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Historia do Direito

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25
Revista de Direito
do Cesusc.
No2. Jan/Jun 2007.
Andreucci.
Origens do Habeas-Corpus:
As Cartas de Seguro
Portuguesas1
Álvaro Gonçalves A. Andreucci
Introdução
Todo trabalho que se embrenhe pelo campo da História do
Direito necessita de uma reflexão sobre a especificidade de seu
objeto, uma vez que se trata de uma área interdisciplinar entre a
história e o Direito, levantando questões sobre metodologia e teo-
ria de pesquisa. Uma questão importante no que diz respeito a essa
problemática é conseguir trilhar a fronteira difusa entre as leis e
ordenamentos oficiais – que muitas vezes nos aparecem apenas
como entidades abstratas – e a sua real inserção no processo histó-
rico, na contingência da vivência cotidiana de uma época. Nessa
zona de intersecção, onde é possível encontrar uma interação entre
a sociedade e as forças que a organizam, podemos refletir sobre
vários aspectos que determinam a estruturação dos dispositivos
legais dessa sociedade.
Ressaltamos que para a apreciação de uma lei, faz-se necessá-
rio perceber que diversos aspectos envolvem sua natureza e aplica-
ção. Quem ou que grupo a criou, qual o contexto da demanda
desse ordenamento, em qual ou quais pessoas estará o poder de
aplicá-la, a que grupos atinge direta e indiretamente, etc. É nesse
sentido que ela (uma lei, um decreto real, até a famosa lei mental de
um rei português, etc.) se torna uma das peças que movem a histó-
ria de um grupo ou sociedade. Esse novo ordenamento pode apre-
sentar, tanto características da sua intenção que estão por trás ou
1 Este artigo é uma versão modi-
ficada do trabalho de conclusão
apresentado para a disciplina de
pós-graduação da Faculdade de
Direito da Universidade de São
Paulo, História do Processo
Civil Romano, Canônico e
Lusitano (DPC 714), minis-
trado pelos Professores Doutores
Luiz Carlos de Azevedo e José
Rogério Cruz e Tucci, no 1º se-
mestre de 2006.
26
Revista de Direito
do Cesusc.
No2. Jan/Jun 2007.
Andreucci.
nas entrelinhas das letras da lei (além de refletir costumes que já
estavam em uso), como acionar um movimento nas engrenagens
da história, podendo haver aí um desdobramento imprevisível com
relação à sua aplicação, eficácia e resultados.
Pretende-se neste artigo abordar as Cartas de Seguro desen-
volvidas pela legislação portuguesa em seu Estado nascente e fixa-
das nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, fazendo–se
ainda referência a sua vigência no Brasil até sua extinção com a
promulgação do Código de Processo Criminal do Império em
1832. O tema reflete a intenção de se abordar um dispositivo que
visava à garantia de direitos individuais, mas que, como dito acima,
ultrapassa apenas os resultados fáticos da aplicabilidade legislativa.
Sua problemática acaba por incidir na própria estrutura da organi-
zação da justiça, demandando, no seu contexto histórico, discus-
sões sobre competências e exaltando ânimos pessoais daqueles que
eram atingidos pela natureza e função do ordenamento. Além dis-
so, refletir sobre as Cartas de Seguro portuguesas pode auxiliar
numa compreensão mais abrangente na caracterização de um ethos
do Direito português, no período de sua formação.
No presente artigo, não foram consultados diretamente os
casos específicos que demandaram Cartas de Seguro como meio
de se proteger um direito, o que possibilitaria uma análise e coteja-
mento de aspectos como: quais eram as pessoas e seus respectivos
perfis (sociais, econômicos, religiosos, etc.) que se valiam de Cartas
de Seguro e, ao mesmo tempo, contra quais acusadores elas eram
utilizadas. Seria muito interessante analisar os pedidos de seguro
que foram recusados e quais os motivos e se isso caracterizava uma
situação social que privilegiava e/ou denegria certos grupos, utili-
zando-se para isso mecanismo de aplicação da justiça (invertendo-
se aí a lógica de serem as Cartas de Seguro um dispositivo que
refletiria a tutela e proteção de um direito). Porém, indiretamente,
consultando a própria legislação existente, as alterações que o dis-
positivo sofreu e os assentos que recebeu na Casa de Suplicação
será possível fazer algumas, ainda que modestas, reflexões sobre o
seu funcionamento e demandas que criou no período de sua exis-
tência.
Fica aqui, neste pequeno ensaio sobre o tema, uma reflexão
sobre as Cartas de Seguro e seus mecanismos processuais no intui-
to de se levantarem questões sobre o significado, intenção, caracte-
rísticas e conseqüências sociais de um remedium liberatório, como dis-
se Nelson Hungria, contra a arbitrariedade da força e privação da
liberdade2. Suas conseqüências foram amplas, sendo as Cartas de
Seguro a semente do atual habeas-corpus. Seus usos (e abusos) são
frutos de cada contexto e momento histórico sendo tais fronteiras
2 (Hungria. In: Lima, 1969).
27
Revista de Direito
do Cesusc.
No2. Jan/Jun 2007.
Andreucci.
entre as letras da lei e sua práxis no social um dos objetos da Histó-
ria do Direito.
Alguns Antecedentes na Península Ibérica
Na história das conquistas das garantias individuais e da tutela
desses direitos, temos, como marco inicial, os direitos inscritos na
Carta Magna dos barões ingleses frente ao arbítrio do reinado de
João-sem-Terra, datada de 12153. Porém, podemos nos debruçar
mais a fundo na história dos mecanismos jurídicos de proteção aos
indivíduos. No contexto de formação das Monarquias Nacionais e
de um Estado centralizado, essas figuras de tutela de direitos indi-
viduais inserem-se numa perspectiva de limitação e delimitação dos
poderes locais de aplicação da justiça (e da justiça privada), apon-
tando para uma intenção centralizadora da organização e mono-
pólio dessa mesma justiça, ao mesmo tempo em que protegeriam
qualquer abuso de poder.
Nessa perspectiva, podemos nos remontar ao Império Ro-
mano para visualizar a raiz histórica da exceção de pré-executivida-
de na execução do interdito romano e, posteriormente, na Península
Ibérica, com a introdução pelo Cânone II do XIII Concílio de
Toledo de 683, do hábeas-corpus visigótico.
O primeiro era um instrumento processual de tutela, funda-
do em uma situação de fato carente de proteção e que podia se revestir de
natureza proibitória, restitutória ou exibitória4, caracterizando uma natu-
reza de política administrativa. Era uma demanda que partia de um
particular, emanada por um magistrado para que se fizesse uma
coisa ou deixasse de se fazer. Nesse sentido, o pretor poderia inter-
vir para proibir que qualquer execução fosse realizada alterando a
situação jurídica existente antes da contenda ou, ainda, quando um
cidadão romano via seu bem esbulhado na sua posse antes de re-
solução judicial5.
Essa medida excepcional, denominada interdito, constituía uma ordem
do pretor, o qual a determinava fundado no poder do impérium, do qual
se achava investido; e esta ordem tinha por fim sancionar (coecere) um
comportamento mediante uma constrição indireta (cogere)6.
E ainda:
Ressalta-se, entretanto, que o poder de imperium não se reduzia tão-só
àquele primeiro momento, podendo estender-se durante o curso do processo
na medida em que a ordem pública o exigisse, algum outro motivo assim
provocasse, ou no momento em que o prejudicado levantasse a ocorrência
de irregularidades, excessos ou arbitrariedades atentatórias ao seu direi-
to7.
3 Pontes da Miranda, na obra
História e Prática do Habe-
as-Corpus, indica que é no Ca-
pítulo 29 da Magna Charta li-
bertatum que encontra-se a ga-
rantia prática, imediata e uti-
litária da liberdade física. De-
vido as arbitrariedade do governo
do rei João (1199 – 1216) os
barões ingleses se reuniram e
acordaram em que era preci-
so obter do rei, mesmo pela
força, carta de liberdades. Os
revolucionários proclama-
ram-se exército de Deus, en-
traram em Londres, a 24 de
maio de 1215, e quase um
mês depois, a 19 de junho
(...) o rei assinou, no campo
de Runnymead,(...) o ‘ato’,
a que se chamaria a Magna
Carta. (Miranda, 1962; p. 10
e 11). Porém, o mesmo autor
mostra que Depois de outor-
gada, João-sem-Terra violou
várias vezes a declaração de
1215 (Idem, p. 12).
4 (Azevedo, 2005, p. 90).
5 Explicam José Rogério Cruz e
Tucci e Luiz Carlos de Azevedo
na obra Lições de História do
Processo Civil Romano: Com
a evolução dos tempos, a
constatação de novas exigên-
cias sociais autorizaram o pre-
tor a instituir meios proces-
suais de tutela, destinados,
via de regra, a reparar even-
tuais iniqüidades provenien-
tes da estrita observância das
normas do ius civile ou mes-
mo a preencher lacunas des-
te. (Tucci & Azevedo, 2001;
p. 111) e, sobre suas origens: A
criação desse instrumento
processual, especialmente do
interdito uti possidetis, foi
determinada pela necessida-
de de proteção da posse da
propriedade conquistada
(ager publicus), pois, o pos-
suidor, despido de domínio,
não tinha meios para que fos-
se resguardada a sua posse
28
Revista de Direito
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No2. Jan/Jun 2007.
Andreucci.
Esse instrumento processual romano realizava a proteção da
coisa em litígio, antes da decisão de mérito ser pronunciada, pre-
tendendo evitar, dessa forma, todo tipo de violência e coibindo
abusos que poderiam ser praticados pelas partes.
No mesmo sentido da tutela e garantia de direitos individuais,
o Cânone XI do Concílio de Toledo VI de 638, decretou que os
inocentes não poderiam ser atingidos por imprudência e/ou malí-
cia dos acusadores, o que poderia resultar numa imagem pública
denegrida do acusado:
XI. Que no se condene a nadie sin acusador legal. Es justo que la vida de
los inocentes no sea manchada por la malicia de los acusadores, y por lo
tanto nadie que este acusado por otro será entregado al suplicio hasta que
el acusador se presente y se examinen lãs normas de lãs leyes y de los
cánones, y si se prueba que es persona incapaz para acusar , no se admita
la acusación, a no ser que se trate de crimen de lesa majestad8.
Esse instrumento que demonstra uma preocupação na orga-
nização da justiça realizada e emanada por um poder central em
detrimento de possíveis (e prováveis) arbitrariedades locais, será
acrescido pelo Cânone II do XIII Concílio de Toledo, realizado
um pouco depois, em 683, na época do curto reinado do monarca
visigodo Ervigio (680 – 687). Esse cânone, conhecido como o
hábeas-corpus visigótico protegia todos aqueles que, vinculados ao rei
por juramento de fidelidade, pudessem ser presos, acorrentados,
castigados, desapossados de seus bens, torturados, antes que o jul-
gamento se efetuasse. Protegiam assim seus direitos e prerrogativas
de pessoas livres e inocentes, pelo menos até que se provasse o
contrário. Importante notar que até para as pessoas livres, posto que de
condição inferior, guardava-se igual procedimento9.
Podemos acompanhar no texto original do cânone sua preo-
cupação em preservar a honra do acusado no espaço público e de
colocar a justiça real como a grande protetora de todas as causas
do reino. É claro que, ao mesmo tempo em que se protegia, esse
dispositivo garantia que os rendosos provimentos advindos dos
processos tivessem uma parte destinada à Monarquia real:
II. Por lo cual, tomando uma medida conforme a los deseos del rey, decre-
tamos em común, que ninguno em adelante del orden palatino, o de los
pertenecientes a la santa religión, por estratagema ardida por el rey, o por
instigación de outra potestad seglar, o com el apoyo de la maliciosa volun-
tad de cualquier outro hombre, sea privado del honor de su grado o de
servir em el palacio real, fuera del caso de manifesto y evidente indicio de
sua culpa y no se le aprisione, ni encadene, ni se le someta a tormento, ni
se le castigue com cualquier clase de penas corporales o azotes, ni se le prive
se sus bienes, ni sea encerrado em prisión, ni se le rapte, valiéndose aqí y
pacífica. (Tucci & Azevedo,
2001, p. 112).
6 (Azevedo, 2005, p. 89).
7 (Azevedo, 2005, p. 90).
8 Concílios visigóticos e hispano-
romanos. Edição preparada por
José Vives, Barcelona, Madri,
MCMLXIII e citado em (Aze-
vedo, 2004, p. 106 e 107).
9 (Azevedo, 2004, p. 102)
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allá de inustas ocasiones, com lo cual se le arranque uma confesión por la
fuerza, oculta o fraudulenta, sino que aquel que es acusado, conservando
las prerrogativas de sua categoria, y sin sufrir antes los perjuicios reseña-
dos más arriba, será presentado em la pública deliberación de los obispos,
de los grandes y de los gardingos, e interrogado com toda justicia y si fuere
culpable del delito, sufra las penas que las leyes señalan para el cuímen que
se de há descobierto, y si fuere inocente, sea declarado tal por el juicio de
todos10.
A tradição canônica e romana recuperada pela escola dos glo-
sadores e dos pós-glosadores, será amplamente divulgada pela
Europa, sobretudo a partir do século XIII, e conhecida como direi-
to comum, funcionando, em Portugal, como direito subsidiário do
reino11. Terá vida longa sua aplicação, pois seu funcionamento só
será limitado com a Lei da Boa Razão em 1769, no período das
reformas pombalinas12.
Ressaltamos acima dois exemplos da tradição do direito que
se instalou na Península Ibérica e deixou um legado no que tange à
complexa caracterização da proteção e garantia dos direitos indivi-
duais. Complexa porque, se por um lado esses institutos nos reve-
lam uma preocupação em limitar a força do poder local e da prá-
tica das vinganças privadas contra indivíduos despossuidos de meios
de defesa, por outro lado, eles denotam um confisco do poder de
justiça para as mãos do imperador além de caracterizar uma práti-
ca discricionária, tanto legislativa quanto punitiva, caminhando para
o absolutismo real13.
Notas sobre a formação e centralização do Estado
Português
Á guisa de esclarecimento, é necessária uma pequena síntese
sobre a formação do Estado Português, uma vez que foi nesse
contexto social que as Cartas de Seguro foram criadas e utilizadas.
Não pretendemos aqui nada mais do que uma breve contextuali-
zação geral do tema.
A formação do reino de Portugal está diretamente relaciona-
da com a Guerra de Reconquista travada na Península Ibérica. Esse
processo de lutas foi longo, abarcando, principalmente o período
entre o século XI até o XV, coroado de avanços e retrocessos.
Podemos, no entanto, nos remontar a uma resistência ocorrida desde
o século VIII, conforme narra Marcello Caetano:
Aquando da invasão muçulmana, alguns núcleos de cristãos refugiaram-
se nas montanhas do Norte da Península e aí formaram núcleos de
resistência ao invasor que com êxito repeliram os ataques deste. Nas
Astúrias, o núcleo resistente engrossou com refugiados do Sul e elegeu um
10 Concílios visigóticos e hispano-
romanos. Edição preparada por
José Vives, Barcelona, Madri,
MCMLXIII. e citado em (Aze-
vedo, 2004, p. 107).
11 Na importante obra sobre o
tema O direito subsidiário na
história do direito portugu-
ês, Guilherme Braga da Cruz
explica como essa influência foi
se solidificando no reino e ga-
nhando importância com a fun-
dação da Universidade de Lis-
boa (1290) e depois transferida
para Coimbra: É nesse ambi-
ente que o direito português
se autonomiza do direito leo-
nês, desde os começos do sé-
culo XIII, através duma ac-
tividade legislativa que se ini-
cia, praticamente, no reina-
do de D. Afonso II, a partir
de 1211, ainda em ritmo
moderado, mas logo com a
marca nítida da influência
justinianeia e do prestígio do
direito canônico – activida-
de legislativa que depois se
intensifica no reinado de D.
Afonso III, já na segunda me-
tade do século (1248 a 1279),
a ponto de constituir, em al-
gumas matérias, como o di-
reito processual, uma regu-
lamentação bastante comple-
ta e com uma influência cada
vez mais acentuada do direi-
to romano-canônico.E o
quadro completa-se no rei-
nado imediato, com a funda-
ção, já no declínio do século
XIII, do Estudo Geral dio-
nisiano, onde o ensino do di-
reito romano e do direito
canônico e a outorga de graus
num e noutro direito ocupam
justamente a finalidade mais
destacada. É importante frisar
que as compilações romano-ca-
nônicas que circulavam em Por-
tugal inicialmente só eram aces-
síveis a um pequeno número de
eruditos e a sua utilização pou-
co podia ultrapassar os limi-
tes dos tribunais da Corte e
30
Revista de Direito
do Cesusc.
No2. Jan/Jun 2007.
Andreucci.
nobre godo, da família real, Pelaio, para seu chefe e rei (718). Decorridos
30 anos, os cristãos, aproveitando as lutas civis que na Espanha muçul-
mana haviam lançado os Berberes contra os Árabes, iniciaram a liberta-
ção do território por uma ofensiva em grande escala a partir do reino das
Astúrias (753). É o que rigorosamente se pode chamar a reconquista
cristã, movimento que prossegue durante séculos, até a expulsão dos Mu-
çulmanos do seu último domínio peninsular, o reino de Granada, em
1492. No território onde hoje é Portugal, a Reconquista finda com a
tomada de Algarve em 124914.
Nesse processo de lutas, o reino Leonês institui com seus pa-
res e conselheiros a Cúria Régia15, destinada à discussão e resolução
de questões militares, econômicas, jurídicas, etc. O rei de Leão,
considerando-se o representante direto dos monarcas visigodos,
procurava assegurar a sua autoridade sobre todos os cristãos da
península. A separação de Portugal na historiografia é um assunto
controverso. Resume-o bem Mário Júlio de Almeida Costa:
Pelos fins do século XI, chegaram à Península D. Raimundo e D. Hen-
rique, nobres da Borgonha, que desposaram duas filhas do referido mo-
narca de Leão, respectivamente, D. Urraca, descendente primogênita e
nascida do matrimônio, que viria a suceder ao pai, e D. Teresa, de pouca
idade, e proveniente de uma ligação extraconjugal de Afonso VI. (...) O
problema surge, com efeito, a partir do casamento de D. Teresa e D.
Henrique. Afonso VI outorgou-lhes a terra portugalense. Mas a que
título?16.
Surge assim o dilema sobre a natureza jurídica da caracteriza-
ção do território português. Historiadores e estudiosos divergem
sobre o tema levantando as hipóteses: seria uma doação de senho-
rio hereditário, com vínculo de vassalagem? Seria uma concessão
hereditária de tipo feudal, ou, ainda, uma tendência hereditária17?
De qualquer modo, a partir do final do século XI, com D.
Afonso Henriques (1128 – 1185), o Reino Português inicia sua jor-
nada num processo de solidificação de suas fronteiras, de individu-
alização de seu direito e da centralização monárquica. Tais caracte-
rísticas tiveram impulso na luta contra os mouros, identificados
como inimigos externos.
Logo de início, apercebeu-se o rei da necessidade de limitar
os poderes locais atribuídos à nobreza. Uma das providências to-
madas nesse sentido foi a de conceder autonomia aos conselhos.
Esse apoio do rei visava a enfraquecer o poder da nobreza fundiária em
sua própria base territorial18, tentando impedir que agissem livremente
sem levar em conta as determinações reais.
Esses Conselhos municipais formavam a unidade básica da
estrutura administrativa e judicial de Portugal. Eles mantinham cer-
de alguns tribunais canôni-
cos. A tradução para o portugu-
ês de obras castelhanas como as
Flores de Derecho, Nueve ti-
empos de los pleitos, Fuero
Real e as Siete Partidas, inspi-
radas no direito comum, foi feita
com vistas a uma utilização mais
ágil pelos tribunais municipais
portugueses a título de fontes sub-
sidiárias de direito. (Braga da
Cruz, 1975, p. 186 e ss).
12 A Lei da Boa Razão cuidou
do problema do direito sub-
sidiário proibindo de modo
terminante a remissão a
quaisquer outras ‘Allegações
e Decisões de Textos ou de
authoridades de alguns Es-
criptores’, inclusive da Glo-
sa de Acúrsio e dos Comen-
tários de Bártolo, enquanto,
no ordenamento pátrio, hou-
ver ordenações, leis ou pre-
cedentes do reino. Foram
então expressamente refuga-
das ‘as Leis Romanas que em
Boa Razão não forem funda-
das’ (...) a Lei da Boa Razão
determinava que não mais se
aceitasse a ‘autoridade ex-
trínsica’ das leis romanas, e,
portanto, repudiava a aplica-
ção generalizada do Corpus
Iuris Civilis e dos Santos Câ-
nones, que tanto prestígio
haviam granjeado durante
séculos como fontes subsidi-
árias. (Tucci, 2004, p. 140 e
141).
13 De fato, com o desenvolvimen-
to e fortalecimento do absolutis-
mo, cuidará posteriormente o
monarca de limitar também os
aspectos legislativos dos juízes e
desembargadores dos Tribunais
de Relação do Reino em matéria
de criação de Assentos como pre-
cedentes com força de lei, deter-
minado que só os magistrados da
Casa de Suplicação é que pode-
riam assentar novos precedentes.
Sobre o tema, (Tucci, 2004).
14 (Caetano, 2000, p. 119).
31
Revista de Direito
do Cesusc.
No2. Jan/Jun 2007.
Andreucci.
to número de funcionários como o almotacel, o alcaide, o meiri-
nho, o tabelião e o juiz ordinário (também chamado de juiz da
terra). Em seu trabalho sobre a burocracia no Brasil Colonial, Stu-
art B. Schwartz mostra como a criação do Juiz de fora, em 1352,
foi uma maneira encontrada para coibir a corrupção que os juízes
locais poderiam sofrer.
O Conselho de cada cidade normalmente contava com dois juízes ordiná-
rios eleitos. Geralmente eram cidadãos comuns, não treinados nos cami-
nhos da lei, que se dispunham a servir a comunidade por um ano. Um
bastão vermelho simbolizava a autoridade do juiz ordinário. Era respon-
sável pela manutenção da lei e da ordem dentro da cidade; no entanto,
seus esforços para a consecução desse fim eram frequentemente obstruídos.
Na sua condição de oficial de justiça e membro da comunidade, o juiz
ordinário e sua família sofriam ameaças e pressões por parte dos fidalgos
e de outros grupos ou indivíduos poderosos. Por outro lado, o juiz ordiná-
rio podia abusar de sua autoridade para favorecer amigos e parentes.
Estas falhas levaram a Coroa a criar, já em 1352, o cargo de juiz de
fora, para suplantar o juiz da terra em algumas comunidades. Como
eram apontados pelo rei, teoricamente os juizes de fora estariam menos
sujeitos a pressões locais (...) Da mesma forma que o juiz ordinário, os
magistrados reais podiam presidir a primeira audiência de causas cíveis e
criminais, com exceção das que envolvessem prerrogativas reais19.
Agiram nesse mesmo sentido as Posturas de Afonso II, por
ocasião da Cúria de 1211, quando se procurou impor leis gerais,
proibindo a vingança dentro da casa do inimigo, bem como a
destruição dos bens imóveis, de sua casa, árvores e vinhedo20. Aos
poucos, a centralização monárquica necessitava acabar com a prá-
tica e aplicação da justiça privada e da vingança pela força exercida
diretamente por aqueles envolvidos em disputa, nas quais, invaria-
velmente, prevalecia a vontade do mais forte (econômica e fisica-
mente).
A ascensão da justiça pública apresentava uma motivação cada vez mais
forte. Por isso havia que punir os fidalgos que teimavam em fazer justiça
sanguinolenta e absolutamente livre de qualquer restrição21.
Assim, uma lei de 17 de março de 1326, do rei D. Afonso IV
(1325 – 1357), registra que no reino era muito usada a vingança e
conseqüentes homicídios, o que causava grandes prejuízos e de-
sonras. Sendo assim, estabelecia esse rei a pena de morte para aque-
les que praticassem a vingança privada e as assuadas (grupos que
realizavam a vingança). Porém, a reação dos fidalgos foi grande e o
rei teve que rever a medida. Eles nomearam um procurador para
solicitar junto a D. Afonso IV a revogação do dispositivo, o que
gerou a criação de uma nova lei, de 11 de abril de 1347. Carlos de
15 No exercício de variadas
atribuições, o rei era assisti-
do por um conselho, para tra-
tar de assuntos da adminis-tração, da legislação e da jus-
tiça. A atividade judicante
desse órgão, que passou a ser
chamado de Cúria Régia, é
considerada importante fon-
te de produção do direito no
período da reconquista. A
Cúria Régia tinha competên-
cia originária para julgar al-
gumas causas mais relevan-
tes e, ainda, funcionava
como tribunal de apelação.
Era o órgão jurisdicional
mais preeminente do reino e,
por essa razão, não admira
que, no início da monarquia
lusitana, delimitasse uma ori-
entação jurisprudencial (...).
(Tucci, 2004, p. 121–122).
16 (Costa, 2002, p.159–160).
Comenta Nuno J. Espinosa Go-
mes da Silva: Não há certeza
quanto à data em que D.
Henrique, neto de Roberto,
duque de Borgonha, e sobri-
nho de D. Constança, segun-
da mulher de Afonso VI, terá
vindo para a península. Po-
rém, em 1096, já D Henri-
que está casado com D. Te-
resa, filha ilegítima de Afon-
so VI, sendo-lhe atribuída a
terra portugalense, que tinha,
sensivelmente, os limites do
território português, de hoje,
com excepção da fronteira
sul, que acompanharia o Tejo,
até perto de Santarém, de
onde inflectiria para a zona
de Peniche. (Silva, 2000, p.
119–120).
17 Sobre o tema, (Caetano, 2000;
Costa, 2002; Silva, 2000).
18 (Salgado, 1990, p. 25).
19 (Schwartz, 1979, p. 4–5).
20 (Lima, 1969 e Caetano,
2000).
21 (Lima, 1969, p. 49).
32
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No2. Jan/Jun 2007.
Andreucci.
Araújo Lima, citando Marcello Caetano, explica:
Nesta lei admite-se o direito de vindita quando o homicida fugisse da
localidade ou de outro modo se recusasse a julgamento. Se a fuga resultasse
de temor das represálias, podia o fugitivo pedir ao Rei, ao seu meirinho-
mor ou a corregedor, carta de segurança para se apresentar em juízo22.
Assim, o Estado Português que inicialmente tinha uma justiça
baseada principalmente no costume, foi, aos poucos, a partir dos
forais locais23 que registravam parte desses costumes, das ativida-
des legislativas do rei e da Cúria Régia e de compilações do direito
comum utilizado em larga escala como fonte subsidiária de direito,
configurando um corpo legislativo que abriria caminho para uma
primeira compilação de caráter decretório. O fortalecimento do
poder monárquico, a utilização do direito comum, o início da ex-
pansão marítima, levaria à criação, em 1446 da primeira das Orde-
nações: a Afonsina24.
Segurança Real
Nesse processo de centralização do poder real e do surgi-
mento paulatino de uma justiça pública que se firmava, frente a
uma justiça de caráter privado, encontramos a elaboração e desen-
volvimento de um dispositivo de proteção à liberdade do indiví-
duo que tomará forma nas Cartas de Seguro.
Sua origem remonta a antigos forais do século XII, concedi-
dos pelo rei, pelos grandes senhores, ricos-homens, nobres, prelados ou mestres
de ordens militares ou religiosas25 e ainda pelos templários no reinado de
Sancho I. São os forais de Fresno (Freixo – 1152), Orrio (Urros –
1182), Freixiel (1195 e 1209, Touro (1220) e Santa Cruz (1215)26,
que possuem os registros mais antigos e podem ser consultados na
obra Portugalia Monumenta Histórica. Leges et consuetudines. Seguindo os
apontamentos de Carlos de Araújo Lima, em sua obra Carta de
Segurança, onde o mesmo se apóia na História de Portugal de Alexan-
dre Herculano, teríamos, portanto, nessa forma de tutela das liber-
dades individuais, um antecedente à famosa Carta Magna Inglesa
de 1215, funcionando em caráter preventivo:
Era, a seu modo, o hábeas-corpus da época e que vinha, em Portugal, em
essência de muito antes, concedida pelos senhores de terra. Historicamente,
Portugal antecede à Inglaterra27.
É preciso identificar e diferenciar dois dispositivos similares
concedidos pelo rei (inicialmente também pela nobreza local) e que
passaram a vigorar em Portugal nesse período do processo de
centralização do Estado Absolutista: as Seguranças Reais e as Cartas
de Seguro que, apesar de terem surgido do mesmo tronco e nascerem de
22 (Lima, 1969, p. 50).
23 Sobre a caracterização dos fo-
rais ver (Caetano, 2000, p. 235
a 239).
24 Ver no proêmio do Livro I des-
sas Ordenações a história da ori-
gem e da elaboração desse códi-
go.
25 (Azevedo, 2005, p. 157).
26 Sobre esses forais (Lima,
1969 e Azevedo, 2005).
27 (Lima, 1969, p. 71).
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Revista de Direito
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No2. Jan/Jun 2007.
Andreucci.
idêntico propósito28, de serem diplomas provenientes do monarca e
em seu nome circularem, cumpriam objetivos distintos.
A Segurança Real surge desde a fundação de Portugal, com
D. Afonso Henriques, que teria dado uma carta de fidelidade e seguran-
ça em 1170 para proteção dos mouros forros de Lisboa. Nessa
carta, garantia o monarca aos muçulmanos a liberdade e também
que não sofreriam nenhum dano em Portugal. Além disso, dizia o
documento que nenhum cristão teria o poder de lesá-los, ficando
os mouros sujeitos apenas ao alcaide que elegessem dentre os de
sua raça. Em troca, pagariam vários impostos à Coroa29. Esse dis-
positivo legal era devido à necessidade do reino de povoar e habi-
tar as terras carentes de organização interna e proteger suas frontei-
ras.
A Segurança Real define-se por ser uma antecipação do que
será feito, um julgamento preliminar atuando como força de paz e
coesão interna e, ao mesmo tempo, como afirmação do poder
real e prestígio da justiça. Foi fixada e estruturada definitivamente
nas Ordenações Afonsinas (1446), livro III, título 122 – Das Segu-
ranças Reais, como e porque devem ser dadas:
Estabeleceram as Leys dos Imperadores, que fe huum homem fe teme de
outro por alguuma jufta razão, e pede aás Juftiças da terra, que o facão
delle feguro, depois que o Juiz for informado da razão, por que fé afsy teme
e pede fegurança, fe vir que tem jufta rezam pera fe temer, deve mandar
vir perante fy aquelle, de que afsy pede fegurança; ou mandar o Alcaide
deffa Cidade, ou Villa, honde fe acontecer, fegundo a qualidade da peffoa
for, e requerer-lhe-ha da parte noffa, que fegure aquelle, que pede delle
fegurança; e fe o guardar, deve-lhe mandar dar dello afsy huu Eftormento
pubrico, ou Carta teftemunhavel, fegundo que for o Juiz; e non o querendo
fegurar da noffa parte de dito, e feito, e confelho, fegundo ufança da Corte,
e jeralmente da terra; e alem defto deve penar aquelle, que nam quiz dar
a dita fegurança per feu mandado, por o defprefo que lhe afsy fez; a qual
pena deve fer fegundo a calidade da peffoa, e a razaõ que ouver e differ,
por que naõ fez o mandado do Julgador; cafe for peffoa de grande eftado,
e jufta razam nom aleguar,deve-o apenar a dinheiro, ou emprazar, que a
certo dia pareça perante Nós per peffoa a fe efecufar, per que nam cum-
prio o mandado da noffa Justiça; e fe for peffoa de pequeno eftado, deve-o
degradar da dita Cidade, ou Villa, ou o poer na Cadea atá que dê a dita
fegurança. E efta fegurança he geralmente chamada Real; e por que fomos
certamente emformado, que efto he Direito ufado em eftes noffos Regnos
longuamente, Mandamos que afsy fe guarde por Ley daqui em diante30.
Como se pode observar, as Ordenações Afonsinas determi-
navam que, conforme o costume antigo do reino, quando alguém
temesse outro, por alguma justa razão, deveria pedir proteção à Jus-
28 (Lima, 1969, p. 69)
29 Sobre o assunto (Lima, 1969).
30 (Ordenações Afonsinas, Livro
III, Tit. 122, 1984).
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tiça para que fizesse dele um assegurado. O procedimento, uma
vez reconhecida a causa pelos juízes, seria o de notificar aquele que
é o acusado para que comparecesse à presença da justiça e ele pró-
prio segurasse aquele temeroso. Ou seja, o mecanismo previa que,
após a publicização do caso, e chegando este à justiça do rei, o
possível agressor deveria zelar pela segurança daquele que o temia.
Qualquer dano que o temeroso sofresse, o agressor deveria res-
ponder por isso.Como se pode observar, as Seguranças Reais zela-
vam pela manutenção da paz interna no reino de Portugal, procu-
rando assegurar seus habitantes da arbitrariedade de poderes lo-
cais, tendo em vista a unidade tão necessária naquele reino em for-
mação.
Além disso, versa o texto das Afonsinas sobre o caso de o
acusado não querer segurar o queixoso. Segundo o típico costume
da época, que admitia uma diferenciação penal de autor, caso ele
fosse de grande estado, ou seja, que seu status social o definisse como
um grande proprietário, um homem rico, etc., a pena deveria ser
em dinheiro ou uma audiência com as Cortes do Rei para expor o
caso. Mas, se, por outro lado, ele fosse de pequeno estado, então deve-
ria ser degredado da cidade ou vila na qual residia ou posto na
cadeia até resolver-se por assegurar o queixoso. Ainda dispõem as
ordenações, em trecho posterior31 sobre quem é compelido a so-
licitar segurança real pelo fato de haver matado com justa razão, em
legítima defesa e teme por vingança dos parentes ou amigos da
vítima. Deveria, nesse caso, ser levantada a culpa que o réu tem no
caso e que, após apurado os fatos, recebesse a pena conforme o
direito, impedindo-se assim a vingança privada32.
Carlos Araújo Lima caracteriza a Segurança Real a partir do
intuito central da Justiça Real que, por sua vez, poderia inverter
papéis ao transformar o que matara em protegido do Rei, e aquele
que tivera um parente morto encarcerado e constrangido, em acu-
sado:
A lei não podia hesitar. Com concordância ou não do pretendente à
vingança, a segurança era dada, pelo juiz em nome do Rei, isto é, o
ameaçado estaria, a partir daquele momento, seguro diretamente pelo
monarca. A autoridade judiciária não podia transigir com o fato de o
ameaçador não ter assentido em segurar aquele a quem ameaçava33.
Ainda segundo o mesmo autor, a Segurança Real tinha uma
fisionomia jurídica e um objetivo jurídico bem definido, qual seja:
assegurar, pela ação pessoal, direta ou indireta do Rei, a própria justiça34,
realizando uma intervenção real nos casos apreciados como de
injustiça a evitar.
Nesse sentido, assim como as Cartas de Seguro, definia-se
31 (Ordenações Afonsinas, Livro
V – Tít. 33, 1984).
32 Poucas são as alterações feitas
nas Ordenações Manuelinas
(1521) e Filipinas (1603). Nes-
ta última podemos observar que
havendo uma grande inimizade
entre duas partes, mesmo que
essas não requeressem seguran-
ça real, poderia esta justiça in-
terpor a segurança para que as
partes ficassem passíveis de in-
correr nas penas e assim evitas-
sem continuar com a desavença:
Havendo alguma grande dis-
codia antre taes e tão gran-
des pessoas, de que se possa
seguir grande dano ao Reino,
e ao povo e a nossos serviço,
Nós acordo do nosso Conse-
lho mandaremos vir perante
Nós aquelles, antre os quaes
principalmente he a discor-
dia; e perante o nosso Con-
selho lhes diremos, como
acordamos por serviço de
Deos e nosso, pormos antre
elles a ta segurança sem re-
querimento de cada hum de-
lles; declarando-lhes, que a
damos per Nós, para que te-
nhão razão de arrecear o rom-
pimento della, e de incorrer
nas penas, em que incorrem
os que quebrão as seguran-
ças postas per Nós. (Ordena-
ções Filipinas, Livro V, Tit. 128
- § 5, 1985).
33 (Lima, 1969, p. 57).
34 (Lima, 1969, p. 61).
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por uma ação do Rei; porém, a Segurança Real estava segurando
diretamente a Justiça para que inocentes não sofressem e encon-
trassem amparo. Já as Cartas de Seguro seguravam o ameaçado,
mesmo que culpado. Essa transformação identificada pela migra-
ção da resolução de conflitos, pela via privada para a via pública,
insere-se no fortalecimento e formação do estado Português.
Os reis sabiam que segurança real e carta de seguro, somavam-se no
mesmo efeito salutar e eficaz, o de anteparo à violência e o de ajudar mais
rápida transição da autotutela para a tutela pública35.
As Cartas de Seguro e a centralização monárquica
Dispositivos semelhantes podem ser encontrados desde os
tempos de D. Dinis (1279 – 1325), com leis que passaram a fazer
parte das Ordenações Afonsinas relativas à homenagem, á fiança, e
à palavra de fiéis carcereiros36. Pode-se ler nas notas que comentam
as Ordenações Filipinas no Livro V, Tit. 129, observações retiradas
do trabalho de Joaquim José de Melo Pereira e Souza intitulado
Linhas Criminais37, que diferenciam e explicam as especificidades
das Cartas de Seguro frente a esses outros remédios:
Elle não tem semelhança com o remédio da Fiança (...) A Fiança regu-
larmente se concede aos prezos (...) As mesmas Carta de Seguro nada
tem de comum com os Salvos-conductos, de que se usa entre outras nações.
Esses salvos-conductos são dados não para o reo poder estar em Juízo, e
livrar-se solto do crime, por que he accusado, mas para poder ir tratar
algum negocio a terra de inimigos, ou ao Paiz onde foi banido. (...) Dife-
rem também das Seguranças Reaes de que trata a Ord. Do Liv. 3 t. 78
§ 5 e liv. 5 t. 128, as quaes são concedidas pelos Juizes das Terras, não
aos Criminosos, mas aos innocentes, que temerem com justa causa ser
inquietados por outros, buscão o abrigo da Justiça para que reporte aque-
lles que os vexão, e os cohiba de lhes fazerem mal (...)38.
É dentro desse sentido de proteção e garantias oferecida pelo
rei a seus súditos, remontando-se a costumes semelhantes e mais
antigos39, que podemos encontrar a origem das Cartas de Seguro,
até chegarmos à sua oficialização de fato, nas Cortes d’Elvas em
136140, na época de D. Pedro I (1357 – 1367). Na exposição do
artigo 84º dessas Cortes, podemos observar o relato de que mui-
tos portugueses estavam fora do reino por temerem malefícios
que os culpassem e receavam que suas apurações se dessem de
forma tendenciosa. Observa-se, ainda, que esses indivíduos volta-
riam às suas terras se estivessem seguros de sua liberdade, até que
qualquer culpa lhes fosse imputada. O rei responde que:
A este artigoo respondemos que nos plaz mercee aos do nosso poboo e
35 (Lima,1969, p. 62).
36 (Ordenações Afonsinas, Li-
vro 5, Tit. 51, 1984).
37 (Ordenações Filipinas,
1985). Sobre o tema consultar
também nota 65 de (Azevedo,
2005, p. 158).
38 (Idem, p. 1302).
39 Por exemplo, desde 1211, no
reinado de D. Afonso II, os ofen-
didos já estavam proibidos de
exercer a justiça pela força e de
maneira privada. (Azevedo,
2005, p. 159), citando o Li-
vro das Leis e Posturas.
Além disso, Araújo Lima, apoi-
ando-se no estudo de Alexandre
Herculano que utiliza o foral de
Santa Cruz, indica que as pri-
meiras Cartas de Seguro, a que
tudo indica, devem ter sido ofe-
recidas oralmente e por vizinhos,
antes da centralização monár-
quica. (Lima, 1969, p. 72).
40 As Cortes eram reuniões ex-
traordinárias para se resolver
questões importantes, convoca-
das e presididas pelo Rei, na
qual tinham direito de partici-
par os nobres, prelados, os ri-
cos-homens do reino e ainda al-
guns conselhos locais que fossem
convocados. Sobre suas atribui-
ções, explica Marcelo Caetano:
Sem dúvida que as Cortes
não faziam leis: o poder le-
gislativo pertencia por intei-
ro ao rei, o qual podia ouvir
os súbditos, mas com plena
liberdade de decisão. As Cor-
tes, através dos agravamen-
tos ou exposições dos males
a reparar acompanhada do
pedido da solução que jul-
gavam justa, apenas davam
ensejo a que a autoridade do
rei se exercesse, assentando-
se porém que o que fosse
resolvido em Cortes não
poderia ser depois alterado
pelo rei só por si. (Caetano,
2000, p. 315-316).
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mandamos que os que assi andam amoorados ajam cartas de segurança
por esse erros em que os culpam que forom feitos ata vinte e três dyas de
Mayo desta Era por esta guisa que aquelles que he dicto que som culpados
em morte de homem ou demolher sejam seguros perante os nossos ouvido-
res e por outros feitos perante as justiças dos logares hu he dicto que esses
malefícios forom feitos e uem os quiser demandar ou acusar demandeos ou
acuseos por os logares suso dictos e nom sejam presos ata que judicialmente
seja contra elles achado porque o devam seer e esto que dicto he nom se
entenda aaquelles que esses malefícios fezerom em caso de traiçom ou
d’aleive41.
Assim, objetivando reprimir o uso da vingança privada, cos-
tume de largo uso naquela época, acionado principalmente pelos
nobres, a autoridade real pretendia se impor às arbitrariedades e
uso da força dos poderes locais, o que, como se viu, obstruía a
construção e unidade do reino de Portugal que necessitava de bra-
ços e corpos que o ocupassem e lhe dessem forma.
Ficou assim determinado que os que diziam serem culpados
de morte deveriam ser seguros perante o Ouvidor e os demais,
autores de feitos menos graves, deveriam ser segurados pela os
juízes locais. Além disso, mandava o Rei que os prejudicados e
ofendidos procedessem processando os beneficiários das Cartas
de Seguro através da justiça competente, ou seja, a justiça do Esta-
do, pública, centralizada. Todos os segurados deveriam responder
a esses processos em liberdade durante processo regular, excetuan-
do-se aqueles crimes que ameaçavam diretamente a pessoa do Rei
(lesa-majestade) e do Estado, conhecidos como paz do rei, moeda falsa e
a morte de alguém que estivesse seguro, circunstância esta última que
fala bem da importância da instituição42.
Segundo Araujo Lima, durante o reinado de D. João (1385 –
1433), restringiu-se a aplicação das Cartas de Seguro, refletindo,
pois, o provável abuso que tal seguro estava ganhando pelo uso
desmedido de sua proteção naquela época. Ficou assim determi-
nado que só seriam dadas as Cartas para as autorias que houves-
sem confessado sua culpa.
Um pouco depois, com as Ordenações Afonsinas43, prescre-
via-se que não seria dada Carta de Seguro nos casos de ferida aber-
ta, antes de trinta dias e, nos casos de homicídio, até se passarem
seis meses, pois, como explica Marcelo Caetano, o fundamento
seria de que vendo os feridos ou os parentes do morto os autores dos malefícios
passearam-se seguros nos lugares dos delitos, facilmente seriam tentados a vin-
gar-se44. Nessas ordenações ficaram proibidos aos senhores da terra
conceder Cartas de Segurança, procedimento esse que, a partir de
então, só poderia ser feito oficialmente pelos desembargadores e
corregedores do reino45.
41 Citado em (Azevedo, 2005,
p. 158-159).
42 (Lima, 1969, p. 76).
Outros crimes em que não cabe-
ria Cartas de Seguro: deflora-
mento, ferimento por arma proi-
bida ou uso dela, crimes de Al-
motaceria ou relativos ao governo
da cidade, crimes de fazenda ou
direitos de alfândega, crimes
militares dos soldados, utiliza-
ção de certidões falsas e foros in-
devidos.
43 (Ordenações Afonsinas, Liv.
5, tit. 44, 1984).
44 (Caetano, 2000, p. 579).
45 (Ordenações Afonsinas, Liv.
5, tit. 112, 1984).
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Além disso, uma vez alegada a legítima defesa, dever-se-ia
primeiro proceder às averiguações e que essas fossem vistas pelo
corregedor da corte, para que então fosse julgado se a alegação
procedia ou não. Caso entendessem que não procediam as alega-
ções, a Carta seria negada mas, caso ocorresse o contrário, o diplo-
ma seria concedido, permitindo a liberdade até a decisão final do
processo46.
Tal lei visava manifestamente impedir que a simples alegação, sem prova
suficiente, da legítima defesa permitisse ao argüido eximir-se à prisão
preventiva, e eventualmente, acautelar seus bens e fugir à justiça. Mas
tornava difícil a concessão da segurança, pela obrigação de enviar o caso à
corte47.
Uma vez fixada na legislação, as Cartas de Seguro passaram a
ser um meio de proteção e segurança para aqueles que viviam em
Portugal. E isso significava um grande passo para a afirmação de
uma justiça centralizada do Estado, em contraposição aos poderes
locais. Naquela época, o andamento processual penal apresentava
diversas características que não pesavam a favor do réu; pelo con-
trário. Segundo Luis Carlos Azevedo48, ele era:
(...) falho e parcial, claudicava ele na venalidade dos julgadores, na situa-
ção de inferioridade do réu, o qual suportava, desde logo, o peso da culpa-
bilidade presumida, no sistema arbitrário de produção de provas, quase
sempre arrancadas por meio de coação e tormentos, na reduzida oportu-
nidade concedida ao acusado, para que viesse ou pudesse se defender.
Mesmo que ainda estivesse distante uma sociedade que apre-
sentasse uma gradual eliminação de privilégios em seu ordenamen-
to e, por outro lado, a desigualdade social e o monopólio da apli-
cação da justiça fossem uma das prerrogativas do poder absoluto
do rei, alguns mecanismos iriam se impondo como fundamentais
no desenvolvimento e aplicação da justiça, com o intuito de garan-
tir maior isenção e menor arbitrariedade exercida por uma das
partes envolvidas. O apuramento das condições e etapas processu-
ais é um reflexo dessa necessidade.
Nas Ordenações Filipinas49, ficava estabelecido que aquele que
recebesse Carta de Seguro e ela tivesse sido quebrada, mas mesmo
assim não tivesse findado a necessidade de proteção, poderia im-
petrar até três Cartas de Seguro, sendo que se a quarta quiserem pedir
e impetrar, não lhe seja dada, sem Provisão nossa. Pode-se perceber aí a
tentativa de se tornar cada vez mais minuciosa a organização pro-
cessual da época, determinando nesse mesmo parágrafo:
E nas petições que fizer para impetrar as Cartas, declarará sempre as
que já quebrou, e de outra maneira não lhe valerão a que derradeiramen-
te impetrar. E quando assi impetrar a segunda, ou terceira Carta, paga-
46 (Ordenações Afonsinas, Liv.
3, tit. 57, § 3, 1984).
47 (Caetano, 2000, p. 580).
48 (Azevedo, 2005, p. 160).
49 (Ordenações Afonsinas, Liv.
5, tit. 129, § 2, 1984).
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v1. Jul/dez 2006.
Wolkmer. ARTIGO.
rá as partes as custas do retardamento em dobro, para o que, antes que
lhe seja passada a Carta segunda, ou terceira, porá a caução que parece
ao Julgador que lhe passar. E tanto que lhe concedida for, tornará a citar
as partes, posto que as já tivesse citadas pela Cartas, que quebrou.
Cartas de Seguro confessativas e negativas
Havia dois tipos de Carta de Seguro. As confessativas (ou
afirmativas) e as negativas. As primeiras eram aquelas requeridas
pelos indivíduos que confessavam o crime, mas alegavam tê-lo
praticado em legítima defesa, ou ainda por uma razão excludente
do crime como, por exemplo, em caso do marido que cometesse
crime para com sua mulher adúltera assim como para o adúltero.
As Cartas de Seguro negativas dividiam-se em simples, quando o
réu simplesmente negava o delito, e coartadas, quando o réu forne-
cia um álibi comprovando sua inocência50.
É assim que as Cartas são caracterizadas na cláusula que habi-
tualmente acompanha as legislações que a definem: que não seja preso
até se achar contra elle tanto, per que o deva ser. Luiz Carlos de Azevedo
indica que, apesar das vicissitudes da época, o significado das Car-
tas de Seguro foi fundamental para o desenvolvimento de uma
cultura jurídica que buscava, pelos caminhos legislativos, uma ética
em prol dos direitos humanos.
... por muito tempo, ainda, aguardariam os réus, sob privações, galés,
maus-tratos e cadeias, a solução para as denúncias, que se lhes punham;
caprichos, discricionariedades, malversações, decisões ao talante de juízes
peitados e corruptos, foram vícios de que a época padeceu, mais sofrendo os
que se envolviam no aranzel dos processos; forçoso é reconhecer, todavia,
que já se tinha noção de quanto de pernicioso representava,para todos, o
encarceramento indevido e precipitado; jungidos, de tal sorte, às dificulda-
des próprias de um determinado momento histórico, buscavam os maiores
alcançar, com os recursos de que dispunham e com medidas oportunas, a
melhor aplicação da Justiça, com vistas ao respeito pela dignidade huma-
na. De conformidade com tal espírito, de todas aquelas, a que emprestou
maior significado foi, sem dúvida, a ordem de liberdade determinada pela
Carta de Seguro51.
Os Assentos da Casa de Suplicação
Resta ainda examinarmos alguns Assentos concernentes às Cartas
de Seguro feitas pela Casa de Suplicação, para que possamos ob-
servar algumas características relativas aos desdobramentos e efei-
tos que essas Cartas causaram na sociedade. Desde o início da
50 (Azevedo, 2005, p. 165) e
nota 88 da mesma página e tam-
bém (Lima, 1969, p. 80-81).
51 (Azevedo, 2005, p. 168).
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monarquia portuguesa, era imperativo que a interpretação autênti-
ca da lei constituía uma das prerrogativas exclusivas do rei. Contu-
do, com o aumento de suas atribuições administrativas, essa ação
foi outorgada ao tribunal superior do reino, cabendo ao monarca
interpretar apenas aquelas cujas dúvidas mantinham-se em aberto,
mesmo após discussão dos desembargadores da Casa de Suplica-
ção52.
A solução obtida pela mesa grande da Casa de Suplicação, ou
pelo próprio Rei, era inserida num livrinho que passou a ser chama-
do de Livro dos Assentos, Livro Verde ou Livros dos Assentos das Relação.
Esses assentos tinham um valor normativo em tudo idêntico ao das próprias
leis interpretadas, e, portanto, projetavam eficácia vinculativa para casos futu-
ros semelhantes53.
De fato, a hipótese aqui levantada é de que, por tratarem os
Assentos de situações não claramente previstas inicialmente na lei,
ou seja, aquelas que precisavam ser ainda ordenadas com precisão,
elas representavam, nesse sentido, casos concretos de uma deman-
da social que, no momento da criação legislativa, não foram pre-
vistos. E, ainda, além de nos revelarem esses casos reais, prestam-se
também para nos remeter à discussão acerca da legitimidade de tal
demanda, pela ótica dos que exerciam a justiça do reino, uma vez
que os Assentos quase legislam, via interpretação autêntica, sobre
tais disposições. Discutiam-se, assim, competências para julgar, o
foro de julgamento, número de desembargadores necessários para
se aprovar determinado pedido, procedimentos processuais, den-
tre outros.
Conforme alguns assentos analisados, podemos perceber que
foi motivo de discussão na Casa de Suplicação, inicialmente, a questão
do foro e competência para julgar a possibilidade de concessão ou
não das Cartas de Seguro, conforme discutem os Assentos de Nº.
XXXIX e XIX. Uma questão levantada foi a possibilidade de se
encaminhar o pedido de segurança para os Juizes locais ou para os
Juízes da Corte, mesmo estando a Corte presente a menos de 5
léguas deste local:
foi posto em duvida pelo Dr. Antonio da Gama como Chanceller da
Casa de Supplicação se as Cartas de Seguro de ferimento, e outros
delictos commettidos no lugar, aonde a Casa estiver, ou a cinco leguas ao
redor (...) irão dirigidos ao Corregedor da Côrte com clausula, e se antes
o acusador quizer accusar perante os Juízes, o possa fazer, como os Escri-
vães dizem ser costume54.
O Assento decidiu que o acusador poderia remeter seu pedi-
do tanto para o Juiz Local como para o Juiz da Corte. Ou seja,
caso aquele que necessitasse de segurança se sentisse melhor prote-
52 Essas disposições foram disci-
plinadas no Alvará de 10 de de-
zembro de 1518 e, posteriormen-
te, incluídas nas Ordenações
Manuelinas (Liv. 5, tit. 58. §
1). Sobre o assunto ver : (Tucci,
2004, p. 131 e ss).
53 (Tucci, 2004, p.135-136)
que, por sua vez, nesta passagem
cita Braga da Cruz (O direito
subsidiário... opus cit.), conclui:
Observe-se que essa prática,
de emitir assentos normati-
vos, iria perdurar na experi-
ência jurídica lusitana até
1993, ocasião em que o Tri-
bunal Constitucional, exer-
cendo controle concreto de
constitucionalidade, decla-
rou ‘inconstitucional a nor-
ma do artigo 2º do Código
Civil, na parte em que delega
aos tribunais competência
para fixar doutrina com for-
ça obrigatória geral, por vio-
lação do disposto no artigo
115 da Constituição’.
54 Assento nº. XXXIX, (Almei-
da, 1869).
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gido pelos Juízes da Corte e não pelos juízes locais, por estarem
estes, possivelmente, mancomunados com a outra parte envolvida,
poderiam fazê-lo. Protegiam-se assim aqueles que se viam lesados
pela força dos poderes locais. Outra questão levantada por esses
Assentos, esta mais espinhosa, foi a de se uma pessoa poderia, pelos
seus privilégios e posses, levar o pedido de seguro para a Corte,
mesmo estando esta afastada a mais de 5 léguas do local onde se
pede a Carta. Isso significaria um privilégio que seria usufruído por
poucos, pois teriam que ter condições de se deslocar até os tribu-
nais da corte além de levar a parte citada por suas próprias expen-
sas.
(...) que em razão de seus privilégios pidião trazer seus contenedores à
Côrte, se se poderião executar, e liquidar no dito Juizo, sendo para isso
novamente as partes citadas fóra das cinco leguas; e assentou-se pelos
Desembargadores abaixo assignados, que não; e por não vir mais em
duvida se mandou fazer este assento55.
Esses dois assentos citados acima foram registrados no livri-
nho, em período posterior às Ordenações Manuelinas, mas são ain-
da anteriores às Filipinas.
Em um Assento um pouco posterior, de nº. LIX, de 12 de
janeiro de 1606, observamos que, a partir do pedido de uma Carta
de Seguro confessativa, por legítima defesa, poderia ocorrer que,
posteriormente, o réu negasse na contrariedade. Ou seja, valia-se
da Carta de Segura para permanecer solto e, depois, durante o
andamento do processo, ele negaria a autoria. Conforme entendi-
mento dos desembargadores e Aresto nº. 59 anterior do Dr. Jorge
de Cabedo, ficou assentado que seria possível.
(...) se duvidou sobre a Ord. do liv. 5 tit. 124 § 8, se hum homem, que
tinha tomado Carta de seguro confessativa com defeza, negando depois na
contrariedade, se haveria esta Ord. lugar, como estava já determinado,
como refere o Dr. Jorge de Cabedo na primeira parte das suas Decisões,
Aresto 59, a qual duvida moveu o Dr. Luiz da Gama Pereira, Corre-
gedor do Crime da Côrte: sobre a qual diante do Regedor D. Diogo de
Castro, se assentou com a maior parte dos Dezembargadores, que para
isso forão chamados, que a dita Ord. se praticasse conforme ao Aresto; e
por assim se assentar, se assignarão aqui para mais não vir em duvida56.
Outros Assentos relacionados com esse caso se deram no
final do século XVII, registrando uma situação bastante interessan-
te, assim como foram importantes suas discussões sobre as dúvi-
das que os casos levavam à mesa grande da Casa de Suplicação, con-
forme podemos acompanhar nos Assentos de nº. CCXXXVI,
CCXLII, CCXLIII e CCXLVIII. Nessas quatro interpretações autên-
ticas, a questão principal girava em torno da possibilidade ou não
55 Assento nº. XL (Idem).
56 Assento nº. LIX (Idem).
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de concessão de uma segunda Carta de Seguro depois de ter sido
negado um primeiro pedido.
A primeira delas, de 27 de novembro de 1691, Assento de
nº. CCXXXVI, referindo-se a um decreto de 13 de setembro de
1691, conclui que não cabe embargo de decisão denegatória e,
portanto, muito menos, um segundo pedido de seguro:
(...) veio em duvida, se na fórma do Decreto de Sua Magestade de 13 de
Setembro de 1691, em que se prohibido, que denegada a primeira Carta
de Seguro, se não podesse fazer segunda, se a tal denegação se poderia vir
com embargos;E assentou-se por todos os votos, que considerada a mente
e tenção de Sua Magestade, e palavras do mesmo Decreto, que de nenhu-
ma sorte se podia embargar (...)57.
Em outro Assento, de nº. CCXLII, o mesmo tema chega à
Casa de Suplicação acrescido da dúvida de que se fosse solicitada
primeiramente uma Carta de Seguro do tipo confessativa, poderia
ser posteriormente pedido uma segunda Carta, sendo esta negati-
va. Essa questão demonstra que esses diplomas, que inicialmente
tinham o fim de proteger os indivíduos ameaçados pelos poderes
locais, poderiam estar funcionando também como um meio de
assegurar atos ilícitos, em detrimento dos fins que a lei inicialmente
se propunha a proteger:
(...) veio em duvida, se na fórma do Decreto de Sua Magestade de 13 de
Setembro de 1691, em que se prohibio, que, denegada a primeira Carta
de Seguro, se não admitisse segunda, se procedia esta resolução, sendo
denegada a primeira Carta de Seguro negativa, pedindo-se depois confes-
sativa: e assentou-se pelos mais votos, que, vista a mente do mesmo Decre-
to, e palavras, com que se declara, de nenhuma sorte se podia admitir
segunda petição, por repugnar ao disposto pelo dito Decreto (...)58.
Como se pode observar, a orientação dada pela Casa de
Suplicação foi a de não se admitir, de nenhuma sorte, uma segun-
da Carta de Seguro. Porém, depois desse caso de 22 de Setembro
de 1695, houve ainda outra no mesmo sentido levado à mesa grande
no dia 13 de Outubro de 1708, acentuando ainda mais a impor-
tância que essa questão possuía para aquela sociedade. Nesse dia,
discutiu-se novamente sobre a possibilidade de se deferir um se-
gundo pedido de Carta de Seguro:
(...)foi posto em duvida, se denegando-se em Relação huma Carta de
Seguro negativa a hum Réo de caso de morte, ou que provado mereça a
dita pena, se poderia o dito Réo fazer segunda petição para Carta de
seguro confessativa com defesa (...).
Nesse caso, ao contrário do Assento anteriormente citado de
nº. CCXLII, discute-se se após um primeiro pedido de Carta de
Seguro do tipo negativa que seja negado, caberia uma segunda soli-
57 Assento nº. CCXXXVI
(Idem).
58 Assento nº. CCXLII (Idem).
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citação de caráter confessativa. Novamente temos aqui um quadro
das demandas que o remedium liberatório acabara de criar, pois não é
difícil perceber que ele passou a ser utilizado também, não apenas
como segurança de um indivíduo ameaçado, mas como subterfú-
gio à proteção de um criminoso. Esse, é verdade, poderia estar
tentando escapar das cruéis penas do famigerado Livro V das Orde-
nações, e procurava lutar com as mesmas armas do sistema puni-
tivo; ou poderia ser realmente um indivíduo danoso à sociedade.
Isso não se pode aferir pelo documento mas, logo em seguida, o
Assento transcreve aquilo que seriam os fundamentos de uma po-
lítica criminal, referindo-se à Lei Extravagante promulgada em 10
de Janeiro de 1692 por D. Pedro II (regente entre 1667 – 1683, rei
entre 1683 – 1706), ou seja, a limitação da concessão de Carta de
Seguro por necessidade preventiva e de repressão penal. Isso por-
que se queria evitar que, soltos, os delinqüentes continuassem a intimi-
dar vítimas e/ou testemunhas, ou ainda praticar novos crimes, além
de seus delitos anteriores ficarem impunes. Refere-se ainda a negoci-
ações que poderiam ser feitas entre as partes o que, no caso, seria
uma perda da jurisdição absolutista na resolução dos conflitos e no
confisco de parte dos bens que cabiam a Justiça do Estado.
(...) e sendo assim geral a dita Lei, devia comprehender, assim as que se
fizessem para Cartas de Seguro Negativas, como confessativas, maior-
mente porque declarando o dito Senhor, na mesma Lei, que a sua tenção
era castigar os delinquentes, e evitar os damnos, que resultavão de anda-
rem soltos e em negociações que fazião com as partes, para dellas alcançar
perdão, e ficarem os delictos impunidos, se abriria caminho por este modo
de admittir segundas petições, a que os delinquentes soubessem os segredos
das devassas, pois tendo entendido, que pela negativa, que intentavão, e se
lhes denegou, poderia estar provado o delicto passarião a pedir confessati-
va com suposta defesa, ficando com mais noticia da culpa, que lhes estava
formada, e logrados por este modo os intentos das suas negociações, que a
Lei lhes prohibe (...)59.
Considerações Finais
Percebemos que na História do Direito português, na época
da formação de seu Estado, é possível encontrar dispositivos que
objetivavam a proteção e tutela de direitos do indivíduo, no intuito
de lhes preservar a liberdade de ir e vir. Abordamos aqui dois
deles, as Seguranças Reais e, principalmente, as Cartas de Seguro.
Procuramos mostrar como tais dispositivos estavam intimamente
ligados à centralização do poder monárquico em detrimento dos
poderes locais, sendo que as Cartas de Seguro surgiram, basica-
59 Assento nº. CCXLVIII
(Idem).
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mente, como garantia de liberdade contra os abusos da justiça pri-
vada dos senhores donos de terra ou ricos-homens.
Nessa perspectiva, enfatizamos como um ordenamento pode
se modificar ao longo do tempo e ganhar vida própria. Prestam-
se assim os Assentos da Casa de Suplicação para acompanhar par-
te dessa trajetória das Cartas de Seguro, além de revelar as deman-
das e a doutrina que embasava os desembargadores desse tribunal.
Além disso, quisemos ressaltar como é fundamental nos debruçar-
mos nessas zonas de fronteira entre as leis e seus usos na sociedade, na
práxis de sua aplicabilidade, pois é aí que o historiador do direito
encontrará material farto para escrever a história de uma época, de
uma sociedade ou até mesmo de um personagem, seja ele humano
ou não.
Gostaríamos ainda de indicar a importância dessas pesquisas
para a História do Direito no Brasil, uma vez que esse está intrinse-
camente ligado à História portuguesa. Aqui, no Brasil, as Cartas
eram concedidas, conforme a lei, pelos corregedores das comar-
cas. Porém, as especificidades de uma colônia resultavam em ca-
racterísticas distintas para nossas interpretações sobre o seu uso.
Como exemplo, lembramos que enquanto Portugal era uma me-
trópole mercantilista, o Brasil Colônia estava submetido àquela pelo
Pacto Colonial e possuía uma grande população de escravos. Estes
poderiam solicitar, através de seu senhor, uma Carta de Seguro, o
que já indica uma diferença com relação ao contexto português.
Configura-se uma situação onde, muitas vezes, uma mesma lei cri-
ada na metrópole e que também possui aplicação na colônia, tinha
características distintas, próprias da adaptação que sofria relativa
aos diferentes contextos sociais onde o ordenamento era aplicado.
J. Canuto Mendes de Almeida narra em seu artigo Uma carta
de seguro, em São Paulo, concedida em 187260, a solicitação de uma Carta
de Seguro confessativa com defesa pedida por dois escravos, Ber-
nardo e Gaspar, após briga com João Pires, homem mulato e forro,
sendo que todos, segundo os documentos, andavam bêbados. In-
teressante que, ao mesmo tempo, indicam que a Carta é, também,
negativa para o que de mais ainda lhes acusassem. Isso significa que
esses diplomas poderiam então adquirir, quando confessativos, uma
espécie de adendo negativo para o que mais lhes atribuíssem na
devassa61. Assim, como medida preventiva, solicitavam os réus:
Como também os suplicantes e sem embargo de que andavam embriaga-
dos todo e qualquer excesso que obraram foi em sua natural defesa por
serem os mesmos acometidos e feridos, como assim o querem mostrar por
meio de seu livramento; e por isso precisam os suplicantes de sua Carta de
Seguro Confessativa com defesa, termos em que P. V. Mag.de lhes faça
mercê mandar passar sua primeira Carta de Seguro Confessativa com
60 É importante notar que a data
do título de seuartigo provavel-
mente está trocada. Foi trocado o
ano 1782 para 1872, pois o ar-
tigo refere-se ao período anterior
ao Código de Processo Criminal
de 1832 e a data do caso narra-
do é exatamente 1782. Ademais,
na data referida no título, 1872,
não havia mais a possibilidade
de se pedir Carta de Seguro.
61 No século XVIII, os juízes
ordinários, logo que lhes che-
gava a notícia de algum cri-
me, abriam devassa, isto é, a
formação da culpa prelimi-
nar, com corpo de delito e
audiência secreta de testemu-
nhas, geralmente em número
de trinta, procedimento que
se encerrava com a prunún-
cia. (Almeida, 1939, p. 166).
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defesa, para o caso recontado e Negativa para todos os mais de que lhes
quizessem fazer culpa62.
Os réus se apresentaram ao juiz ordinário, que deferiu-lhes o
requerimento, tendo Bernardo e Gaspar iniciado o processo em
liberdade.
Esse caso nos remete às contradições que a situação colonial
ensejava pois, aos escravos, que não tinham liberdade, era concedi-
da uma Carta de Seguro para que respondessem ao julgamento
em liberdade, o que, na verdade, significa dizer que deveriam conti-
nuar trabalhando para o seu senhor que havia, provavelmente, in-
vestido dinheiro na sua compra.
No Brasil, as Cartas de Seguro foram abolidas no Código de
Processo Criminal de 1832 que, por sua vez, introduziria o habeas-
corpus como proteção individual. Ainda está por se fazer uma pes-
quisa que aborde as características das Cartas de Seguro concedi-
das no Brasil durante a época colonial.
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62 (Almeida, 1939, p. 167).
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