo os mais variados argumentos? (Milton, 1999: 93).
No seu pleito em favor da liberdade de expressão e opinião, Milton invoca a razão de origem divina e as liberdades cristãs: “Dai-me a liberdade, afirma em Areopagítica, para saber, para falar e para discutir livremente de acordo com a consciência acima de todas as liberdades”. O panfleto miltoniano é importante porque se converte num dosprincipais documentos do grupo dos independentes, a que pertencia. O que Milton deseja é uma reforma radical a permitir a libertação da palavra de todas as restrições, sendo a intervenção da autoridade civil mínima, por exemplo, quando a liberdade de expressão é difamatória, o ofendido devendo ser ressarcido. 
Completando a contribuição de Milton, cabe mostrar a relação dos direitos individuais com a forma de governo. Este ponto é relevante porque coloca em debate questões muito caras à atmosfera intelectual da época: a relação governo moderado e liberdade individual, sendo que a posição do autor não é unívoca, já que o governo moderado pode verificar-se sob a monarquia ou a republica. Como exemplo da primeira posição cabe citar Of reformation in England (1641) quando elogia a comunidade da Inglaterra baseada na monarquia: 
Não há governo civil conhecido dos espartanos nem dos romanos, que seja mais divina e harmoniosamente afinado, mais equitativamente equilibrado, qual se o fosse pela mão e a escala da justiça, que o da comunidade da Inglaterra, onde, sob um monarca livre e sem travas, os homens mais nobres, mais dignos e mais prudentes com plena aprovação e sufrágio do povo têm em seu poder a suprema e final determinação dos mais altos negócios (Berns, 1992: 418). 
No entanto, com base na experiência absolutista Stuart, critica esta forma de governo. Tal mudança contradizendo o que afirma em várias oportunidades: Inglaterra não deve seguir experiências políticas alheia à sua tradição (a monarquia). Assim, instaurada a República (1649-1658), onde exerce funções de governo, Milton encontra razões para rejeitar a solução do governo moderado sob a forma monárquica e adere à república:
E aqui não posso fazer menos que me congratular com a fundação deste estado [misto] com não menor prudência e liberdade das que empregaram os excelentíssimos antigos romanos e gregos; e de igual modo eles, se têm algum conhecimento de nossos assuntos, não deixaram de felicitar-se da sua posteridade, que, estando quase reduzida à escravidão, resgatou, no entanto, com tanta prudência e valor aquele estado (a república), tão sabiamente fundado com tanta liberdade, do despotismo iníquo de um rei (Sabine, 1984: 376).
 
Esta posição pode ser reforçada em outros escritos do autor em que dá curso à ideia da necessidade de se instaurar um Estado livre, ou seja, uma comunidade sem rei – a república: 
E se o povo, deixando de lado preconceitos e impaciência, considerasse agora com seriedade e calma seu próprio bem, ao mesmo tempo religioso e civil, sua própria liberdade e único meio de se chegar a ela, e escolhesse homens não adeptos a uma só pessoa (o rei) ou câmara dos lordes, a tarefa estaria cumprida, pelo menos se teria assentado as bases de uma comunidade livre, e também se haveria levantado boa parte da estrutura principal (a monarquia) (Berns: 1992: 419).
A opção de Milton pela república faz que abandone soluções insulares (a monarquia) – os cidadãos ingleses, afirma, devem ser guiados por obras estrangeiras e os melhores exemplos da história (em alusão as repúblicas do passado). Entende que o nome de reis sempre foi odiado pelos povos livres e, diante do fracasso da República (1658) e a Restauração monárquica (1660-88), declara:
Numa república livre, aqueles que são os mais importantes, são os servidores perpétuos, as bestas de carga do público que levam em suas próprias costas e esquecem seus próprios assuntos; além do mais, não se encontram em posição de superioridade em relação a seus irmãos, vivem sobriamente com suas famílias, andam na rua como quaisquer outros homens, se lhes pode falar livremente, familiarmente, sem adoração. Por sua vez, a um rei deve-se adorá-lo como um semideus, que está cercado de uma corte licenciosa e altaneira, muito dispendiosa, luxuosa, de máscaras e de diversões, que levam à corrupção de nossos verdadeiros nobres; e tudo isso para se mostrar continuamente no meio de obséquios e de atitudes servis de um povo humilhado (Burns, 1997: 415-416).
Cumpre destacar que, ao abraçar teses republicanas, Milton se afasta da doutrina dos direitos naturais, uma vez que o republicanismo defende resultarem os direitos de uma prática concreta, histórica, a república antiga (Roma) e as renascentistas (Florença e Veneza). Contudo, no intento de encontrar uma forma de governo moderada, respeitosa da liberdade individual, adere, em definitivo, a teses jusnaturalistas como se depreende da virulenta afirmativa: “Ninguém que saiba algo pode ser tão estúpido que negue que todos os homens nascem livres”.
O objetivo dos líderes puritanos (Pym, Milton) era defender os direitos dos indivíduos contra as práticas abusivas dos primeiros Stuarts (Jaime I e Carlos I) e, sendo assim, não cabe dúvida de que ambos contribuem para reforçar a ideia de que a revolução “não veio para coagir as pessoas a um modelo de opinião em política e religião, mas para dar liberdade sob e pela lei” (grifo nosso) (Trevelyan, 1982: 5). Trata-se, portanto, da tese “do império ou governo da lei” resultante da ideia (como veremos com Locke) de que não há alienação, mas delegação de poder no processo de criação dos governos e instituições políticas (Ostrensky, 2013: 51). 
A consolidação dos direitos individuais diante do abuso do poder Stuart exigia, ainda, um corpo de ideias mais sólido, capaz de estabelecer os fundamentos gnosiológicos desses direitos. Faltava a contribuição do “mais eloquente dos primeiros porta-vozes do individualismo liberal”, o filósofo inglês John Locke que, para isso, apela à doutrina do direito natural, o jusnaturalismo, e passa por cima de outra corrente política da época, o conservadorismo, que funda os “direitos dos ingleses” na ancient constitutio:
(...) a atitude que consiste em se esforçar em compreender as questões políticas inglesas a partir da história do direito inglês era comum a quase todos os homens instruídos do século XVII, a tal ponto que a descoberta de um indivíduo que escapasse à regra era algo bastante raro. Locke parece no entanto ser a exceção (...) entre os grandes autores políticos da época (Pocock, 2000: 296).
 
Prova disso (em contraste com o conservadorismo) é que do corpo de ideias de Locke existem direitos naturais e não só para os ingleses; que a origem do direito não é o costume, mas a razão; que a legitimidade do governo não provém do tempo, mas da vontade dos indivíduos, que desejam viver sob um governo – limitado – respeitoso dos direitos naturais. 
Sendo assim, nos deteremos no modo de pensar do filósofo inglês, uma vez que, do seu modelo teórico, os direitos naturais adquirem um sólido fundamento moral e racional, que, na prática, se traduz pelo exercício do direito de liberdade e prática religiosa e pelo direito de propriedade, muito caros à ética puritana calvinista, centrada, como vimos, no valor do indivíduo. 
A figura de Locke está associada aos eventos revolucionários do final da década de 1680 na Inglaterra. Um exame mais cuidadoso, como o do historiador inglês Peter Laslett, porém, mostra que o escrito sobre o Governo não teve a influência que muitos lhe atribuem: nem nos trabalhos da convenção que elabora a declaração de direitos de 1689, nem nos eventos que a antecedem. As questões abordadas no texto (lei natural, direitos naturais, origem do governo) devem ser buscadas num período anterior, 1679-83, quase uma década antes da data tradicionalmente atribuída à composição da obra (1689). Assim, conclui Laslett, o escrito sobre o Governo não pode ser considerado um panfleto da Revolução Gloriosa (1688).
Tal interpretação contradiz com a opinião de historiadores que destacam a influência desta obra nos eventos de 1688: apesar do texto ser elaborado por volta de 1681, afirmam, isso significa que era uma pièce d’occasion diferente, isto é, uma obra escrita não depois do evento para justificar uma revolução, mas antes para promovê-la. Tal opinião pode ser reforçada com base na assertiva de que o escrito sobre o Governo é um textoclássico da política calvinista, uma justificativa da revolução de 1688 e do governo da lei: Locke converteu-se no representante da teoria whig do contrato de governo e defensor dos direitos individuais e a tolerância. No escrito lockeano, acrescentam estudiosos, aparecem princípios calvinistas – a sociedade é natural e o contrato de governo é realizado com a principal finalidade de garantir os direitos naturais. E, ainda na mesma linha: 
Na Inglaterra de 1690, data na qual aparecem os Tratados do governo civil delineia-se um novo equilíbrio de forças e Locke foi o teórico (...) ele vai teorizar esse novo mundo burguês dos proprietários que tem necessidade de ordem, mas que não está decidido a abandonar tudo nas mãos do soberano. Contra as pretensões da monarquia absoluta, ele defenderá sempre os direitos e o lugar da sociedade civil (...) para Locke trata-se de conciliar os direitos da liberdade e a necessidade da ordem (Vedrine, 1982: 43-44).
Tais interpretações que destacam a influência de Locke na Revolução Gloriosa, em oposição à tese de Laslett, que vai mais longe ao questionar os eventos de 1688-89 como um triunfo whig, não exime, portanto, de considerar o filósofo inglês como o principal expoente do governo limitado e o principal precursor do jusnaturalismo, tanto para os contemporâneos, quanto para “posteridade” como reconhece o próprio historiador. 
Entender os eventos dessa época sob o conservadorismo (tory), como acredita Laslett, não impede de justificar sobre novas bases teóricas, jusnaturalista e contratualista, as mudanças que se dão com as autoridades protestantes instituídas em 1688 (Guilherme e Maria) e os direitos consagrados um ano após pelo Parlamento – o Bill of Rights – em que ambos os monarcas se submetem à lei. Fatos estes que o ensaio sobre o Governo pretende “justificar” como se depreende da leitura do Prefácio de 1689. 
Com base no exposto, importa sublinhar a influência do ensaio lockeano para a “posteridade”, um “gigante de importância histórica” como reconhece também Laslett ou, como sublinham outros: o escrito sobre o Governo sinaliza o futuro e coloca em jogo conceitos que funcionam como indicadores de transformações políticas e sociais de profundidade histórica (Koselleck, 2006: 101). 
A empreinte lockeana pode ser observada não só na justificação que faz pos-factum da Revolução Gloriosa e dos direitos consagrados em tal oportunidade, mas também por ocasião da elaboração dos principais documentos normativos de direitos humanos que resultam da revolução nos Estados Unidos e na França. O modo de pensamento do filósofo inglês, baseado na doutrina dos direitos naturais, sendo retomado pelos principais redatores das declarações de direitos nesses países (Thomas Jefferson; o marquês de La fayette, etc). Em ambos os casos encontramos ideias muito caras às de Locke: os direitos do homem que se originam na natureza - jusnaturalismo; uma teoria anistórica que serve de fundamento do corpo político – contratualismo.
Se o Segundo tratado aparece antes dos eventos de 1688, se ele foi recepcionado fora do país como texto separado, ou seja, a parte mais universalista da obra e não a mais localista ligada à conjuntura inglesa, tal “adulteração” deve-se ao rumo iluminista que esta parte da obra estava destinada a ter: as declarações de direitos humanos nos dois países mencionados estão aí para confirmá-lo. [11: O Primeiro tratado relaciona-se a uma questão local, inglesa, ou seja, uma refutação às teses de Robert Filmer que, em Patriarca, contrariamente a Locke, justifica a legitimidade do governo não a partir do consentimento dos governados, trust, mas do “primeiro Pai”, deus, e descendentes (Adão). ]
Assim, por exemplo, o Segundo Tratado que afirma:
 O estado de natureza tem para governá-lo uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses. Pois sendo todos os homens artefato de um mesmo Criador onipotente e infinitamente sábio, todos eles servidores de um Senhor soberano e único, enviados ao mundo por Sua ordem e para cumprir Seus desígnios (...) (grifo nosso) (Locke, 1998: 384-385).
E, a declaração de independência norteamericana que diz: “Consideramos as seguintes verdades como autoevidentes, que todos os homens são criaturas iguais dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis”. No que diz respeito à França, tenha-se em mente a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 - “A assembleia nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem” (grifo nosso).
Da coincidência das frases destes documentos com a passagem citada do Segundo Tratado resulta uma ambivalência, uma flutuação de sentido da palavra natureza: divina ou racional? Este ponto merece atenção se levarmos em conta que se trata de um dos “conceitos mais obscuros” do pensamento político e jurídico da Modernidade. Um conceito que serve de fundamento da lei e do direito (naturais), mas também de uma forma de governo, a monarquia parlamentar, o governo da lei, respeitoso dos direitos naturais. 
Procurar-se-ia saber, então, se a lei natural é suscetível de demonstração cientifica ou uma dádiva divina? Se a lei natural pode ser demonstrada seria porque a existência de Deus também pode ser demonstrada? Tais interrogantes podem ser melhor elucidados se considerarmos que a lei natural se funda “na e pela razão”, a razão desassistida, e também “na e pela revelação”, a razão assistida. Tratar-se-ia de saber em que medida Locke pode ser considerada o precursor do “cristianismo racionalizado”. 
Para melhor compreender se a lei e os direitos naturais obedecem à razão assistida, raisonnée, teísmo, ou à razão desassistida, raisonalisée, deísmo, segundo David Hume, ao Deus da religião ou ao Autor da Natureza (que não é objeto de oração), é oportuno remeter-nós aos dois tipos de conhecimento, distinguidos por Locke, o intuitivo e o demonstrativo. 
Esclarecida a fonte da lei natural (racional ou divina) nos deteremos, depois, na análise do direito de credo e prática religiosa, com base na opinião de que a teoria do conhecimento lockeana tem como objetivo a luta contra teses anglicanas, o direito do soberano de impor determinada crença religiosa e forma de conduta moral (Martins; Monteiro, 1978: X); além do direito de propriedade que, vale lembrar, ocupa um lugar importante na reflexão lockeana se levarmos em conta a assertiva presente no ensaio sobre o Governo que diz: “o principal objetivo da criação da sociedade civil e do governo é a conservação da propriedade”.
O empirismo lockeano se opõe ao inatismo das ideias ao sustentar que a mente possui ideias providas da experiência, seja mediante a observação dos objetos perceptíveis ou mediante a observação de nossa própria mente quando esta atua sobre ideias já recebidas. Em ambos os casos, a mente é equiparada a uma “tábua rasa”. A formação das ideias (não inatas) se faz então seguindo dois procedimentos: a intuição direta ou imediata, baseada em ideias simples, e a demonstração indireta ou mediata, baseada em ideias intermediárias. 
O primeiro tipo de conhecimento se dá através da percepção sensorial direta ou imediata de um fato ou, de uma verdade. A condição para que haja intuição é que não existem ideias intermediárias que se interponham a essa visão direta do conhecimento. Neste tipo de conhecimento, a mente percebe o acordo ou desacordo entre duas ideias por si mesmas sem intervenção de outra ideia. Não há, portanto, vacilação, isto é, dele depende toda certeza ou evidência. 
O segundo tipo de conhecimento, pelo contrário, se dá através da intervenção de outras ideias, ideias intermediárias, em que o conhecimento é imperfeito: a percepção pela demonstração, afirma em Ensaio acerca do entendimento humano, mostra-se com diminuição de brilho com respeito ao conhecimentointuitivo, neste há espaço para dúvidas, vacilações, uma vez que não é imediato, mas mediato.
Seguindo alguns exemplos do autor: a mente percebe que branco não é preto, que um círculo não é um triângulo, que 3 é = 1 + 2; aqui, a mente está dispensando qualquer demonstração, a intervenção de outras ideias. Estas proposições são certas, evidentes, e a mente não tem dúvidas sobre a verdade das mesmas, trata-se do conhecimento intuitivo comparada pelo autor à “fulgurante luz do sol” que se impõe imediatamente à percepção. A mente é comparada ao olho. Um olho em perfeito funcionamento percebe, logo, intuitivamente, no “primeiro relance e sem hesitação”, que as palavras impressas nesta folha de papel são diferentes da cor do papel; que dos ângulos de um triângulo obtuso e de um agudo, ambos desenhados a partir de bases iguais, são diferentes; que certos números são iguais ou proporcionais; que o arco de um círculo é menor do que todo o círculo.
Pelo contrário, no conhecimento demonstrativo, a mente percebe o acordo ou não acordo de qualquer ideia não de forma imediata, mas de forma mediata. Neste caso, a intuição requer a ajuda da demonstração, ideias intermediárias, a fim de nos revelar as conexões existentes entre elas. A demonstração, diz Locke, é a consciência não imediata do acordo ou desacordo de duas ou mais ideias, sendo que o emprego de outras ideias permite mostrar a sua concordância. 
O conhecimento que resulta da demonstração exige “tempo e esforço, trabalho árduo e atenção”, uma vez que a descoberta acontece de forma progressiva, por etapas e degraus, antes que a mente possa chegar, desse modo, à certeza. A este respeito, cabe citar outro exemplo do autor: a mente pode conhecer o acordo ou desacordo entre os ângulos de um triângulo e dois retos, mas não pode fazê-lo por uma visão sensorial direta e compará-los, porque os três ângulos de um triângulo não podem ser trazidos à percepção imediatamente e ser comparados com um ou dois ângulos, de sorte que a mente não tem aqui conhecimento imediato. Em tal situação, a mente se resigna a descobrir, com a ajuda de outras ideias, outros ângulos com os quais os três ângulos de um triângulo mantêm igualdade e descobrindo serem esses iguais a dois retos vem a conhecer sua igualdade a dois retos. Assim, procedendo com intuições sensórias parciais, percepções imediatas sucessivas, passos e conexões necessárias entre várias ideias, a mente pode demonstrar como se chega a esta verdade: “os ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos”. 
Logo desta um tanto longa digressão acerca dos dois tipos de conhecimento em Locke: o intuitivo ou direto e demonstrativo ou mediato, vale indagar o que acontece quando levados ao campo da moral, ou seja, à lei e aos direitos naturais? Para o autor as palavras e ideias morais são modos mistos, combinações de ideias, reunidos pela mente mediante sua própria escolha. No entanto, o significado de tais nomes não pode tornar-se conhecido como o das ideias simples por qualquer apresentação imediata (figuras da geometria; números da matemática). Sua exposição se dá, então, mediante relações conceituais. 
Pois bem! Assim como os teoremas da geometria ou axiomas da matemática são obras do homem, também o são as proposições morais, que podem ser conhecidas também cientificamente (a lei natural e os direitos naturais).
Contudo, neste caso, a tarefa é mais difícil, diz Locke, porque não há figuras, números, facilmente acessíveis à percepção sensorial direta, mas apenas palavras – são estas que constituem os diagramas (figuras, números) com os quais os nomes se harmonizam ou não. Assim, no campo da moral, o conhecimento deve lançar mão da demonstração, ou seja, descrever as várias relações que nossas ideias, as palavras, têm entre si. 
Assim, tomando exemplos do autor: “a ideia de propriedade é a de um direito a algo”, “a ideia de injustiça é a de invasão ou violação desse direito”, logo, “onde não há propriedade não há injustiça”; “a ideia de governo é o estabelecimento da sociedade com base em regras ou leis que exigem a submissão a elas”, “a ideia de liberdade absoluta significa fazer cada um o que for de seu agrado”, logo, “nenhum governo pode permitir a liberdade absoluta”. Trata-se do método demonstrativo, que, baseado em ideias intermediárias, permite mostrar a concordância necessária e inseparável existente entre essas proposições.
Seguindo à terminologia empregada nos documentos normativos do século XVIII e à empregada por Locke no Segundo tratado, caberia retomar a indagação: a lei natural e os direitos naturais devem ser ou são uma dádiva divina ou ditamen rationis? As expressões: todos os homens são iguais, todos os homens têm direitos naturais, etc., remetem a Deus, ou seja, à razão assistida, raisonée, teísmo, ou à razão desassistida, raisonalisée, deísmo? A resposta parece encontrar-se em ambas as leituras. 
A partir da primeira perspectiva, teísta, que acredita na Palavra revelada, o “Deus da religião”, a lei natural se confunde com a própria lei divina. Deus não é acessível ao conhecimento racional. Algumas máximas lockeanas ilustram esta interpretação: o Infinito é incompreensível; o Infinito em poder bondade e sabedoria; o Infinito sábio inventor nosso e de todas as coisas. Assim, de tais verdades autoevidentes, que não precisam do método demonstrativo, infere-se a ideia de um ser supremo que é, em definitivo, quem determina o certo ou errado, bem como de que somos a Sua obra e que por isso somos criaturas iguais e racionais.
Em reforço desta tese, em Racionalidade do cristianismo, Locke afirma que a tarefa de estabelecer as medidas do certo e do errado é “difícil demais para a razão”, isto é, para a razão sem revelação, a razão desassistida e, com base neste entendimento, pergunta: como estabelecer a moralidade em todas suas partes e verdadeiros alicerces com uma luz clara e convincente? Resposta: é preciso um corpo inteiro da lei da natureza divina que comprove ser a lei natural decorrente de princípios da razão. Pois bem, conclui, ninguém admitirá que o mundo possui tal corpo antes do tempo de nosso Salvador (Yolton, 1996: 76).
Com base nesta leitura, a lei natural e os direitos naturais podem ser tidos como uma dádiva divina a qual autoriza ou proíbe o que podemos ou não fazer. Trata-se da verdade revelada, de um Deus legislador, determinando o justo ou injusto, sendo que nós, criaturas criadas por Ele, recebemos passivamente a lei natural ou divina. 
A partir da segunda perspectiva, deísta, que acredita numa religião natural e no “Autor da Natureza”, mas não como vontade legisladora nem objeto de oração, a lei natural e os direitos naturais são resultados da razão raisonalisée, desassistida e, assim sendo, até Deus pode ser objeto de conhecimento. Nossas faculdades, afirma Locke, revelam o ser de um Deus. Como é possível esta descoberta? Como podemos chegar ao conhecimento d’Ele? Resposta: a demonstração, ou seja, partindo do conhecimento direto, intuitivo, de nossa existência, podemos concluir, com o auxílio de outras ideias, intervenientes, de que existe um ser chamado Deus.
 
Locke expõe os diversos passos para provar cientificamente a existência de Deus nos seguintes termos: “algo existe com percepção e conhecimento intuitivo”, “do nada não pode resultar algo”, logo, “tem que existir algo, um primeiro ser inteligente, eterno: Deus existe”. Temos, assim, duas ideias simples e outra ideia, intermediária, que permite provar a existência de uma força suprema.
De fato, para o autor, o homem sabe mediante certeza intuitiva (sensorial/direta) que do nada não é possível algo: a existência, o conhecimento, sendo assim, continua Locke, a consideração de nós mesmos, de nossa existência, de nossa razão, nos conduz ao conhecimento da seguinte verdade evidente – a de que há um ser eterno mais poderoso e cognoscente que, parafraseando o autor, se “alguém quer denominá-lo Deus, não me importa” (Locke, 1988: 177). 
Dessa maneira, a lei natural e os direitos naturaisse confundem com - pura - razão, daí as várias passagens do Segundo tratado em que o autor insiste nesta origem: a lei da natureza é a lei da razão; é nossa razão que promulga para nós a lei da natureza; é nossa razão que nos faz livre; nascemos livres assim como nascemos racionais; a liberdade do homem e a liberdade de agir conforme sua própria vontade se baseia no fato de ser possuidor de razão.
Trata-se, aqui, da razão desassistida, autosuficiente, que, sozinha, por ter descoberto a existência de um primeiro ser, é capaz de criar ativamente a lei natural e os direitos naturais, em contraste com a interpretação teísta em que ambos procedem diretamente de Deus na qualidade do primeiro legislador. 
Entretanto, importa frisar que em ambos os casos, intuição e demonstração, a lei e os direitos naturais são tidos como verdades irrefutáveis, inquestionáveis e, portanto, de alcance universal: para toda a humanidade (erga omnis homines). 
A lei natural, que consagra os direitos naturais, vida, liberdade e propriedade, faz de Locke o precursor do jusnaturalismo pelo fato de admitir que além do direito positivo existe a lei natural e que esta é superior na medida em que determina o seu conteúdo. Trata-se de uma concepção substantiva do direito, segundo a qual uma norma é válida se é justa, se está em conformidade com a lei e direitos naturais.
Em reforço disso, vale lembrar algumas premissas do modelo contratualista lockeano: a origem do poder está no povo; o governo é resultado de um trust (uma relação de confiança); o poder reside no Parlamento; o monarca é apenas a instância executiva que cumpre seu papel enquanto mandatário e servidor do povo; e, se o trust não é respeitado, cabe a resistência, sendo dissolvido o governo e retornando ao povo o poder. 
O “direito de desobediência civil” diz respeito a um problema de legitimidade (o abuso do poder), o governo não cumpre a finalidade para o qual foi criado - o resguardo dos direitos naturais - e, também, a um problema de legalidade (a usurpação do poder) o legislativo é dissolvido ou alterado em favor do executivo - que beneficia a uns poucos. O pacto lockeano de criação do governo, como vimos, é um pacto de delegação e não de alienação: ele implica a concessão provisória e condicional, ao governante, do uso de um poder limitado (Ostrensky, 2013: 51). É um pacto que está sempre em risco por não ser um de submissão, o qual, por sua vez, está sempre a salvo (Hobbes).
Em relação ao direito de liberdade religiosa interessa sublinhar a distinção trazida por Locke entre a dimensão interna e externa, ou seja, aquela relativa à consciência, à faculdade livre e racional do homem dar-se normas boas, e aquela relativa à praxe concreta, o exercício de prática religiosa. A primeira faz parte da moral, diz respeito à capacidade interna do homem de elaborar normas, a segunda faz parte da ética, diz respeito ao comportamento externo na medida em que age conforme a norma moral (religiosa), ambas sendo complementares em Locke:[12: O direito de credo e prática religiosa não aparece no Bill of Rights de 1689, contudo, cabe lembrar que em Cartas sobre a tolerância (1689) o autor defende um princípio correlato a esse direito: a tolerância, que fica reconhecido no Ato da abolição da intolerância religiosa (1694). ]
Espaço privado e espaço público não são de modo algum excludentes. Ao contrário, o espaço público emana do espaço privado. A certeza que o foro interior moral tem de si mesmo reside em sua capacidade de se tornar público. O espaço privado alarga-se por força própria em espaço público, e é somente no espaço púbico que as opiniões privadas se manifestam como lei (Koselleck, 1999:52). 
Para o filósofo inglês não há que confundir os “guardiões da alma” e “guardiães da paz”, poder espiritual e temporal, religião e governo civil, Igreja e Estado, Palavra e Espada. A primeira cuida dos bens espirituais, a segunda dos bens temporais e, apesar de ambas serem necessárias, são distintas: a espada não tem poder para assuntos da fé, não pode obrigar a crer, porque a fé é um ato pessoal e íntimo devendo limitar-se apenas a castigar os que violam a lei civil. Com base nesta distinção, o governo deve ocupar-se apenas dos bens deste mundo, do mundo do aquém, sem nada a ver com os bens do outro mundo, do mundo do além:
Considero necessário distinguir entre as funções do governo civil e da religião, e para demarcar as verdadeiras fronteiras entre a Igreja e a comunidade. Se isso não for feito, não se pode pôr um fim às controvérsias entre os que realmente têm, ou pretendem ter, um profundo interesse pela salvação das almas de um lado, e, por outro, pela segurança da comunidade [...]. Quem mistura o céu e a terra, coisas tão remotas e opostas, confunde essas duas sociedades, as quais, em sua origem, objetiva e substancialmente são por completo diversas (Locke, 1978:5;10). 
Embora a dimensão interna e externa da liberdade religiosa condigam com a verdade, a primeira, à diferença da segunda, termina no pensamento. No que tange à liberdade de credo religiosa, os artigos de fé exigem apenas que se creia neles e que de nenhum modo possam ser impostos pela autoridade civil, quanto ao direito de prática religiosa, o magistrado não deve proibir opiniões em qualquer igreja, congregatio, porque não diz respeito aos direitos civis. A intervenção da autoridade civil na prática de credo religiosa sendo admitida só com uma finalidade - a manutenção da paz: 
Se um católico acredita ser realmente o corpo de Cristo, o que outro homem chama de pão, isso não redunda em prejuízo ao vizinho. Se um judeu não acredita que o Novo Testamento é a palavra de Deus, em nada altera quaisquer direitos civis. Não cabe, todavia, às leis fundamentar a verdade das opiniões (dos artigos de fé), mas tratar de segurança e proteção da comunidade e dos bens de cada homem (Locke, 1978: 20). 
Segundo Locke, o cuidado da alma pertence a cada homem e tem que ser deixado nas mãos de cada um que conheça melhor o caminho da salvação. Entende, ademais, que os homens são mal orientados quando alguém, o magistrado, se arroja o direito de indicar o verdadeiro caminho a seguir, uma vez que não está preocupado como está cada um em sua salvação. E, em tom tolerante, diz: ninguém está subordinado por natureza a nenhuma Igreja ou designado a qualquer seita mas une-se voluntariamente àquela na qual acredita encontrar a verdadeira religião e a forma de culto aceitável por Deus. Para Locke, a Igreja, congregatio, é uma sociedade livre e voluntária em que os homens ingressam por iniciativa própria para o culto da divindade e salvação da alma (argumento este que os puritanos calvinistas endossam na íntegra), isso apesar de ser intolerante com um grupo:
Os que negam a existência de Deus (os pagãos) não devem ser de modo algum tolerados. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo. Além disso, uma pessoa que solapa e destrói por seu ateísmo toda religião não pode, baseada na religião, reivindicar para si mesma o privilégio de tolerância (Locke, 1978: 23-24).
A desconfiança em relação aos ateus não está pelo fato da não terem fé (que até podia contribuir contra as práticas arbitrárias dos Stuarts), mas, sobretudo, que essa descrença leve-os a não respeitar a lei natural, presente na base do conhecimento. A este respeito cabe trazer a opinião de outro dirigente do grupo dos independentes - John Owen:
Nós afirmamos que, anteriormente a toda consideração do poder do magistrado e da influência que ele tem sobre os homens ou sobre sua consciência, existe uma determinação superior (baseada na lei natural) do que é verdadeiro e do que é falso (...), do que é o bem e do que é o mal (Ashcraft, 1995:49). 
Assim, é em virtude da lei natural que o indivíduo é capaz de determinar o verdadeiro ou o falso, o bem ou o mal. Esta observação é importanteporque mostra, mais uma vez, a prioridade absoluta, racional e moral do indivíduo quando o que está em jogo não é só a salvação espiritual, mas também o conhecimento. Sem desconsiderar, ainda, que o conhecimento da lei natural permita justificar (além da desobediência às autoridades arbitrárias que não respeitam os direitos naturais) um aspecto muito caro para os partidários do governo da lei (rule of law): cada um dirigir suas ações conforme o conhecimento que tem do bem sem sofrer ingerências arbitrárias, em particular, do governo.
A lei natural, fonte do conhecimento e da moral, permite mostrar, seguindo estudiosos da “formação da identidade moderna”, do que é ser um self desprendido, como Locke liga identidade e moralidade. Em outras palavras: refletir por si mesmo, em virtude da razão, implica saber o que devemos fazer moralmente. Um fazer moral, bom ou mau, que depende da conformidade ou discordância de nossas ações com a lei (natural ou divina) (Taylor, 1997: 219;222).
Para finalizar com o direito de liberdade e prática religiosa em Locke, podemos afirmar que o autor teve na origem de uma primeira reforma, a religiosa, mas também de uma segunda, a secular. Da primeira, visto que Locke contribui para arrombar uma jaula de ferro para cada indivíduo construir a “gaiola” - religião - que deseja, sendo assim Locke privatiza a salvação, ao fazer de cada indivíduo-crente um “sacerdote”, afastando o controle que tinham as autoridades da época (Stuart) sobre o indivíduo. Da segunda, visto que Locke contribui para desmantelar o que a primeira reforma deixa em pé: a própria jaula de ferro - a religião. A palavra-chave da primeira reforma é a liberdade religiosa, isto é, cada um trilhar o caminho que leva à salvação eterna, enquanto a palavra-chave da segunda reforma é os direitos do homem, cada um escolher que tipo de vida deseja levar e o caminho para alcançá-la (Bauman, 2000: 160). Trata-se da doutrina do individualismo moral, da livre escolha do indivíduo, cuja uma das primeiras versões chega a nós por intermediário de John Locke (Sandel, 2012: 264; 265). 
Quanto ao direito de propriedade, importa dizer que ocupa um papel central na obra lockeana já que a sociedade, como vimos, é constituída com a finalidade de garantir este direito. Tal relevância pode ser ilustrada também na confissão do próprio autor, um ano antes de sua morte, quando se coloca como o grande teórico deste direito: “em nenhuma parte encontrei uma descrição mais clara da propriedade do que em meu livro” (o ensaio sobre Governo). 
O direito de propriedade pode ser objeto de duas interpretações: a primeira, ampla, que inclui o direito à vida, a liberdade e a posse de bens para a sobrevivência; e a segunda, restrita, que diz respeito à acumulação privada e ilimitada de bens materiais. Ou seja, o direto de propriedade como direito-meio, relativo, um direito que está em função de outros tão relevantes quanto à propriedade, o qual pode ser resumido na frase lapidar possuo logo existo; e o direito de propriedade como direito-fim, absoluto, que se encontra na base da acumulação ilimitada de bens, com a introdução do dinheiro ou da moeda. [13: Segundo tratado: parágrafos 87, 124 e 173; e, igualmente, no Ensaio acerca do entendimento humano, quando se refere à propriedade englobando o direito à vida, à liberdade e à posse - que todos os homens detêm sobre suas pessoas quanto sobre seus bens e, em Racionalidade do cristianismo, quando desdobra o alcance do direito de propriedade à vida, liberdade e bens. ][14: Segundo tratado: capítulo 5.]
A primeira interpretação destaca o seguinte: ao ampliar o conceito de propriedade Locke desloca este direito para a psicologia, ou seja, a propriedade sobre a própria pessoa implica a liberdade para o desenvolvimento do eu, da felicidade ou, ainda, o direito de propriedade lockeano implica afirmar que o homem é senhor de si, o que implica defini-lo não apenas como possuidor de direitos exercidos no mercado por meio de relações contratuais, mas também que não se encontra sujeito à vontade de outro (Ostrensky, 2006: 279). Enquanto, a segunda interpretação destaca o seguinte: os homens entram em sociedade não para conservar, mas para acrescentar suas posses e isso porque a introdução da moeda torna possível a apropriação ilimitada de bens materiais (Macpherson, 1979: 215).
As leituras que fazem de Locke um “capitalista” ou “socialista” (Laslett, 1998: 115) - o governo braço protetor da propriedade privada e a acumulação ilimitada de bens ou o estado único proprietário dos bens que os distribui de acordo com as necessidades - têm o inconveniente de ser reducionistas. Sendo assim, é possível uma interpretação alternativa do direito de propriedade que gira em torno do seguinte comentário: Locke não comete o absurdo de justificar o desejo de adquirir recorrendo a um direito de propriedade absoluto, ele defende a propriedade mostrando apenas que leva ao bem comum, à felicidade ou à prosperidade da sociedade (Strauss, 1986: 211).
O argumento lockeano sobre a propriedade pode ser resumido aos seguintes pontos: a) as coisas são dadas pela natureza (Deus) aos homens em comum para que as usem a fim de preservar-se; b) a natureza (Deus) impõe a todos os homens o dever de preservar-se; c) tudo aquilo que é incorporado através do trabalho tem caráter exclusivo-privativo. Dessas premissas resulta um fundamento de caráter naturalista/ racionalista ou divino do direito de propriedade fundado por um lado na preservação da vida e por outro lado no trabalho. O autor enumera ainda dois limites morais: a) ninguém tem o direito de apropriar-se de coisas para deixá-las perecer; b) a apropriação é legitima sempre e quando o proprietário deixe a outros copossuidores suficientes coisas para realizarem uma apropriação equivalente. [15: O trabalho, diz Locke no Segundo tratado, dá um direito à propriedade. Cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa e a esta ninguém tem direito - algum - além dele mesmo. O trabalho do corpo e a obra das mãos são propriamente dele, qualquer coisa que ele retire do estado com que a natureza a proveu e deixou misturar a ela com seu trabalho, junta-lhe algo que é seu e a transforma em sua propriedade. E acrescenta: sendo por ele retirada do estado comum em que a natureza a deixou, a ela agregou, com o trabalho, algo que exclui do direito comum dos demais homens. Por ser esse, o trabalho, propriedade inquestionável do trabalhador, homem nenhum além dele pode ter direito àquilo que a esse trabalho foi agregado. ]
A primeira leitura, Locke capitalista, o governo braço protetor do direito de propriedade individual e ilimitado, sustenta que estes limites morais se perdem com o aparecimento da sociedade de mercado – o dinheiro ou moeda. É a posição de críticos que afirmam ser abolido o primeiro limite moral com a aparição da moeda porque a existência desta contra a qual é possível trocar mercadorias assegura que nenhuma propriedade será desperdiçada. Ou seja, os bens (as terras) não vão ser desperdiçados porque da maior produção ou riqueza a ser obtida deles resultará mais moeda, mais dinheiro e, assim, a possibilidade de adquirir mais bens. E, em relação ao outro limite moral, entendem que fica comprometido, uma vez que o possuidor vai restituir aquela parcela de bens (terras) aos copossuidores, mas descontada a parte para ele sobreviver e ter mais riqueza (Macpherson, 1979: 209-232).[16: Tal situação pode verificar-se no contexto da política de cercamento de terras na Inglaterra em que os membros da gentry, como vimos, são os beneficiados em detrimento do pequeno agricultor (yeomen). ]
A segunda leitura, Locke socialista, o estado proprietário dos bens materiais, sustenta que a propriedade não pode ser avaliada fora dos deveres morais – assinalados pelo autor no Segundo tratado: a) o homem tem o direito de apropriar-se dos bens porque tem o dever de preservar-se; b) tudo aquilo que o homem adquiriu sem utilizar enquanto existem outros a quem lhes falta o necessárioconstitui uma usurpação ou roubo. Em reforço desta posição pode ser citada outra passagem do Ensaio: os deveres que resultam da lei natural (a autopreservação) são mais rigorosos quando previstos em leis humanas e acrescidos de penalidades. Assim, se depreende destas citações estar a propriedade subordinada ao dever de autopreservação, sendo necessário, portanto, uma apropriação coletiva dos bens por parte do estado que os distribuirá de acordo com as necessidades de cada um.
Contudo, como destacamos, é possível uma leitura alternativa com base no seguinte argumento: os magistrados têm como tarefa regular o direito de propriedade. Assim, governo, legislador, enquanto instância arbitral, é a encarregada de interpretar o que é legitimo ou abusivo na propriedade adotando como fundamento a preservação da vida e do trabalho. 
Desta maneira, o direito de propriedade é um direito-meio, relativo (não absoluto nem ilimitado), uma vez que está em função da posse de bens para a sobrevivência ou, como sustentam outros autores: a property lockeana significa que posso atuar como pessoa na medida em que disponho de um mínimo controle sobre as coisas; a pessoa e sua propriedade estão estreitamente ligadas ao ponto que o direito natural à liberdade deve ser considerado em função de ambas (MacIntyre, 1994: 152; 155). Tal controle sobre as coisas para ser livre, exigindo a contribuição da pessoa com seu trabalho.
A conclusão a ser extraída, então, é que a propriedade privada dos bens assegura em melhores condições que sua ausência (a apropriação coletiva dos bens pelo estado) do homem gozar de outros direitos tão relevantes quanto à propriedade e que se um conflito existe ajustes devem ser feitos, na propriedade, pela instância arbitral, em favor do gozo de outros direitos. Contudo, enquanto isso não acontecer, Locke deixa “entrever que da propriedade privada é possível obter resultados convenientes para a sociedade” (Strauss, 1986: 215). Tal opinião indo ao encontro do “protestantismo ascético” – a vida sóbria; a riqueza como fruto do trabalho que serve para os fins vitais do indivíduo e da coletividade ou, acompanhando outros estudiosos da propriedade lockeana: [17: Lembrando Voltaire: o trabalho que serve para afastar três males - a pobreza, o tédio e o vício.]
A propriedade (fundada no trabalho) é valorizada como cumprimento de uma ordem do Senhor. Deus deu o mundo aos homens, em comum, mas não para permanecer inexplorado: deu-o ‘para uso dos industriosos e racionais (e o trabalho deveria ser seu título para isso), não para a fantasia ou cobiça dos encrenqueiros e criadores de caso’. É a ética puritana, se se quiser, convertendo a prosperidade em signo de virtude (Kuntz, 1998: 104-106). 
Mais especificamente, no contexto da política do cercamento de terras na Inglaterra, de que a propriedade privada, ligada ao comércio, possa trazer com o decorrer do tempo benefícios para muitos e não só para os membros da gentry. Tal interpretação contradizendo a opinião de outros autores segundo a qual a justificativa das enclosures (que favorece esse grupo) encontra-se no Capítulo quinto do Segundo tratado (Hill, 1987: 37). 
Para concluir, podemos dizer que o puritanismo com sua defesa da liberdade de credo e prática religiosa contribui para a afirmação do indivíduo, uma vez que o problema da salvação torna-se uma questão pessoal, privada, diante das autoridades eclesiásticas e civis que pretendem o monopólio da salvação – o episcopalismo Stuart. Neste sentido, o puritanismo é uma forma de antimonarquismo, bem como uma força que contribui para a instauração e consolidação do rule of law, respeitoso dos direitos individuais (o Bill of Rights de 1689).
Sem esquecer, também, que Locke contribui para o indivíduo tornar-se dono de si, se levarmos em conta a ética puritana que valoriza a disciplina, o trabalho, os negócios, baseados na propriedade privada e que segundo uma interpretação otimista deste direito traria resultados benéficos para toda a sociedade (Strauss). Em contraste com a opinião de críticos (Hill, Macpherson), segundo a qual os principais beneficiários do direito de propriedade foram os membros da gentry, os únicos que teriam conseguido tornar-se donos de si. 
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