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17/11/2007 00:29:00
A palavra viva
Por Frederico Barbosa
 
                                                                        Para Guita e José Mindlin
 
 “O tempo venceu a censura”, diz José Mindlin ao mostrar aos visitantes um dos tesouros da biblioteca que ele e a saudosa Guita construíram durante décadas. A edição de 1533 do livro Rimas, de Francesco Petrarca, traz alguns poemas cobertos por uma tinta já desbotada. O livro foi censurado pela igreja da época, que cobriu os versos considerados antipapistas com nanquim. Hoje, quase quinhentos anos depois, o grande bibliófilo comenta que “é perfeitamente possível ler os versos através da tinta”...
 
 
sob o nanquim da incompreensão
ressurgem as palavras
letra por letra,
verso a verso,
varam o escuro e
rebrilham à luz de outro tempo
 
de nada adiantou tapar palavras
nunca adiantou perseguir idéias
jamais adiantará calar versos
 
se idéias palavras
seguem tramando 
interditas
na trama dos versos
subterrâneas 
subversivas
vivas
 
seguem buscando
como dizer e dizem:
 
apesar da violência
a despeito das tormentas
 
dizem 
da força 
do que as escreveu
 
dizem
da persistência
da poesia
 
dizem
do carinho dos que 
as preservaram
 
cada letra palavra
a romper o escuro silêncio
é testemunho
do mundo livro
é lembrança
do poder do vivo
livro
 
os que em vão pintaram
os versos de petrarca
não contavam
com o poder do tempo
 
não contavam 
com a força do verso
não contavam com 
petrarca josé e guita
para fazer do livro
completo organismo
para fazer
da palavra vida! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Frederico Barbosa é poeta e professor de literatura, publicou os livros de poesia Rarefato (Iluminuras, 1990), Nada Feito Nada (Perspectiva, 1993), que ganhou o Prêmio Jabuti, Contracorrente (Iluminuras, 2000), Louco no Oco sem Beiras (Ateliê, 2001), Cantar de Amor entre os Escombros (Landy, 2002), A Consciência do Zero (Lamparina, 2004) e Brasibraseiro (Landy, 2004), em parceria com Antonio Risério, pelo qual recebeu seu segundo Prêmio Jabuti. Pela Landy Editora, para a qual dirige a Coleção Alguidar, publicou a coletânea Cinco Séculos de Poesia (2000), a seleção de sermões de Antônio Vieira, O Sermão do Bom Ladrão e outros sermões (2000), a edição comentada dos episódios camonianos Inês de Castro e O Velho do Restelo (2001) e, com Claudio Daniel, a antologia Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil (2002). Organizou também os volumes Clássicos da Poesia Brasileira, Poemas Escolhidos de Fernando Pessoa, Os Sonetos de Camões e Contos Escolhidos de Artur Azevedo, para a Editora Klick. Dirige, desde a sua inauguração em 2004, o Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura –  Casa das Rosas e é curador da primeira biblioteca temática de poesia do país, a Alceu Amoroso Lima, inaugurada em 2006 pela Prefeitura de São Paulo. Seus poemas podem ser lidos em http://fredbar.sites.uol.com.br E-mail: fredb@uol.com.br 
25/11/2007 17:08:00
A poesia morta
Por Luis Dolhnikoff
 
Muito se fala, ainda que não se fale o suficiente, da banalidade que assola a poesia brasileira contemporânea. Uma de suas marcas mais claras é a profusão de poetas irrelevantes que se espalha por livros editados com a ajuda financeira do autor, assim como por sites e blogs cujo número cresce mais e mais rápido do que seria sensato, útil ou razoável – materialização do democratismo antimeritocrático em voga (a existência da internet, como de qualquer outro meio, não é em si justificativa para nada: o aparecimento da imprensa, para citar apenas um exemplo, fez surgir e proliferar a “imprensa marrom”, que não deixa de ser o que é pelo fato de a imprensa em si ser uma conquista da modernidade). O mérito é, cada vez mais, o que importa menos.
         Fosse só isso, já seria ruim o bastante. Mas quando poetas mais ou menos consagrados, e em especial, poetas que professam, ideologicamente, a poesia “difícil”, entregam-se ao fácil do franco prosaísmo, não sendo um sinal de alarme – se a poesia fraca não fere nem mata, alarme para quê? –, pode, quiçá, ser motivo para um crítico mais ou menos ocioso escrever um comentário. Se a poesia ainda tem qualquer importância, terá alguma importância apontar – mesmo que sem alarme – a poesia tíbia.
 
         A expressão “palavra viva” é uma tradução sintética bastante razoável da linguagem poética. Não que qualquer outro uso da palavra seja “morto”, posto que é uso. Ocorre, porém, que a poesia é, ou deveria ser, um estado de especial vitalidade da palavra.
A poesia é o uso não-útil, isto é, não-utilitário, da linguagem verbal, a linguagem utilitária por excelência (enquanto a música, por contra-exemplo, se pode ser utilizada em certas circunstâncias, como nas marchas militares, é por natureza uma linguagem estética). A poesia é a estetização mais radical da mais pragmática das linguagens. Não se usa uma escultura para pedir pão no balcão da padaria – usam-se palavras e a sintaxe gramatical. As mesmas palavras, mas não exatamente a mesma sintaxe, da poesia.
         Por tudo isso, um poema chamado “A palavra viva” promete muito. Promete, no mínimo, um poema sobre a condição poética da palavra, o que, por mais que tal temática tenha sido usada e abusada na modernidade, é sempre um tema poeticamente relevante.
         Eis que um poeta mais ou menos consagrado, que professa, ideologicamente, a poesia “difícil”, vem de publicar neste site um poema com tal título (Frederico Barbosa, “A palavra viva”). Fosse o poema razoável, estaríamos no campo da razoabilidade, e nada de especial haveria a ser dito (pois o fundamental seria, simplesmente, sua leitura). Sendo o poema como é, torna-se, enfim, justificável comentá-lo.
 
O caso é exemplar de certo prosaísmo integral – que carece, portanto, de elementos de linguagem poética para justificar seu arranjo gráfico, feito de pedaços de frases margeados à esquerda (único aspecto do texto, assim, que embasa sua pretensa condição de poema). 
O margeamento à esquerda é uma convenção ocidental – conseqüência de a leitura ter de começar pelo início do texto. Determinou-se então, no Ocidente, que a leitura começaria acima e à esquerda (enquanto no Oriente é à direita), o que teve por conseqüência que todas as unidades subseqüentes do discurso escrito também começassem à esquerda. Por isso não somente o texto em si, como também cada parágrafo começa acima e à esquerda de seu conjunto de frases. Por isso margeamos os versos à esquerda. 
A poesia, por outro lado, divide-se tradicionalmente em versos, não em frases, porque a poesia é uma linguagem verbal constituída pelo que denomino de unidades discretas recursivas. Não cabe aqui discutir em detalhes esta definição. Mas cabe notar que a poesia é feita de unidades discretas, ou curtas, em função da própria recursividade, ou recorrência, de suas figuras formais e semânticas (de que a rima é o exemplo mais conhecido). Dito de outro modo: na poesia as figuras de recursividade, ou recorrência, incidem sobre a sintaxe, determinando suas unidades discretas. [1] Em contrapartida, a prosa é linear, contínua, fluida (como a deste meu texto: não há diferenças de sintaxe entre a prosa criativa e a analítico-discursiva; aliás, a prosa advém, historicamente, da retórica, e o seu nome da expressão oratio provosa, ou “oração em linha reta”).
         No poema em questão não há, como referido, justificativas morfossemânticas para a divisão das frases em unidades menores, ou discretas, logo, propriamente poéticas. Trata-se, em suma, do uso externo, exterior, epidérmico, de uma convenção gráfica, que visa aqui reproduzir a notação das unidades discretas da linguagem poética, de modo a “poetizar” de fora para dentro um texto cuja sintaxe é, em tudo e por tudo, prosaica.
Existem grandes poetas que fizeram uso de uma poesia sintaticamente prosaicizada (o que não é o mesmo que a famosa “poesia em prosa” – pois, apesar do nome, esta é meramente uma prosa; por outro lado,os já velhos clichês “pós-modernistas” quanto ao “fim dos gêneros”, “fim das fronteiras” etc., não podem servir para este caso, pois a opção clara do autor é pela construção do texto em versos). Os mais notórios entre aqueles talvez sejam Whitman, Pessoa e Bandeira. Mas além do fato de se tratar de poetas modernos stricto sensu, de um momento histórico em que os limites da linguagem poética estavam sendo militantemente tensionados, há ainda o fato mais relevante de se tratar de grandes poetas. Tão grandes que, de uma forma ou de outra, sua poesia tem robustez bastante para encontrar, na extrema escassez de elementos propriamente poéticos, os meios para sobreviver. São, por um motivo e por outro, exceções.
 
O poema em questão começa, não por acaso, com uma introdução em prosa. O recurso a tal introdução, que expõe por extenso uma circunstância extra-poética a fim de embasar a construção e a compreensão do poema, já indica a facilidade como marca geral do último. Em todo caso, o mais relevante, aqui, é notar que não há diferenças substanciais de linguagem entre a introdução em prosa e o poema em “versos”. 
Para demonstrá-lo, basta recortar e margear à esquerda a introdução, e, no sentido contrário e complementar, linearizar os “versos” do poema (a única diferença, além da própria disposição gráfica, está na convenção adotada pelo autor, de usar letras minúsculas para os nomes próprios no poema, mas não na prosa, o que, portanto, seguimos).
 
         Introdução em prosa, como aparece:
 
“O tempo venceu a censura”, diz José Mindlin ao mostrar aos visitantes um dos tesouros da biblioteca que ele e a saudosa Guita construíram durante décadas. A edição de 1533 do livro Rimas, de Francesco Petrarca, traz alguns poemas cobertos por uma tinta já desbotada. O livro foi censurado pela igreja da época, que cobriu os versos considerados antipapistas com nanquim. Hoje, quase quinhentos anos depois, o grande bibliófilo comenta que “é perfeitamente possível ler os versos através da tinta”...
Introdução em “versos”, como aqui proposto:
 
“o tempo venceu a censura”
diz josé mindlin
ao mostrar aos visitantes
um dos tesouros da biblioteca
que ele e a saudosa guita
construíram
durante décadas
 
a edição de 1533
do livro rimas
de francesco petrarca
traz alguns poemas cobertos
por uma tinta
já desbotada
 
o livro foi censurado
pela igreja da época
que cobriu os versos
considerados antipapistas
com nanquim
 
quase quinhentos anos depois
o grande bibliófilo comenta
que “é perfeitamente possível
ler os versos através da tinta”...
         
Poema em “versos”, como aparece:
 
sob o nanquim da incompreensão
ressurgem as palavras
letra por letra,
verso a verso,
varam o escuro e
rebrilham à luz de outro tempo
 
de nada adiantou tapar palavras
nunca adiantou perseguir idéias
jamais adiantará calar versos
 
se idéias palavras
seguem tramando 
interditas
na trama dos versos
subterrâneas 
subversivas
vivas
 
seguem buscando
como dizer e dizem:
 
apesar da violência
a despeito das tormentas
 
dizem 
da força 
do que as escreveu
 
dizem
da persistência
da poesia
 
dizem
do carinho dos que 
as preservaram
 
[...]
 
os que em vão pintaram
os versos de petrarca
não contavam
com o poder do tempo
 
não contavam 
com a força do verso
não contavam com 
petrarca josé e guita
para fazer do livro
completo organismo
para fazer
da palavra vida! 
 
         Poema em prosa, como aqui proposto:
 
Sob o nanquim da incompreensão, ressurgem as palavras, letra por letra, verso a verso: varam o escuro e rebrilham à luz de outro tempo. De nada adiantou tapar palavras, nunca adiantou perseguir idéias, jamais adiantará calar versos. Se idéias [e] palavras seguem tramando, interditas, na trama dos versos, subterrâneas, subversivas, vivas. Seguem buscando como dizer e dizem, apesar da violência, a despeito das tormentas. Dizem da força do que as escreveu, dizem da persistência da poesia, dizem do carinho dos que as preservaram. [...] Os que em vão pintaram os versos de Petrarca não contavam com o poder do tempo. Não contavam com a força do verso, não contavam com Petrarca, José e Guita para fazer do livro completo organismo, para fazer da palavra vida! 
 
         Não há, em qualquer dos casos, elementos propriamente poéticos, formais ou sintáticos, que justifiquem os cortes. Logo, os “versos”. Não se trata, portanto, num caso como no outro, de versos que mereçam o nome, mas apenas de cortes arbitrários em uma estrutura verbal de sintaxe prosaica.
A sintaxe do poema é, de fato, puramente prosaica, feita de frases gramaticais, estruturadas sobre sujeitos e predicados em ordem direta e explícita. A única exceção é a nona estrofe, acima substituída por [...]. Não que ela faça uso de elementos propriamente poéticos. O que faz é adotar o hipérbato, mera inversão da ordem natural das palavras. O hipérbato é um recurso antigo, e mais retórico do que poético, apesar de ter-se consagrado pelo uso e abuso na poesia. O “Hino Nacional”, por exemplo, é uma profusão indigesta de hipérbatos. Assim, “Ouviram do Ipiranga / As margens plácidas / De um povo heróico / O brado retumbante” é, tão-somente, a inversão “poética” de “As margens plácidas do [rio] Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico”. Na nona estrofe do poema dá-se algo semelhante:
 
cada letra palavra
a romper o escuro silêncio
é testemunho
do mundo livro
é lembrança
do poder do vivo
livro
 
“Cada letra [ou] palavra a romper o silêncio escuro é testemunho do ‘mundo’ livro, é lembrança do poder do livro vivo”.
Além desse uso restrito do hipérbato, a outra única figura sintática de linguagem presente é a anáfora. Outra vez, um recurso mais retórico do que propriamente poético, em que pese ser uma repetição, isto é, uma forma de reiteração. Ocorre que a anáfora é a forma mais pobre de reiteração, por ser, não uma recorrência de alguns elementos formais e semânticos que se cruzam, se determinam e se retroalimentam, mas uma simples e direta repetição de termos: “de nada adiantou tapar palavras / nunca adiantou perseguir idéias / jamais adiantará calar versos”. Daí a anáfora ser historicamente identificada ao discurso político de convencimento (em que a repetição insistente de uma palavra ou frase serve para convencer o público da relevância da questão assim evocada, do comprometimento do orador com ela e da necessidade de o público segui-lo).
Não por acaso, a banalidade sintática do poema se manifesta também em sua dimensão semântica. Expressões como “perseguir idéias”, “apesar da violência”, “a força do que as escreveu”, “a persistência da poesia”, “a força do verso”, “o poder do tempo”, são de uma banalidade constrangedora. São, na verdade, puros clichês. Ora, nada é menos “vivo”, em termos poéticos, do que o cadáver insepulto de uma frase cuja vitalidade foi completamente exaurida pelo uso tão fácil quanto repetitivo. A presença marcante dos clichês é ainda reforçada pela utilização abusiva de adjetivos (“palavras interditas, subterrâneas, subversivas, vivas”), enquanto a marca existencial da linguagem poética é a substantividade.
O poema, por fim, termina com um ponto de exclamação (e com mais um clichê): “para fazer da palavra vida!”. Ponto de exclamação que carece de qualquer materialidade poética. Ele é adventício, ou seja, um penduricalho, mera chave interpretativa a avisar o leitor do tom da frase, mais intenso do que na mesma frase sem o ponto. A linguagem poética, porém, depois do modernismo, tem consciência demais de si mesma para comportar tais acessórios. Seu tom deveria, portanto, ser dado por elementos internos. O recurso facílimo e fraquíssimo para indicar a “carga emotiva” da frase culmina, assim, um poema em que tudo é igualmente fácil e fraco – portanto, muito pouco “vivo”.
 
 
Adendo I [2]
 
A marca maior da modernidade é o construtivismo, senso lato. Desde que Poe comeu do fruto do conhecimento construtivo da poesia, não se pode retornar ao paraíso perdido da “inspiração”ingênua. Mesmo se a muitos leitores ainda possa parecer surpreendente que o refrão de um poema, a expressão reiterada que lhe vertebra o sentido, seja escolhido por conter ou não certa vogal. E pior: que a vogal escolhida seja, de fato, a verdadeira portadora do sentido pretendido (ao menos, do sentido poético – afinal a poesia, em que pesem expressões vazias de significado como “poesia em prosa”, não é, justamente, a prosa).
 
Não cabia dúvida de que tal fecho [invariável das estrofes], para ter força, devia ser sonoro e suscetível de ênfase prolongada, e tais considerações inevitavelmente me levaram ao o prolongado, como a mais sonora vogal. [...] Ficando assim determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra que encerrasse esse som. [3]
 
O construtivismo no sentido lato poderia incluir as formas fixas, pois um soneto, por exemplo, não se “escreve”, simplesmente, de modo espontaneísta, mas se constrói, seguindo o mapa estrutural que o define. No sentido em que o emprego, porém, construtivismo inclui não apenas a construção de um poema, mas a construção, concomitante ao poema, de sua própria poeticidade.
É mais difícil fazer um bom poema moderno do que um mau soneto: porque para fazer um mau soneto basta preencher catorze linhas de dez sílabas e escolher dois pares de rimas, enquanto para fazer um bom poema moderno não há balizas prévias. A conseqüência é que fazer, ao contrário, um mau poema moderno, não é apenas facílimo, muito mais fácil do que um mau soneto: é tão fácil que, no limite, um mau poema moderno não é nada além de um ajuntamento de palavras.
O que seria o grande desafio moderno, e está na base de poderosas criações originais como o Un coup de dés de Mallarmé, os grandes poemas fragmentários de Eliot, os Cantos polifônicos e polimorfos de Pound e de movimentos como os futurismos, o Modernismo de 22 e a Poesia Concreta, ver-se-ia, porém, degenerado e vulgarizado em seu contrário. Ao invés de cada poema ter de criar as condições de sua poeticidade, a falta de qualquer poeticidade passa a ser irrelevante (“verão, primavera / poeta / é quem se considera”[4]). Não se trata da mera falta do verso ou da métrica: mas da falta das características mais definidoras da linguagem poética – que absolutamente não se confundem com a métrica e o verso.
 
Ay, but to die, and go we know not where. 
 
Podemos ouvir um certo ritmo métrico, um pentâmetro iâmbico falado como um verso de quatro acentos. [...] Mas também podemos, se ouvirmos o verso com muita atenção, perceber nele ainda outro ritmo, um ritmo oracular, meditativo, irregular, impredizível e essencialmente descontínuo, a emergir das coincidências do esquema sonoro [grifos nossos]:
 
Ay, 
but to die…
 
                                                         and go
                                                         we know
 
                                                                                      not    
where…
 
Assim como o ritmo semântico é o primeiro passo da prosa, e assim como o ritmo métrico é o primeiro passo do épos, assim também esse ritmo oracular parece ser o primeiro passo predominante na lírica. [5]
 
Tal ritmo descontínuo, essencialmente lírico (isto é, poético), “emerge”, portanto, das recorrências sonoras: pois ay rima com die, go rima com know, e we know é um anagrama de not where. Recursividade gerando discrição, discrição recursiva gerando poeticidade (a própria necessidade de Frye de subdividir o verso de Shakespeare para analisá-lo – bem como o fato de o verso comportá-lo – não tem outra razão de ser senão a linguagem recursiva discreta da poesia [6]).
O fim das formas fixas foi, neste contexto, o abandono de certos conjuntos ou arranjos consagrados de unidades poéticas discretas, não da linguagem recursiva ou reiterativa que os criou originalmente – antes que fossem consagrados e “fixados”, isto é, repetidos. A interdeterminação morfossemântica é uma condição da linguagem poética – e uma condição não é o mesmo que uma fórmula. Daí eu afirmar que o poema moderno determina a própria poeticidade (do mesmo modo como se deu no primeiro soneto, quando não havia soneto algum a repetir). Dito de outro modo: o poema moderno tem de determinar sua própria poeticidade. Ou seja, criar seus próprios parâmetros de versos – que, senso lato, e voltando à etimologia (versus, particípio de verto, retornar), não é qualquer medida convencional, mas os elementos que retornam, que se reiteram. Pois, de outra forma, sua poeticidade não existe. E se ela não existe, não se terá um poema – apesar das aparências.
A poesia moderna deveria ser a poesia da plena liberdade da unidade discreta. [7] Liberdade da unidade discreta, porém, que não pressupõe o verso livre como licença ou tendência para o prosaísmo (o que levou ao lamento e mesmo à mea culpa de muitos modernistas, como Mário de Andrade e Drummond), mas sim para o poetismo (em que pese a pouca beleza da palavra).
 
 
Adendo II
 
Partindo de dois grandes marcos da modernidade, de um lado, o marco inaugural que foi a criação de The raven, de Edgard Allan Poe, no qual o resultado ultra-romântico seria obtido através do mais completo construtivismo racionalista (conforme descrito em detalhes em “The philosophy of composition”, 1850), demonstrando como a poesia é, mesmo num poema que parece o fruto mais puro da inspiração mais exacerbada, construção, e de outro lado, o marco histórico que foi a proposição de Pound da crítica via tradução, ou seja, via reconstrução – que é construção –, proponho aqui um exercício de crítica via criação, visando complementar e reforçar, através da síntese da linguagem criativa, a análise da metalinguagem crítica. 
Para tanto, como nos desafios repentistas ou nas glosas medievais, parti do mesmo “mote”, no caso, a introdução em prosa, para criar meu próprio poema. Tributário, naturalmente, da poesia como uma linguagem verbal recursiva discreta. O que, porém, não significa que isto, a discrição recursiva, possa ser subsumida a um estilo. O estilo é a marca particular do autor sobre as determinações da linguagem em que opera.
Do mesmo mote e das mesmas palavras: particularmente da palavra Petrarca, nome que guarda uma enormidade de sentidos duradouros, por ser, entre outras coisas, o do criador da forma soneto, moderna no sentido mais lato, ao trazer impressa a marca da poesia escrita, ao contrário da poesia medieval, de caráter ainda oral (ou cantado), e que derivei na expressão arca de pedra – que por sua vez deflagra os campos formais e semânticos do poema. Poema que resulta, então, na ponte mais ou menos extensa que se constrói pelo esgotamento dos sentidos da expressão “arca de pedra” até se ligar, por aproximação gradativa, àqueles que o nome de Petrarca aqui evoca.
 
O mote:
 
“O tempo venceu a censura”, diz José Mindlin ao mostrar aos visitantes um dos tesouros da biblioteca que ele e a saudosa Guita construíram durante décadas. A edição de 1533 do livro Rimas, de Francesco Petrarca, traz alguns poemas cobertos por uma tinta já desbotada. O livro foi censurado pela igreja da época, que cobriu os versos considerados antipapistas com nanquim. Hoje, quase quinhentos anos depois, o grande bibliófilo comenta que “é perfeitamente possível ler os versos através da tinta”...
 
O poema (“A palavra morta-viva”):
 
numa arca de pedra
– mesmo se dura a matéria
em que a matéria seca
da vida esvaída se conserva – 
muito
pouco
se preserva
 
se preserva
a presença ressecada
de esparsos pedaços do passado
nela nada resta
do que as parcas esgotaram
 
parcos ganhos da perda
 
sarcófago
significa comedor de carne
 
significa
que a vida não finda
num sarcófago
mas nele se inicia
 
caixões nada recebem
além
de restos
 
o resto já fora devorado
pelo tempo
comedor de carne
moedor do espírito
que minuto a minuto se paga
com a moeda moída e miúda
da dor diária
 
mas a vida
por mais dura
não perdura
 
a morte, portanto
por tão pouco a perpetua
 
por tão pouco tempode vida
pagamos de forma indevida
com a própria vida
 
a morte fica
para sempre
em dívida
 
cabe
aos que ficam
a parte
de lhe cobrar a parte
que lhes cabe
 
o que porém não se acaba
da vida partida?
 
a imagem
gravada na carne
viva
da memória
 
e a imagem dessa imagem
que é a arte
 
que é a arte
senão parte
quase viva
de uma vida exaurida
arrancada ao nada
         que é tudo?
 
         na quietude
da morte
tudo que não é a morte
         mais alto fala
 
         os silêncios
         do cemitério
e da biblioteca
         são plenos
         de vozes
 
         vozes silenciosas
que a voracidade
         do tempo
o grande sarcófago
porém não consome
 
na quietude
da ausência
o silêncio
fala de si mesmo
 
na quietude
da presença
de vozes caladas
gravadas
no papel opaco
da memória
– biblioteca de silêncios
que ressoam – 
ou na pele clara
do papel
– memória de vozes
que ecoam
 
a palavra
antes cantada
– o voz revoa –
depois decantada
– a escrita repousa –
no silêncio palpável
do papel
 
visível
e silenciosa
a palavra escrita
é ouvida
com os olhos
 
olhos que ouvem
a luz da tinta
ou vêem
a voz extinta
 
a poesia moderna
nasce para sempre viva
 
na arca de pedra
da forma
memória e matéria
 
o nome
que traz a marca
do artífice que a molda
e guarda
na caixa de cristal do soneto
é petrarca
 
a voz extinta
em forma e tinta
pela caverna escura do nada
ecoa
 
a linha da palavra
religa
o que a linha do tempo
rasgara
 
a palavra escrita
é a religião
(religo, religar)
do homem desligado
dos deuses
 
o homem em si mesmo
enredado
 
à religião antiga
resta tentar apagar a tinta
negra em que a modernidade escreve-se
com a tinta ainda mais sombria
da negação da morte da divindade
 
da negação da morte da divindade
nasce a igreja mais negra
a da contra-reforma
 
contra a forma
moderna
de contrapor a forma
ao informe
do espírito
 
resta-lhe desmaterializar
os livros
ou se livrar da tinta
em que estão escritos
 
tenta os dois mecanismos:
uns, queima
fazendo do papel
e da palavra
silêncio e fumaça
outros, censura
ocultando a tinta
com vagar impressa
com mais tinta
e mais pressa
 
o tempo, entretanto
se destrói tudo
nada preserva
 
nem a ânsia
insana de queimar palavras
nem a tinta
negra de ocultar poemas
 
o sol
da forma
afinal
atravessa o tecido
sombrio do caos
com a luz do sentido
 
 
 
�
[1] Definir ou descrever de forma positiva o que seja a linguagem poética há de parecer uma pretensão tão enorme quanto inútil, não apenas por vivermos um tempo de indefinições (por circunstâncias históricas e culturais, mas também por crença ideológica), porém igualmente porque o objeto em si tem fugido às definições ao longo da história (de Aristóteles a Hegel aos simbolistas). No entanto, foi justamente sua dificuldade (além do antecedente das várias tentativas afinal frutíferas levadas a termo pelos modernistas) o que me induziu a encarar o problema, de que resultou um ensaio ainda inédito, referido adiante.
[2] Este adendo é uma edição, para uso neste texto, de partes de meu ensaio inédito “Em defesa da poesia ou Contra a fluidez”.
[3] “A filosofia da composição”, em O Corvo, org. Wanderley R. Corrêa, trad. Oscar Mendes e Milton Amado, SP, Expressão, 1986, p. 65.
[4] Paulo Leminski – o poema é aqui citado de memória.
[5] Northrop Frye, “O ritmo da associação: a lírica”, em Anatomia da crítica, SP, Cultrix, 1973, p 267.
[6] A lista de exemplos semelhantes pode se estender à exaustão. Um dos mais famosos talvez seja a edição entrecortada de Pound do famosíssimo L´aura amara de Arnaut Daniel.
[7] Daí tê-lo sido de fato, num primeiro instante, antes que se perdessem a tensão e o vigor do momento modernista. Basta pensar no Un coup de dês, na poesia de Cummings ou na de Oswald. Ou mesmo no apelo contemporâneo da forma haicai, que, para além de seu exotismo “zen”, é inescapavelmente discreta. 
 
  
Luis Dolhnikoff é um poeta discreto. E-mail: luisdkf@uol.com.br
25/11/2007 17:14:00
A Volta do Morto-Vivo
Por Frederico Barbosa
 
"Brains, brains..."
(The Return of the Living Dead)
 
 
Agradeço a Luiz Dolhnikoff o extenso comentário [vide aqui], ou necropsia, que dedicou ao meu poema "A Palavra Viva". São notas bastante elaboradas sobre o meu poeminha "morto". O crítico tem todo o direito de não gostar do texto, despretensioso e marcado pela oralidade (sim, foi escrito para ser lido em homenagem ao amigo José Mindlin). Fico lisonjeado ao ver que um texto de caráter tão ligeiro, e francamente encomiástico, tenha sido objeto de comentários tão eruditos, que evocam de Aristóteles a Poe, passando por Hegel e Northrop Frye! Mesmo que o clima geral do texto seja claramente ofensivo e agressivo, a crítica não me parece pessoal e baixa. E todos sabemos, embora poucos de fato sintamos assim, que uma crítica negativa inteligente – e por isso mesmo discutível – é sempre muito melhor do que elogios vazios. 
Concordo com muitos dos aspectos apontados por Dolhnikoff no meu poema. A nossa discordância talvez seja em considerá-los negativos ou exclusivos do meu poema. Mas confesso que não me agrada muito quando Dolhnikoff  assume um tom prescritivo e vem dizer como eu devo escrever o poema: "Seu tom deveria, portanto, ser dado por elementos internos"... ou quando escreve outro poema a partir da história que eu contei, como que para dizer: "eu posso fazer melhor!" Espanta-me a arrogância e o narcisismo desmedidos. Mas o seu próprio poema "tão melhor do que o meu" pode servir para destruir o seu recurso pueril de "linearizar os versos" do meu poema para provar sua "banalidade" prosaica. Como se o mesmo não pudesse ser feito com qualquer poema. Vejamos, por exemplo, a sua resposta tão verborrágica, que o senhor Luiz Dolhnikoff considera tão superior ao meu poema, “linearizada”:
 
Numa arca de pedra – mesmo se dura a matéria em que a matéria seca da vida esvaída se conserva – muito pouco se preserva. Se preserva a presença ressecada de esparsos pedaços do passado. Nela nada resta do que as parcas esgotaram: parcos ganhos da perda. Sarcófago significa comedor de carne, significa que a vida não finda num sarcófago mas nele se inicia. Caixões nada recebem além de restos. O resto já fora devorado pelo tempo, comedor de carne, moedor do espírito, que minuto a minuto se paga com a moeda moída e miúda da dor diária. Mas a vida, por mais dura, não perdura. A morte, portanto, por tão pouco a perpetua, por tão pouco tempo de vida pagamos de forma indevida com a própria vida. A morte fica para sempre em dívida. Cabe aos que ficam a parte de lhe cobrar a parte que lhes cabe. O que porém não se acaba da vida partida? A imagem gravada na carne viva da memória e a imagem dessa imagem que é a arte. Que é a arte senão parte quase viva de uma vida exaurida arrancada ao nada que é tudo? Na quietude da morte tudo que não é a morte mais alto fala. Os silêncios do cemitério e da biblioteca são plenos de vozes. Vozes silenciosas que a voracidade do tempo, o grande sarcófago, porém não consome na quietude da ausência. O silêncio fala de si mesmo na quietude da presença de vozes caladas, gravadas no papel opaco da memória – biblioteca de silêncios que ressoam –  ou na pele clara do papel – memória de vozes que ecoam. A palavra antes cantada – o voz revoa – depois decantada – a escrita repousa – no silêncio palpável do papel. Visível e silenciosa, a palavra escrita é ouvida com os olhos. Olhos que ouvem a luz da tinta ou vêem a voz extinta. A poesia moderna nasce para sempre viva na arca de pedra da forma: memória e matéria. O nome que traz a marca do artífice que a molda e guarda na caixa de cristal do soneto é Petrarca. A voz extinta, em forma e tinta, pela caverna escura do nada ecoa. A linha da palavra religa o que a linha do tempo rasgara. A palavra escrita é a religião (religo, religar) do homem desligado dos deuses. O homem em si mesmo, enredado à religião antiga,resta tentar apagar a tinta negra em que a modernidade escreve-se, com a tinta ainda mais sombria da negação da morte da divindade.  Da negação da morte da divindade nasce a igreja mais negra: a da contra-reforma. Contra a forma moderna de contrapor a forma ao informe do espírito, resta-lhe desmaterializar os livros ou se livrar da tinta em que estão escritos. Tenta os dois mecanismos: uns, queima, fazendo do papel e da palavra silêncio e fumaça; outros, censura, ocultando a tinta com vagar impressa com mais tinta e mais pressa. O tempo, entretanto, se destrói tudo, nada preserva: nem a ânsia insana de queimar palavras, nem a tinta negra de ocultar poemas. O sol da forma afinal atravessa o tecido sombrio do caos com a luz do sentido.
 
E alguém me diga se isso não é prosaico e cheio de clichês... "A tinta ainda mais sombria da negação da morte da divindade" já diz tudo, não? Até como prosa o “da...da...da” soa péssimo... Ou que a obviedade da pseudo-reflexão pode ser disfarçada por jogos de palavra pouco discretos como: “Cabe aos que ficam a parte de lhe cobrar a parte que lhes cabe.” Lamento, mas se a crítica de Dolhnikoff até nos leva a refletir um pouco sobre o fazer poético, seu poema põe tudo a perder. Se ainda fosse um poema razoável...
Só espero que, com esta verdadeira autópsia realizada pelo crítico no meu pobre natimorto, ele não esteja defendendo a velha idéia, recorrente em seus ensaios críticos, de que a "poesia morreu". Esta idéia não é nada original, pois já era defendida por Aristófanes, na peça "As Rãs", escrita logo depois da morte de Sófocles e Eurípides, no distante ano de 405 a.C. O meu receio é reforçado pelo morte real do grande ídolo do Luiz Dolhnikoff, o poeta assumidamente conservador Bruno Tolentino, de quem o mesmo Dolhnikoff disse (http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2535) que "ilumina o entardecer de uma arte" (não seria isto também um grandissíssimo clichê?), ou seja, salvava a poesia brasileira da sua mediocridade contemporânea. Posso até concordar com o fato de o meu poema não ser extraordinário, mas não posso concordar com a utilização da sua pretensa mediocridade para servir de apoio à idéia central do texto de Dolhnikoff, a generalização sobre a "banalidade que assola a poesia brasileira contemporânea."
A banalidade muitas vezes está no leitor, por mais sofisticado que procure parecer. Agora, um aspecto do texto de Dolhnikoff me deixa um pouco preocupado com a sanidade do crítico. Acusar de banal toda a poesia brasileira contemporânea e depois apresentar sua própria poesia “genial” como antídoto para a mediocridade geral, comparando-se a Edgar Allan Poe, é com certeza megalomania e beira a demência ou a sandice. Constatando isso, aviso que não responderei mais ao senhor Dolhnikoff, para não perturbá-lo ainda mais.
No meu entender a poesia brasileira contemporânea está cheia de coisas novas e interessantes, dos mais variados matizes. E fora alguns mortos-vivos, como eu, está, com ponto de exclamação e tudo, muito viva!
 
 
 
 
 
 
 
 
Frederico Barbosa é poeta e professor de literatura, publicou os livros de poesia Rarefato (Iluminuras, 1990), Nada Feito Nada (Perspectiva, 1993), que ganhou o Prêmio Jabuti, Contracorrente (Iluminuras, 2000), Louco no Oco sem Beiras (Ateliê, 2001), Cantar de Amor entre os Escombros (Landy, 2002), A Consciência do Zero (Lamparina, 2004) e Brasibraseiro (Landy, 2004), em parceria com Antonio Risério, pelo qual recebeu seu segundo Prêmio Jabuti. Pela Landy Editora, para a qual dirige a Coleção Alguidar, publicou a coletânea Cinco Séculos de Poesia (2000), a seleção de sermões de Antônio Vieira, O Sermão do Bom Ladrão e outros sermões (2000), a edição comentada dos episódios camonianos Inês de Castro e O Velho do Restelo (2001) e, com Claudio Daniel, a antologia Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil (2002). Organizou também os volumes Clássicos da Poesia Brasileira, Poemas Escolhidos de Fernando Pessoa, Os Sonetos de Camões e Contos Escolhidos de Artur Azevedo, para a Editora Klick. Dirige, desde a sua inauguração em 2004, o Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura –  Casa das Rosas e é curador da primeira biblioteca temática de poesia do país, a Alceu Amoroso Lima, inaugurada em 2006 pela Prefeitura de São Paulo. Seus poemas podem ser lidos em http://fredbar.sites.uol.com.br E-mail: fredb@uol.com.br