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25 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. Origens do Habeas-Corpus: As Cartas de Seguro Portuguesas1 Álvaro Gonçalves A. Andreucci Introdução Todo trabalho que se embrenhe pelo campo da História do Direito necessita de uma reflexão sobre a especificidade de seu objeto, uma vez que se trata de uma área interdisciplinar entre a história e o Direito, levantando questões sobre metodologia e teo- ria de pesquisa. Uma questão importante no que diz respeito a essa problemática é conseguir trilhar a fronteira difusa entre as leis e ordenamentos oficiais – que muitas vezes nos aparecem apenas como entidades abstratas – e a sua real inserção no processo histó- rico, na contingência da vivência cotidiana de uma época. Nessa zona de intersecção, onde é possível encontrar uma interação entre a sociedade e as forças que a organizam, podemos refletir sobre vários aspectos que determinam a estruturação dos dispositivos legais dessa sociedade. Ressaltamos que para a apreciação de uma lei, faz-se necessá- rio perceber que diversos aspectos envolvem sua natureza e aplica- ção. Quem ou que grupo a criou, qual o contexto da demanda desse ordenamento, em qual ou quais pessoas estará o poder de aplicá-la, a que grupos atinge direta e indiretamente, etc. É nesse sentido que ela (uma lei, um decreto real, até a famosa lei mental de um rei português, etc.) se torna uma das peças que movem a histó- ria de um grupo ou sociedade. Esse novo ordenamento pode apre- sentar, tanto características da sua intenção que estão por trás ou 1 Este artigo é uma versão modi- ficada do trabalho de conclusão apresentado para a disciplina de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, História do Processo Civil Romano, Canônico e Lusitano (DPC 714), minis- trado pelos Professores Doutores Luiz Carlos de Azevedo e José Rogério Cruz e Tucci, no 1º se- mestre de 2006. 26 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. nas entrelinhas das letras da lei (além de refletir costumes que já estavam em uso), como acionar um movimento nas engrenagens da história, podendo haver aí um desdobramento imprevisível com relação à sua aplicação, eficácia e resultados. Pretende-se neste artigo abordar as Cartas de Seguro desen- volvidas pela legislação portuguesa em seu Estado nascente e fixa- das nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, fazendo–se ainda referência a sua vigência no Brasil até sua extinção com a promulgação do Código de Processo Criminal do Império em 1832. O tema reflete a intenção de se abordar um dispositivo que visava à garantia de direitos individuais, mas que, como dito acima, ultrapassa apenas os resultados fáticos da aplicabilidade legislativa. Sua problemática acaba por incidir na própria estrutura da organi- zação da justiça, demandando, no seu contexto histórico, discus- sões sobre competências e exaltando ânimos pessoais daqueles que eram atingidos pela natureza e função do ordenamento. Além dis- so, refletir sobre as Cartas de Seguro portuguesas pode auxiliar numa compreensão mais abrangente na caracterização de um ethos do Direito português, no período de sua formação. No presente artigo, não foram consultados diretamente os casos específicos que demandaram Cartas de Seguro como meio de se proteger um direito, o que possibilitaria uma análise e coteja- mento de aspectos como: quais eram as pessoas e seus respectivos perfis (sociais, econômicos, religiosos, etc.) que se valiam de Cartas de Seguro e, ao mesmo tempo, contra quais acusadores elas eram utilizadas. Seria muito interessante analisar os pedidos de seguro que foram recusados e quais os motivos e se isso caracterizava uma situação social que privilegiava e/ou denegria certos grupos, utili- zando-se para isso mecanismo de aplicação da justiça (invertendo- se aí a lógica de serem as Cartas de Seguro um dispositivo que refletiria a tutela e proteção de um direito). Porém, indiretamente, consultando a própria legislação existente, as alterações que o dis- positivo sofreu e os assentos que recebeu na Casa de Suplicação será possível fazer algumas, ainda que modestas, reflexões sobre o seu funcionamento e demandas que criou no período de sua exis- tência. Fica aqui, neste pequeno ensaio sobre o tema, uma reflexão sobre as Cartas de Seguro e seus mecanismos processuais no intui- to de se levantarem questões sobre o significado, intenção, caracte- rísticas e conseqüências sociais de um remedium liberatório, como dis- se Nelson Hungria, contra a arbitrariedade da força e privação da liberdade2. Suas conseqüências foram amplas, sendo as Cartas de Seguro a semente do atual habeas-corpus. Seus usos (e abusos) são frutos de cada contexto e momento histórico sendo tais fronteiras 2 (Hungria. In: Lima, 1969). 27 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. entre as letras da lei e sua práxis no social um dos objetos da Histó- ria do Direito. Alguns Antecedentes na Península Ibérica Na história das conquistas das garantias individuais e da tutela desses direitos, temos, como marco inicial, os direitos inscritos na Carta Magna dos barões ingleses frente ao arbítrio do reinado de João-sem-Terra, datada de 12153. Porém, podemos nos debruçar mais a fundo na história dos mecanismos jurídicos de proteção aos indivíduos. No contexto de formação das Monarquias Nacionais e de um Estado centralizado, essas figuras de tutela de direitos indi- viduais inserem-se numa perspectiva de limitação e delimitação dos poderes locais de aplicação da justiça (e da justiça privada), apon- tando para uma intenção centralizadora da organização e mono- pólio dessa mesma justiça, ao mesmo tempo em que protegeriam qualquer abuso de poder. Nessa perspectiva, podemos nos remontar ao Império Ro- mano para visualizar a raiz histórica da exceção de pré-executivida- de na execução do interdito romano e, posteriormente, na Península Ibérica, com a introdução pelo Cânone II do XIII Concílio de Toledo de 683, do hábeas-corpus visigótico. O primeiro era um instrumento processual de tutela, funda- do em uma situação de fato carente de proteção e que podia se revestir de natureza proibitória, restitutória ou exibitória4, caracterizando uma natu- reza de política administrativa. Era uma demanda que partia de um particular, emanada por um magistrado para que se fizesse uma coisa ou deixasse de se fazer. Nesse sentido, o pretor poderia inter- vir para proibir que qualquer execução fosse realizada alterando a situação jurídica existente antes da contenda ou, ainda, quando um cidadão romano via seu bem esbulhado na sua posse antes de re- solução judicial5. Essa medida excepcional, denominada interdito, constituía uma ordem do pretor, o qual a determinava fundado no poder do impérium, do qual se achava investido; e esta ordem tinha por fim sancionar (coecere) um comportamento mediante uma constrição indireta (cogere)6. E ainda: Ressalta-se, entretanto, que o poder de imperium não se reduzia tão-só àquele primeiro momento, podendo estender-se durante o curso do processo na medida em que a ordem pública o exigisse, algum outro motivo assim provocasse, ou no momento em que o prejudicado levantasse a ocorrência de irregularidades, excessos ou arbitrariedades atentatórias ao seu direi- to7. 3 Pontes da Miranda, na obra História e Prática do Habe- as-Corpus, indica que é no Ca- pítulo 29 da Magna Charta li- bertatum que encontra-se a ga- rantia prática, imediata e uti- litária da liberdade física. De- vido as arbitrariedade do governo do rei João (1199 – 1216) os barões ingleses se reuniram e acordaram em que era preci- so obter do rei, mesmo pela força, carta de liberdades. Os revolucionários proclama- ram-se exército de Deus, en- traram em Londres, a 24 de maio de 1215, e quase um mês depois, a 19 de junho (...) o rei assinou, no campo de Runnymead,(...) o ‘ato’, a que se chamaria a Magna Carta. (Miranda, 1962; p. 10 e 11). Porém, o mesmo autor mostra que Depois de outor- gada, João-sem-Terra violou várias vezes a declaração de 1215 (Idem, p. 12). 4 (Azevedo, 2005, p. 90). 5 Explicam José Rogério Cruz e Tucci e Luiz Carlos de Azevedo na obra Lições de História do Processo Civil Romano: Com a evolução dos tempos, a constatação de novas exigên- cias sociais autorizaram o pre- tor a instituir meios proces- suais de tutela, destinados, via de regra, a reparar even- tuais iniqüidades provenien- tes da estrita observância das normas do ius civile ou mes- mo a preencher lacunas des- te. (Tucci & Azevedo, 2001; p. 111) e, sobre suas origens: A criação desse instrumento processual, especialmente do interdito uti possidetis, foi determinada pela necessida- de de proteção da posse da propriedade conquistada (ager publicus), pois, o pos- suidor, despido de domínio, não tinha meios para que fos- se resguardada a sua posse 28 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. Esse instrumento processual romano realizava a proteção da coisa em litígio, antes da decisão de mérito ser pronunciada, pre- tendendo evitar, dessa forma, todo tipo de violência e coibindo abusos que poderiam ser praticados pelas partes. No mesmo sentido da tutela e garantia de direitos individuais, o Cânone XI do Concílio de Toledo VI de 638, decretou que os inocentes não poderiam ser atingidos por imprudência e/ou malí- cia dos acusadores, o que poderia resultar numa imagem pública denegrida do acusado: XI. Que no se condene a nadie sin acusador legal. Es justo que la vida de los inocentes no sea manchada por la malicia de los acusadores, y por lo tanto nadie que este acusado por otro será entregado al suplicio hasta que el acusador se presente y se examinen lãs normas de lãs leyes y de los cánones, y si se prueba que es persona incapaz para acusar , no se admita la acusación, a no ser que se trate de crimen de lesa majestad8. Esse instrumento que demonstra uma preocupação na orga- nização da justiça realizada e emanada por um poder central em detrimento de possíveis (e prováveis) arbitrariedades locais, será acrescido pelo Cânone II do XIII Concílio de Toledo, realizado um pouco depois, em 683, na época do curto reinado do monarca visigodo Ervigio (680 – 687). Esse cânone, conhecido como o hábeas-corpus visigótico protegia todos aqueles que, vinculados ao rei por juramento de fidelidade, pudessem ser presos, acorrentados, castigados, desapossados de seus bens, torturados, antes que o jul- gamento se efetuasse. Protegiam assim seus direitos e prerrogativas de pessoas livres e inocentes, pelo menos até que se provasse o contrário. Importante notar que até para as pessoas livres, posto que de condição inferior, guardava-se igual procedimento9. Podemos acompanhar no texto original do cânone sua preo- cupação em preservar a honra do acusado no espaço público e de colocar a justiça real como a grande protetora de todas as causas do reino. É claro que, ao mesmo tempo em que se protegia, esse dispositivo garantia que os rendosos provimentos advindos dos processos tivessem uma parte destinada à Monarquia real: II. Por lo cual, tomando uma medida conforme a los deseos del rey, decre- tamos em común, que ninguno em adelante del orden palatino, o de los pertenecientes a la santa religión, por estratagema ardida por el rey, o por instigación de outra potestad seglar, o com el apoyo de la maliciosa volun- tad de cualquier outro hombre, sea privado del honor de su grado o de servir em el palacio real, fuera del caso de manifesto y evidente indicio de sua culpa y no se le aprisione, ni encadene, ni se le someta a tormento, ni se le castigue com cualquier clase de penas corporales o azotes, ni se le prive se sus bienes, ni sea encerrado em prisión, ni se le rapte, valiéndose aqí y pacífica. (Tucci & Azevedo, 2001, p. 112). 6 (Azevedo, 2005, p. 89). 7 (Azevedo, 2005, p. 90). 8 Concílios visigóticos e hispano- romanos. Edição preparada por José Vives, Barcelona, Madri, MCMLXIII e citado em (Aze- vedo, 2004, p. 106 e 107). 9 (Azevedo, 2004, p. 102) 29 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. allá de inustas ocasiones, com lo cual se le arranque uma confesión por la fuerza, oculta o fraudulenta, sino que aquel que es acusado, conservando las prerrogativas de sua categoria, y sin sufrir antes los perjuicios reseña- dos más arriba, será presentado em la pública deliberación de los obispos, de los grandes y de los gardingos, e interrogado com toda justicia y si fuere culpable del delito, sufra las penas que las leyes señalan para el cuímen que se de há descobierto, y si fuere inocente, sea declarado tal por el juicio de todos10. A tradição canônica e romana recuperada pela escola dos glo- sadores e dos pós-glosadores, será amplamente divulgada pela Europa, sobretudo a partir do século XIII, e conhecida como direi- to comum, funcionando, em Portugal, como direito subsidiário do reino11. Terá vida longa sua aplicação, pois seu funcionamento só será limitado com a Lei da Boa Razão em 1769, no período das reformas pombalinas12. Ressaltamos acima dois exemplos da tradição do direito que se instalou na Península Ibérica e deixou um legado no que tange à complexa caracterização da proteção e garantia dos direitos indivi- duais. Complexa porque, se por um lado esses institutos nos reve- lam uma preocupação em limitar a força do poder local e da prá- tica das vinganças privadas contra indivíduos despossuidos de meios de defesa, por outro lado, eles denotam um confisco do poder de justiça para as mãos do imperador além de caracterizar uma práti- ca discricionária, tanto legislativa quanto punitiva, caminhando para o absolutismo real13. Notas sobre a formação e centralização do Estado Português Á guisa de esclarecimento, é necessária uma pequena síntese sobre a formação do Estado Português, uma vez que foi nesse contexto social que as Cartas de Seguro foram criadas e utilizadas. Não pretendemos aqui nada mais do que uma breve contextuali- zação geral do tema. A formação do reino de Portugal está diretamente relaciona- da com a Guerra de Reconquista travada na Península Ibérica. Esse processo de lutas foi longo, abarcando, principalmente o período entre o século XI até o XV, coroado de avanços e retrocessos. Podemos, no entanto, nos remontar a uma resistência ocorrida desde o século VIII, conforme narra Marcello Caetano: Aquando da invasão muçulmana, alguns núcleos de cristãos refugiaram- se nas montanhas do Norte da Península e aí formaram núcleos de resistência ao invasor que com êxito repeliram os ataques deste. Nas Astúrias, o núcleo resistente engrossou com refugiados do Sul e elegeu um 10 Concílios visigóticos e hispano- romanos. Edição preparada por José Vives, Barcelona, Madri, MCMLXIII. e citado em (Aze- vedo, 2004, p. 107). 11 Na importante obra sobre o tema O direito subsidiário na história do direito portugu- ês, Guilherme Braga da Cruz explica como essa influência foi se solidificando no reino e ga- nhando importância com a fun- dação da Universidade de Lis- boa (1290) e depois transferida para Coimbra: É nesse ambi- ente que o direito português se autonomiza do direito leo- nês, desde os começos do sé- culo XIII, através duma ac- tividade legislativa que se ini- cia, praticamente, no reina- do de D. Afonso II, a partir de 1211, ainda em ritmo moderado, mas logo com a marca nítida da influência justinianeia e do prestígio do direito canônico – activida- de legislativa que depois se intensifica no reinado de D. Afonso III, já na segunda me- tade do século (1248 a 1279), a ponto de constituir, em al- gumas matérias, como o di- reito processual, uma regu- lamentação bastante comple- ta e com uma influência cada vez mais acentuada do direi- to romano-canônico.E o quadro completa-se no rei- nado imediato, com a funda- ção, já no declínio do século XIII, do Estudo Geral dio- nisiano, onde o ensino do di- reito romano e do direito canônico e a outorga de graus num e noutro direito ocupam justamente a finalidade mais destacada. É importante frisar que as compilações romano-ca- nônicas que circulavam em Por- tugal inicialmente só eram aces- síveis a um pequeno número de eruditos e a sua utilização pou- co podia ultrapassar os limi- tes dos tribunais da Corte e 30 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. nobre godo, da família real, Pelaio, para seu chefe e rei (718). Decorridos 30 anos, os cristãos, aproveitando as lutas civis que na Espanha muçul- mana haviam lançado os Berberes contra os Árabes, iniciaram a liberta- ção do território por uma ofensiva em grande escala a partir do reino das Astúrias (753). É o que rigorosamente se pode chamar a reconquista cristã, movimento que prossegue durante séculos, até a expulsão dos Mu- çulmanos do seu último domínio peninsular, o reino de Granada, em 1492. No território onde hoje é Portugal, a Reconquista finda com a tomada de Algarve em 124914. Nesse processo de lutas, o reino Leonês institui com seus pa- res e conselheiros a Cúria Régia15, destinada à discussão e resolução de questões militares, econômicas, jurídicas, etc. O rei de Leão, considerando-se o representante direto dos monarcas visigodos, procurava assegurar a sua autoridade sobre todos os cristãos da península. A separação de Portugal na historiografia é um assunto controverso. Resume-o bem Mário Júlio de Almeida Costa: Pelos fins do século XI, chegaram à Península D. Raimundo e D. Hen- rique, nobres da Borgonha, que desposaram duas filhas do referido mo- narca de Leão, respectivamente, D. Urraca, descendente primogênita e nascida do matrimônio, que viria a suceder ao pai, e D. Teresa, de pouca idade, e proveniente de uma ligação extraconjugal de Afonso VI. (...) O problema surge, com efeito, a partir do casamento de D. Teresa e D. Henrique. Afonso VI outorgou-lhes a terra portugalense. Mas a que título?16. Surge assim o dilema sobre a natureza jurídica da caracteriza- ção do território português. Historiadores e estudiosos divergem sobre o tema levantando as hipóteses: seria uma doação de senho- rio hereditário, com vínculo de vassalagem? Seria uma concessão hereditária de tipo feudal, ou, ainda, uma tendência hereditária17? De qualquer modo, a partir do final do século XI, com D. Afonso Henriques (1128 – 1185), o Reino Português inicia sua jor- nada num processo de solidificação de suas fronteiras, de individu- alização de seu direito e da centralização monárquica. Tais caracte- rísticas tiveram impulso na luta contra os mouros, identificados como inimigos externos. Logo de início, apercebeu-se o rei da necessidade de limitar os poderes locais atribuídos à nobreza. Uma das providências to- madas nesse sentido foi a de conceder autonomia aos conselhos. Esse apoio do rei visava a enfraquecer o poder da nobreza fundiária em sua própria base territorial18, tentando impedir que agissem livremente sem levar em conta as determinações reais. Esses Conselhos municipais formavam a unidade básica da estrutura administrativa e judicial de Portugal. Eles mantinham cer- de alguns tribunais canôni- cos. A tradução para o portugu- ês de obras castelhanas como as Flores de Derecho, Nueve ti- empos de los pleitos, Fuero Real e as Siete Partidas, inspi- radas no direito comum, foi feita com vistas a uma utilização mais ágil pelos tribunais municipais portugueses a título de fontes sub- sidiárias de direito. (Braga da Cruz, 1975, p. 186 e ss). 12 A Lei da Boa Razão cuidou do problema do direito sub- sidiário proibindo de modo terminante a remissão a quaisquer outras ‘Allegações e Decisões de Textos ou de authoridades de alguns Es- criptores’, inclusive da Glo- sa de Acúrsio e dos Comen- tários de Bártolo, enquanto, no ordenamento pátrio, hou- ver ordenações, leis ou pre- cedentes do reino. Foram então expressamente refuga- das ‘as Leis Romanas que em Boa Razão não forem funda- das’ (...) a Lei da Boa Razão determinava que não mais se aceitasse a ‘autoridade ex- trínsica’ das leis romanas, e, portanto, repudiava a aplica- ção generalizada do Corpus Iuris Civilis e dos Santos Câ- nones, que tanto prestígio haviam granjeado durante séculos como fontes subsidi- árias. (Tucci, 2004, p. 140 e 141). 13 De fato, com o desenvolvimen- to e fortalecimento do absolutis- mo, cuidará posteriormente o monarca de limitar também os aspectos legislativos dos juízes e desembargadores dos Tribunais de Relação do Reino em matéria de criação de Assentos como pre- cedentes com força de lei, deter- minado que só os magistrados da Casa de Suplicação é que pode- riam assentar novos precedentes. Sobre o tema, (Tucci, 2004). 14 (Caetano, 2000, p. 119). 31 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. to número de funcionários como o almotacel, o alcaide, o meiri- nho, o tabelião e o juiz ordinário (também chamado de juiz da terra). Em seu trabalho sobre a burocracia no Brasil Colonial, Stu- art B. Schwartz mostra como a criação do Juiz de fora, em 1352, foi uma maneira encontrada para coibir a corrupção que os juízes locais poderiam sofrer. O Conselho de cada cidade normalmente contava com dois juízes ordiná- rios eleitos. Geralmente eram cidadãos comuns, não treinados nos cami- nhos da lei, que se dispunham a servir a comunidade por um ano. Um bastão vermelho simbolizava a autoridade do juiz ordinário. Era respon- sável pela manutenção da lei e da ordem dentro da cidade; no entanto, seus esforços para a consecução desse fim eram frequentemente obstruídos. Na sua condição de oficial de justiça e membro da comunidade, o juiz ordinário e sua família sofriam ameaças e pressões por parte dos fidalgos e de outros grupos ou indivíduos poderosos. Por outro lado, o juiz ordiná- rio podia abusar de sua autoridade para favorecer amigos e parentes. Estas falhas levaram a Coroa a criar, já em 1352, o cargo de juiz de fora, para suplantar o juiz da terra em algumas comunidades. Como eram apontados pelo rei, teoricamente os juizes de fora estariam menos sujeitos a pressões locais (...) Da mesma forma que o juiz ordinário, os magistrados reais podiam presidir a primeira audiência de causas cíveis e criminais, com exceção das que envolvessem prerrogativas reais19. Agiram nesse mesmo sentido as Posturas de Afonso II, por ocasião da Cúria de 1211, quando se procurou impor leis gerais, proibindo a vingança dentro da casa do inimigo, bem como a destruição dos bens imóveis, de sua casa, árvores e vinhedo20. Aos poucos, a centralização monárquica necessitava acabar com a prá- tica e aplicação da justiça privada e da vingança pela força exercida diretamente por aqueles envolvidos em disputa, nas quais, invaria- velmente, prevalecia a vontade do mais forte (econômica e fisica- mente). A ascensão da justiça pública apresentava uma motivação cada vez mais forte. Por isso havia que punir os fidalgos que teimavam em fazer justiça sanguinolenta e absolutamente livre de qualquer restrição21. Assim, uma lei de 17 de março de 1326, do rei D. Afonso IV (1325 – 1357), registra que no reino era muito usada a vingança e conseqüentes homicídios, o que causava grandes prejuízos e de- sonras. Sendo assim, estabelecia esse rei a pena de morte para aque- les que praticassem a vingança privada e as assuadas (grupos que realizavam a vingança). Porém, a reação dos fidalgos foi grande e o rei teve que rever a medida. Eles nomearam um procurador para solicitar junto a D. Afonso IV a revogação do dispositivo, o que gerou a criação de uma nova lei, de 11 de abril de 1347. Carlos de 15 No exercício de variadas atribuições, o rei era assisti- do por um conselho, para tra- tar de assuntos da adminis-tração, da legislação e da jus- tiça. A atividade judicante desse órgão, que passou a ser chamado de Cúria Régia, é considerada importante fon- te de produção do direito no período da reconquista. A Cúria Régia tinha competên- cia originária para julgar al- gumas causas mais relevan- tes e, ainda, funcionava como tribunal de apelação. Era o órgão jurisdicional mais preeminente do reino e, por essa razão, não admira que, no início da monarquia lusitana, delimitasse uma ori- entação jurisprudencial (...). (Tucci, 2004, p. 121–122). 16 (Costa, 2002, p.159–160). Comenta Nuno J. Espinosa Go- mes da Silva: Não há certeza quanto à data em que D. Henrique, neto de Roberto, duque de Borgonha, e sobri- nho de D. Constança, segun- da mulher de Afonso VI, terá vindo para a península. Po- rém, em 1096, já D Henri- que está casado com D. Te- resa, filha ilegítima de Afon- so VI, sendo-lhe atribuída a terra portugalense, que tinha, sensivelmente, os limites do território português, de hoje, com excepção da fronteira sul, que acompanharia o Tejo, até perto de Santarém, de onde inflectiria para a zona de Peniche. (Silva, 2000, p. 119–120). 17 Sobre o tema, (Caetano, 2000; Costa, 2002; Silva, 2000). 18 (Salgado, 1990, p. 25). 19 (Schwartz, 1979, p. 4–5). 20 (Lima, 1969 e Caetano, 2000). 21 (Lima, 1969, p. 49). 32 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. Araújo Lima, citando Marcello Caetano, explica: Nesta lei admite-se o direito de vindita quando o homicida fugisse da localidade ou de outro modo se recusasse a julgamento. Se a fuga resultasse de temor das represálias, podia o fugitivo pedir ao Rei, ao seu meirinho- mor ou a corregedor, carta de segurança para se apresentar em juízo22. Assim, o Estado Português que inicialmente tinha uma justiça baseada principalmente no costume, foi, aos poucos, a partir dos forais locais23 que registravam parte desses costumes, das ativida- des legislativas do rei e da Cúria Régia e de compilações do direito comum utilizado em larga escala como fonte subsidiária de direito, configurando um corpo legislativo que abriria caminho para uma primeira compilação de caráter decretório. O fortalecimento do poder monárquico, a utilização do direito comum, o início da ex- pansão marítima, levaria à criação, em 1446 da primeira das Orde- nações: a Afonsina24. Segurança Real Nesse processo de centralização do poder real e do surgi- mento paulatino de uma justiça pública que se firmava, frente a uma justiça de caráter privado, encontramos a elaboração e desen- volvimento de um dispositivo de proteção à liberdade do indiví- duo que tomará forma nas Cartas de Seguro. Sua origem remonta a antigos forais do século XII, concedi- dos pelo rei, pelos grandes senhores, ricos-homens, nobres, prelados ou mestres de ordens militares ou religiosas25 e ainda pelos templários no reinado de Sancho I. São os forais de Fresno (Freixo – 1152), Orrio (Urros – 1182), Freixiel (1195 e 1209, Touro (1220) e Santa Cruz (1215)26, que possuem os registros mais antigos e podem ser consultados na obra Portugalia Monumenta Histórica. Leges et consuetudines. Seguindo os apontamentos de Carlos de Araújo Lima, em sua obra Carta de Segurança, onde o mesmo se apóia na História de Portugal de Alexan- dre Herculano, teríamos, portanto, nessa forma de tutela das liber- dades individuais, um antecedente à famosa Carta Magna Inglesa de 1215, funcionando em caráter preventivo: Era, a seu modo, o hábeas-corpus da época e que vinha, em Portugal, em essência de muito antes, concedida pelos senhores de terra. Historicamente, Portugal antecede à Inglaterra27. É preciso identificar e diferenciar dois dispositivos similares concedidos pelo rei (inicialmente também pela nobreza local) e que passaram a vigorar em Portugal nesse período do processo de centralização do Estado Absolutista: as Seguranças Reais e as Cartas de Seguro que, apesar de terem surgido do mesmo tronco e nascerem de 22 (Lima, 1969, p. 50). 23 Sobre a caracterização dos fo- rais ver (Caetano, 2000, p. 235 a 239). 24 Ver no proêmio do Livro I des- sas Ordenações a história da ori- gem e da elaboração desse códi- go. 25 (Azevedo, 2005, p. 157). 26 Sobre esses forais (Lima, 1969 e Azevedo, 2005). 27 (Lima, 1969, p. 71). 33 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. idêntico propósito28, de serem diplomas provenientes do monarca e em seu nome circularem, cumpriam objetivos distintos. A Segurança Real surge desde a fundação de Portugal, com D. Afonso Henriques, que teria dado uma carta de fidelidade e seguran- ça em 1170 para proteção dos mouros forros de Lisboa. Nessa carta, garantia o monarca aos muçulmanos a liberdade e também que não sofreriam nenhum dano em Portugal. Além disso, dizia o documento que nenhum cristão teria o poder de lesá-los, ficando os mouros sujeitos apenas ao alcaide que elegessem dentre os de sua raça. Em troca, pagariam vários impostos à Coroa29. Esse dis- positivo legal era devido à necessidade do reino de povoar e habi- tar as terras carentes de organização interna e proteger suas frontei- ras. A Segurança Real define-se por ser uma antecipação do que será feito, um julgamento preliminar atuando como força de paz e coesão interna e, ao mesmo tempo, como afirmação do poder real e prestígio da justiça. Foi fixada e estruturada definitivamente nas Ordenações Afonsinas (1446), livro III, título 122 – Das Segu- ranças Reais, como e porque devem ser dadas: Estabeleceram as Leys dos Imperadores, que fe huum homem fe teme de outro por alguuma jufta razão, e pede aás Juftiças da terra, que o facão delle feguro, depois que o Juiz for informado da razão, por que fé afsy teme e pede fegurança, fe vir que tem jufta rezam pera fe temer, deve mandar vir perante fy aquelle, de que afsy pede fegurança; ou mandar o Alcaide deffa Cidade, ou Villa, honde fe acontecer, fegundo a qualidade da peffoa for, e requerer-lhe-ha da parte noffa, que fegure aquelle, que pede delle fegurança; e fe o guardar, deve-lhe mandar dar dello afsy huu Eftormento pubrico, ou Carta teftemunhavel, fegundo que for o Juiz; e non o querendo fegurar da noffa parte de dito, e feito, e confelho, fegundo ufança da Corte, e jeralmente da terra; e alem defto deve penar aquelle, que nam quiz dar a dita fegurança per feu mandado, por o defprefo que lhe afsy fez; a qual pena deve fer fegundo a calidade da peffoa, e a razaõ que ouver e differ, por que naõ fez o mandado do Julgador; cafe for peffoa de grande eftado, e jufta razam nom aleguar,deve-o apenar a dinheiro, ou emprazar, que a certo dia pareça perante Nós per peffoa a fe efecufar, per que nam cum- prio o mandado da noffa Justiça; e fe for peffoa de pequeno eftado, deve-o degradar da dita Cidade, ou Villa, ou o poer na Cadea atá que dê a dita fegurança. E efta fegurança he geralmente chamada Real; e por que fomos certamente emformado, que efto he Direito ufado em eftes noffos Regnos longuamente, Mandamos que afsy fe guarde por Ley daqui em diante30. Como se pode observar, as Ordenações Afonsinas determi- navam que, conforme o costume antigo do reino, quando alguém temesse outro, por alguma justa razão, deveria pedir proteção à Jus- 28 (Lima, 1969, p. 69) 29 Sobre o assunto (Lima, 1969). 30 (Ordenações Afonsinas, Livro III, Tit. 122, 1984). 34 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. tiça para que fizesse dele um assegurado. O procedimento, uma vez reconhecida a causa pelos juízes, seria o de notificar aquele que é o acusado para que comparecesse à presença da justiça e ele pró- prio segurasse aquele temeroso. Ou seja, o mecanismo previa que, após a publicização do caso, e chegando este à justiça do rei, o possível agressor deveria zelar pela segurança daquele que o temia. Qualquer dano que o temeroso sofresse, o agressor deveria res- ponder por isso.Como se pode observar, as Seguranças Reais zela- vam pela manutenção da paz interna no reino de Portugal, procu- rando assegurar seus habitantes da arbitrariedade de poderes lo- cais, tendo em vista a unidade tão necessária naquele reino em for- mação. Além disso, versa o texto das Afonsinas sobre o caso de o acusado não querer segurar o queixoso. Segundo o típico costume da época, que admitia uma diferenciação penal de autor, caso ele fosse de grande estado, ou seja, que seu status social o definisse como um grande proprietário, um homem rico, etc., a pena deveria ser em dinheiro ou uma audiência com as Cortes do Rei para expor o caso. Mas, se, por outro lado, ele fosse de pequeno estado, então deve- ria ser degredado da cidade ou vila na qual residia ou posto na cadeia até resolver-se por assegurar o queixoso. Ainda dispõem as ordenações, em trecho posterior31 sobre quem é compelido a so- licitar segurança real pelo fato de haver matado com justa razão, em legítima defesa e teme por vingança dos parentes ou amigos da vítima. Deveria, nesse caso, ser levantada a culpa que o réu tem no caso e que, após apurado os fatos, recebesse a pena conforme o direito, impedindo-se assim a vingança privada32. Carlos Araújo Lima caracteriza a Segurança Real a partir do intuito central da Justiça Real que, por sua vez, poderia inverter papéis ao transformar o que matara em protegido do Rei, e aquele que tivera um parente morto encarcerado e constrangido, em acu- sado: A lei não podia hesitar. Com concordância ou não do pretendente à vingança, a segurança era dada, pelo juiz em nome do Rei, isto é, o ameaçado estaria, a partir daquele momento, seguro diretamente pelo monarca. A autoridade judiciária não podia transigir com o fato de o ameaçador não ter assentido em segurar aquele a quem ameaçava33. Ainda segundo o mesmo autor, a Segurança Real tinha uma fisionomia jurídica e um objetivo jurídico bem definido, qual seja: assegurar, pela ação pessoal, direta ou indireta do Rei, a própria justiça34, realizando uma intervenção real nos casos apreciados como de injustiça a evitar. Nesse sentido, assim como as Cartas de Seguro, definia-se 31 (Ordenações Afonsinas, Livro V – Tít. 33, 1984). 32 Poucas são as alterações feitas nas Ordenações Manuelinas (1521) e Filipinas (1603). Nes- ta última podemos observar que havendo uma grande inimizade entre duas partes, mesmo que essas não requeressem seguran- ça real, poderia esta justiça in- terpor a segurança para que as partes ficassem passíveis de in- correr nas penas e assim evitas- sem continuar com a desavença: Havendo alguma grande dis- codia antre taes e tão gran- des pessoas, de que se possa seguir grande dano ao Reino, e ao povo e a nossos serviço, Nós acordo do nosso Conse- lho mandaremos vir perante Nós aquelles, antre os quaes principalmente he a discor- dia; e perante o nosso Con- selho lhes diremos, como acordamos por serviço de Deos e nosso, pormos antre elles a ta segurança sem re- querimento de cada hum de- lles; declarando-lhes, que a damos per Nós, para que te- nhão razão de arrecear o rom- pimento della, e de incorrer nas penas, em que incorrem os que quebrão as seguran- ças postas per Nós. (Ordena- ções Filipinas, Livro V, Tit. 128 - § 5, 1985). 33 (Lima, 1969, p. 57). 34 (Lima, 1969, p. 61). 35 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. por uma ação do Rei; porém, a Segurança Real estava segurando diretamente a Justiça para que inocentes não sofressem e encon- trassem amparo. Já as Cartas de Seguro seguravam o ameaçado, mesmo que culpado. Essa transformação identificada pela migra- ção da resolução de conflitos, pela via privada para a via pública, insere-se no fortalecimento e formação do estado Português. Os reis sabiam que segurança real e carta de seguro, somavam-se no mesmo efeito salutar e eficaz, o de anteparo à violência e o de ajudar mais rápida transição da autotutela para a tutela pública35. As Cartas de Seguro e a centralização monárquica Dispositivos semelhantes podem ser encontrados desde os tempos de D. Dinis (1279 – 1325), com leis que passaram a fazer parte das Ordenações Afonsinas relativas à homenagem, á fiança, e à palavra de fiéis carcereiros36. Pode-se ler nas notas que comentam as Ordenações Filipinas no Livro V, Tit. 129, observações retiradas do trabalho de Joaquim José de Melo Pereira e Souza intitulado Linhas Criminais37, que diferenciam e explicam as especificidades das Cartas de Seguro frente a esses outros remédios: Elle não tem semelhança com o remédio da Fiança (...) A Fiança regu- larmente se concede aos prezos (...) As mesmas Carta de Seguro nada tem de comum com os Salvos-conductos, de que se usa entre outras nações. Esses salvos-conductos são dados não para o reo poder estar em Juízo, e livrar-se solto do crime, por que he accusado, mas para poder ir tratar algum negocio a terra de inimigos, ou ao Paiz onde foi banido. (...) Dife- rem também das Seguranças Reaes de que trata a Ord. Do Liv. 3 t. 78 § 5 e liv. 5 t. 128, as quaes são concedidas pelos Juizes das Terras, não aos Criminosos, mas aos innocentes, que temerem com justa causa ser inquietados por outros, buscão o abrigo da Justiça para que reporte aque- lles que os vexão, e os cohiba de lhes fazerem mal (...)38. É dentro desse sentido de proteção e garantias oferecida pelo rei a seus súditos, remontando-se a costumes semelhantes e mais antigos39, que podemos encontrar a origem das Cartas de Seguro, até chegarmos à sua oficialização de fato, nas Cortes d’Elvas em 136140, na época de D. Pedro I (1357 – 1367). Na exposição do artigo 84º dessas Cortes, podemos observar o relato de que mui- tos portugueses estavam fora do reino por temerem malefícios que os culpassem e receavam que suas apurações se dessem de forma tendenciosa. Observa-se, ainda, que esses indivíduos volta- riam às suas terras se estivessem seguros de sua liberdade, até que qualquer culpa lhes fosse imputada. O rei responde que: A este artigoo respondemos que nos plaz mercee aos do nosso poboo e 35 (Lima,1969, p. 62). 36 (Ordenações Afonsinas, Li- vro 5, Tit. 51, 1984). 37 (Ordenações Filipinas, 1985). Sobre o tema consultar também nota 65 de (Azevedo, 2005, p. 158). 38 (Idem, p. 1302). 39 Por exemplo, desde 1211, no reinado de D. Afonso II, os ofen- didos já estavam proibidos de exercer a justiça pela força e de maneira privada. (Azevedo, 2005, p. 159), citando o Li- vro das Leis e Posturas. Além disso, Araújo Lima, apoi- ando-se no estudo de Alexandre Herculano que utiliza o foral de Santa Cruz, indica que as pri- meiras Cartas de Seguro, a que tudo indica, devem ter sido ofe- recidas oralmente e por vizinhos, antes da centralização monár- quica. (Lima, 1969, p. 72). 40 As Cortes eram reuniões ex- traordinárias para se resolver questões importantes, convoca- das e presididas pelo Rei, na qual tinham direito de partici- par os nobres, prelados, os ri- cos-homens do reino e ainda al- guns conselhos locais que fossem convocados. Sobre suas atribui- ções, explica Marcelo Caetano: Sem dúvida que as Cortes não faziam leis: o poder le- gislativo pertencia por intei- ro ao rei, o qual podia ouvir os súbditos, mas com plena liberdade de decisão. As Cor- tes, através dos agravamen- tos ou exposições dos males a reparar acompanhada do pedido da solução que jul- gavam justa, apenas davam ensejo a que a autoridade do rei se exercesse, assentando- se porém que o que fosse resolvido em Cortes não poderia ser depois alterado pelo rei só por si. (Caetano, 2000, p. 315-316). 36 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. mandamos que os que assi andam amoorados ajam cartas de segurança por esse erros em que os culpam que forom feitos ata vinte e três dyas de Mayo desta Era por esta guisa que aquelles que he dicto que som culpados em morte de homem ou demolher sejam seguros perante os nossos ouvido- res e por outros feitos perante as justiças dos logares hu he dicto que esses malefícios forom feitos e uem os quiser demandar ou acusar demandeos ou acuseos por os logares suso dictos e nom sejam presos ata que judicialmente seja contra elles achado porque o devam seer e esto que dicto he nom se entenda aaquelles que esses malefícios fezerom em caso de traiçom ou d’aleive41. Assim, objetivando reprimir o uso da vingança privada, cos- tume de largo uso naquela época, acionado principalmente pelos nobres, a autoridade real pretendia se impor às arbitrariedades e uso da força dos poderes locais, o que, como se viu, obstruía a construção e unidade do reino de Portugal que necessitava de bra- ços e corpos que o ocupassem e lhe dessem forma. Ficou assim determinado que os que diziam serem culpados de morte deveriam ser seguros perante o Ouvidor e os demais, autores de feitos menos graves, deveriam ser segurados pela os juízes locais. Além disso, mandava o Rei que os prejudicados e ofendidos procedessem processando os beneficiários das Cartas de Seguro através da justiça competente, ou seja, a justiça do Esta- do, pública, centralizada. Todos os segurados deveriam responder a esses processos em liberdade durante processo regular, excetuan- do-se aqueles crimes que ameaçavam diretamente a pessoa do Rei (lesa-majestade) e do Estado, conhecidos como paz do rei, moeda falsa e a morte de alguém que estivesse seguro, circunstância esta última que fala bem da importância da instituição42. Segundo Araujo Lima, durante o reinado de D. João (1385 – 1433), restringiu-se a aplicação das Cartas de Seguro, refletindo, pois, o provável abuso que tal seguro estava ganhando pelo uso desmedido de sua proteção naquela época. Ficou assim determi- nado que só seriam dadas as Cartas para as autorias que houves- sem confessado sua culpa. Um pouco depois, com as Ordenações Afonsinas43, prescre- via-se que não seria dada Carta de Seguro nos casos de ferida aber- ta, antes de trinta dias e, nos casos de homicídio, até se passarem seis meses, pois, como explica Marcelo Caetano, o fundamento seria de que vendo os feridos ou os parentes do morto os autores dos malefícios passearam-se seguros nos lugares dos delitos, facilmente seriam tentados a vin- gar-se44. Nessas ordenações ficaram proibidos aos senhores da terra conceder Cartas de Segurança, procedimento esse que, a partir de então, só poderia ser feito oficialmente pelos desembargadores e corregedores do reino45. 41 Citado em (Azevedo, 2005, p. 158-159). 42 (Lima, 1969, p. 76). Outros crimes em que não cabe- ria Cartas de Seguro: deflora- mento, ferimento por arma proi- bida ou uso dela, crimes de Al- motaceria ou relativos ao governo da cidade, crimes de fazenda ou direitos de alfândega, crimes militares dos soldados, utiliza- ção de certidões falsas e foros in- devidos. 43 (Ordenações Afonsinas, Liv. 5, tit. 44, 1984). 44 (Caetano, 2000, p. 579). 45 (Ordenações Afonsinas, Liv. 5, tit. 112, 1984). 37 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. Além disso, uma vez alegada a legítima defesa, dever-se-ia primeiro proceder às averiguações e que essas fossem vistas pelo corregedor da corte, para que então fosse julgado se a alegação procedia ou não. Caso entendessem que não procediam as alega- ções, a Carta seria negada mas, caso ocorresse o contrário, o diplo- ma seria concedido, permitindo a liberdade até a decisão final do processo46. Tal lei visava manifestamente impedir que a simples alegação, sem prova suficiente, da legítima defesa permitisse ao argüido eximir-se à prisão preventiva, e eventualmente, acautelar seus bens e fugir à justiça. Mas tornava difícil a concessão da segurança, pela obrigação de enviar o caso à corte47. Uma vez fixada na legislação, as Cartas de Seguro passaram a ser um meio de proteção e segurança para aqueles que viviam em Portugal. E isso significava um grande passo para a afirmação de uma justiça centralizada do Estado, em contraposição aos poderes locais. Naquela época, o andamento processual penal apresentava diversas características que não pesavam a favor do réu; pelo con- trário. Segundo Luis Carlos Azevedo48, ele era: (...) falho e parcial, claudicava ele na venalidade dos julgadores, na situa- ção de inferioridade do réu, o qual suportava, desde logo, o peso da culpa- bilidade presumida, no sistema arbitrário de produção de provas, quase sempre arrancadas por meio de coação e tormentos, na reduzida oportu- nidade concedida ao acusado, para que viesse ou pudesse se defender. Mesmo que ainda estivesse distante uma sociedade que apre- sentasse uma gradual eliminação de privilégios em seu ordenamen- to e, por outro lado, a desigualdade social e o monopólio da apli- cação da justiça fossem uma das prerrogativas do poder absoluto do rei, alguns mecanismos iriam se impondo como fundamentais no desenvolvimento e aplicação da justiça, com o intuito de garan- tir maior isenção e menor arbitrariedade exercida por uma das partes envolvidas. O apuramento das condições e etapas processu- ais é um reflexo dessa necessidade. Nas Ordenações Filipinas49, ficava estabelecido que aquele que recebesse Carta de Seguro e ela tivesse sido quebrada, mas mesmo assim não tivesse findado a necessidade de proteção, poderia im- petrar até três Cartas de Seguro, sendo que se a quarta quiserem pedir e impetrar, não lhe seja dada, sem Provisão nossa. Pode-se perceber aí a tentativa de se tornar cada vez mais minuciosa a organização pro- cessual da época, determinando nesse mesmo parágrafo: E nas petições que fizer para impetrar as Cartas, declarará sempre as que já quebrou, e de outra maneira não lhe valerão a que derradeiramen- te impetrar. E quando assi impetrar a segunda, ou terceira Carta, paga- 46 (Ordenações Afonsinas, Liv. 3, tit. 57, § 3, 1984). 47 (Caetano, 2000, p. 580). 48 (Azevedo, 2005, p. 160). 49 (Ordenações Afonsinas, Liv. 5, tit. 129, § 2, 1984). 38 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. 38 Revista de Direito do Cesusc. v1. Jul/dez 2006. Wolkmer. ARTIGO. rá as partes as custas do retardamento em dobro, para o que, antes que lhe seja passada a Carta segunda, ou terceira, porá a caução que parece ao Julgador que lhe passar. E tanto que lhe concedida for, tornará a citar as partes, posto que as já tivesse citadas pela Cartas, que quebrou. Cartas de Seguro confessativas e negativas Havia dois tipos de Carta de Seguro. As confessativas (ou afirmativas) e as negativas. As primeiras eram aquelas requeridas pelos indivíduos que confessavam o crime, mas alegavam tê-lo praticado em legítima defesa, ou ainda por uma razão excludente do crime como, por exemplo, em caso do marido que cometesse crime para com sua mulher adúltera assim como para o adúltero. As Cartas de Seguro negativas dividiam-se em simples, quando o réu simplesmente negava o delito, e coartadas, quando o réu forne- cia um álibi comprovando sua inocência50. É assim que as Cartas são caracterizadas na cláusula que habi- tualmente acompanha as legislações que a definem: que não seja preso até se achar contra elle tanto, per que o deva ser. Luiz Carlos de Azevedo indica que, apesar das vicissitudes da época, o significado das Car- tas de Seguro foi fundamental para o desenvolvimento de uma cultura jurídica que buscava, pelos caminhos legislativos, uma ética em prol dos direitos humanos. ... por muito tempo, ainda, aguardariam os réus, sob privações, galés, maus-tratos e cadeias, a solução para as denúncias, que se lhes punham; caprichos, discricionariedades, malversações, decisões ao talante de juízes peitados e corruptos, foram vícios de que a época padeceu, mais sofrendo os que se envolviam no aranzel dos processos; forçoso é reconhecer, todavia, que já se tinha noção de quanto de pernicioso representava,para todos, o encarceramento indevido e precipitado; jungidos, de tal sorte, às dificulda- des próprias de um determinado momento histórico, buscavam os maiores alcançar, com os recursos de que dispunham e com medidas oportunas, a melhor aplicação da Justiça, com vistas ao respeito pela dignidade huma- na. De conformidade com tal espírito, de todas aquelas, a que emprestou maior significado foi, sem dúvida, a ordem de liberdade determinada pela Carta de Seguro51. Os Assentos da Casa de Suplicação Resta ainda examinarmos alguns Assentos concernentes às Cartas de Seguro feitas pela Casa de Suplicação, para que possamos ob- servar algumas características relativas aos desdobramentos e efei- tos que essas Cartas causaram na sociedade. Desde o início da 50 (Azevedo, 2005, p. 165) e nota 88 da mesma página e tam- bém (Lima, 1969, p. 80-81). 51 (Azevedo, 2005, p. 168). 39 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. monarquia portuguesa, era imperativo que a interpretação autênti- ca da lei constituía uma das prerrogativas exclusivas do rei. Contu- do, com o aumento de suas atribuições administrativas, essa ação foi outorgada ao tribunal superior do reino, cabendo ao monarca interpretar apenas aquelas cujas dúvidas mantinham-se em aberto, mesmo após discussão dos desembargadores da Casa de Suplica- ção52. A solução obtida pela mesa grande da Casa de Suplicação, ou pelo próprio Rei, era inserida num livrinho que passou a ser chama- do de Livro dos Assentos, Livro Verde ou Livros dos Assentos das Relação. Esses assentos tinham um valor normativo em tudo idêntico ao das próprias leis interpretadas, e, portanto, projetavam eficácia vinculativa para casos futu- ros semelhantes53. De fato, a hipótese aqui levantada é de que, por tratarem os Assentos de situações não claramente previstas inicialmente na lei, ou seja, aquelas que precisavam ser ainda ordenadas com precisão, elas representavam, nesse sentido, casos concretos de uma deman- da social que, no momento da criação legislativa, não foram pre- vistos. E, ainda, além de nos revelarem esses casos reais, prestam-se também para nos remeter à discussão acerca da legitimidade de tal demanda, pela ótica dos que exerciam a justiça do reino, uma vez que os Assentos quase legislam, via interpretação autêntica, sobre tais disposições. Discutiam-se, assim, competências para julgar, o foro de julgamento, número de desembargadores necessários para se aprovar determinado pedido, procedimentos processuais, den- tre outros. Conforme alguns assentos analisados, podemos perceber que foi motivo de discussão na Casa de Suplicação, inicialmente, a questão do foro e competência para julgar a possibilidade de concessão ou não das Cartas de Seguro, conforme discutem os Assentos de Nº. XXXIX e XIX. Uma questão levantada foi a possibilidade de se encaminhar o pedido de segurança para os Juizes locais ou para os Juízes da Corte, mesmo estando a Corte presente a menos de 5 léguas deste local: foi posto em duvida pelo Dr. Antonio da Gama como Chanceller da Casa de Supplicação se as Cartas de Seguro de ferimento, e outros delictos commettidos no lugar, aonde a Casa estiver, ou a cinco leguas ao redor (...) irão dirigidos ao Corregedor da Côrte com clausula, e se antes o acusador quizer accusar perante os Juízes, o possa fazer, como os Escri- vães dizem ser costume54. O Assento decidiu que o acusador poderia remeter seu pedi- do tanto para o Juiz Local como para o Juiz da Corte. Ou seja, caso aquele que necessitasse de segurança se sentisse melhor prote- 52 Essas disposições foram disci- plinadas no Alvará de 10 de de- zembro de 1518 e, posteriormen- te, incluídas nas Ordenações Manuelinas (Liv. 5, tit. 58. § 1). Sobre o assunto ver : (Tucci, 2004, p. 131 e ss). 53 (Tucci, 2004, p.135-136) que, por sua vez, nesta passagem cita Braga da Cruz (O direito subsidiário... opus cit.), conclui: Observe-se que essa prática, de emitir assentos normati- vos, iria perdurar na experi- ência jurídica lusitana até 1993, ocasião em que o Tri- bunal Constitucional, exer- cendo controle concreto de constitucionalidade, decla- rou ‘inconstitucional a nor- ma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que delega aos tribunais competência para fixar doutrina com for- ça obrigatória geral, por vio- lação do disposto no artigo 115 da Constituição’. 54 Assento nº. XXXIX, (Almei- da, 1869). 40 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. gido pelos Juízes da Corte e não pelos juízes locais, por estarem estes, possivelmente, mancomunados com a outra parte envolvida, poderiam fazê-lo. Protegiam-se assim aqueles que se viam lesados pela força dos poderes locais. Outra questão levantada por esses Assentos, esta mais espinhosa, foi a de se uma pessoa poderia, pelos seus privilégios e posses, levar o pedido de seguro para a Corte, mesmo estando esta afastada a mais de 5 léguas do local onde se pede a Carta. Isso significaria um privilégio que seria usufruído por poucos, pois teriam que ter condições de se deslocar até os tribu- nais da corte além de levar a parte citada por suas próprias expen- sas. (...) que em razão de seus privilégios pidião trazer seus contenedores à Côrte, se se poderião executar, e liquidar no dito Juizo, sendo para isso novamente as partes citadas fóra das cinco leguas; e assentou-se pelos Desembargadores abaixo assignados, que não; e por não vir mais em duvida se mandou fazer este assento55. Esses dois assentos citados acima foram registrados no livri- nho, em período posterior às Ordenações Manuelinas, mas são ain- da anteriores às Filipinas. Em um Assento um pouco posterior, de nº. LIX, de 12 de janeiro de 1606, observamos que, a partir do pedido de uma Carta de Seguro confessativa, por legítima defesa, poderia ocorrer que, posteriormente, o réu negasse na contrariedade. Ou seja, valia-se da Carta de Segura para permanecer solto e, depois, durante o andamento do processo, ele negaria a autoria. Conforme entendi- mento dos desembargadores e Aresto nº. 59 anterior do Dr. Jorge de Cabedo, ficou assentado que seria possível. (...) se duvidou sobre a Ord. do liv. 5 tit. 124 § 8, se hum homem, que tinha tomado Carta de seguro confessativa com defeza, negando depois na contrariedade, se haveria esta Ord. lugar, como estava já determinado, como refere o Dr. Jorge de Cabedo na primeira parte das suas Decisões, Aresto 59, a qual duvida moveu o Dr. Luiz da Gama Pereira, Corre- gedor do Crime da Côrte: sobre a qual diante do Regedor D. Diogo de Castro, se assentou com a maior parte dos Dezembargadores, que para isso forão chamados, que a dita Ord. se praticasse conforme ao Aresto; e por assim se assentar, se assignarão aqui para mais não vir em duvida56. Outros Assentos relacionados com esse caso se deram no final do século XVII, registrando uma situação bastante interessan- te, assim como foram importantes suas discussões sobre as dúvi- das que os casos levavam à mesa grande da Casa de Suplicação, con- forme podemos acompanhar nos Assentos de nº. CCXXXVI, CCXLII, CCXLIII e CCXLVIII. Nessas quatro interpretações autên- ticas, a questão principal girava em torno da possibilidade ou não 55 Assento nº. XL (Idem). 56 Assento nº. LIX (Idem). 41 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. de concessão de uma segunda Carta de Seguro depois de ter sido negado um primeiro pedido. A primeira delas, de 27 de novembro de 1691, Assento de nº. CCXXXVI, referindo-se a um decreto de 13 de setembro de 1691, conclui que não cabe embargo de decisão denegatória e, portanto, muito menos, um segundo pedido de seguro: (...) veio em duvida, se na fórma do Decreto de Sua Magestade de 13 de Setembro de 1691, em que se prohibido, que denegada a primeira Carta de Seguro, se não podesse fazer segunda, se a tal denegação se poderia vir com embargos;E assentou-se por todos os votos, que considerada a mente e tenção de Sua Magestade, e palavras do mesmo Decreto, que de nenhu- ma sorte se podia embargar (...)57. Em outro Assento, de nº. CCXLII, o mesmo tema chega à Casa de Suplicação acrescido da dúvida de que se fosse solicitada primeiramente uma Carta de Seguro do tipo confessativa, poderia ser posteriormente pedido uma segunda Carta, sendo esta negati- va. Essa questão demonstra que esses diplomas, que inicialmente tinham o fim de proteger os indivíduos ameaçados pelos poderes locais, poderiam estar funcionando também como um meio de assegurar atos ilícitos, em detrimento dos fins que a lei inicialmente se propunha a proteger: (...) veio em duvida, se na fórma do Decreto de Sua Magestade de 13 de Setembro de 1691, em que se prohibio, que, denegada a primeira Carta de Seguro, se não admitisse segunda, se procedia esta resolução, sendo denegada a primeira Carta de Seguro negativa, pedindo-se depois confes- sativa: e assentou-se pelos mais votos, que, vista a mente do mesmo Decre- to, e palavras, com que se declara, de nenhuma sorte se podia admitir segunda petição, por repugnar ao disposto pelo dito Decreto (...)58. Como se pode observar, a orientação dada pela Casa de Suplicação foi a de não se admitir, de nenhuma sorte, uma segun- da Carta de Seguro. Porém, depois desse caso de 22 de Setembro de 1695, houve ainda outra no mesmo sentido levado à mesa grande no dia 13 de Outubro de 1708, acentuando ainda mais a impor- tância que essa questão possuía para aquela sociedade. Nesse dia, discutiu-se novamente sobre a possibilidade de se deferir um se- gundo pedido de Carta de Seguro: (...)foi posto em duvida, se denegando-se em Relação huma Carta de Seguro negativa a hum Réo de caso de morte, ou que provado mereça a dita pena, se poderia o dito Réo fazer segunda petição para Carta de seguro confessativa com defesa (...). Nesse caso, ao contrário do Assento anteriormente citado de nº. CCXLII, discute-se se após um primeiro pedido de Carta de Seguro do tipo negativa que seja negado, caberia uma segunda soli- 57 Assento nº. CCXXXVI (Idem). 58 Assento nº. CCXLII (Idem). 42 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. citação de caráter confessativa. Novamente temos aqui um quadro das demandas que o remedium liberatório acabara de criar, pois não é difícil perceber que ele passou a ser utilizado também, não apenas como segurança de um indivíduo ameaçado, mas como subterfú- gio à proteção de um criminoso. Esse, é verdade, poderia estar tentando escapar das cruéis penas do famigerado Livro V das Orde- nações, e procurava lutar com as mesmas armas do sistema puni- tivo; ou poderia ser realmente um indivíduo danoso à sociedade. Isso não se pode aferir pelo documento mas, logo em seguida, o Assento transcreve aquilo que seriam os fundamentos de uma po- lítica criminal, referindo-se à Lei Extravagante promulgada em 10 de Janeiro de 1692 por D. Pedro II (regente entre 1667 – 1683, rei entre 1683 – 1706), ou seja, a limitação da concessão de Carta de Seguro por necessidade preventiva e de repressão penal. Isso por- que se queria evitar que, soltos, os delinqüentes continuassem a intimi- dar vítimas e/ou testemunhas, ou ainda praticar novos crimes, além de seus delitos anteriores ficarem impunes. Refere-se ainda a negoci- ações que poderiam ser feitas entre as partes o que, no caso, seria uma perda da jurisdição absolutista na resolução dos conflitos e no confisco de parte dos bens que cabiam a Justiça do Estado. (...) e sendo assim geral a dita Lei, devia comprehender, assim as que se fizessem para Cartas de Seguro Negativas, como confessativas, maior- mente porque declarando o dito Senhor, na mesma Lei, que a sua tenção era castigar os delinquentes, e evitar os damnos, que resultavão de anda- rem soltos e em negociações que fazião com as partes, para dellas alcançar perdão, e ficarem os delictos impunidos, se abriria caminho por este modo de admittir segundas petições, a que os delinquentes soubessem os segredos das devassas, pois tendo entendido, que pela negativa, que intentavão, e se lhes denegou, poderia estar provado o delicto passarião a pedir confessati- va com suposta defesa, ficando com mais noticia da culpa, que lhes estava formada, e logrados por este modo os intentos das suas negociações, que a Lei lhes prohibe (...)59. Considerações Finais Percebemos que na História do Direito português, na época da formação de seu Estado, é possível encontrar dispositivos que objetivavam a proteção e tutela de direitos do indivíduo, no intuito de lhes preservar a liberdade de ir e vir. Abordamos aqui dois deles, as Seguranças Reais e, principalmente, as Cartas de Seguro. Procuramos mostrar como tais dispositivos estavam intimamente ligados à centralização do poder monárquico em detrimento dos poderes locais, sendo que as Cartas de Seguro surgiram, basica- 59 Assento nº. CCXLVIII (Idem). 43 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. mente, como garantia de liberdade contra os abusos da justiça pri- vada dos senhores donos de terra ou ricos-homens. Nessa perspectiva, enfatizamos como um ordenamento pode se modificar ao longo do tempo e ganhar vida própria. Prestam- se assim os Assentos da Casa de Suplicação para acompanhar par- te dessa trajetória das Cartas de Seguro, além de revelar as deman- das e a doutrina que embasava os desembargadores desse tribunal. Além disso, quisemos ressaltar como é fundamental nos debruçar- mos nessas zonas de fronteira entre as leis e seus usos na sociedade, na práxis de sua aplicabilidade, pois é aí que o historiador do direito encontrará material farto para escrever a história de uma época, de uma sociedade ou até mesmo de um personagem, seja ele humano ou não. Gostaríamos ainda de indicar a importância dessas pesquisas para a História do Direito no Brasil, uma vez que esse está intrinse- camente ligado à História portuguesa. Aqui, no Brasil, as Cartas eram concedidas, conforme a lei, pelos corregedores das comar- cas. Porém, as especificidades de uma colônia resultavam em ca- racterísticas distintas para nossas interpretações sobre o seu uso. Como exemplo, lembramos que enquanto Portugal era uma me- trópole mercantilista, o Brasil Colônia estava submetido àquela pelo Pacto Colonial e possuía uma grande população de escravos. Estes poderiam solicitar, através de seu senhor, uma Carta de Seguro, o que já indica uma diferença com relação ao contexto português. Configura-se uma situação onde, muitas vezes, uma mesma lei cri- ada na metrópole e que também possui aplicação na colônia, tinha características distintas, próprias da adaptação que sofria relativa aos diferentes contextos sociais onde o ordenamento era aplicado. J. Canuto Mendes de Almeida narra em seu artigo Uma carta de seguro, em São Paulo, concedida em 187260, a solicitação de uma Carta de Seguro confessativa com defesa pedida por dois escravos, Ber- nardo e Gaspar, após briga com João Pires, homem mulato e forro, sendo que todos, segundo os documentos, andavam bêbados. In- teressante que, ao mesmo tempo, indicam que a Carta é, também, negativa para o que de mais ainda lhes acusassem. Isso significa que esses diplomas poderiam então adquirir, quando confessativos, uma espécie de adendo negativo para o que mais lhes atribuíssem na devassa61. Assim, como medida preventiva, solicitavam os réus: Como também os suplicantes e sem embargo de que andavam embriaga- dos todo e qualquer excesso que obraram foi em sua natural defesa por serem os mesmos acometidos e feridos, como assim o querem mostrar por meio de seu livramento; e por isso precisam os suplicantes de sua Carta de Seguro Confessativa com defesa, termos em que P. V. Mag.de lhes faça mercê mandar passar sua primeira Carta de Seguro Confessativa com 60 É importante notar que a data do título de seuartigo provavel- mente está trocada. Foi trocado o ano 1782 para 1872, pois o ar- tigo refere-se ao período anterior ao Código de Processo Criminal de 1832 e a data do caso narra- do é exatamente 1782. Ademais, na data referida no título, 1872, não havia mais a possibilidade de se pedir Carta de Seguro. 61 No século XVIII, os juízes ordinários, logo que lhes che- gava a notícia de algum cri- me, abriam devassa, isto é, a formação da culpa prelimi- nar, com corpo de delito e audiência secreta de testemu- nhas, geralmente em número de trinta, procedimento que se encerrava com a prunún- cia. (Almeida, 1939, p. 166). 44 Revista de Direito do Cesusc. No2. Jan/Jun 2007. Andreucci. defesa, para o caso recontado e Negativa para todos os mais de que lhes quizessem fazer culpa62. Os réus se apresentaram ao juiz ordinário, que deferiu-lhes o requerimento, tendo Bernardo e Gaspar iniciado o processo em liberdade. Esse caso nos remete às contradições que a situação colonial ensejava pois, aos escravos, que não tinham liberdade, era concedi- da uma Carta de Seguro para que respondessem ao julgamento em liberdade, o que, na verdade, significa dizer que deveriam conti- nuar trabalhando para o seu senhor que havia, provavelmente, in- vestido dinheiro na sua compra. No Brasil, as Cartas de Seguro foram abolidas no Código de Processo Criminal de 1832 que, por sua vez, introduziria o habeas- corpus como proteção individual. Ainda está por se fazer uma pes- quisa que aborde as características das Cartas de Seguro concedi- das no Brasil durante a época colonial. Bibliografia Legislação Auxiliar Jurídico. Edição Fac-símile. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. In: ALMEIDA, Candido Mendes de; Auxiliar Jurídico, Apêndice às Ordenações Filipinas. Vol. I. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomático, 1869. Ordenações Afonsinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 5 volunes, 1984. 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