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R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004124 CONTEÚDOS DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO FÍSICA E CULTURA * Eliene Lopes Faria1 Resumo Esse texto foi organizado com a intenção de propor algumas reflexões sobre a cultura corporal de movimento como objeto de ensino da Educação Física escolar — tendo como ponto de partida uma discussão sobre a relação escola e cultura. Assim, as reflexões aqui tratadas fundamentam-se na idéia de cultura como elemento central para se pensar a especificidade pedagógica da Educação Física, além de problematizar a hegemonia do esporte como conteúdo de ensino e apresentar alguns princípios orientadores da prática pedagógica. Palavras-chave: educação física escolar, conteudos, cultura. Introdução Afinal, qual é a especificidade pedagógica da Educação Física? Que prática escolar é essa? Diferentes respostas a essa questão têm sido historicamente formuladas. É que a Educação Física brasileira tem se produzido a partir de diferentes abordagens, inserções, funções e objetivos no cotidiano escolar – trata-se de propostas que disputam a hegemonia2 . Sem pretender tratar das abordagens que historicamente fizeram (e fazem) parte dessa disciplina escolar (que é de suma importância), a reflexão que se segue tem como objetivo apontar alguns caminhos que podem ser trilhados na composição do que seria o objeto de ensino da Educação Física. Contudo, como nenhum texto é neutro, esse é um convite à reflexão sobre a cultura corporal de movimento como objeto da Educação Física escolar. Para desenvolver essa temática, organizei o texto em quatro partes. A primeira – “Escola, Cultura e Educação Física” – problematiza * Este texto foi produzido como síntese do curso “Conteúdos da Educação Física Escolar” no II Fórum Brasileiro de Educação Física e Ciências do Esporte, IV Simpósio Mineiro de Educação Física e Ciências do Esporte, em Viçosa/MG, 2004. 1 Professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Ouro Preto. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. Doutoranda do Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Educação da UFMG 2 Sobre as diferentes abordagens, ver BRACHT (1997, 1999). R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004 125 as especificidades da escola nas suas relações com a cultura. A segunda parte apresenta reflexões sobre o objeto de ensino da Educação Física; a terceira propõe uma reflexão sobre a hegemonia do esporte como conteúdo dessa disciplina; e, finalmente, a quarta parte apresenta alguns princípios orientadores da prática pedagógica da Educação Física. Escola, cultura e educação física: reflexões sobre a especificidade da escola A Educação Física como área de conhecimento escolar é parte do currículo das escolas brasileiras. Trata-se de uma inserção fundamentada em aspectos legais que regem o campo da educação: conforme a Nova LDB, nº 9.394/96, § 3º, “a Educação Física integrada à proposta pedagógica da escola é componente curricular da Educação Básica ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar [...]”. Assim, não há como falar da Educação Física sem demarcar esse lugar denominado escola, ou seja, para compreender mais sobre a instituição social – da qual a Educação Física é parte – é fundamental a sua inserção crítica nesse contexto. A Educação Física como elemento integrante da escola “é uma propriedade e um produto do ambiente escolar: a ele pertence, por ele se define, nele se constitui e se realiza” (Vago, 1999. p.21). Debates/ produções sobre a Educação Física, bem como propostas de ensino que desconsideram as especificidades desse espaço social, são limitados, uma vez que a Educação Física não se explica nela mesma, mas na sua relação (as vezes tensa e conflituosa) com os contextos escolar e social. É que a Educação Física não se constitui isoladamente, mas relaciona-se com a organização escolar, com as propostas pedagógicas, com os ordenamentos legais, com as práticas corporais de movimento produzidas dentro e fora da escola, etc. Refletir sobre a presença da Educação Física na escola pressupõe, então, a compreensão de que ela é construída na e, ao mesmo tempo, construtora da escola (Debortoli et al., 2001). É partindo desse pressuposto que tomo a escola como ponto de partida. A escola – instituição criada para perpetuar saberes, conhecimentos, normas, práticas, etc. – é uma construção histórica resultante da pluralidade de dispositivos científicos, religiosos, políticos e pedagógicos. Tentar apreendê-la requer atentar-se para a sua dinâmica R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004126 interna, assim como para os dispositivos externos que permanentemente participam da sua produção (Carvalho, 1998). Não sendo um espaço social isolado, a escola dialoga com outras dinâmicas culturais, ao mesmo tempo que tematiza/elege como objeto de ensino a cultura. Como afirma Jean-Claude Forquin (1993), entre educação e cultura há uma relação íntima, orgânica, pois a escola seleciona alguns elementos da cultura para transformar em objeto de ensino3 – a escola lida com a cultura, tendo em vista que opera uma seleção cultural. Nesse sentido, explicitar o conceito de cultura é necessário, visto que ele não é produzido por consenso. Para Cliford Geertz (1978, p. 24), a cultura é entendida: como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis [...] a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidades. Considero importante aqui incorporar as reflexões de Ana Maria Rabelo Gomes (2000, p. 47), para quem “a cultura não só é um contexto como também ela tem um contexto”, ou seja, as elaborações culturais são situadas em “determinado tempo e espaço historicamente dados”. Para o conceito de cultura, a autora apresenta como necessidade o trabalho de considerar ambas as dimensões: “[...] a cultura entendida como aquela dimensão que permite aos sujeitos se situarem e a cultura ela mesma situada” (Gomes, 2000, p.48). No que se refere à relação escola e cultura, é possível, de antemão, afirmar que não se trata de relação mecânica. A escola não cumpre mera tarefa de conservação e transmissão cultural — ainda que os conhecimentos e práticas selecionados demarquem hierarquias socioculturais na legitimação dos saberes que constituem a versão autorizada da cultura. É que, ao se apropriar desses conhecimentos e práticas culturais, a escola (os sujeitos) o faz imprimindo suas marcas, práticas, sentidos, valores, significados, etc., permitindo-lhe afirmar-se cotidianamente como espaço de produção humana e, também, 3 Por outro lado, não só os conteúdos de ensino (que são a versão autorizada da cultura para o ensino escolar) constituem a trama escolar. A compreensão dos conhecimentos e práticas com os quais a escola lida é alargada quando incluímos nesse rol outras práticas que compõem o seu cotidiano – práticas que, mesmo sendo marginais nesse contexto, são constituídas e constituintes da escola. A escola como espaço sociocultural (Dayrell, 1996) é espaço fundamental de vivências, de embates, de lutas, de diversidade e de diferentes formas de ocupação, dada por múltiplos interesses e práticas, não apenas as formalizadas como conteúdos disciplinares. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004 127 reinvenção da cultura. Ou seria a escola o único espaço social no qual a cultura não é contestada, apropriada e reconstruída, quando temos hoje uma diversidade de pesquisas que permitem afirmar que os processos de apropriação cultural não são passivos? Mas, se a cultura é reproduzida/produzida dentro e fora da escola, o que caracteriza a experiência escolar? Essa questão nos leva aproblematizar as especificidades das instituições de ensino. Nesse sentido, interessa-nos o conceito de forma escolar, pois são colocadas em foco “práticas constitutivas de uma sociabilidade escolar e o modo, também escolar de transmissão cultural” (Carvalho, 1998, p.2). Segundo Guy Vicent, Bernard Lahire e Daniel Thin (2001), no que se refere a escolarização, foi possível assistir à constituição de “formas relativamente invariantes (isto é, recorrentes) de relações sociais” – “certas formas escolares de relações sociais”. Segundo os autores, a emergência da forma escolar4 “se caracteriza por um conjunto coerente de traços”, dentre os quais destacam: a “constituição de um universo separado para a infância; a importância das regras na aprendizagem; a organização racional do tempo; a multiplicidade e a repetição de exercícios, cuja a única função consiste em aprender conforme as regras” (Vicent; Lahire; Thin, 2001, p.38). Para Vicent, Lahire e Thin (2001), a forma escolar de socialização é hoje hegemônica e se impôs a outros modos de socialização, ou seja, afirmam a existência de uma pedagogização das relações sociais5 – da mesma forma que, “inversamente, a instituição escolar pode ser atravessada por formas de relações sociais”. Contudo, é preciso considerar que o fato de o modo escolar de socialização ter se tornado dominante não significa que não haja resistências por parte dos sujeitos sociais. “Deve-se contar, em especial, com as diferentes apropriações operadas pelos diversos grupos sociais” (Vicent; Lahire; Thin, 2001, p. 42). Para Vago (2003, p.200), a conformação da escola dá-se a partir de lógicas diferenciadas, e nelas estão envolvidas percepções de diferentes sujeitos. 4 Para Vicent, Lahire e Thin (2001, p. 9), a forma é, antes de tudo, aquilo que não é coisa, nem idéia: uma unidade que não é a da intenção consciente. Afirmam que há uma codificação do conjunto de práticas escolares: “dos saberes ensinados aos métodos de ensino, passando pelos aspectos mais insignificantes da organização do espaço e do tempo escolar, nada é deixado ao acaso, tudo é objeto de escrita, de decomposição, fixação de movimentos e das seqüências, permitindo assim uma sistematização reforçada e um ensino simultâneo” (p.29). 5 Conforme Vicent, Lahire e Thin (2001, p.39), “encontram-se, hoje, numerosos elementos e traços da forma escolar (em graus diversos) nas práticas socializadoras” e que a “predominância do modo escolar de socialização se manifesta pelo fato da forma escolar ter transbordado largamente as fronteiras da escola e atravessado numerosas instituições e grupos sociais”. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004128 De fato, as últimas décadas foram determinantes para a construção de um rol de conhecimentos sobre a escola que – passando a interrogar o discurso da neutralidade dos processos de formação e levantando elementos para a compreensão de que a escolarização é permeada não só pelos conteúdos escolares (os ditos) – começam a dar relevo à organização escolar (aos não-ditos impressos nos seus tempos, espaços, ornamentos, regulamentos) como um currículo capaz de inserir na formação da criança/jovem uma regulamentação do uso adequado do espaço escolar e, também, do contexto cultural em que a escola se insere6 . No entanto, a imagem de escola encerrada na passividade, como mera receptora e transmissora da cultura, com capacidade de controlar totalmente as práticas vividas nos diversos tempos e espaços por ela organizada, parece ser insuficiente para explicar a sua dinâmica interna. A idéia de práticas escolares baseadas unicamente na rotinização, repetição e totalmente formatadas pela escola tem negligenciado uma gama importante de possibilidades de ação dos atores que constituem a escola e são constituídos nela. A escola como espaço sociocultural é, também, espaço de vida, de intervenção, de invenção e de produção da cultura, de sujeitos – ainda que num jogo desigual de relações de forças. É que a cultura, como campo no qual coexistem conformação, conflito, poder e resistência, é constituída da e na negociação de significados. Conforme afirma Denys Cuche (2002, p.137), “toda cultura é um processo permanente de construção, desconstrução e reconstrução”. Assim, os sujeitos escolares (professores e alunos) compõem uma trama complexa de relações sociais que, se por um lado, viabilizam relações de poder, a manutenção de hierarquias sociais expressa na seleção dos conteúdos de ensino e imposição cultural, por outro, não se resume a isso. É que também na escola (e nas aulas de Educação Física) os sujeitos não são meros executores passivos das práticas pedagógicas, dos regulamentos, da cultura eleita. Professores e alunos participam da construção da escola e de si mesmos como sujeitos 6 Estudiosos do currículo (Escolano; Frago, 1998) discutem a questão apontando que a categoria espaço não é esquema neutro, mas trata-se de uma organização que tende a “instituir” e “disseminar” sistemas de valores e ordens que indicam na perspectiva do disciplinamento e do controle como fonte de experiência e aprendizagem (o espaço educa). Sendo um currículo silencioso, o espaço escolar é dotado de significados que transmitem estímulos, conteúdos... Assim, o espaço escolar, longe de ser uma propriedade “natural”, passa na escola a ser assimilado como uma ordem a ser aprendida, como cultura a ser experimentada. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004 129 sociais (Vago, 2003). Assim, na escola ocorrem práticas contraditórias e ambíguas – nem total dominação/submissão cultural, nem total resistência/autonomia cultural (elas coexistem). Contudo, é papel de todos nós, educadores e educadoras, propor novas possibilidades de interpretação, vivência e fruição da cultura na escola, de forma que a sua recriação faça parte de um projeto educativo (intencional). Enfim, a escola tem a função de perpetuar a cultura (a partir da sua seleção e transformação em objeto de ensino), mas, superando isso, é também produtora de cultura – as apropriações das práticas culturais e a forma escolar de organização dos saberes podem ser entendidas como produções culturais da escola. É nesse contexto que a Educação Física vai se inserir, com seus dilemas, propostas, especificidades, etc. Como afirma Jocimar Daólio (1998), a cultura é o principal conceito para se pensar a Educação Física.7 Assim, algumas questões devem estar no horizonte do professor de Educação Física: Que seleção cultural efetua a Educação Física na escola? Qual o diálogo que essa disciplina escolar tem estabelecido com a cultura? O objeto de ensino da Educação Física: reflexões sobre a cultura corporal de movimento Compartilho da compreensão de Educação Física como “área de conhecimento escolar” que realiza sua intervenção pedagógica tendo como objeto de ensino a cultura corporal de movimento8 , ou seja, entendo que o que torna a Educação Física singular é que ela é o espaço/tempo escolar em que os elementos da esfera da cultura corporal de movimento” são tematizados: os esportes, os jogos, as danças, as ginásticas, as lutas, as brincadeiras, entre outros temas da cultura – colocados no plural, no sentido de serem produzidos pela humanidade e parte do seu patrimônio cultural, mas também pela pluralidade de sentidos/significados, sendo jamais fixos, acabados, estáticos e homogêneos. Mas, se a princípio estamos tratando dos mesmos conteúdos de ensino (das mesmas práticas culturais), demarcados por outras abordagens da Educação Física, como afirma Valter Bracht (1997), a perspectiva da cultura corporal de movimento possui diferenças 7 Para saber sobre o conceito de cultura em diferentes abordagens de ensino, ver Daolio (1998). 8 Conforme Bracht (1997) e Debortoli; Linhales; Vago (2001). R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004130 importantes no plano pedagógico.A principal delas é que esses saberes são interpretados no plano da cultura, sendo entendidos como produtores de sentidos mediados simbolicamente – conforme visto anteriormente, a cultura é o elemento-chave para o empreendimento educativo. Isso vai apontar desdobramentos importantes na prática pedagógica da Educação Física, ou seja, as práticas corporais de movimento devem ser estudadas na escola “como uma complexa estrutura social de significados em contextos e processos históricos específicos” (Bracht, 1997, p. 17). Movimentos de sujeitos que agem, constroem, mas que são parte de uma teia, sendo a cultura entendida como preexistente aos sujeitos e ao mesmo tempo produzida/ reproduzida pelos sujeitos (Gomes, 2000). Segundo Valter Bracht e Ricardo Crisorio (2003, p.8), a Educação Física tem historicamente se legitimado na sociedade a partir de um conhecimento (na maioria das vezes biologizado) “que se coloca como universal e abstrato, que prescinde da prática e, conseqüentemente, dos sujeitos concretos”. Os autores argumentam no “sentido da necessidade de nos distanciarmos do discurso das naturezas ou essenciais”. Para isso, torna-se cada vez mais urgente superar práticas pedagógicas que se fundamentam na idéia de que os saberes/ conhecimentos tratados nas aulas de Educação Física são intervenções sobre o corpo/movimento desculturalizado, biologizado e mecanizado, portanto, a-histórico, natural, universal e neutro. A Educação Física “atua com a cultura relacionada às expressões de movimento humano. Seus profissionais, portanto, não lidam com o corpo, mas com a cultura expressa nele e por ele” (Daolio, 1998, p.26). A compreensão de corpo e de movimento humano produzidos nas aulas de Educação Física deve ser complexificada, no sentido de serem entendidos como produtores de símbolos e linguagem. Assim, o objeto da prática pedagógica do professor de Educação Física é uma construção permanente das práticas corporais nas aulas e não o trato de uma dimensão inerte da realidade (Bracht, 1997). Partindo dessa compreensão, os esportes, os jogos, as brincadeiras, as ginásticas, as lutas, etc. devem ser estudados com parte da produção cultural da humanidade que expressa seus valores, normas, crenças, conceitos e preconceitos. Aqui, novamente, o conceito de cultura é frutífero para a Educação Física, uma vez que essas manifestações corporais do homem são “geradas no seio de determinada cultura e se manifesta R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004 131 diversificadamente no contexto dos grupos culturais específicos” (Daolio, 1998, p.12).9 Como prática escolar e social que possui projetos humanos e sociais em disputa, a Educação Física pode provocar tensão na produção cultural da sociedade, uma vez que questiona as desigualdades que engendram as práticas corporais de movimento no cotidiano escolar – desigualdades de acesso à cultura entre diferentes raças, gêneros, etnias, classes sociais, etc. A idéia é operar uma desnaturalização das práticas corporais de movimento e da sua inserção na sociedade. Para isso, a Educação Física precisa superar a realização de práticas que se resumem a mera transmissão (aprendizagem técnica) de conteúdos, fundamentando-se, pois, numa reflexão/ produção crítica de conhecimentos sobre as práticas corporais que compõem a cultura. Isso requer a superação da concepção de educação como campo de transmissão de informação para produção de conhecimento – que se compõe no jogo de interações que ocorrem na aula, o jogo tenso da negociação de significados. Finalmente, vale destacar, ainda, duas observações importantes. A primeira delas é que não se está propondo uma negação dos saberes técnicos, táticos, de regras ou biológicos. Como produções histórico- culturais, eles devem ser tematizados como tal – embora essas não sejam as únicas dimensões das práticas da cultura corporal de movimento a ser incorporadas às aulas. Outra reflexão importante é que não se está propondo também que a Educação Física se torne um discurso sobre as práticas corporais de movimento, mas um espaço/ tempo escolar em que a realização/estudo dessas práticas oriente-se pela compreensão da cultura como campo da atividade, da participação, do conflito, da mudança. Por exemplo, de que adianta discursar sobre um projeto de Educação Física com objetivo de formação cidadã, quando continuamos em nossas práticas pedagógicas elegendo como princípio a competição, a superação do outro, a rivalidade, quando os sujeitos que delas participam não vivem essa condição (a cidadania) como possibilidade de inclusão nas aulas de Educação Física? Enfim, a tarefa da Educação Física, como afirma Bracht (1997), é ambígua: trata-se de um saber que se traduz num fazer, ao mesmo tempo que é um saber sobre o realizar corporal. Mas o desafio colocado é superar dicotomias, e nesse sentido é novamente Bracht (1997, p. 22) que nos 9 Para Daolio, “ ...o que dá sentido ao movimento humano é o contexto onde ele se realiza” (p19). R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004132 provoca: “[...] Nem movimento sem pensamento, nem movimento e pensamento, e sim, movimentopensamento”. A hegemonia do esporte como conteúdo de ensino: apontando alguns limites10 Afinal, por que se torna fundamental problematizar a inserção do esporte na Educação Física em um texto que se propõe a pensar seu objeto de ensino? Por que não eleger a ginástica, a dança, o jogo (entre outros), mas sim o esporte para esse debate? É que os últimos anos têm sido de afirmação do esporte como conteúdo hegemônico da Educação Física, ou seja, ainda que outros conteúdos penetrem as aulas, o esporte compõe a Educação Física, cada vez mais, como elemento central – o que não significa homogeneidade nas maneiras de produzi-lo, tampouco que não há resistência à sua hegemonia por parte de professores e alunos. Dessa forma, uma questão de suma importância se coloca para reflexão: O que torna o esporte um conteúdo de ensino da Educação Física capaz de “apagar” outros conteúdos na ampla esfera de conhecimentos e práticas culturais? Com impacto nas aulas de Educação Física das escolas brasileiras, o esporte provoca a construção de certas representações sobre a própria especificidade pedagógica dessa disciplina. O esporte e a Educação Física parecem, pois, assumir características de similaridade, chegando-se muitas vezes a confundir o significado de ambos na escola.11 Acredito que a Educação Física seja o espaço/tempo oficial de tratar pedagogicamente o esporte na escola, não devendo, entretanto, ser este o único conteúdo a fazer parte do projeto pedagógico dessa disciplina. Contudo, a sua manifestação nas escolas tem sido diária, o que nutre a representação de Educação Física como sinônimo de esporte. Muitas são as maneiras de explicar a disseminação das práticas esportivas não só nas aulas de Educação Física. Para Bracht (1992, p. 37), o fenômeno de expansão do esporte está vinculado a interesses do Estado e do mercado: 10 Parte das reflexões sobre a hegemonia do esporte contidas nesse item encontra-se publicada no artigo: FARIA, E. L. O esporte nas aulas de Educação Física. Belo Horizonte: Revista Presença Pedagógica, v.7, n.41, set./out. 2001. 11 Ver Faria, 2001. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004 133 a eleição ou tematização na Educação Física de um determinado elemento ou manifestação da cultura corporal/ movimento está relacionada, direta ou indiretamente, com as necessidades do projeto educacional hegemônico em determinada época, e com a importância daquela manifestação no plano da cultura e política em geral. Para Forquin (1993, p. 14), “toda educação do tipo escolar supõe sempre na verdade uma seleção no interior da cultura e uma reelaboração dos conteúdos da cultura destinados a serem transmitidos às novas gerações”, sendo fundamental a construção de uma problemáticaverdadeira, no que se refere às relações estabelecidas entre escola e cultura. Para esse autor, o trato com a questão da seleção dos conteúdos escolares requer não só o estudo centrado nas práticas “dignas” dessa cultura, como também do rol de conhecimentos e práticas que dela são excluídos, ou seja, apenas uma pequena parte da cultura se constitui como objeto de transmissão explícita e intencional nas escolas, mas tal apropriação impõe a sua reelaboração. Sobre a seleção cultural escolar, Forquin (1993, p. 16) acrescenta: o que se ensina é, então, com efeito, menos a cultura do que esta parte ou esta imagem idealizada da cultura que constitui o objeto de uma aprovação social e constitui de qualquer modo sua ‘versão autorizada’, sua face legítima. Ora, se a educação escolar é realizada por meio da seleção de determinados elementos da cultura, é importante, para entender as razões que conduzem o esporte de forma tão incisiva para as aulas de Educação Física, dar atenção a fatores que estão além de sua prática na escola, ou seja, que perpassam a esfera dos interesses e práticas socioculturais. Para Bracht (1995), a explicação da hegemonia do esporte na Educação Física, assim como em outras instâncias da esfera social, deve ser buscada no desenvolvimento do próprio esporte como fenômeno de relevância social, política e econômica.12 No que se refere aos interesses e intervenções do Estado no setor esportivo, Meily Assbú 12 O autor levanta algumas considerações que dão visibilidade às motivações geradoras de tal hegemonia: 1 - O esporte assume dimensão social, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, que não nos permite ignorá-lo como fenômeno: ocupa e mobiliza multidões e passa a fazer parte do cotidiano de praticamente todas as pessoas, com incremento dos meios de comunicação de massa. 2 - O esporte mobiliza grandes e poderosos interesses políticos; em conseqüência, passa a receber a atenção do Estado de uma forma muito evidente. 3 - O esporte, mais recentemente, a partir principalmente da década de 70, assume enorme e crescente importância econômica. Ele mobiliza recursos econômico-financeiros de tal ordem que passa a ser assunto de Estado. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004134 Linhales (1996) faz considerações importantes a partir do estudo da trajetória política do esporte no Brasil. Para a autora, o esporte, no período entre 1945 e 1964, fez parte do projeto de modernização e urbanização brasileira, ou seja, “a idéia de progresso tornou-se um elemento de peso para o período em questão”, sendo que “a crescente urbanização, a industrialização, o incremento do capitalismo e a emergência da sociedade de massas permearam o esporte moderno bem como o projeto nacional desenvolvimentista”. Esse contexto foi extremamente propício ao desenvolvimento do esporte, prática social de destaque nas diferentes manifestações da modernidade brasileira, produzindo, implicitamente, em sua expansão, o caráter hierárquico, desigual e excludente da própria sociedade (Linhales, 1996, p. 154). No âmbito da Educação Física, a autora afirma que o esporte se tornou conteúdo hegemônico nesse período, com a difusão do Método Desportivo Generalizado, que destacou “o esporte como fator de bem- estar das futuras gerações e importante atividade para o preenchimento das horas de lazer” (Linhales, 1996, p. 159). Diz a autora: O esporte torna-se presente na cena urbana e, de certa forma, estende-se ao meio rural; adentra os meios de comunicação e a indústria, tornando-se bem de consumo; consolida-se como conteúdo hegemônico da Educação Física, além de se fortalecer como setor de atuação do poder público em diferentes níveis (Linhales, 1996, p.160). (grifos meus) Linhales (1996) adverte ainda que, no período subseqüente, o período de ditadura militar, esse modelo se aprimorou, tornando-se massificado. Para a autora, a Educação Física não saiu ilesa do período de ditadura, enquanto o esporte continuou seu percurso em expansão, sendo mais um dos setores de investimento do regime autoritário.13 Novos ordenamentos legais foram instituídos no País nesse período, para afirmar a hegemonia do esporte na escola. No que se refere às regulamentações dessa cultura, o Decreto nº. 69.450/7114 ampliou, ainda mais, as possibilidades de inserção do esporte nas práticas da Educação Física, ao mostrá-lo (nas entrelinhas) como objetivo das aulas. 13 Para Linhales (1996, p. 162), os investimentos no esporte pós-64 objetivavam extrair “conteúdos sociopolíticos ou ideológicos”, usados como recurso do poder instituído. Para a autora, “o esporte, que chegou à década de sessenta massificado e permeado por cisões e interesses particularistas, tornou-se, sob a égide da ditadura militar, um setor submetido ao controle burocrático e tecnocrático do Estado autoritário, servindo, em alguns momentos decisivos, como representação da identidade e coesão nacional idealizada” (p. 163). 14 Decreto nº. 69.450, de 1o de novembro de 1971. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004 135 Para Eustáquia Salvadora de Sousa e Tarcísio Mauro Vago (1997, p. 24), tal decreto explicita como atividades a serem ministradas nas aulas de Educação Física, a partir da 5ª série, as “de iniciação esportiva” ou “práticas de natureza desportiva”. Dessa maneira, os autores apontam que “a submissão do ensino da Educação Física ao esporte, iniciada no período pós-Segunda Guerra Mundial, foi ainda mais radicalizada”, o que acabou por contribuir para que tal prática cultural “se consolidasse praticamente como conteúdo exclusivo das aulas de Educação Física”. A marcante penetração/presença do esporte nas aulas de Educação Física está associada, também, à dinâmica de uso do espaço da escola e ao discurso pedagógico de uma dada época revelado na arquitetura escolar. É fato que a construção de espaços (quadras) para aulas de Educação Física expressa um discurso dos conteúdos a ser escolarizados nessa disciplina. Como afirma André Chervel (1990, p. 194), “as condições materiais nas quais se dá o ensino estão estreitamente ligadas aos conteúdos disciplinares” . Tal condicionante, que não determina por si só as práticas escolares, tem, em muitos momentos, inviabilizado o uso de outros espaços da escola (além da quadra) para as aulas de Educação Física. No percurso de afirmação da hegemonia das práticas esportivas não faltaram aliados. Aliás, o esporte tem se colocado como o grande filão do mercado de vendas dos mais variados produtos e serviços (ele próprio passa a ser consumido como produto) e de valorização de princípios e normas advindos desse mercado. Disseminado maciçamente pelos meios de comunicação, o esporte passa a fazer parte do cotidiano brasileiro (por exemplo: no lazer, no trabalho, na escola). Os usos do esporte nos mais variados âmbitos sociais, contudo, não podem ser caracterizados a partir da homogeneização. Para Linhales (1996, p. 20), “a progressiva especialização e racionalização do esporte estimula e gera demanda para uma infinidade de serviços especializados, que acabam se tornando imprescindíveis”. A autora, porém, adverte: [...] reconhecer tal influência e o seu poder de penetração não significa, entretanto, adotar como única referência explicativa os modelos de determinação histórica que postulam relações de dependência imediata dos fenômenos esportivos dos condicionantes macroestruturais de natureza socioeconômica (Linhales, 1996, p.21). R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004136 Em síntese, a inserção do esporte nas aulas de Educação Física não é uma questão simples, nem neutra – informa um discurso educativo e um projeto social15 . Selecionado como conteúdo de ensino hegemônico das aulas, o uso do esporte acaba por produzir, muitas vezes, a instrumentalização de outros conteúdos. Assim, eles são apresentados às crianças e aos jovenscomo suporte para o desenvolvimento esportivo – como exemplo, alguns jogos e brincadeiras (que têm inserção histórica, sentidos/significados próprios e valor cultural no conjunto de práticas populares brasileiras) são apresentados nas aulas de Educação Física com o objetivo de desenvolver habilidades esportivas, ou seja, fundamentados na idéia da aprendizagem motora (transferência de habilidades), professores instrumentalizam essas práticas na iniciação esportiva (a queimada como iniciação ao handebol, por exemplo). Infelizmente, a hegemonia do esporte nas aulas (para além dos problemas colocados a sua prática), ainda que não elimine totalmente outros temas da cultura corporal de movimento, tem provocado a marginalidade de conteúdos como jogos, danças, ginástica, brincadeiras, lutas. Isso quando não ocorre nas aulas de Educação Física a exclusão sumária de práticas corporais de movimento que não sejam modalidades esportivas. Como aponta Jurjo Torres Santomé (1995), trata-se de práticas silenciadas no currículo escolar, de culturas negadas na escola e também fora dela. Tal fato demanda a introdução de um duplo debate: por um lado, a Educação Física tem como tarefa ensinar o esporte (o que implica interpretá-lo criticamente e questioná-lo no cotidiano das aulas); por outro, esse não é o seu único conteúdo/conhecimento de ensino. Assim, a delimitação da especificidade pedagógica da Educação Física se faz necessária, pois, se o esporte não é o único conteúdo a ser tratado nessa disciplina, a sua manifestação nas aulas de Educação Física não deve sobrepor outras práticas culturais, como: as danças, as ginásticas, os jogos, as brincadeiras, as lutas, etc. A idéia, contudo, não é negar a importância/relevância sociocultural do esporte; pelo contrário, o esporte como parte da cultura corporal de movimento é objeto de ensino da Educação Física, portanto deve ser tematizado, produzido, criticado, estudado e reinventado na escola. Por outro lado, isso não pode acarretar a exclusão de outras manifestações da cultura, anteriormente destacadas. Temos uma riqueza/diversidade de práticas culturais de movimento que merece 15 Ver Bracht (1992, 1995, 1997); Kunz (1994); Linhales (1996). R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004 137 passar pelo crivo escolar da Educação Física. Trata-se de práticas que, quando tratadas como elementos da cultura, possibilitam a fruição, a ludicidade, a construção de experiências e saberes, mas, sobretudo, a compreensão da tecitura social na escola. É sempre importante lembrar que a ausência dessas práticas na escola reflete o jogo cultural (desigual) de disputa por afirmação/hegemonia, ao mesmo tempo que aponta a sua desvalorização no mercado injusto do capital cultural.16 Educação Física: alguns princípios orientadores da prática pedagógica As reflexões apresentadas até aqui apontam os muitos desafios que a Educação Física e a escola têm de enfrentar na sua afirmação como espaço de produção, construção coletiva e reinvenção da cultura. As possibilidades encontram-se atreladas ao nosso compromisso com a escola como espaço social de direito. No caso da Educação Física, o compromisso é com o direito de acesso aos conhecimentos e saberes da cultura corporal de movimento – já que para maioria das crianças e jovens matriculados no sistema público de ensino brasileiro a Educação Física configura-se como a “única possibilidade de conhecimento, sistematização, vivência e problematização dos saberes relacionados às práticas corporais de movimento culturalmente organizadas” (Debortoli; Linhales; Vago, 2002, p. 95). Assim, o direito de acesso à Educação Física escolar deve ser um princípio orientador das práticas educativas. No entanto, não basta a Educação Física estar compondo o currículo escolar para que ela se constitua um direito. Pelo contrário, o que temos historicamente observado é que ela tem se constituído em espaço/tempo escolar de subjugação, discriminação e exclusão de crianças e jovens, bem como da sua cultura. Isso tem se manifestado na organização das aulas: a partir da imposição de “rotineiras” formas de se movimentar (exercícios/treinamento); na seleção dos mais habilidosos e exclusão daqueles que se distanciam dos modelos do movimento-padrão; na centralização do professor como detentor do conhecimento e compreensão dos alunos (termo que esconde as crianças e jovens concretos que estão na escola) como tábula rasa; no descaso/descompromisso docente com as práticas pedagógicas (“rola bola”); entre outros. É claro que os sujeitos escolares se apropriam e 16 Sobre capital cultural ver Bourdieu. In: Nogueira; Catani. Escritos da educação. Petrópolis: Vozes, 1998. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004138 produzem novos sentidos/significados para essas aulas de Educação Física, pois cada aula sustenta uma intricada rede de sociabilidade que vai além da mera recepção passiva dos conteúdos culturais de ensino e das práticas pedagógicas. Como afirma Michel Certeau (1994, p.9), um indeterminado se articula nessas determinações. Contudo, a Educação Física precisa demarcar sua intervenção escolar e social como espaço/tempo educativo de produção de uma sociedade cada vez mais humana e inclusiva. Desse modo, precisamos estar atentos a que, para além das técnicas, regras e táticas (dos esportes, jogos, etc.), ensinamos valores, normas, atitudes, conceitos que impregnam o corpo – pela vivência da exclusão, ludicidade, sucesso, fracasso, entre outros. É importante lembrar que forma é também conteúdo, ou seja, que os conteúdos de ensino são inseparáveis da forma como o apresentamos nas aulas de Educação Física. Assim, ao tratá-los estamos sempre explicitando (ou fica implícito) nossas concepções de corpo, escola, educação, sujeito, cultura. São conhecimentos que se formam pela experiência, pelo vivido, não se repetem no exercício oral, mas se confirmam na linguagem expressa/impressa no corpo/movimento. A Educação Física precisa desafiar crianças e jovens na elaboração de práticas corporais de movimento mais humanizantes. Contudo, desconfio da visão do professor como único detentor das possibilidades de mudança, o centro do conhecimento, o “iluminado” nas relações pedagógicas, ainda que seu papel deva ser de intervenção/ intencional. Por outro lado, entendo que o professor é ator fundamental na construção do processo educativo (já que possui saberes relativos à docência) e a escola é um espaço privilegiado e permanente de formação docente, ou seja, o professor não está pronto, pois o processo de formação é inacabado (Caldeira, 2001). No que se refere aos alunos, torna-se cada vez mais urgente reconhecê-los como sujeitos, como plurais – trata-se de diferentes maneiras de ser criança (infâncias) e jovem (juventudes). Infelizmente, ainda compreendemos as crianças e jovens que participam das aulas de Educação Física como um “vir a ser” (projeto futuro), mas eles também são autores da escola. Como afirma Anna Maria Salgueiro Caldeira (2002, p. 19), “ a primeira grande mudança que temos que assumir ao elaborar um projeto de ensino diz respeito aos novos papéis atribuídos respectivamente ao aluno e ao professor”. Para a autora, “assumir que ambos são sujeitos do processo educativo significa entender que professores e alunos investigam e aprendem”. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004 139 Nesse caminho, cabe pensar a construção de práticas corporais de esportes, jogos, brincadeiras, ginásticas, etc. nas aulas de Educação Física que tenham como referência não só os conhecimentos oficiais do professor, mas que se fundamentem na diversidade de saberes que ultrapassam os muros da escola, marcados nos corpos dos diferentes sujeitos escolares – nas suas diferentes maneiras de lidar com a cultura corporal de movimento, nas suas diferentes histórias, experiências, desejos, expectativas. Essaperspectiva permite observar quão dinâmicas são as práticas corporais de movimento, as relações de poder que as compõem (sendo fundamental desnaturalizá-las, problematizar suas lógicas), bem como superar a idéia de que os alunos são aqueles a quem tudo falta, que nada sabem. Quem sabe, dessa forma, possamos aprender com as crianças e jovens outros usos dos saberes e conhecimentos escolares, a inventar novas maneiras de realizá-los. A idéia, como propõem Debortoli, Linhales e Vago (2002), é produzir a Educação Física para e com as crianças (e jovens). Assim: [...] o acesso das crianças [e jovens] aos saberes da Educação Física precisa abranger o humano e portanto o sensível, afetivo, ético, estético, elementos componentes do nosso processo de desenvolvimento, que não comporta prescrições, mas que implica identificar na criança [e jovens] a possibilidade humana e, portanto, coletiva, de aprender e de ser. As crianças [e jovens] são sujeitos nesses processos e nos convidam muitas vezes a duvidar de nossas certezas sobre o jogo, a dança, o esporte, a ginástica [...] (Debortoli; Linhales; Vago, 2002, p.103) Finalmente, a proposição de uma Educação Física plural, que se fundamente na diversidade e na idéia de práticas corporais de movimento como linguagem e expressão da cultura, requer o retorno ao chão da escola – uma vez que ela não é uma ilha, não está à margem da escola, ao contrário, é parte dela. Nesse sentido, a Educação Física precisa se inserir nesse contexto, enfrentando seus dilemas e participando da sua construção permanente. É urgente que a Educação Física participe da construção do projeto pedagógico da escola, um projeto de humanização do homem e de questionamento das desigualdades escolares e sociais – portanto, que supere a idéia de Educação Física como espaço/tempo de lazer, recreação, disciplinamento do corpo, gasto de energia, formação de atletas, entre outras funções que ela tem historicamente assumido/cumprido. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 12, n. 2, p. 124-142, 2004140 Sem dúvida, há muito trabalho a ser feito para que a Educação Física legitime sua intervenção na escola e justifique a importância dos seus saberes e conhecimentos para a formação dos sujeitos. Para Vago (2003), o desafio a enfrentar é fazer com que a Educação Física permaneça enraizada na cultura escolar17 , ao mesmo tempo que provoque tensões às práticas socioculturais produzidas para além da escola. Essa é a tarefa cotidiana de todos nós. Abstract This paper aims at reflecting about the corporal culture of movement as Physical Education teaching object at school – the departure point is a discussion about the relation between school and culture. Thus, the set of reflexions presented is based on the idea of culture as the central element to think the Physical Education pedagogical particularities, as well as to discuss about sport as mainstream in PE classes and to present some guiding principles for the pedagogic practice. Referências Bibliográficas BRACHT, Valter. Educação Física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992. ——————. Educação Física: conhecimento e especificidade. In: SOUZA, E. S.; VAGO, T. M. (Org.). 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