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Os sonhos no caso de Dora Francisco Paes Barreto O caso de Dora é a primeira das cinco histórias clínicas publicadas por Freud. São fragmentos de uma análise ocorrida em 1901 e que durou apenas três meses. Sua publicação foi em 1905, e aconteceu o que Freud havia previsto: “Antes, fui acusado de não dar informações sobre meus pacientes, agora serei acusado de fornecer, sobre meus pacientes, informações que não deveriam ser reveladas”.1 Dora mantinha péssimas relações com a mãe, que se devotava unicamente aos trabalhos da casa. Muito mais ligada afetivamente ao pai, manifestou-se, porém, a partir de certo momento, inamistosa com ele. Havia ainda seu irmão, que ela muito prezava, e uma governanta, com quem Dora aprendeu sobre questões do sexo. Quando procurou Freud, era uma jovem de apenas 18 anos. Apresentava sintomas de uma pétite hysterie: dispnéia, tosse nervosa, afonia, depressão, insociabilidade, taedium vitae. Desde cedo ela representou uma fonte de encargos para os pais, encargos que se tornaram ainda mais pesados a partir de certos acontecimentos. Que acontecimentos foram estes? Quando Dora contava seis anos, seu pai ficou tuberculoso e a família mudou-se para uma pequena cidade de bom clima. Fizeram, então, amizade íntima com um casal ali radicado havia vários anos. A Sra. K. cuidou do pai de Dora durante sua longa enfermidade e o Sr. K. sempre foi extremamente atencioso com a jovem. Passeava com ela e lhe dava pequenos presentes. Em contrapartida, Dora dedicava aos filhos do casal K. atenção quase maternal. Com o tempo, tornaram-se evidentes as suspeitas de que as relações do pai com a Sra. K. eram mais do que amistosas. O mesmo poderia ser dito das intenções do Sr. K. em relação a Dora. O ponto culminante da trama amorosa aconteceu durante um verão num dos lagos nos Alpes. O Sr. K. teve a audácia de fazer uma proposta amorosa a Dora. Incidente que foi responsável pela exacerbação do quadro clínico da jovem. A análise do caso realizada por Freud baseia-se principalmente na interpretação de dois sonhos. O primeiro foi relatado no meio do período de tratamento e o segundo no final. O primeiro sonho “Uma casa estava em chamas. Meu pai encontrava-se de pé ao lado de minha cama e me despertou. Vesti-me rapidamente. Mamãe queria parar e salvar sua caixa de joias; mas Papai disse: ‘recuso-me a deixar que eu e meus dois filhos sejamos queimados por causa da sua caixa de joias’. Descemos apressadamente as escadas, e logo que me encontrei fora da casa despertei”.2 Freud observa que, geralmente, um sonho firma-se em duas pernas, uma das quais está em contato com a causa excitante principal e corrente, e a outra com algum evento momentoso nos anos da infância. O primeiro sonho aconteceu pouco depois da cena no lago e as associações feitas a partir dele permitiram identificar várias substituições, que se equivalem entre si. Dora, sua mãe e a Sra. K. Seu pai e o Sr. K. E a mais importante: a palavra alemã utilizada para designar “caixa de jóias” (“Schmuckkästchen”) é comumente empregada também para designar os órgãos genitais femininos imaculados e intatos. Além disso, Freud vê, nas associações, a substituição de queimar por seu antônimo molhar, com evidente conotação sexual: substituição pelo oposto. A insistente reprovação de Dora quanto às ligações amorosas de seu pai com a Sra. K. revelam, assim, seu fundamento. Para Freud, um rosário de censuras a outras pessoas devem alertar o analista para um rosário de autocensuras com o mesmo conteúdo, que estaria recalcado. O que estaria latente no seu sonho, portanto, é a sua paixão pelo Sr. K. No sonho, a situação edipiana de Dora estaria atualizada nas ligações com o casal K. O segundo sonho “Eu caminhava a esmo por uma cidade desconhecida. As ruas e praças me eram estranhas. Cheguei, então, a uma casa onde eu morava, fui para meu quarto e lá encontrei uma carta de Mamãe. Esta dizia que, como eu saira de casa sem o conhecimento de meus pais, ela não desejara escrever-me para contar que Papai estava doente. ‘Agora ele está morto e, se você quiser, pode voltar’. Dirigi-me então para a estação (‘Bahnhof’) e indaguei umas cem vezes: ‘Onde fica a estação?’ E sempre me respondiam: ‘A cinco minutos daqui’. Vi então uma floresta espessa à minha frente, e nela penetrei, lá encontrando um homem a quem fiz a pergunta. Ele respondeu: ‘A duas horas e meia daqui’. Ele ofereceu-se para acompanhar-me. Mas recusei e continuei sozinha. Vi a estação à minha frente mas não conseguia alcançá-la. Ao mesmo tempo, tive a mesma sensação de ansiedade que se experimenta nos sonhos quando não se consegue mover. A seguir, estava em casa. Devo ter viajado neste meio tempo, mas nada me recordo quanto a isso. Entrei no alojamento do porteiro e perguntei por nosso apartamento. A criada abriu a porta e respondeu que Mamãe e os outros já estavam no cemitério (‘Friedhof).”3 O segundo sonho ocorreu algumas semanas depois do primeiro. Após ser discutido, a análise foi interrompida. Freud confessa que encontrou dificuldade em interpretá-lo. No contexto da análise, ele estava intrigado com o profundo sentimento de ofensa manifestado por Dora em relação à proposta do Sr. K. Nas associações que se seguiram ao sonho apareceu, inicialmente, a identificação de Dora com um jovem engenheiro que estava interessado por ela. Quanto a “perguntar cem vezes”, lembrou-se de uma interpelação à sua mãe: “Já lhe perguntei cem vezes onde está a chave”. Chave seria o correlativo masculino de caixa, ou seja, termos alusivos aos órgãos genitais. As associações correlacionaram, ainda, caixa com estação (‘Bahnhof’) e cemitério (‘Friedhof’). Avançando em outra direção, Freud investigou melhor a cena do lago. Dora revelou-lhe que, ao fazer-lhe a proposta amorosa, o Sr. K. disse-lhe: “Você sabe que minha mulher não é nada para mim”. Ela, então, esbofeteou-o e fugiu apressadamente. O significado do sonho, para Freud, estava ligado a um ardente desejo de vingança contra o seu pai e a uma fantasia de defloração: um homem procurando forçar a entrada nos órgãos genitais femininos. Quando a conclusão lhe foi comunicada, Dora reagiu imediatamente, lembrando-se de uma parte do sonho que havia esquecido: “Eu entrei calmamente no apartamento e comecei a ler um grande livro que estava sobre sua escrivaninha”. As associações levaram para uma enciclopédia onde se procura satisfazer a curiosidade sexual. O pai estava morto, ela poderia ler o que quisesse. Um dos motivos para querer vingar-se seria esta revolta contra a coerção exercida pelos pais. A análise do segundo sonho durou duas horas (ou duas sessões). Na terceira sessão, Dora comunicou-lhe que aquela seria a última vez que iria lá, decisão que já havia sido tomada há quinze dias. No pós-escrito do caso, numa nota de rodapé, a auto-crítica: “Parece-me que a minha falha esteja nesta omissão: não consegui descobrir a tempo nem informar à paciente que seu amor homossexual (ginecofílico) pela Sra. K. era a corrente inconsciente mais poderosa de sua vida mental”.4 Lacan Para Lacan, o relato do caso de Dora foi feito inteiramente para servir de envoltório a dois sonhos. E é a partir da análise desses sonhos que se tece a trama que o caracteriza. A leitura é diferente da freudiana. O Édipo de Freud é de três, o de Lacan é de quatro. A primeira vez que formalizou a questão foi em O mito individual do neurótico, quando situou o quarteto constituído pelo homem dos ratos, pelo coronel substituto do pai, pela dama rica e pela dama pobre.5 Agora, o “balé a quatro” é formado por Dora, seu pai, o Sr. K. e a Sra.K. O erro de Freud, segundo ele próprio nos confessa, foi sobre o objeto do desejo de Dora. “Ele se pergunta o que Dora deseja, antes de se perguntar quem deseja em Dora”. Ou seja, na medida em que ela está identificada com o Sr. K., o objeto que verdadeiramente lhe interessa é a Sra.K.6 Um passo a diante deve ser formulado. O interesse de Dora parte de uma pergunta: O que é uma mulher? Algo que ela não sabe o que é e que faz com que ela se apegue à mulher amada por seu pai. Na medida em que a Sra. K. encarna a função feminina, Dora fica cativada por acreditar que a mulher é que sabe o que é preciso para o gozo do homem. A análise do caso de Dora, e particularmente de seus sonhos, mostra que é na dimensão metafórica que a sua neurose assume seu sentido, e que também pode ser desatada. Dora tomada como sujeito encontra na situação uma espécie de metáfora perpétua. São as freqüentes substituições assinaladas por Freud, acrescidas da mais importante, enfatizada por Lacan: literalmente, o Sr. K. é a sua metáfora.7 Destacarei uma linha de análise dos sonhos de Dora nos comentários de Lacan. No Seminário 17, observa-se que o pai de Dora, ponto-pivô de toda a aventura, ou desventura, é propriamente um homem castrado, ou seja, muito doente, no fim da linha quanto à potência sexual. Mesmo assim é pai, o que significa que o pai não é apenas o que ele é, que é um título, como ex-combatente, até o fim da vida. Ele se constitui, portanto, por avaliação simbólica, e nesse campo simbólico chega a sustentar potência de criação. A morte do pai está implicada nos dois sonhos de Dora. No primeiro, diz o pai: “Recuso-me a deixar que eu e meus dois filhos sejamos queimados por causa da sua caixa de jóias”. No segundo, trata-se do enterro do pai; este sonho assinala que o pai simbólico é o pai morto, que só se alcança a partir de um lugar vazio e sem comunicação. Na caixa vazia do apartamento abandonado por aqueles que, depois de convidá-la, foram para o cemitério, Dora encontra um substituto para o pai num grande livro. O dicionário que ensina a respeito do sexo. Enfim, isto é o que lhe bastará da experiência analítica: o que lhe importa para além mesmo da morte de seu pai é o que ele produz de saber. Não qualquer saber —um saber sobre a verdade.8 Está aí um esboço da fórmula que se firmará mais tarde: ir além do pai, servindo-se dele. Epílogo Quinze meses após interromper sua análise, num dia 1º de abril (ela prezava as datas), Dora compareceu uma vez mais ao consultório de Freud. Queixou-se de vários sintomas e disse-lhe que estava de volta à análise. Freud não acreditou nela. Algum tempo depois, veio-lhe a notícia de que ela havia se casado. Provavelmente, com o engenheiro das associações do segundo sonho. Felix Deutsch, que foi médico particular de Freud e que se tornou psicanalista, faz revelações que nos interessam, num artigo publicado pela primeira vez em 1957. Em 1922, ele foi levado por um otorrinolaringologista a uma mulher casada, de 42 anos de idade, que apresentava, dentre outros sintomas, zumbidos e diminuição da acuidade auditiva no ouvido direito. Como seu exame médico não explicava tais problemas e ela demonstrava muito nervosismo, o otologista solicitou um estudo psiquiátrico. O esposo da paciente deixou o quarto depois de escutar as suas queixas e não mais voltou. A sós com ela, Deutsch pode ouvir um longo discurso sobre sua desafortunada vida conjugal. Sua convicção era de que seu marido era infiel e que os homens em geral são tacanhas e egoístas. Reprovou seu pai, por ter sido amante de uma jovem mulher casada, e o marido dessa mulher, do qual recebeu propostas que ela soube recusar. Falou de seus anseios de vingança contra os homens. A única exceção que abria é para seu irmão, quem muito prezava. Mesmo o seu filho, ultimamente, estava cada vez mais interessado em mulheres, razão pela qual esqueceu-se dela: todas as noites ela ficava escutando, até perceber que ele havia chegado em casa. Num dado momento, a paciente perguntou se Deutsch era psicanalista, e se havia conhecido Freud. Diante da resposta positiva, ela revelou o esperado: com certo orgulho, disse-lhe que era o caso “Dora”. Deutsch relacionou os sintomas auditivos com sua angústia ao escutar o filho voltar para casa. Sua interpretação fez com que, na próxima visita (a segunda e última) ele encontrasse a paciente sensivelmente mais bem disposta. Trinta anos depois das visitas, Deutsch conseguiu, de um informante, dados adicionais referentes a Dora e sua família. Seu pai faleceu no começo da década de trinta. Ela e o esposo mudaram-se, durante a Segunda Grande Guerra, para a França. Seu filho tornou-se renomado músico e a levou para os Estados Unidos. Seu esposo morreu de doença coronariana, torturado e desdenhado pelas suas reprovações e pelos seus ciúmes; preferiu a morte ao divórcio. Sua mãe morreu de tuberculose, internada num sanatório. Seu irmão morreu em Paris, de doença coronariana, depois de brilhante e arriscada vida política; foi enterrado com grande solenidade. Dora, enfim, morreu nos Estados Unidos, aos 72 anos de idade, de câncer de colo.9 Na vida real, Dora foi Ida Bauer. Nasceu em Viena, na Bergasse 32, na mesma quadra de Freud, embora não mais vivesse ali na época de sua análise. Seu pai, Phillip Bauer, rico industrial judeu, consultou-se com Freud devido a sintomas mentais de afecção sifilítica; foi ele quem a encaminhou para a análise. Sua mãe, Katharina, era pessoa pouco instruída e simplória. Seu irmão, Otto Bauer, tornou-se mais tarde líder do Partido Socialista alemão; foi um dos autores da proposta do eurocomunismo como terceira via. Ida Bauer casou-se com Ernest Adler e seu filho, Kurt-Herber, foi Diretor da Ópera de São Francisco. Notas 1 Freud, S. (1972) Fragmento da análise de um caso de histeria (1905) (p. 5). ESB, Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago. 2 Idem, ibidem, p. 61. 3 Idem, ibidem, p. 91-92. 4 Idem, ibidem, p. 116. 5 Lacan, J. (1985) El mito individual del neurótico. In: Intervenciones y Textos (p. 37-59). Buenos Aires: Manantial. 6 Lacan, J. (1985) O Seminário. Livro3: as psicoses (1955-1956) (p. 200). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 7 Lacan, J. (1995). O Seminário. Livro 4: a relação de objeto (1956-1957) (p. 148-149). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 8 Lacan, J. (1992) O Seminário. Livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970) (p. 89-91). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 9 Deutsch, F. (1957) Una nota “al pie de página” al trabajo de Sigmund Freud “Análisis fragmentario de uma histeria”. In: Revista de Psicoanálisis, 27, nº 3, 1970. Buenos Aires: APA.
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