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Aula 1_A_Instauração_da_Ciência_Psicológica

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A Instauração da Ciência Psicológica: Uma breve revisão sobre a história da Psicologia Científica
Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 82-93
www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
82
A Instauração da Ciência Psicológica: Uma Breve Revisão da
História da Psicologia Científica
Marcel de Almeida Freitas 1
Resumo
Este artigo pretende percorrer rapidamente os primórdios da instauração da Psicologia enquanto ciência,
destacando seu caráter fisicista e monocausal na abordagem das questões do ser humano e como esta
perspectiva foi alterada pela mudança paradigmática do século XX e pela emergência de estudos críticos sobre
a História da Psicologia. Tais mudanças trouxeram, entre outras coisas, o diálogo da Psicologia com a
Antropologia, Sociologia, Economia, Política, Lingüística entre outros campos de conhecimento. Visões
sistêmicas e culturalistas de certa forma quebraram o rígido biologismo da Psicologia científica, e um exemplo
atual disto é a Psicologia da Educação.
Palavras-chave: História, Ciência, Psicologia.
Foundation of Psychological Science: A brief review of the history of scientific
psychology
Abstract
This article intends to cover quickly the beginning of the instauration of Psychology while science, detaching
its fisicist and monocausal character in the boarding of the questions of the human being and as this
perspective was modified by the change of paradigm in century XX and by the emergency of critical studies on
the History of Psychology. Such changes had brought, among others things, the diálogue in Psychology with
the Anthropology, Sociology, Economy, Politics, Linguistics among others knowledge fields. Sistemics and
culturalists outlooks in some grade broke the stiff biologism of scientific Psychology, and a actual exemple of
this is Psychology of Educacion.
Keywords: History, Science, Psychology.
Tendo em vista o objetivo de sumamente transitar
pela História do conhecimento psicológico
científico, este texto principia com o psicólogo
clínico Orestes Diniz Neto (1998), que faz um
interessante apanhado do nascimento do pensar
psicológico científico num artigo que muito nos
ajuda a refletir sobre o aparecimento da
Psicologia no Ocidente enquanto ciência.
Portanto, após rápido percurso sobre os primórdios da
instauração da Psicologia enquanto legítima ciência,
faremos alusão ao processo de reflexão sobre a
História da Psicologia e sobre algumas correntes de
vanguarda, como por exemplo, a Psicologia da
Educação, que vieram mostrar outras maneiras,
métodos e paradigmas na Psicologia presentemente.
 
1
 Mestre em Psicologia Social. Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia – Universidade Federal de Minas Gerais.
E-mail: marleoni@yahoo.com.br
A Instauração da Ciência Psicológica: Uma breve revisão sobre a história da Psicologia Científica
Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 82-93
www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
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A Instauração da Ciência Psicológica
Diniz Neto (1998) realiza uma crítica ao olhar
mecanicista do ser humano, que impera em muitas
áreas da Psicologia, e que é derivativa do
paradigma newtoniano-cartesiano de ciência que
marcou a instauração das ciências. Sendo seu foco
a Psicoterapia, ele percebe que o quadro atual de
referência desta prática clínica foi influenciado
pelos parâmetros da ciência do final do século
XIX; nota que qualquer cientista deve se filiar a
um paradigma, posto que é impossível proceder de
uma só vez ao estudo exaustivo sobre determinado
assunto. Isto posto, ele mostra que a partir da
Teoria da Relatividade de Einstein (o saber seria
também comandado pela imaginação, não somente
pelo raciocínio lógico) chegou-se a conclusão de
que “a ciência não é, nem pode ser, governada por
um sistema de princípios firmes, imutáveis e
absolutos” (Diniz Neto, 1998, p. 96). Apesar disto,
a Psicologia nasceu sob a égide das ciências
naturais, conforme o autor, tendo sido então fruto
da interferência dos modelos físico-matermáticos
em relação às ciências ‘humanas’ que surgiam.
Neste sentido, este paradigma
bem como sua aplicação em diversas áreas,
determinaram o uso de seus critérios para toda
a ciência. A capacidade de relacionar conceitos
e achados básicos ao modelo mecanicista do
universo desenvolvido pela física newtoniana
tornou-se critério importante de legitimidade
científica em campos (...) como a Medicina, a
Psicologia, etc. (Diniz Neto, 1998, p. 97).
Entretanto, ele detecta uma extrusão acerca deste
rígido paradigma dentro das humanas devido ao
fato de que áreas como a Sociologia e a Psicologia
apresentaram falhas em tentar aplicar exatamente
este modo de pensar e de operar na realidade. O
cartesianismo pode ser descrito como uma
tentativa de solucionar o problema da
experimentação, da manipulação de cadáveres e
da dissecação, entre outros, e para isto Descartes
elaborou uma visão dual e antagônica entre o
corpo e a mente. Resolvendo a animosidade entre os
cientistas e os religiosos, os primeiros puderam se
dedicar às pesquisas sem ameaçar os dogmas dos
segundos junto ao povo. Neste sentido, o
cartesianismo prega que há o mundo material,
externo e objetivo, do qual o corpo faz parte, e o
mundo espiritual, domínio do sagrado, âmbito onde
se encontraria a capacidade mental. Já os princípios
formulados por Newton em 1687 conduziram a um
percepção da realidade como algo passível de ser
descrito em fórmulas matemáticas, por conseguinte,
quantificável e previsível.
Estes dois olhares sobre a realidade originaram o
paradigma que Morin (1984) diz ter sido o que
guiou a ciência clássica, sendo esta, sob sua óptica,
uma forma de conhecimento caracterizada pela
busca da ordem, da racionalidade, da simplificação
para análise (decomposição), da objetividade e da
verificação empírica. Nesta dinâmica de se fazer
ciência, o reducionismo e a fragmentação são
palavra de ordem. Visões sistêmicas, abertas e
interligadas do mundo eram encaradas, na maioria
das vezes, como pseudociência ou como
‘superstição’ e/ou religiosidade. E foi neste
contexto que a Psicologia emergiu, sendo que “seus
praticantes aderiram ao paradigma dominante,
abraçando os ideais da física, com seus modelos
matemáticos que, curiosamente, neste mesmo
momento, começavam a se deparar com uma crise
sem precedentes em seus fundamentos” (Diniz
Neto, 1998, p. 101).
Em relação às práticas psicoterápicas, tais foram
desenvolvidas a partir de pressuposto similar ao que
ensejou a Odontologia ou a Medicina, por exemplo,
ou seja, partiu da divisão preconizada por Descartes
entre a res cogitans e a res extensa. Sob a rubrica da
introspecção enquanto forma de estudo ficou a
mente, e sob a rubrica dos métodos das ciências
naturais foi colocado o corpo. Portanto, “a
Psicologia científica se instaura em Leipzig em
1887 com o trabalho de Wundt” (Diniz Neto, 1998,
p. 102). Tendo sido o resultado e o desenrolar dos
avanços da anatomia e da fisiologia, a Psicologia
em princípio se interessava por descobrir
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correlações do funcionamento mental com a
mecânica geral do corpo humano.
Contudo, tendências de bases culturalistas e
gestaltistas iriam suscitar posições de vanguarda
na Psicologia e nas terapias na segunda metade do
século passado. O autor coloca, contudo, que
noções robotizantes do ser humano permanecem
sub-repticiamente em muitas escolas e teorias
psicológicas. Segundo ele, a teoria do estímulo-
resposta e a visão ambientalista de que o cérebro é
uma espécie de computador que pode ser
programado seriam exemplos destas visões ainda
hoje. Em relação à Psicanálise, ele percebe traços
deste olhar robótico quando ela postula o princípioda economia de energia. Aspectos como cultura,
sociedade, economia política, significado,
afetividade e emoções foram um tanto quanto
negligenciados nos primórdios da Psicologia, pois
“a visão mecanicista em ciência levou à
emergência de um conceito mecanicista do
homem, ora reduzindo sua complexidade, ora
isolando-o da matriz de relações da qual faz parte,
criando modelos por demais restritos” (Diniz
Neto, 1998, p. 105).
Todavia, no próprio seio das ciências ‘exatas’
surgiram teorias que questionavam a visão clássica
do mundo (postulado cartesiano-newtoniano);
entre estas novas perspectivas estão a Teoria da
Relatividade de Einstein e a Teoria Quântica
(Diniz Neto, 1998). As análises causais tornam-se
sistêmicas e multivariadas, e sujeito e objeto
tornam-se, além de conceitos relativos, partes do
mesmo campo na investigação. Ademais, mesmo
não sendo citado pelo autor, não podemos
negligenciar o papel da dialética hegeliana neste
processo de desmonte do paradigma mecanicista.
A transformação do enfoque científico passou a
dar importância ao complexo, em detrimento do
simples, ao instável, no lugar do estável, ao
imprevisível, em detrimento do controlável e,
principalmente, atentou-se para a
intersubjetividade e não tanto para a objetividade a
qualquer preço.
Em oposição a um entendimento do organismo
humano enquanto realidade apenas reagente a uma
solicitação do meio (estímulo), passou-se, pouco a
pouco, a considerá-lo como um sistema
fundamentalmente criativo. Tais visões foram mais
comuns, inicialmente, na Psicologia do
Desenvolvimento e da Educação, assim como nas
escolas neofreudianas. Teorias da personalidade
embasadas pelos pressupostos transpessoais
rogerianos também tiveram papel essencial na
quebra dos paradigmas biologizantes. Por outro
lado, por influência da Antropologia dos sistemas
simbólicos e da Lingüística passou-se também a ver
a “importância das diferenças individuais, dos
aspectos não utilitários e situados fora dos valores
biológicos de sobrevivência” (Diniz Neto, 1998, p.
108).
Neste processo, o levantamento histórico acerca da
Psicologia enquanto ciência teve papel fundamental,
ao trazer à baila o contexto sócio-cultural-
ideológico onde estavam situados os primeiros
pesquisadores, apontando para o fato de que o meio
social interfere na produção científica de
determinado período. É sabido que sob a rubrica de
‘História da Psicologia’ compreendem-se dois
domínios distintos, o da História da Psicologia
Científica e o da História das Idéias Psicológicas, o
que acarreta importantes implicações do ponto de
vistas metodológico: se por um lado, a
Historiografia das Idéias Psicológicas utiliza-se dos
métodos próprio da História Sócio-Cultural, por
outro lado, a Historiografia da Psicologia Científica
assume as modalidades de investigação sugeridas
pela historiografia das ciências em geral. Por
conseguinte, sumarizaremos os principais recursos
metodológicos em cada um dos domínios.
A Historiografia das Noções e dos Conceitos
Psicológicos
Recentemente os métodos da História das Idéias
Psicológicas foram influenciados pelas mudanças
ocorridas no âmbito da historiografia em geral.
Assim, a revolução historiográfica ocorrida a partir
dos anos trinta na França (Escola dos Anais)
provocou a emergência de novos objetos e métodos
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nessa área de conhecimento. Tornaram-se
questões de interesse para o historiador temas
como as atitudes humanas frente à vida e à morte,
crenças, comportamentos religiosos, relações
familiares e sociais; tal fato determinou “a
constituição de novos territórios do historiador
através da anexação dos territórios dos outros”
(Chartier, 1990, p. 14). Com efeito, tratava-se de
campos já desvendados pelas ciências humanas,
tais como a Sociologia, a Psicologia, a
Antropologia, entre outras e, desse modo, a
Historiografia começou a utilizar metodologias de
investigação típicas de outras disciplinas, abrindo-
se a projetos de pesquisa de caráter
interdisciplinar.
A revisão da literatura historiográfica
contemporânea elaborada por Emmanuel Ladurie
(1983) mostra a amplidão da esfera de interesse do
historiador contemporâneo: desde o estudo de
diversas culturas e experiências religiosas, das
festas e dos ritos, do mundo intelectual e da
cultura erudita, às múltiplas maneiras de viver,
habitar e trabalhar. Diante disso, os limites entre a
História e as outras humanidades começam a se
indefinir. Novas áreas da pesquisa historiográfica
constituem-se num terreno multidisciplinar,
envolvendo enfoques como, por exemplo, a
Antropologia Histórica, a História do Imaginário,
a História das Mentalidades. No seio desta
interdisciplinaridade definem-se formas originais
de colaboração entre Psicologia e História e, no
que mais diretamente diz respeito à História das
idéias psicológicas, criam-se abordagens inéditas
para a leitura e a intepretação de documentos.
A História Cultural, promovida pelos ‘novos
historiadores’, propõe uma outra maneira de
entender a ‘História das Idéias’. De fato, ao definir
o âmbiro da ‘História das Idéias’, a referência
utilizada pelos historiadores não é mais a
tradicional história do pensamento de marco
hegeliano, que visava a reconstrução histórica de
conceitos e teorias elaboradas exclusivamente pela
intelectualidade, mas a reformulação desta esfera
de estudos em termos de uma ‘história das visões
do mundo’; desta feita,
a noção de visão do mundo permite articular,
sem os reduzir um ao outro, o significado de um
sistema ideológico descrito por si próprio e as
condições sociopolíticas que fazem com que um
grupo ou uma classe determinados, num dado
momento histórico, partilhem, mais ou menos,
conscientemente ou não, esse sistema ideológico
(Chartier, 1990, p. 49).
No que concerne à História das Idéias Psicológicas,
pode-se afirmar que esta se ocupa daqueles aspectos
relativos à ‘visão do mundo’ de determinada
cultura, aspectos estes relacionados a conceitos e
práticas que na atualidade são genericamente
entendidos como ‘psicológicas’. A definição do que
é ‘psicológico’, nesse caso, deve permanecer
necessariamente indeterminada e vaga, quase como
denominação provisória a ser substituída no
decorrer da pesquisa pela terminologia e
demarcações de campo próprias aos específicos
universos sócio-culturais estudados. Tratar-se-á, por
exemplo, de estudar a ‘terapêutica moral’ do século
XIX ou as ‘paixões’ do século XVI.
Em suma, a História das Idéias Psicológicas é a
reconstrução de conhecimentos e de práticas
psicológicas peculiares a certos contextos sócio-
culturais passados, com seus objetos sendo
considerados na perspectiva de uma História
Cultural: relativos ao meio sócio-cultural em que
são construídos. A abordagem da História Cultural
busca identificar o “modo como em diferentes
lugares e momentos, uma determinada realidade
social é construída, pensada e dada a ler” (Chartier,
1990, p. 17). O espaço cultural desta história é
bidimensional, abrangendo a produção cultural na
especificidade de uma disciplina em suas relações
com a totalidade social na qual se originou. De
modo diferente do que ocorrera na clássica História
do Pensamento, os objetos desta não são dados
naturalmente nem universalmente, sendo, conforme
Foucault (1992), apenas ‘objectivações’. Portanto,
adverte Chartier,
a história intelectual não deve cair na armadilha
das palavras que podem dar a ilusão de que os
vários campos de discursos ou de práticas são
constituídos de uma vez por todas, delimitando
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objectoscujos contornos, ou mesmo os
conteúdos, não variam; pelo contrário, deve
estabelecer como centrais as descontinuidades
que fazem com que se designem, se admitam e
se avaliem, sob formas diferentes ou
contraditórias, consoante às épocas, os saberes
e os actos (Chartier, 1990, p. 65).
A definição de ‘cultura’ elaborada pelo
antropólogo Clifford Geertz (1973) fornece um
parâmetro significativo para a deteminação do
campo da História Cultural dada por Chartier:
denota um padrão de significados transmitido
historicamente e corporificados em símbolos, um
sistema de concepções herdadas e expressas em
formas simbólicas, por meio das quais os
indivíduos se comunicam, perpetuam e
desenvolvem conhecimentos e atitudes. Nesse
sentido, a História da Cultura vale-se da
colaboração dada pela Antropologia Histórica, que
é definida como a “história dos hábitos físicos,
alimentares, afetivos e mentais” (Le Goff, 1993, p.
133). Já para Marshall Sahlins o desenrolar da
Antropologia Histórica levou a “explodir o
conceito de história pela experiência antropológica
da cultura” (Sahlins, 1990, p. 99).
A História Cultural conta também com a
influência de outra sub-área da Nova História: a
História do Imaginário. Esta estuda a influência
das ‘imagens’ na vida dos homens ao longo do
tempo. Não se trata, porém, apenas de imagens
próprias da produção artístico-iconográfica, pois
“engloba também o universo das imagens mentais.
(...) A história do imaginário é o aprofundamento
dessa história da consciência” (Le Goff, 1994, p.
16). A consciência não é concebida como
fenômeno inerente à psique individual e sim como
fenômeno social e temporal. A importância deste
enfoque na historiografia da cultura ocidental é
apontada por ele quando afirma que “estudar o
imaginário de uma sociedade é ir ao fundo da sua
consciência e da sua evolução histórica” (Le Goff,
1994, p. 17).
O surgimento da consciência da natureza humana,
no século XII, inspira a produção de um corpus de
representações artísticas e iconográficas que
traduzem em signos exteriores as imagens próprias
do universo mental do Ocidente medievo. Nesse
âmbito, a Psicanálise auxiliam o trabalho de
interpretação histórica deste tipo de documentação.
Ao mesmo tempo, muitos documentos objetos da
História do imaginário, tais como frontispícios de
livros, mapas, retratos e pinturas favorecem a
reconstrução do passado. Por fim, cabe destacar, no
âmbito da História cultural, a contribuição de
Foucault (1992), cuja perspectiva histórica oferece
original interpretação acerca da gênese das ciências
humanas e, ao mesmo tempo, desvenda novos
objetos para a historiografia em geral. As práticas
sociais são tidas por ele como a origem de formas
novas de sujeitos e de domínios de conhecimento.
Aponta, então, para a historicidade destes domínios.
Outro enfoque decorrente da revolução
historiográfica desencadeada pela Nova História é o
nomeado ‘Micro História’, representada, entre
outros autores, por Carlo Ginsburg (1994), que
delineia os traços principais desta abordagem: a
recusa ao etnocentrismo e à visão teleológia da
história próprios da historiografia do século XIX,
em favor do interesse pelos indivíduos concretos e
pelas características peculiares da documentação
encontrada (até o documento mais atípico pode
aclarar a reconstrução histórica). Trata-se, conforme
expressão de Ginsburg, de “reduzir a escala de
observação” (1994, p. 522) dos fatos, pois, o ‘olhar
de perto’ possibilita a apreensão de algo que, de
outro modo, escaparia à visão macro histórica. Tal
prescrição metodológica baseia-se na afirmação
acerca da descontinuidade e da heterogenidade do
real. Explicaria também a adesão ao modelo
construtivista, baseado no postulado de que o objeto
da pesquisa histórica é construído.
A ênfase no estudo do indivíduo no contexto social,
mais propriamente das relações intersubjetivas,
permite, através da “reconstrução da experiência
vivenciada” (Revel, 1994, p. 556) pelo sujeito, uma
modalidade de abordar e compreender o processo
social global através do estudo da trajetória
individual. Para isso é preciso que paralelamente à
análise dos ‘comportamentos’ sejam evidenciados
os ‘contextos’ onde esses se inscrevem: “O que a
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experiência de um indivíduo ou de um grupo
permitem detectar é uma modulação particular da
história global” (Revel, 1994, p. 561). Campos
(1991), por exemplo, mostra a discussão em torno
do conceito de alienação mental e da distinção
entre racionalidade e loucura na época da
Revolução Francesa, através da reconstrução da
história do mercador James Matthews e do
psiquiatra John Haslam, quem diagnosticou e
‘tratou’ da ‘loucura’ de Matthews.
A Psicologia Histórica e A História das
Mentalidades
A afirmação do caráter inexoravelmente histórico
da experiência humana, inclusive em sua
dimensão psicológica, caracteriza a abordagem da
Psicologia Histórica intentada por I. Meyerson
(1948). O postulado da relatividade histórica da
psiquê humana subordina a Psicologia à História,
enfatizando a instância cultural na historiografia
das idéias psicológicas, esta entendida enquanto
documentação da relatividade histórica de
conhecimentos e práticas psicológicas ao longo do
tempo. A tese central da Psicologia Histórica é a
de que a análise da conduta através dos fatos
históricos modifica a perspectiva do psicólogo.
Este nada tem a fazer com o sujeito abstrato, mas
com o sujeito de um lugar e de uma época
específicos, engajado num contexto sócio-material
e visto através de outros seres humanos.
Nesse sentido, questiona-se a legitimidade de uma
Psicologia Geral do indivíduo, definida como
conhecimento de leis universais da mente ou do
comportamento humano. Pelo contrário, Meyerson
(1948) crê que é necessário contextualizar a
indagação acerca do sujeito psíquico no plano
histórico-sócio-cultural da existência. A proposta,
portanto, é por uma psicologia pluralista, partindo
da constatação de que, em todos os tempos e
culturas, o ser humano tem se interrogado acerca
de si mesmo tendo tal interrogação assumido
formas diferentes. Isto implica uma ruptura em
relação às posições universalistas da Psicologia
Clínica e da Psicologia Fisiológica tradicionais e
uma redefinição em termos históricos de conceitos
utilizados por elas. Objetos como ‘cor’, ‘pessoa’,
‘tempo’, ‘espaço’, ‘trabalho’, ‘linguagem’ são
revisitados pela Psicologia Histórica.
A partir dos anos sessenta consolidou-se novo setor
dos estudos históricos, chamado ‘História das
Mentalidades’, particularmente próximo à
Psicologia Histórica, mas percorrido principalmente
pelos historiadores, não por psicólogos. Nesse
enfoque os comportamentos e as crenças da vida
quotidiana numa sociedade revelam-se
significativos de um sistema de representação do
mundo vinculado às formulações intelectuais mais
elaboradas (concepções religiosas ou filosóficas,
sistemas científicos, etc.). O conceito de
mentalidade, introduzido por Lucien Febvre em
1939, era “suficientemente incerto e
suficientemente aberto para digerir a contribuição
das outras disciplinas” (citado em Le Goff, 1993, p.
148). Nesta perspectiva, o estudo da História das
Mentalidades demonstra a existência de atitudes
mentais relativas a certas épocas históricas, logo,
coisas que eram concebíveis em determinado
período, deixam de sê-lo em outra época e em outra
cultura. Desse modo “questões capitais surgiam,
requerendo explicações psicológicas e
antropológicas outrora reservadas a médicos,
moralistas, juristas, ou que pareciam pertencer ao
domínio do não escrito em que os historiadores
ainda nunca haviam tido a idéia de penetrar” (Le
Goff, 1993, p. 159-160). Por este motivo,
a atenção prestada às categorias psicológicas,tanto como às categorias intelectuais, e portanto
um distanciamento suplementar entre uma
história das mentalidades assim identificada com
a psicologia histórica, e a história intelectual na
sua definição tradicional (...). Assim, (...) são as
categorias psicológicas essenciais – as que
funcionam na construção do tempo e do espaço,
na produção do imaginário, na percepção
coletiva das actividades humanas – que são
postas no centro da observação e apreendidas no
que têm de diferente consoante às épocas
históricas (Chartier, 1990, p. 42).
Philipe Ariès define o método da História das
mentalidades em termos de compreensão do
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diverso, pois existe a “percepção de uma diferença
entre duas mentalidades, uma, que se supõe
conhecida, que serve de ‘testemunha’ e à qual o
historiador se refere a outra, enigmática,
discutível, terra incógnita que o historiador se
propõe a descobrir. Nesse caso, descobrir é
primeiro compreender uma diferença” (citado em
Chartier, 1990, p. 171). Esta ‘diferença’ separa
outra cultura da do pesquisador e assegura-lhe
uma originalidade. Conseqüentemente, a
curiosidade histórica e a percepção das diferenças
têm como ponto de saída a nossa mentalidade
contemporânea. Talvez, a crise atual da
modernidade contribua para aumentar o fascínio
pela alteridade que o passado encerra em si.
Exemplo significativo da metodologia utilizada
pela História das Mentalidades ao abordar o
estudo das ‘idéias psicológicas’ em outras épocas
é o trabalho de A. Gourevitch (1993) acerca das
categorias de ‘individualidade’ e de
‘personalidade’ na Idade Média. Ele estabelece a
diferença entre os conceitos dizendo que
personalidade é uma construção social e cultural,
adquirida através da interiorização da visão do
grupo social, enquanto que individualidade é um
‘eu’ capaz de reconhecer a si mesmo como sujeito
único. Ele ainda demonstra que, na maioria dos
casos, os historiadores referem-se à subjetividade
medieval realizando uma indistinção entre os
termos. Também aponta que a personalidade
medieval deve ser estudada a partir de referenciais
típicos do universo sócio-cultural da época, não
podendo ser utilizados modelos interpretativos
próprios da Psicologia moderna. Logo, o processo
de tomada de consciência de si pelo sujeito
medieval é diferente da modalidade em que o
indivíduo de hoje vivencia o mesmo processo.
Assim, evidencia que as expressões da consciência
de si próprio no texto podem aparecer ao sujeito
moderno como sintomas de loucura.
Apesar da semelhança terminológica, a Psicologia
Histórica diferencia-se da História Psicológica
visto que esta abordagem, inspirando-se em
tentativas de análises históricas freudianas, mais
propriamente ensaios literários do que indagação
científica (é o caso dos estudos sobre Leonardo da
Vinci), propõe-se a explicar os fenômenos
históricos em termos de categorias mentais
universais, subordinando a História à Psicologia ou
à Psicanálise. Em suma, trata-se de analisar as
motivações dos agentes de processos históricos em
termos psicológicos, considerando os fenômenos
políticos, sociais e econômicos como produtos da
psicodinâmica humana (De Mause, 1981). Seu
método foi a identificação dos atores do drama
histórico e a compreensão das motivações
inconscientes dos processos históricos.
A crítica freqüentemente feita a esta abordagem
pela Historiografia geral, especificamente a partir
das observações de Bizière (1983), é a de ser
reducionista e pressentista, pois considera o
indivíduo do passado nos moldes de uma Psicologia
do século XX. É possível – questionava Febvre –
que o historiador utilize a Psicologia produzida pela
observação do sujeito do século XX para interpretar
ações do sujeito do passado? Pode ocorrer, além do
mais, o uso anacronístico dos termos, de sorte que
palavras que hoje denotam determinados
sentimentos ou idéias, não assumam estes
significados quando encontradas em documentos de
outrora.
A Historiografia da Psicologia Científica
No que diz respeito à História da Psicologia
Científica em sentido estrito, esta vem sendo
considerada como parte do domínio da História das
Ciências. Como tal utiliza os métodos e as
abordagens por esta elaborada. A História das
Ciências tem como desígnio a afirmação da
historicidade das mesmas e responde à exigência de
compreender a identidade conceitual e
metodológica de uma dada disciplina científica em
seu contexto. Seus objetivos específicos são:
1- entender a construção histórica de conceitos e
métodos científicos;
2- estudar as condições econômicas e sociais que
presidiram a emergência dos mesmos;
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3- interpretar o desenvolvimento científico em
termos de uma determinada teoria da história; e
4- esboçar uma específica definição de ciência.
Embora a disciplina ‘História das Ciências’ seja
antiga, sendo possível encontrá-la no projeto para
o ensino formulado por Auguste Comte em 1832,
só recentemente adquiriu status acadêmico.
Afirma A. Debus que “até quase meados deste
século, pensava-se que a História das Ciências era
uma disciplina adequada principalmente para os
cientistas que se voltavam para o estudo de suas
especialidades no final de sua carreira, quando
seus dias de pesquisa científica ativa haviam
terminado” (1991, p. 3). Pela sua própria origem
de disciplina histórica tendo por objeto diversas
áreas da cultura científica, a História das Ciências
tem caráter interdisciplinar. Com efeito, se
considerarmos a produção recente no campo,
pode-se concordar com Debus acerca do fato de
que “as forças e as interpretações desafiando os
historiadores da ciência nas últimas três décadas,
refletem muitos dos problemas recorrentes a todos
os historiadores neste mesmo período” (Debus,
1991, p. 3).
A História das Ciências tem criou metodologias
próprias para a análise do desenvolvimento
histórico das várias disciplinas científicas sob a
influência da epistemologia. Esta, tendo função
prescritiva acerca da identidade de uma ciência
determinada (pelo fato de propor critérios de
demarcação entre ciência e outros tipos de
conhecimentos) inevitavelmente condiciona a
História, fornecendo-lhe parâmetros para delimitar
o objeto de suas investigações. Logo, existem
atualmente várias abordagens metodológicas na
História das Ciências, tais como o paradigma
indutivista, herança de uma visão positivista-
progressista da ciência; o paradigma historicista,
derivado do marxismo; o paradigma
convencionalista e o racionalista, ambos herdeiros
da filosofia kantiana e hegeliana; há também o
paradigma internalista, que se ocupa da dinâmica
evolutiva interna do pensamento científico; o
interacionista que busca compreender as
mudanças científicas a partir do contexto social; o
paradigma descontinuista das ‘revoluções
científicas’ e o paradigma continuista que
estabelece relações profundas entre a história do
pensamento científico e a tradição cultural antiga,
objeto da História das idéias.
Estas propostas metodológicas influenciam a
Historiografia da Psicologia, porquanto se os
primeiros psicólogos-historiadores inspiravam-se no
modelo historiográfico positivista, já há exemplos
da introdução de outras visões nos estudos
históricos em Psicologia. O livro de Brozek e
Prongratz (1980) traz cinco abordagens possíveis
nesta área de estudos:
1- a abordagem biográfica baseada na reconstrução
da história de vida dos cientistas;
2- a abordagem descritiva baseada na reconstrução
dos acontecimentos históricos a partir do
levantamento de fontes primárias e na compreensãode cada elemento histórico no seio de seu contexto
de produção;
3- a abordagem quantitativa que aplica a análise
historiométrica à literatura psicológica;
4- a abordagem da História Social, enfatizando a
primazia dos fatores culturais para explicar a
evolução da Psicologia científica;
5- o enfoque sócio-psicológico que combina a
primeira e a quarta abordagem.
Um trabalho já conhecido realizado através da
abordagem quantitativa é a pesquisa sobre Wundt
no contexto da Psicologia americana (Brozek &
Pongratz, 1980); o objetivo era a caracterização
quantitativa das mudanças no tempo da frequência
das citações de Wundt em 90 volumes (1887-1977)
da revista científica American Journal Psychology,
o mais antigo períodico americano de Psicologia.
Os resultados indicaram o declínio do impacto de
Wundt na Psicologia norte-americana. Os métodos
quantitativos revelam-se férteis também como
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instrumentos para avaliar o interesse pelas teorias
psicológicas relativas ao clima sócio-cultural de
determinado período histórico. As traduções de
livros de Psicologia num país podem também ser
considerada como indicadores do seu clima
político-cultural. Trabalho neste sentido foi
desenvolvido por Brozek (1972) no que diz
respeito à Iugoslávia no pós-guerra. As primeiras
traduções foram versões de livros russos, mas em
meados dos anos cinqüenta apareceram traduções
de obras francesas e alemãs. A partir de 1960 a
literatura americana tornara-se dominante.
Já a introdução da abordagem ‘externalista’ na
Historiografia da Psicologia realiza-se através da
influência da História social das idéias, em
particular a partir do trabalho de Ash e Woodward
(1987) sobre as relações entre psicologia e política
no período entre as duas guerras mundiais. A
contribuição de K. Danzinger (1984) traça um
itinerário por ele definido como ‘História Crítica
da Psicologia’, onde o processo histórico é
considerado como o produto da interação
dinâmica entre os atores humanos e o contexto
social. Todos estes trabalhos, em suma, procuram
explicitar as relações entre o desenvolvimento da
Psicologia e o contexto sócio-cultural e político
onde esta é produzida, ensinada e praticada.
Procuram esclarecer também como determinado
contexto interfere nos pressupostos adotados pelas
escolas psicológicas e na própria elaboração dos
conceitos. Assim, o estudo da História da
Psicologia no contexto sócio-cultural-institucional,
ou seja, a idéia de que a produção do
conhecimento científico é um empreendimento
social influenciado por ideologias e forças sócio-
políticas que o tornam possível é cada vez mais
presente.
Um dos fatores que contribuiu de forma
significativa para que os historiadores da
Psicologia assumissem esta óptica foi a crítica
social que marcou as décadas de 60 e 70. Um dos
efeitos desta crítica foi o desvelamento das
relações das teorias e práticas psicológicas com o
poder dominante, o que marcou a atuação de
profissionais das ciências do comportamento ao
longo do século XX. Um dos expoentes mais
importantes da abordagem externalista na
Historiografia da Psicologia, os já citados Ash e
Woodward (1987), apontam para algumas
orientações emergentes neste âmbito: a tendência
em interpretar os eventos ‘internos’ na pesquisa em
termos da situação ‘externa’ na qual ocorrem; o
estabelecimento de relações entre o pensamento e a
prática psicológicos com o sistema de valores no
qual operam; o impacto da política e das ideologias
na evolução das noções e práticas psicológicas.
Desse modo, a História da Psicologia transforma-se
num capítulo da História Social mais ampla.
A Psicologia na Perspectiva Histórico-
cultural
Conforme R. Campos (1991), investigações críticas
vinham demonstrando, desde o princípio do século
XX, que os conceitos psicológicos quando
utilizados na avaliação das características
emocionais ou intelectuais de grupos humanos
podiam provocar a estigmatização ou discriminação
dos que não se adequassem à ‘média’ social. Notou-
se que a aplicação indiscriminada de conceitos e
procedimentos de intervenção vinha provocando
compartimentação nos modernos sistemas de ensino
de massa. As críticas focalizavam especialmente, 1-
o desconhecimento, por parte dos psicólogos, dos
efeitos sócio-políticos das rotulações e diagnósticos
por eles realizados; 2- a falta de ‘humanidade’ dos
instrumentos de medida psicológica em relação às
questões sócio-culturais e, finalmente, 3- o prejuízo
concreto que a aplicação desses instrumentos vinha
causando a estratos sociais marginalizados.
Questionava-se a imagem da Psicologia como uma
disciplina científica progressista positivista. A partir
dessas observações é que se construiu a trajetória
histórica da Psicologia da Educação. Foi no trabalho
de historiadores da cultura e nos textos de História
da cultura que propunham a revisão da
historiografia tradicional a partir da perspectiva dos
excluídos que encontrou respostas para a ruptura
epistemológica em Psicologia. Para J. Huizinga
(1960) a História Cultural trata simultaneamente
dos modos reais da vida, da arte e do pensamento. O
propósito do historiador seria o de encontrar
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elementos que unam os eventos temporalmente e a
rede de significados expressos em cada um deles,
buscando configurar um padrão cultural que
evidencie sua pertinência a determinado tempo e
lugar. Contrário ao evolucionismo, ele se
aproxima da visão do relativismo cultural de
Geertz (1973), que focaliza a lógica subjacente
que atravessa diversos momentos e aspectos da
vida social, e que configura um padrão de cultura
inteligível ao observador apenas se os elementos
são tomados em conjunto. Com o foco na
reconstrução das práticas coletivas, pensava-se
que a leitura historiográfica deveria ser elaborada
de baixo para cima. Foi uma forma de retomada da
tradição marxista: a história deve ser a história da
práxis e por isso deve resgatar a atividade humana
no convívio coletivo.
Ainda que a organização da produção nas
sociedades de classe tenda a alienar o sujeito, isto
não significa que deixe de existir resistência à
alienação. A práxis tem uma dimensão pragmática
mas também uma dimensão simbólico-existencial.
É justamente essa atividade política imanente ao
cotidiano, que inclui a própria resistência à
dominação, que vai ser buscada pela história vista
de baixo. Partindo de rigorosa crítica ao
determinismo estruturalista, que tendia a contar
uma história sem sujeito e que se desenrola a
partir do jogo das macroestruturas, tal perspectiva
deseja recuperar o papel da ação humana. Almeja
superar a tendência, então hegemônica na
historiografia, de um excessivo dedutivismo: já se
sabia, previamente, para onde caminhava o
movimento da sociedade, o papel da Psicologia
era ilustrar esse movimento da reprodução.
Ilustração desta tendência foi o desenrolar da
Psicologia da Educação, que mostrou que desde o
início do século XX as teorias da inteligência se
dividiam em três. A primeira, apriorista, entendia
que as habilidades intelectuais seriam parte do
patrimônio genético individual e transmitidas
hereditariamente. A vertente ambientalista toma a
inteligência como fruto do impacto do meio sobre o
aparato cognitivo humano. A terceira,
construtivista, concebia a inteligência como
resultado da ação do indivíduo sobre o ambiente.
Nesta interpretação, é a estrutura das estratégias de
solução de problemas práticos que, uma vez
internalizada, constitui o arcabouço do pensamento
inteligente (Piaget, 1948). A vertente sócio-
interacionistaacrescentou a idéia de a internalização
das estratégias de resolução de problemas e o
aprendizado da linguagem traz a introjeção da
própria cultura (Vygotsky, 1978).
Considerações Finais
Em resumo, Campos (1991) vê a evolução da
Psicologia científica como resultando da
progressiva secularização da cultura ocidental e da
própria condição humana. Ao se desligar da
Filosofia, no final do século XIX, a Psicologia viria
a se constituir num núcleo de produção de visões de
mundo. A visão teológica do século XIX viria a ser
substituída pela visão psicológica do século XX.
Era como se a Psicologia viesse a fornecer os
instrumentos práticos necessários para se lidar com
a cultura secularizada da sociedade industrial,
substituindo o conceito religioso de pecado pelo
psicanalítico-psiquiátrico de enfermidade. A
contestação veio com a abordagem externalista, que
ao invés de tratar a Psicologia em um sentido
evolutivo, como a construção de sínteses teórico-
experimentais cada vez mais precisas, localizava os
conflitos e as contradições entre escolas. O trabalho
de Campos (1991) também é conspícuo em sua
discussão sobre a hegemonia de certas idéias, ao
evidenciar como a elaboração intelectual, e mesmo
a científica, depende do que ela classifica como
uma combinação de cognição e afeto, ou seja, do
compromisso com o fenômeno estudado. No que
respeita à Clínica, Diniz Neto (1998) indicou como
esta foi marcada, em seus primórdios, por uma
visão quase ‘adestratativa’ da prática terapêutica e
por uma rígida noção de ‘saúde’ e de ‘patologia’,
uma herança médico-sanitarista.
Referências Bibliográficas
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Recebido em: 2/10/2003
Aceito em: 25/03/2004

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