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O direito civil constitucional - Maria Celina Bodin

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1 
 
O direito civil-constitucional* 
 
Maria Celina Bodin de Moraes 
 
O décimo aniversário da Constituição Federal parece ser o momento oportuno para se propor 
uma reflexão acerca dos caminhos percorridos, sob a égide do Estado Democrático de Direito, pelo 
ordenamento jurídico brasileiro e por seus operadores, no que se refere às transformações por que 
vem passando o direito civil. 
Os civilistas têm, notoriamente, uma postura intelectual de conservação frente à própria 
disciplina. Tal postura, segundo Michele Giorgianni, é favorecida, senão mesmo provocada, pela 
Codificação, a qual, cristalizando um determinado esquema de ordem jurídica, cria a ilusão da eterna 
validade. 
No entanto, é preciso reconhecer que enquanto o Código Civil correspondeu às aspirações de 
uma determinada classe social, interessada em afirmar a excelência do regime capitalista de 
produção — classe social cujos protagonistas são o proprietário, o marido, o contratante e o testador 
(na realidade, roupagens diversas usadas pelo mesmo personagem, o indivíduo burguês que queria 
ver completamente protegido o poder da sua vontade no tocante às situações de natureza patrimonial) 
—, a Constituição Federal, ao contrário, pôs a pessoa humana no centro do ordenamento jurídico ao 
estabelecer, no art. 1°, III, que sua a dignidade constitui um dos fundamentos da República, 
assegurando, desta forma, absoluta prioridade às situações existenciais ou extrapatrimoniais. 
Parece interessante, pois, do ponto de vista da ciência jurídica, analisar as consequências 
jurídicas desta ditosa inflexão com relação aos destinos do direito civil.1 Gostaria, então, de partir de 
duas premissas básicas: a da noção de ordenamento jurídico e a da concepção da eficácia normativa 
das disposições constitucionais. 
A origem da exigência de dar unidade a um conjunto de normas fragmentárias — que 
constituíam um risco permanente de incerteza e arbítrio — pode ser localizada, na Europa 
Continental, historicamente, entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Embora possa o 
Código Napoleão, cuja comissão redatora foi instalada em 1800, ser considerado o primeiro corpo de 
 
* Comunicação em Mesa Redonda intitulada “O direito civil-constitucional”, ocorrida em setembro de 1998 no âmbito da 
“Semana de Direito Constitucional” promovida pelo Departamento de Direito da PUC-Rio, pela Fundação Casa de Rui 
Barbosa, pelo Centro Acadêmico Eduardo Lustosa (CAEL) e pelo Programa Especial de Treinamento do Departamento 
de Direito da PUC-Rio (PET/JUR-PUC-Rio). Versão original publicada em M. CAMARGO (org.). 1988-1998: Uma 
década de constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 115-127. 
1 Sobre o tema da constitucionalização do direito civil, fundamental é a consulta à obra de Pietro PERLINGIERI. Perfis do 
direito civil: introdução ao direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997 representativa do pensamento do 
jurista italiano, um dos mais conceituados teóricos desta abordagem metodológica. Seja consentido remeter a Maria 
Celina BODIN DE MORAES. A caminho de um direito civil-constitucional. Direito, Estado e Sociedade, Departamento de 
Direito da PUC-Rio, Rio de Janeiro, n. 1, 1991 (2. ed., 1996), p. 33 e ss. Republicado na Revista de Direito Civil, 
Imobiliário, Agrário e Empresarial, v. 17, n. 65, jul.-set. 1993, p. 21 e ss. Ver também o indispensável volume de 
Gustavo TEPEDINO. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, passim, o qual, consolidando parte da 
produção científica do autor, cuida, sob a aludida perspectiva, dos mais relevantes temas civilísticos. Apenas a título de 
exemplo, cite-se o seguinte trecho, constante da apresentação à obra: “Com a Constituição de 1988, (...) consagra-se uma 
nova tábua axiológica, alterando o fundamento de validade de institutos tradicionais do direito civil. A dignidade da 
pessoa humana, a cidadania, a igualdade substancial tornam-se fundamentos da República, ao mesmo tempo em que os 
valores inerentes à pessoa humana e um expressivo conjunto de direitos sociais são elevados ao vértice do ordenamento. 
A partir de então, todas as relações de direito civil, antes circunscritas à esfera privada, hão de ser revisitadas, 
funcionalizadas aos valores definidos no Texto Maior”. Cf., ainda, o excelente trabalho de Teresa NEGREIROS. 
Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. Em língua 
espanhola, cumpre referir o livro de Joaquín ARCE. Derecho civil constitucional. Madrid: Civitas, 1986. Na França, ver 
Bertrand MATHIEU. Droit constitutionel et droit civil: “de vieilles outres pour un vin nouveau”. Revue trimestrielle de 
droit civil, Paris, n. 1, 1994, p. 59-66. Para uma visão separatista, que admite apenas influências recíprocas, ver Konrad 
HESSE. Derecho constitucional y derecho privado. [1988]. Madrid: Civitas, 1995. 
2 
 
normas sistematicamente organizadas, a ciência jurídica, enquanto tal, surgiu e se formou a partir do 
início do século XIX na Alemanha, sendo o incontestável mérito de sua formação devido à 
pandectística alemã e aos juristas que debateram e prepararam, ao longo daquele século, o BGB. 
Todavia, conforme demonstra Norberto Bobbio, numa adequada visão histórica do 
pensamento jurídico, a perspectiva sob a qual o direito era analisado, até àquela época inclusive, era 
a perspectiva da norma jurídica em si, sendo o ordenamento jurídico um conjunto de normas 
jurídicas mas não um objeto autônomo de estudo. A teoria do ordenamento jurídico somente foi 
introduzida, posta em cena, pelo positivismo jurídico. Faltava no panorama jurídico, antes de seu 
desenvolvimento, o estudo do direito entendido não como norma singular ou conjunto de normas 
singulares, mas como entidade autônoma, unitária, constituída pelo conjunto sistemático de todas as 
normas. 
A identificação das características e dos problemas do ordenamento jurídico e o seu 
consequente isolamento das características e dos problemas referentes às normas jurídicas são 
devidos, sobretudo, a Hans Kelsen. Sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado, na parte relativa 
ao direito, encontra-se dividida em duas outras partes: a da “Nomostática”, a considerar os aspectos 
relativos à norma jurídica; e a da “Nomodinâmica”, a tratar dos aspectos relativos ao ordenamento 
jurídico, ou melhor, da norma inserida num ordenamento jurídico. 
São características peculiares de um ordenamento jurídico: a unidade, a coerência e a 
completude. São problemas próprios de um ordenamento jurídico, consequências diretas de suas 
características: o seu fundamento último de validade (que serve para configurar a unidade), a solução 
das antinomias ou contradições (que serve para manter a coerência) e o preenchimento das lacunas 
aparentes (que visa a atingir a completude, ao menos tendencial, de um ordenamento jurídico). 
Sobre a eficácia normativa das disposições constitucionais, esta é tese que já se consolidou. 
Embora as primeiras constituições tenham sido entendidas como portadoras de apenas um programa, 
um projeto político, em nosso tempo a doutrina amplamente majoritária, seja nacional seja 
estrangeira, concorda acerca da força jurídica das regras e dos princípios da Lei Fundamental. A 
propósito, José Afonso da Silva, para citar apenas um constitucionalista, afirma que todas as 
disposições inscritas numa Constituição rígida, como a nossa, são normas constitucionais. Assim, 
para ele, não tem qualquer valor a distinção entre normas constitucionais materiais e formais, uma 
vez que todas elas possuem a marca de norma constitucional, que consiste na sua supremacia. 
Estabelecidas as duas premissas, quais sejam, (i) a do direito como não constituindo norma 
isoladae sim um sistema de normas de um ordenamento social (daí decorrendo que uma norma 
particular apenas pode ser considerada jurídica se pertencente a este ordenamento) e (ii) a da força 
normativa das disposições constitucionais, podemos iniciar o exame do que vem sendo chamado de 
direito civil-constitucional. 
 
* * * 
 
Sabemos que o Código Civil de 1916 representou o “Estatuto da Vida Privada”, tendo este 
sido projetado para dar solução a todos os problemas da vida dos particulares. Visava a regular a 
totalidade das relações privadas, dirigindo-se ao indivíduo isoladamente considerado. 
Qual é a função do direito neste mundo, neste universo que se desenvolve marcado pela 
criatividade individual? Ao direito são solicitados os instrumentos que podem oferecer a mais 
rigorosa garantia aos valores dominantes e, portanto, os instrumentos que facilitem a plena atuação 
das escolhas individuais. 
Falar de codificação significa falar de um movimento que simplesmente garanta as regras dos 
negócios. A função do direito civil, neste ambiente, é a de assegurar a estabilidade mais absoluta nas 
relações econômicas, protegendo o indivíduo contra ingerências alheias e, especialmente, contra o 
arbítrio do Estado. 
3 
 
O Código, para o direito privado, tem um papel verdadeiramente constitucional, no sentido de 
ser a Constituição dos Privados, contendo o estatuto completo dos cidadãos e incluindo, portanto, os 
limites à atividade do Estado em relação a eles. O direito privado existe, principalmente, para 
impedir as interferências do Estado. 
Como substrato social deste estado de coisas, temos que, na França — e, em consequência, 
também nos países que seguiram o modelo do Código Napoleônico —, a burguesia, recém-libertada 
dos privilégios feudais, logo impôs uma legislação garantidora da livre circulação da riqueza. As 
duas vigas mestras deste liberalismo jurídico são constituídas pela propriedade e pelo contrato, 
ambos entendidos como instituições em que se manifesta a plena autonomia do indivíduo. 
O Código Civil era, naquele momento, o centro do sistema de direito civil, isto é, o centro de 
regulamentação das relações jurídicas intersubjetivas entre as pessoas privadas. Mas a centralidade 
do Código Civil logo viria a perder-se. A multiplicação da produção da legislação especial e, 
especialmente, da intervenção estatal acabou por reduzir o Código à disciplina residual ou, de 
qualquer modo, disciplina incapaz de servir de centro de referência normativo e interpretativo do 
direito civil. 
Passa-se a falar de um “polissistema”, no qual, ao lado do Código Civil, funcionam, 
independentes e autônomos em relação a ele, vários outros sistemas orgânicos, denominados por 
Natalino Irti de “microssistemas”. Constituem tais leis especiais distintos “universos legislativos”, 
apenas de menor porte. 
Na realidade, segundo Irti, a mudança é estrutural. As leis especiais não se limitam mais a 
estipular os cânones, gerais e abstratos, para a atuação privada, isto é, as condições que permitem à 
vontade individual perseguir os seus fins, livremente escolhidos. A escolha dos objetivos passa a 
fazer parte da competência do legislador, que — no lugar dos privados — quer, solicita ou promove 
a sua vontade em determinada direção: a essência e a razão da lei são radicalmente transformadas. 
“Não mais regra instrumental mas regra final, prescrição ou sugestão, em relação a determinadas 
finalidades.” 
As leis especiais passam a constituir o direito geral de um instituto ou de uma inteira matéria. 
Ao Código não se pode mais reconhecer o valor de direito geral, de sede de princípios. Ele funciona 
apenas como direito residual, disciplina dos casos não regidos por normas particulares, para integrar 
e completar as previsões eventualmente lacunosas das leis especiais. 
Como contraprova, basta pensarmos que se encontram, atualmente, fora do Código Civil 
importantes matérias, regulamentadoras de relações jurídicas privadas e de frequentíssima aplicação. 
Como exemplos de leis especiais, configuradoras de microssistemas, temos o Estatuto da Terra (Lei 
no 4.504/64), a Lei do Condomínio e das Incorporações (Lei no 4.591/64), a Lei dos Registros 
Públicos (Lei no 6.015/73), a Lei do Divórcio (Lei no 6.515/77), o Código de Proteção ao 
Consumidor (Lei no 8.078/90), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069/90), a Lei de 
Locações (Lei no 8.245/91), a Lei dos Direitos Autorais (Lei no 9.610/98) etc. 
Como já há muito afirmou Orlando Gomes, a grande profusão de leis especiais foi a causa da 
“agonia” do Código Civil: “Quebrada a unidade do sistema, deixou o Código de condensar e 
exprimir os princípios gerais do ordenamento”. A unidade do sistema do direito civil, com efeito, não 
pode mais ser dada pelo Código Civil. Diante da proliferação dos chamados microssistemas, é 
necessário reconhecer que o Código não mais se encontra no centro das relações de direito privado. 
Este pólo foi deslocado — a partir da consciência da unidade do sistema e do respeito à hierarquia 
das fontes normativas — para a Constituição, base única dos princípios fundamentais do 
ordenamento jurídico. 
A unidade do ordenamento é característica reconhecidamente essencial (lógica) da estrutura e 
da função do sistema jurídico. Ela decorre da existência pressuposta da norma fundamental, fator 
determinante de validade de toda a ordem jurídica segundo a conhecida formulação kelseniana. 
Trata-se de uma “legitimação pelo procedimento” ou da proposição de um direito que se legitima 
4 
 
circularmente, ou seja, retira a sua legitimação dos procedimentos por ele estabelecidos, em 
conformidade com a sua racionalidade interna. 
O nosso sistema jurídico é fundado sobre o texto da Constituição, e a Constituição vigente no 
Brasil é, como sabemos, de caráter rígido. Daí cada dispositivo de legislação ordinária dever ser 
conforme aos princípios e às regras constitucionais, podendo, se os contrariar, ser declarado ilegítimo 
(inconstitucional) e perder, assim, a sua eficácia. 
Pelo princípio da supremacia constitucional, aos princípios constitucionais vincula-se o 
legislador ordinário, a quem incumbe a obrigação de proceder à formulação das normas atuantes 
daqueles princípios. Estão vinculados, também, evidentemente, o juiz, o intérprete, os órgãos 
administrativos, o cidadão; enfim, todos os operadores e destinatários do direito. 
O ordenamento jurídico, globalmente considerado, compõe-se de normas diversas que têm a 
sua origem em poderes distintos: no poder do Parlamento, do Governo, dos sindicatos, das 
associações, das sociedades, dos particulares. Mas estabelece entre essas normas uma rígida 
hierarquia, representada plasticamente pela forma piramidal. No seu ápice, garantindo a unidade, a 
Constituição. 
A hierarquia das fontes não corresponde apenas a uma expressão de certeza formal do 
ordenamento jurídico, como o meio de resolução de conflitos entre as normas emanadas de fontes 
diversas; é inspirada, sobretudo, numa lógica substancial, isto é, em conformidade com os valores da 
filosofia de vida presente no modelo constitucional. Nas palavras de Pietro Perlingieri, “a tarefa atual 
da metodologia consiste na elaboração de um sistema fundado em valores presentes no ordenamento 
jurídico, isto é, consiste na projeção dos princípios constitucionais sobre todo o tecido normativo, 
sobre cada uma de suas disposições”. 
Aqui, ultrapassa-se a perspectiva positivista e passa-se ao que Paulo Bonavides, entre nós, 
denominou “pós-positivismo” — a criação de um sistema que funciona não apenas mediante 
operações lógicas e procedimentais (e como tal tendencialmente imutáveis, a-históricas e neutras), 
próprias de um contexto fechado em si mesmo e formalista, mas, dizia, a criaçãode um sistema 
aberto que postula como eixo normativo central o Texto Maior, cujos princípios consubstanciam 
valores não passíveis de interpretação puramente lógico-formal, exigindo, mais além, permanente 
interação entre o sistema jurídico e o ambiente social. 
Mas do que isto. Segundo Perlingieri, a própria noção de sistema jurídico pressupõe a 
intrínseca união entre conceitos jurídicos e realidade econômico-social. Disse ele: “Por sistema 
jurídico deve-se entender a percepção do conjunto de fontes dentro de um esquema conceitual que, 
por um lado, represente o sentido profundo de cada norma através de suas conexões com outras e das 
conexões destas com os princípios; por outro, que exprima a unidade entre a construção jurídica e 
sua aplicabilidade social, através da radicação do direito na cultura, compreendida esta em sentido 
amplo.” 
A inserção de um sólido elemento valorativo (rectius, ético) na essência da concepção de 
sistema jurídico mostrou-se imprescindível a partir das dolorosas experiências históricas ocorridas na 
Europa, em meados deste século, as quais serviriam para comprovar a fragilidade e a 
insustentabilidade de um sistema “neutro”. A então hegemonia do positivismo jurídico, tendo 
separado, em absoluto, substância e forma, moral e direito, viria a preparar o terreno para a erosão da 
Constituição de Weimar pelos decretos nazistas. 
O respeito à Constituição, fonte normativa suprema, implica, pois, não somente a observância 
de certos procedimentos de validade para a emanação da norma infraconstitucional mas, também, a 
necessidade de que o seu conteúdo (da norma infraconstitucional) atenda aos valores presentes e 
sistematizados na própria Constituição, decorrentes das opções político-jurídicas do legislador 
constituinte. 
A par da perda de importância do Código Civil, sobreveio o fenômeno da emigração dos 
princípios do direito civil para o direito constitucional. Os direitos da personalidade, a propriedade, a 
5 
 
família ingressaram na Constituição, nela se encontrando definidos os preceitos diretores dos mais 
importantes institutos do direito civil. 
Formalmente, este processo ocorreu no século XX, embora as suas raízes sejam mais antigas. 
Com efeito, ele teve início na Constituição de Weimar, de 1919, e continuou na Constituição Italiana 
de 1948; na Lei Fundamental de Bonn, de 1949; na Constituição Portuguesa de 1976; na Espanhola 
de 1978 e, enfim, na Constituição Brasileira de 1988. De modo que aquele aspecto “constitucional” 
do direito privado, em particular do Código Civil, pertence hoje, sem qualquer contraste, ao direito 
público, ao mais público — como diz Giorgianni — dos ramos do direito, ou seja, ao direito 
constitucional, e está presente nas longas constituições dos Estados contemporâneos. 
A emigração dos princípios gerais do direito civil para o direito público foi considerada, por 
alguns civilistas, como uma intolerável intromissão. Falou-se de “crise”, mas foram também 
frequentes expressões ainda mais desoladas, como a de “declínio” do direito privado, ou mesmo de 
“prevalência do direito público sobre o direito privado”. De acordo com Giorgianni, “são conhecidas 
as reações de consternação, muitas vezes expressas por civilistas diante da ‘publicização’ ou 
‘socialização’ do direito privado, como os de quem, voltando de uma longa ausência, encontrasse a 
sua casa invadida por gente estranha que derrubara muros e portas, modificara tapeçaria e móveis”. 
Não obstante tais considerações, acolher a construção da unidade hierarquicamente 
sistematizada do ordenamento jurídico significa aceitar que seus princípios superiores estão 
presentes em todo o tecido normativo infraconstitucional, resultando, em consequência, inadmissível 
a rígida contraposição direito público x direito privado como summa divisio do direito. 
Pode-se falar em “direito civil-constitucional” em pelo menos dois significados: sob um 
ponto de vista formal, é direito civil-constitucional toda disposição de conteúdo historicamente 
civilístico contemplada pelo Texto Maior; isto é, todas as disposições relativas ao clássico tripé do 
direito civil — pessoa, família e patrimônio. Porque presentes na Constituição, compõem o direito 
civil-constitucional. O outro significado atribuído à expressão “direito civil-constitucional” é o que 
aqui nos interessa: de acordo com este segundo significado, é direito civil-constitucional todo o 
direito civil — e não apenas aquele que recebe expressa indumentária constitucional —, desde que se 
imprima às disposições de natureza civil uma ótica de análise através da qual se pressupõe a 
incidência direta, e imediata, das regras e dos princípios constitucionais sobre todas as relações 
interprivadas. 
Aceita-se hoje, cada vez mais, como metodologia obrigatória para a imprescindível 
reunificação do sistema, a necessidade de se proceder à “releitura do Código Civil e das leis 
especiais — isto é, da normativa do direito civil — à luz da Constituição”. 
Esta parece ser, com efeito, a única solução logicamente adequada, se reconhecermos a 
preeminência das normas constitucionais e dos valores por elas expressos num ordenamento 
caracteristicamente unitário. Portanto, a norma constitucional não deve ser considerada sempre e 
somente como mera regra hermenêutica, mas também como norma de comportamento, idônea, a 
incidir sobre o conteúdo das relações intersubjetivas, funcionalizando-as aos seus valores. 
Isto significa dizer-se que a igualdade — formal e substancial —, a solidariedade e a 
dignidade da pessoa humana se tornam os parâmetros axiológicos da jurisprudência e de todo o 
aparato jurídico conceitual, estando aptos a fundar uma verdadeira revolução nos conceitos jurídicos 
próprios do direito privado e, sobretudo, na função atribuída a estes conceitos. 
A alteração do eixo central do sistema de direito civil — do Código para a Constituição — 
trouxe uma importantíssima consequência jurídica que pode ser indicada através da passagem, 
referida ao início, da tutela (que era oferecida pelo Código ao indivíduo) para a proteção (garantida 
pela Constituição) da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República 
Federativa do Brasil. 
“Dignidade da pessoa humana” diz a Constituição, que não usa sequer a tradicional 
terminologia civilística de “pessoa física” ou “natural”. E, para que não permaneçamos na 
literalidade da interpretação, cumpre indagar o que isto vem a representar para o direito civil hoje. 
6 
 
A raiz da palavra “dignidade” é derivada do latim dignus — “aquele que merece estima e 
honra, a quem se deve respeito, aquele que é importante”. Utilizamos esta palavra apenas para 
pessoas. Os gregos e os romanos também. Mas não a usavam para todas as pessoas; apenas para um 
pequeno número delas. Tanto Aristóteles quanto Platão, por exemplo, consideravam ter a maior parte 
dos seres humanos a natureza de escravos e servir apenas para a escravidão. Foi o cristianismo que, 
pela primeira vez, concebeu a ideia de que a cada ser humano era preciso atribuir a deferência devida 
à dignidade de Deus, porque somos todos seus filhos, e em consequência todos irmãos. Daí a ordem 
cristã: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”, porque ele é igual a ti, é teu irmão. Há dois mil 
anos foram ditas estas palavras, e ainda no século passado, há pouco mais de cem anos, havia 
escravidão legalmente permitida no Brasil. 
É forçoso citar o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), quem provavelmente de modo mais 
claro expôs o conceito de dignidade humana: “Todo ser humano é um fim em si mesmo, jamais um 
meio, jamais um instrumento”. O imperativo categórico, de ordem moral, tornou-se, com a 
Constituição Federal de 1988, um comando jurídico. 
O princípio constitucional, contudo, não garante o respeito e a proteçãoda dignidade humana 
apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, nem tampouco traduz 
somente o oferecimento de garantias à integridade física, psíquica e moral do ser humano. A 
Constituição Federal considera esta dignidade “fundamento da República”. 
Dados o caráter normativo dos princípios constitucionais e a unidade do ordenamento 
jurídico, para o que nos interessa nesta sede, para o direito civil, isto vem a significar uma completa 
transformação, uma verdadeira transmutação. Assim, por exemplo, no direito de família: a tutela 
codicista voltada, para o patrimônio, foi completamente ultrapassada pela garantia constitucional de 
proteção prioritária às pessoas vulneráveis, isto é, filhos — crianças e adolescentes — e idosos. Do 
mesmo modo na relação de consumo, com a promulgação, determinada pela Constituição, de um 
Código de Defesa do Consumidor; a determinação da função social da da propriedade, cujo 
descumprimento gera efeitos previstos no próprio Texto Maior; a previsão da reparação de danos 
morais (então fortemente criticada) 
Em estreita síntese, enquanto o Código Civil dá prevalência e precedência às relações 
patrimoniais, no novo sistema do Direito Civil fundado pela Constituição a prevalência é de ser 
atribuída às relações existenciais, ou não-patrimoniais, porque à pessoa humana deve o ordenamento 
jurídico inteiro, e o ordenamento civil em particular, assegurar tutela e proteção prioritárias. Em 
consequência, no novo sistema, passam a ser tuteladas, com prioridade, as pessoas das crianças, dos 
adolescentes, dos idosos, dos deficientes, dos consumidores, dos não-proprietários, dos contratantes 
em situação de inferioridade, dos membros da família, das vítimas de acidentes anônimos etc. 
Este é o significado atual do direito civil-constitucional. Constitucional porque o seu centro 
de referência foi determinado e completamente modificado pela Constituição, e enquanto este 
Código vigorar — ou o que vem aí, cópia mal feita deste — precisaremos usar o qualificativo 
“constitucional” apenas para lembrar que é a pessoa humana, antes de tudo, que o direito civil tutela 
e é a ela que ele oferece as garantias prioritárias. 
Em conclusão, cumpre reconhecer que o legislador constituinte trabalhou bem e que finalizar 
a tarefa depende de nós, do comportamento de cada um de nós, da aplicação que consigamos fazer 
do desiderato constitucional; e quem sabe avançar ainda mais: não somente a dignidade da pessoa 
humana, como quer a nossa Constituição, mas a perspectiva da dignidade da família humana — isto 
é, da humanidade. 
 
* * *

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