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A ESCOLA E O CURRÍCULO ULBRA 2 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .............................................................................................4 1 O CURRÍCULO E A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA .......................................7 1.1 O CURRÍCULO E O SISTEMA DE ENSINO..............................................10 1.1.1 Currículo formal, informal e oculto...........................................................10 1.1.2 .................................................................................................................11 Currículo e ensino ............................................................................................11 1.2 CURRÍCULO E SISTEMA EDUCACIONAL ...............................................12 2 O QUE É O CURRÍCULO? HISTÓRIA E LINGUAGEM DO CURRÍCULO....................................................................................................14 3 A ESCOLA, A SOCIEDADE E O CURRÍCULO ...........................................21 3.1 TEORIAS SOBRE O CURRÍCULO ............................................................21 3.1.1 O currículo como soma de exigências acadêmicas ................................22 3.1.2 O currículo como base de experiências ..................................................22 3.1.3 O legado tecnológico e eficientista no currículo ......................................23 3.1.4 O currículo como configurador da prática................................................23 4 A ORGANIZAÇÃO SOCIAL E A SELEÇÃO CULTURAL DO CURRÍCULO....................................................................................................27 5 O CURRÍCULO ESCOLAR, APRENDIZAGEM E ESCOLA ........................34 6 A ORGANIZAÇÃO DO CURRICULO: ASPECTOS POLÍTICOS.................41 7 O CURRÍCULO E A PRÁTICA DOCENTE...................................................47 8 A PRÁTICA CURRICULAR: O AGIR E A LINGUAGEM DO CURRICULO....................................................................................................53 8.1 AS TAREFAS ACADÊMICAS COMO MEDIADORAS DO ENSINO ..........53 8.1.1 Tarefas como matriz de socialização ......................................................54 9 A VIRADA DA TEORIA CURRICULAR: CURRÍCULO E CURRÍCULOS....60 10 CURRICULO E DISCURSO CONTEMPORÂNEO .....................................66 10.1 O CURRÍCULO POR COMPETÊNCIAS..................................................66 3 10.2 O CURRÍCULO POR PROBLEMAS ........................................................68 10.3 O CURRÍCULO POR PROJETOS ...........................................................69 10.4 O CURRÍCULO POR TEMAS GERADORES E POR PROBLEMATIZAÇÃO......................................................................................70 10.5 O CURRÍCULO POR MÓDULOS DE APRENDIZAGEM.........................71 10.6 O CURRÍCULO EM REDE, HIPERTEXTUAL .........................................71 10.7 O CURRÍCULO POR CICLOS DE FORMAÇÃO......................................72 10.8 A SALA DE AULA NA CONTEMPORANEIDADE ....................................72 4 APRESENTAÇÃO O currículo tem sido um dos temas de pesquisa que atrai pesquisadores em todo o mundo intelectual e educacional atualmente. O presente texto tem como objetivo apresentar as ideias resultantes de diferentes pesquisas sobre o currículo e a constituição da escola. Portanto, envolve um trabalho de coleta, organização e compilação de dados de pesquisadores durante determinados períodos da história do conhecimento educacional. Os estudos sobre o currículo são antigos. Sabemos que as teorias sobre o currículo começaram a ter maior importância a partir da história da democratização da sociedade nos anos de 1970, cujos debates acabaram trazendo influências para as escolas, para a comunidade acadêmica, para o discurso político, bem como para a formação profissional. Dessa forma, o currículo passou a ser foco de interesse público e influenciar políticas educacionais. O currículo, através de seus determinantes, produz muitas representações nos grupos sociais, na escola e em seus agentes – professores, gestores, alunos, funcionários – e no contexto em que estamos inseridos. Ele é constituído pelas práticas educativas, pelas ações dos professores e pelas interações estabelecidas entre os professores, os alunos e os conteúdos. O presente estudo divide-se em dez capítulos. No capítulo um aborda-se o currículo e a construção da escola. Este capítulo apresenta a história e a evolução da teoria do currículo, incluindo as ideias de organização, estrutura e aplicação do currículo. O capítulo dois – intitulado O que é currículo? História e linguagem do currículo – apresenta as definições do currículo, sua etimologia e a forma de sua manifestação na sociedade. Nos capítulos três e quatro, discute-se como a escola e a sociedade interferem na construção do currículo, incluindo como o currículo participa da organização social e de que forma as políticas educacionais determinam a seleção de conteúdos para a constituição de currículo. O capítulo cinco descreve as etapas de construção do currículo escolar e a forma como interage para conduzir a aprendizagem e para utilizar a estrutura que a escola proporciona. No sexto capítulo, apresenta-se de que forma o currículo exerce seu poder e determina posições e visões de mundo e, no sétimo, abordam-se todas as etapas de planejamento e organização do pensamento do professor, a ação em relação ao processo de aprendizagem e os conteúdos, os saberes necessários pelos professores em favor do desenvolvimento cultural e da construção do conhecimento. O oitavo capítulo debate a questão da prática curricular, apresentando-se as formas de reunir teoria e prática dentro da ação dos agentes que compõem o currículo 5 de um curso, escola etc. O capítulo nove apresenta os debates que marcaram a mudança de pensamento na áreas do currículo. No último capítulo são discutidas as tendências contemporâneas sobre o currículo e as formas de pensar e de criar inovações para uma educação mais justa e saudável. No final de cada capítulo é apresentado o Ponto Final, que é uma retomada das ideias fundamentais do texto, tendo em vista a escola como o espaço onde o currículo se realiza. Também há uma atividade que envolve as funções analíticas e reflexivas. Esperamos que essa obra lhes proporcione uma boa leitura, bem como que possa acrescentar novos conhecimentos aos que já possuem. 6 Notas sobre o autor Airton Pozo de Mattos é licenciado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (1983), Especialista em Linguística Aplicada pela PUCRS (1990), Mestre em Educação pela PUCRS (1997) e Doutor em Educação pela PUCRS (2005). É professor da graduação, especialização, mestrado e doutorado da Universidade Luterana do Brasil. 1 O CURRÍCULO E A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA O século XX trouxe mudanças nas mais diversas áreas: política, economia, segurança, educação e tecnologia. Essas mudanças – ou evoluções para alguns especialistas e nem tanto para seus críticos – possibilitaram a criação de um novo cenário para a educação, levando as pessoas a buscarem novas formas de compreender o mundo e suas modificações. A globalização e as mudanças por ela provocadas também atingiram a educação e sua forma de atuar na sociedade – sua função, seus objetivos, sua missão, os valores e princípios pelos quais a educação se constrói. A escola, desde sua constituição, atendia as elites, funcionários importantes do Estado. Atendia também a manutenção das ideologias dominantes, através da transmissão de conhecimentos e comportamentos reconhecidos como de interesse de quem mantinhao poder. Com as mudanças nas estruturas das sociedades, com a industrialização e o crescimento de uma nova classe de poder e das necessidades de pessoas para o trabalho e melhor formação para poder atender a demanda, as escolas passaram a ter a função de preparar pessoas para o mundo do trabalho. Passamos a ter duas escolas: a das elites e a dos pobres. A transformação da escola para uma escola de massas trouxe uma série de problemas para o atendimento da demanda crescente. A escola era ineficiente e não contribuía para o ajustamento das novas gerações e não preparava a mão-de-obra para o mercado. Com as dificuldades, os governos iniciaram um processo de reavaliação da escola, de sua estrutura e das suas relações com a sociedade. Nesse processo de transformação, o currículo representou um dos temas mais debatidos. Como o currículo pode ser definido? O que ele inclui? O que o distingue de outros conceitos e sistemas com ele relacionados? Segundo Ribeiro1, o termo currículo não possui um sentido único, pois existe uma diversidade de definições e de conceitos em função das linhas de pesquisa e das percepções dos seus pensadores. Esse autor esclarece que uma das acepções mais comuns é aquela que identifica o currículo “com o elenco e sequência de matérias ou disciplinas propostas para todo o sistema escolar, um ciclo de estudos, um nível de escolaridade ou um curso, visando a graduação dos alunos nesse sistema, ciclo, nível ou curso”2. Nessa concepção, o currículo confunde-se com “plano de estudos” – um conjunto estruturado de matérias ou disciplinas de ensino, que se estabelece em um determinado tempo e espaço em atenção às necessidades de aprendizagem dos alunos. 8 Um outro conceito busca identificar o currículo com programas de ensino em uma determinada área de estudo. O currículo, nesse caso, representa uma listagem, esquema ou sumário de temas e tópicos por área disciplinar e, muitas vezes, acompanha sugestões metodológicas de como tratar esses conteúdos programáticos. Essas concepções levam-nos a destacar duas ideias independentes: uma de organização curricular e outra de disciplinas (matérias), conteúdos programáticos e respectivas observações didáticas. Ribeiro ainda observa que as concepções mais correntes “tem em comum o fato de caracterizarem o currículo mais pelos aspectos ‘exteriores’ ou visíveis do que pelos elementos intrínsecos e ‘substantivos’ que o definem e conferem significado àqueles”3. A ideia de currículo como conjunto de matérias ou disciplinas de ensino se caracteriza como “um modo de transmitir de geração em geração o conjunto acumulado do saber humano, sistematicamente organizado e tradicionalmente consagrado em matérias ou disciplinas fundamentais, [deixando claro que] o currículo deve constituir-se inteiramente com o conhecimento que provém das disciplinas”4, servindo como uma forma de introdução ao universo de conhecimentos acumulados pela história da humanidade. O autor apresenta outra forma de interpretar o mesmo conceito de currículo. Para ele, o currículo também permite “representar um conjunto de diferentes modos de pensar e investigar a realidade e experiência humana, privilegiando-se, assim, o desenvolvimento de capacidades e processos intelectuais – significativamente representados nessas disciplinas do saber”5. Ademais, acerca dos conceitos de currículo, Ribeiro apresenta concepções de diferentes autores, conforme é apresentado no Quadro 1, a seguir. Quadro 1 – O currículo segundo diferentes autores AUTORES CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO FOSHAY, 1969 Currículo é o conjunto de todas as experiências que o aluno adquire, sob a orientação da escola. SAYLOR, 1966 Currículo engloba todas as experiências de aprendizagem proporcionadas pela escola. PHENIX, 1958 Currículo é o modelo organizado do programa educacional da escola e descreve a matéria, o método e a ordem do ensino – o que, como e quando se ensina. JOHNSON, 1977 Currículo é uma série estruturada de resultados de aprendizagem que se tem em vista. O currículo prescreve (ou pelo menos, 9 antecipa) os resultados do ensino; não prescreve os meios. Fonte: Ribeiro, 1993. Entre as definições apresentadas no Quadro 1, Ribeiro esclarece que as duas primeiras “possuem um traço comum: conjunto de experiências educativas vividas pelos alunos, sob a tutela da escola”6. Entretanto, a segunda se refere às experiências educativas e de aprendizagem organizadas pela escola. A primeira e a segunda definições, segundo o autor, apresentam uma estreita associação entre “experiências de aprendizagem ou educativa” e “currículo”. O currículo, nesse caso, seria uma “acumulação de experiências educativas ou o itinerário formativo do aluno durante a sua passagem pela escola [e, ao mesmo tempo,] seria o conjunto variado de mecanismos e meios que possibilitam, no tempo de vida escolar, diversas e sucessivas experiências formativas”7. Podemos depreender disso que o currículo é o conjunto de experiências educativas oportunizadas pela escola, resultantes de intenções explícitas da própria organização e de ingredientes da vida escolar. Para Ribeiro a terceira e quarta definições apresentam ideias opostas às anteriores, pois o currículo aparece como planejamento, organização do ensino-aprendizagem, conjunto organizado com objetivos e sequência de ações para atingir os objetivos. Então, podemos observar que as definições mais comuns de currículo tendem a se relacionar com: - lista de disciplinas de ensino; - lista de conteúdos programáticos; - sequência organizada de conteúdos de ensino; - série de objetivos de ensino; - manuais e matérias didáticos; - métodos e processo de ensino; - experiências, atividades vivenciadas na escola. Entre os argumentos até aqui apresentados, devemos enfatizar que as dimensões da concepção de currículo são o currículo como algo que se visa, como intenção ou objetivo; e o currículo como algo que se experiencia, como interação e processo em curso. A primeira perspectiva descreve o currículo como plano, algo normativo; na segunda, ele é descrito como interação e experiência de aprendizagem. Pode-se observar que as definições apresentam três pontos de vista atinentes ao currículo: - conjunto de objetivos ou resultados de aprendizagem a serem alcançados; - disciplinas ou conteúdos a ensinar; 10 - experiências ou processo de aprendizagem. Assim, se mantivermos esses três pontos de vista juntos, encontramos uma única concepção: plano estruturado de ensino-aprendizagem, englobando a proposta de objetivos, conteúdos e processos. A ideia de reunir os diferentes aspectos das definições apresentadas também foi compartilhada por autores como Tanner e Tanner, que definem o currículo como um conjunto de experiências de aprendizagem planejadas, bem como de resultados de aprendizagem previamente definidos, formulando-se umas e outros mediante a reconstrução sistemática da experiência e conhecimento humanos, sob os auspícios da escola e em ordem ao desenvolvimento permanente do educando nas suas competências pessoais e sociais.8 O currículo como plano, programa estruturado, concretiza-se em um documento – no plano de estudos ou programa escolar – ou “material” curricular, objeto, material de estudo, plano ou programa de ensino-aprendizagem. 1.1 O CURRÍCULO E O SISTEMA DE ENSINO O currículo estabelece relações com outras instâncias ou sistemas interdependentes que conhecemos como sistema educacional. Nas relações de fronteira com os outros participantes do sistema, emergem atividades, experiências e atividades até então ocultas ou não conhecidas das comunidades educativas. 1.1.1 Currículo formal, informal e oculto Na discussão sobre o currículo é muito comum surgir dicotomias como curriculare extra-curricular, currículo formal e currículo informal, currículo manifesto e currículo oculto, currículo implícito e currículo explícito. Segundo Ribeiro, o currículo pode ser “um conjunto de experiências educativas planejadas e organizadas pela escola, ou mesmo de experiências vividas pelos educandos sob a orientação direta da escola”9. Nessa concepção algumas das dicotomias citadas desaparecem, mas ela ainda inclui as experiências de aprendizagem vivenciadas pelos alunos, as quais não emergiram diretamente dos programas propostos pela escola. A isso chamamos de currículo oculto. É necessário um destaque para essa dicotomia: currículo manifesto versus currículo oculto. Antes disso, é importante lembrar que a diferença entre currículo formal e informal, assim como entre experiências curriculares e extra-curriculares, está 11 na grade-horária das matérias a que professores e alunos estão submetidos, bem como nas atividades que não estão expressas nessa mesma grade. Segundo Ribeiro, o conceito de currículo oculto pode ser visto sob dois pontos de vista. No primeiro, o currículo aparece como um “conjunto de práticas educativas e processos pedagógicos que veiculam aprendizagens diferentes das explicitamente descritas pelos objetivos do programa”10. No segundo, o currículo oculto se refere “aos efeitos educativos que a escola parece promover mas que não estão explícitos pelo programa”11, isto é, à aquisição de valores, à socialização e à formação de atitudes e procedimentos esperados pela sociedade. Ambos pontos de vista apresentam resultados e processos do ensino escolar não explícitos, mas fazem parte do sistema educacional como aprendizagens “colaterais”, que não estavam sendo enfatizadas no currículo formal. O currículo oculto, nesse sentido, representa uma emergência a partir do currículo manifesto, uma vez que possibilita aprendizagens que não resultam do conjunto formal e organizado pela instituição, mas a aprendizagens relacionadas a valores, atitudes e visão de mundo. Jenkins citado por Ribeiro12, afirma que o currículo oculto é “o amálgama de aprendizagens adaptativas que cada aluno tem de adquirir para sobreviver culturalmente em um meio hostil”. 1.1.2 Currículo e ensino As relações entre o currículo formal e a dinâmica do ensino em situações formais nos levam a refletir sobre: - a dimensão formal que identifica o currículo aprovado pelas entidades responsáveis, formais do sistema educacional; - a dimensão percebida que representa o que os professores realizam partindo do que compreendem e interpretam do formal; - a dimensão vivenciada que representa o que os alunos recebem, aprendem a partir do que foi planejado; - a dimensão observada (operacional), sob a perspectiva daqueles que descrevem o ensino formal como ele acontece, independente da perspectiva de professores, alunos e administração. As distinções acima fazem-nos pensar nas diferentes interpretações sobre o plano de ensino, suas mudanças, sua capacidade de operacionalização, deixando clara a possibilidade das relações complexas entre o que o aluno aprende, o que o professor ensina – ou pensa que ensina – e o que o currículo ou seu propositor tinha em vista para essas relações. 12 1.2 CURRÍCULO E SISTEMA EDUCACIONAL Na relação entre o currículo e o sistema educacional, Ribeiro esclarece que o currículo pode ser considerado a partir das seguintes proposições: “[a] o currículo constitui um dos subsistemas do sistema educativo; [b] o sistema educativo surge como: ‘quadro de referência’ e ‘enquadramento’ necessário do currículo; [c] o currículo representa a ‘substância’ do sistema educativo”13. O sistema educacional constitui-se de um conjunto de estruturas, ações, métodos e meios através dos quais o processo de formação se estabelece. O currículo é parte desse sistema, mas com certeza deve ser o mais importante. No que tange ao sistema escolar, de acordo com Ribeiro14 podemos mencionar alguns componentes: - o curricular e o pedagógico; - os recursos humanos; - os recursos físicos; - a administração, a organização e a gestão escolar; - o apoio e os complementos educativos. Quanto ao segundo aspecto citado pelo autor, o sistema educacional constitui- se no quadro de referência para a elaboração e concepção do currículo, programas, pois ele apresenta em seu bojo a filosofia, epistemologia e finalidades da educação. A última relação citada entre o currículo e o sistema educacional refere-se à substância desse sistema ou, em outras palavras, o “currículo constitui a substância do sistema escolar”, pois o sistema educacional pretende constituir o processo de formação do cidadão. Smith et al citado por Ribeiro15 lembra que o currículo aparece como o conjunto e a sequência de experiências formativas possíveis, organizadas pelo sistema educativo com a finalidade de formar e desenvolver as crianças e jovens em processos coletivos de pensar e agir. Por outras palavras, o currículo identifica-se com a cultura que se pretende transmitir aos membros da comunidade em que o sistema educativo se insere, isto é, os saberes, aptidões, atitudes e valores que se julga serem importantes para a educação das gerações novas. Neste sentido, o currículo passa por ser o veículo de transmissão da experiência cultural da humanidade e de indução de crianças e jovens na cultura do grupo social a que pertencem (socialização). Assim, de forma mais restrita, o currículo pretende responder a seguinte questão: o que devemos ou podemos ensinar e o que deve ou deveria ser aprendido 13 na escola? Ribeiro16 acentua que “o currículo é um sistema organizado de elementos composto de : enunciados das finalidades, objetivos visados, organização de conteúdos, modelos, métodos e atividades de ensino-aprendizagem e, avaliação. do processo”. As relações que os sujeitos estabelecem com os objetos, resultando na construção de elementos simbólicos, fazem emergir diferentes aprendizagens tanto para os alunos quanto para professores e comunidade acadêmica. Por isso, a compreensão da importância do currículo para a organização da escola. PONTO FINAL As sociedades são organizações construídas social e historicamente, portanto elas determinam e são determinadas pelas relações que se estabelecem entre os seres humanos em um determinado contexto e espaço. Portanto, representam uma construção sociocultural e historicamente constituída. Sob essa perspectiva, o currículo é um elemento estruturante das condições em que o indivíduo vai ter contato com as diferentes formas de cultura e relacionamento. O currículo, assim, constitui-se como uma forma de canalizar as vivências e experiências que podemos construir no contato com o outro. O currículo também tem uma relação com os conhecimentos que a sociedade desenvolveu e construiu ao longo do tempo. Sua operacionalização na escola requer a elaboração de planos de ensino e a organização de conteúdos. ATIVIDADES Reflita sobre a escola que você estudou – ou em alguma escola próxima à sua casa ou que você trabalha – e escreva acerca do papel do currículo na constituição da escola. 2 O QUE É O CURRÍCULO? HISTÓRIA E LINGUAGEM DO CURRÍCULO Pode-se dizer que currículo é “a vida da escola”, incluindo todos os movimentos no convívio escolar – as experiências e vivências que ocorrem dentro de um ambiente educativo formal. Currículo é o que é percebido por nós, pelos alunos, professores, gestores, funcionários, pais (ou seja, pela comunidade escolar), mas também apresenta vários aspectos que não conseguimos perceber. Dessa forma, o currículo quando se transforma em ações utiliza uma forma de expressar-se, por isso utilizamos a expressão “linguagem do currículo”; isto é, a forma como ele se apresenta na práticaescolar. O currículo é tudo que é possível dentro do mundo possível da educação. Currículo é um termo proveniente do latim – curriculum (corrida, carreira) e currere (correr) – e significa caminho, jornada, trajetória, percurso a seguir. Segundo Pacheco1 o termo encerra, por isso, duas ideias principais: uma de sequência ordenada; outra de noção de totalidade de estudos. Há também a expressão latina cursus – que envolve a ideia de carreira, de corrida, o que apresenta uma aproximação conceitual de curriculum (carreira). Macedo2 comenta sobre a adoção dessas palavras ao longo da história. O termo cursus, segundo ele, passou a ser utilizado a partir dos séculos XIV e XV. A palavra curriculum é de uso mais tardio, de 1682, sendo usada com o sentido de cursinho; em 1824 também ganhou o sentido de curso de aperfeiçoamento ou de estudos universitários. Só no século XX a expressão curriculum passou a ser usualmente adotada no continente americano. De acordo com Berticelli3, após a era industrial, conhecemos o sentido atual de currículo, que se estruturou após a Segunda Guerra Mundial. Silva4 acresce que, a partir disso, a palavra curriculum passou a ser usada como referência à organização das experiências educacionais ou educativas. Keimmis, citado por Macedo5, observa que o termo currículo se refere a um “terreno prático, socialmente construído, historicamente formado, que não se reduz a problemas de aplicação de saberes especializados desenvolvidos por outras disciplinas, mas que possui um corpo disciplinar próprio”. Já Goodson6 afirma ser o currículo “uma tradição inventada”, um artefato socioeducacional que se configura nas ações de conceber ou selecionar ou produzir, organizar, institucionalizar, implementar ou dinamizar saberes, conhecimentos, atividades, competências e valores, visando uma “dada” formação, configurada por processos e construções constituídos na relação com o conhecimento eleito como educativo. Portanto, o currículo é o produto 15 das relações e interações entre os componentes do sistema educacional, o qual se estrutura a partir dos conhecimentos, valores, princípios filosóficos e epistemológicos. Macedo7 observa que o currículo pode ser percebido como um documento em que se expressa e se organiza a formação, os métodos, atividades, disciplinas (ou matérias) que organizam os conhecimentos. Pode-se depreender daí que professores constroem e dão forma ao currículo em cada momento que orientam as atividades na escola. Por outro lado, o autor enfatiza que aspectos como trajetória e itinerário podem engessar a formação, impedindo a criatividade, a transgressão das experiências, necessários para gerar inovação. Em vista disso, ele propõe o currículo como “itinerância e errância“, mostrando a necessidade de “se vivenciar também nas experiências formativas as interações bifurcantes, os devaneios e as errâncias criativas. [O que torna o currículo como] um complexo cultural tecido por relações ideologicamente organizadas e orientadas, [ele] é uma prática que bifurca”8. O currículo indica caminhos, travessias, que são constantemente realimentadas, reorientadas, reestruturadas pela atividade e pela cena curricular, o ambiente, o contexto, as finalidades. O currículo envolve, dessa forma, relações e interações permeadas e constituídas e constituintes pelas relações de poder. Logo, mais uma vez, currículo é cultura, política, é poder, é prática, é teoria. Currículo é uma construção complexa. Aos poucos, a definição de currículo vai possibilitando algumas visões que tornam evidente a sua complexidade. O currículo também é definido como “plano de estudos” – que fornece uma base de formação para todos os cidadãos. Essa ideia de currículo manteve-se até o início do período moderno. No século XX, segundo Pacheco, o currículo passa a surgir como um “círculo coerente de saberes, estruturados didaticamente para sua transmissão e aprendizagem” 9. Para Goodson10, o currículo é “a maneira de organizar e controlar os ideários da formação”. Nessa definição, a questão do controle e da ideologia dominante estão presentes. Bobbit11, seguindo a orientação americana da Administração científica de Frederick Taylor, compreende o currículo como ações objetivas e planejadas e estrategicamente executadas para obter eficiência e eficácia, seguindo uma metodologia monitorada e avaliada. O currículo obteve um teor mecânico e operacional. Essa ideia permanece forte ainda hoje, uma tentativa de harmonizar os fatores econômicos e científicos. Tyler12, discípulo de Bobbit, sugere um estudo mais específico no campo do currículo, sugerindo uma linha própria de pesquisa e teorias. 16 Terigi, citado por Macedo13, afirma existir três enfoques relacionados à origem do currículo: - o currículo como ferramenta pedagógica de massificação da sociedade industrial; - o currículo como um plano estruturado de estudos; - os conteúdos, matérias, disciplinas que se ensinam formalmente. Pode-se observar que os enfoques acima nos permite compreender o currículo como um conjunto de disciplinas que representam conteúdos do programa oficial da escola, ou seja, um conjunto de matérias a serem ensinadas e uma estrutura organizacional que possibilita a transmissão desses conteúdos. Nessa perspectiva, o conhecimento é o mesmo, único e não questionável, pois era o resultado da atuação do método científico e da cultura padrão. Moreira14 afirma não haver consenso quanto ao significado de currículo. E isso já foi possível constatarmos no que foi visto até aqui. As divergências nos levam a compreender que currículo: - é uma construção cultural, histórica e socialmente determinada; e - refere-se a uma prática condicionadora de si mesmo e de sua teorização. Para Moreira15 há dois aspectos que predominam nas definições: conhecimento escolar e experiência de aprendizagem. No primeiro, o currículo é representado pelo conhecimento tratado pedagogicamente e didaticamente pela escola e, nesse caso, ele deve ser aprendido e aplicado pelo aluno. No segundo aspecto, o foco está nas diferenças individuais e na preocupação com a atividade do aluno. Dessa forma, o currículo passa a significar o conjunto de experiências a serem vividas pelo estudante sob orientação da escola. O currículo retoma a experiência do aluno e tem o sentido da totalidade das experiências vivenciadas pelo aluno no ambiente escolar. Moreira observa que o currículo “envolve a apresentação de conhecimentos e inclui um conjunto de experiências de aprendizagem que visam favorecer a assimilação e a reconstrução desses conhecimentos”16. O mesmo autor escreve sobre a influência da psicologia comportamental, que tem como foco o currículo e os elementos que participam de sua estrutura, sua organização e inter-relações. O behaviorismo preocupa-se com os objetivos curriculares voltados, com as regras de formulação de objetivos, com as relações entre o currículo e a prática. Nota-se um novo movimento que enfatiza ora as ideias prescritivas do currículo, ora o processo, a prática efetiva, o currículo formal, o currículo real. 17 Leite esclarece que a concepção de currículo estava “associada ao conjunto das disciplinas que faziam parte daquele nível de ensino e que se concretizavam pelos conteúdos expressos nos manuais escolares”17. A autora observa, ainda, que “o currículo limitava-se ao conjunto das matérias a ensinar e à estrutura organizativa dessa transmissão”18, lembrando que o discurso da época era o da “transmissão de saberes para a preparação para a vida futura (entendendo o futuro como igual ao presente)”19. Naquela época, segundo a autora, prevalecia a ideia de conhecimento único e universal, não questionado, padrão, como uma cultura aceita por todos. Pinar, citado por Moreira20, identificou a presença de duaslinhas de estudos no campo do currículo: o grupo dos críticos e o grupo dos pós-críticos. O grupo dos críticos, de acordo com Silva21 produz uma inversão nos fundamentos das ideias tradicionais. Segundo ele, as concepções de currículo como artefato neutro, inocente e desinteressado não são procedentes, não condizem com o que de fato a realidade sustenta. Macedo esclarece que, para os autores das teorias críticas “o interesse é descrever as iniquidades sociais e as injustiças que excluem através dos atos de currículo“22. O autor define atos de currículo como “todas as atividades que se organizam e se envolvem visando uma determinada formação, operacionalizadas via seleção, organização, formulação, implementação, institucionalização e avaliação de saberes, atividades, valores, competências, mediado pelo processo ensinar/aprender ou projeção”23. As teorias críticas, então, se preocupam em compreender “o que o currículo faz com as pessoas e as instituições e não apenas como se faz o currículo”24. A teoria crítica, para Macedo25, carrega um movimento que vincula as concepções de currículo ao movimento capitalista, à cultura que se produz na escola e representa o pensamento de pensadores como Apple, Giroux e Mc Laren, Gramsci, Freire. A teoria crítica é uma oposição clara ao pensamento da cultura de massa e à ideia de tecnicismo da sociedade moderna. Giroux26 escreve sobre uma “pedagogia das possibilidades” e expressa a necessidade de ver o currículo como “esfera pública e democrática”. Os educadores que seguem as ideias de Dilthey, Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty apresentam a visão de currículo levando em consideração a subjetividade e que o conhecimento é construído de forma intersubjetiva, através da linguagem. O objetivo desses pensadores, segundo Macedo, é “desreificar a burocracia e as formas de relação estabelecidas pelos atos de currículo nas sociedades capitalistas”27. O autor também observa que “os novos sociólogos da educação na Inglaterra tentam articular as teorias sociointeracionista, etnometodologia e 18 dramaturgia social”28, influenciados por Schutz, Sarup, Woods, Keddie e Bernstein, Michael Young, o último é o principal defensor da corrente. Young29 enfatiza as relações entre currículo e poder. Além dessas relações, esses autores vão pensar o currículo como uma construção social. Berger e Luckmann30 escrevem sobre a ideia de “currículo oculto”, descrevendo os mecanismos encobertos de poder que influenciam a construção das visões de mundo, de sociedade, de homem e de educação pelos atos de currículo. No Brasil, as questões da educação, segundo Macedo31, mantém a posição de transferência de ideias e são sustentadas pelas teorias americanas. Essas teorias trazem em seu núcleo o modelo funcionalista. As propostas marxistas só passaram a ser discutidas na década de 1980. No Brasil, nesse período, havia duas correntes que visavam difundir discursos e influenciar as práticas pedagógicas e curriculares: a pedagogia histórico-crítica e a pedagogia do oprimido. Portanto, a visão crítica, as questões do cotidiano das escolas e o processo de ensino e aprendizagem, despertam uma nova leitura dos estudos sobre o currículo, buscando a superação da perspectivas dominantes: funcionalistas, behavioristas, reprodutivistas. Macedo32, esclarece que nos anos 90, os estudos sobre o currículo sofreram influências da sociologia, da antropologia e das relações de poder, produzindo discursos políticos, éticos, culturais como resultado das contradições emergentes das teorias dominantes e da realidade em construção. Grundy, citado por Sacristán, esclarece que “o currículo não é um conceito mas uma construção cultural. Isto é, não se trata de um conceito abstrato que tenha algum tipo de existência fora e previamente à experiência humana. É, antes, um modo de organizar uma série de práticas educativas”33. Sacristán34 procura organizar as diferentes concepções e perspectivas sobre o currículo baseando-se nos seguintes aspectos: - o ponto de vista sobre a função social do currículo como ponte entre a sociedade e a escola; - o currículo envolve a ideia de projeto ou plano educativo, pretenso ou real, composto de diferentes aspectos, experiências, conteúdos etc.; - fala-se do currículo como a expressão formal e material do projeto que deve apresentar, sob determinado formato – para os seus conteúdos, orientações, sequências etc.; - referem-se ao currículo os que o entendem como um campo prático. Entendê-lo assim supõe a possibilidade de: 1) analisar os processos instrutivos e a realidade da prática a partir de uma perspectiva que lhes dota 19 de conteúdos; 2) estudá-lo como território de intersecção de práticas diversas que não se referem aos processos de tipo pedagógico, interações e comunicações; 3) sustentar o discurso sobre a interação entre a teoria e a prática em educação; - também se referem a ele os que exercem atividades discursivas, acadêmicas e de pesquisa sobre todos esses temas. O autor lembra que o currículo tem fins sociais e culturais, pois é através da instrumentalização prática do sistema educacional e social que se concretizam as funções da escola e do currículo. O currículo é a forma de alcançar o conhecimento, é uma prática cultura e social e, muitas vezes, institucional, pois une os subsistemas e práticas diversas em atividades de ensino. A esse respeito, Sacristán esclarece que ”é uma prática que se expressa em comportamentos práticos diversos. [...] É uma prática na qual se estabelece o diálogo entre agentes sociais, elementos técnicos, alunos que reagem frente a ele, professores que o modelam etc.” 35. O currículo é uma invenção historicamente organizada de forma política, social e educacional e, portanto, reflete os interesses da sociedade e os valores dominantes em um processo social e educativo. Sob essa perspectiva, o currículo também é um corte cultural de conhecimentos, de conteúdos a serem aprendidos. Conhecimentos oriundos das mais diferentes áreas do saber. O currículo deve ser a ligação, a ponte entre a prática escolar e o mundo do conhecimento e da cultura. O currículo como práxis pressupõe ações em um processo que se dá em certas condições reais, em um universo de trocas sociais e culturais em um determinado tempo-espaço. Isto nos leva a entender que o currículo e sua construção não podem ser isolados das condições de sua própria construção. No caso de um currículo escolar, as condições são: estruturais, políticas, administrativas, materiais e educacionais que modelam o fazer pedagógico e cultural. Assim, o currículo constitui-se em um complexo processo social, inserindo-se em múltiplas práticas pedagógicas, que se originam em diferentes campos – tais como administrativo, político, de meios e técnicas, de conhecimento produzido, avaliação – e funcionam como subsistemas interdependentes que geram diferentes contextos: de aula, pessoal, social, histórico, político etc. Sacristán36 aponta oito subsistemas que nos auxiliam na análise do currículo: - o subsistema político-administrativo; - o subsistema de participação e controle; - o subsistema educacional; - o subsistema de produção de meios; - o subsistema de criação cultural e científica; 20 - o subsistema técnico-pedagógico; - o subsistema de inovação; - o subsistema prático-pedagógico. Os subsistemas estabelecem relações de determinação recíproca entre si. Essas inter-relações constituem o sistema curricular. Para Sacristán37, então, o sentido do currículo se efetiva através dos resultados desses contextos e se demonstra nas práticas múltiplas e multiformes. Sacristán38 sintetiza as ideias sobre o currículo como um artefato que tem função socializadora, (...) com conteúdos das mais diferentes ordens: política, administrativa,pedagógica, filosófica etc.; (...) o currículo é um ponto fundamental na melhora da qualidade do ensino, na mudança das condições da prática, no aperfeiçoamento dos professores. PONTO FINAL O currículo também passou por um processo de desenvolvimento, que envolveu momentos de estabilidade e instabilidade, assim como de reconstruções, além de uma linguagem própria. O histórico da evolução nos ajuda a compreender de que forma a sociedade, suas mudanças, interferem na estrutura curricular da escola ou não, ou seja, independe da implementação das mudanças, sabemos que os movimentos dentro da sociedade entre seus integrantes geram transformações de maior ou menor profundidade. O fato é que não podemos pensar o currículo sem pensar na construção social do ser humano, das identidades e das culturas. O estudo do currículo pode ser feito com base na evolução do pensamento, assim como dos sistemas e subsistemas que se formaram a partir das transformações sociais. ATIVIDADE Entreviste entre três a cinco professores, pedagogos, diretor ou vice-diretor de uma escola e procure saber a opinião deles sobre o significado e a importância do currículo. Busque saber, também, como o professor utiliza e se beneficia do currículo. Se preferir, elabore previamente um roteiro de entrevista baseando-se no conteúdo desse capítulo para elaborar as questões. 3 A ESCOLA, A SOCIEDADE E O CURRÍCULO O currículo é uma escolha cultural, um projeto cujo conteúdo inclui a cultura que permeia a educação. Nessa concepção ampla, podemos relembrar que o currículo é um projeto cultural, social, política e administrativamente determinado, que se efetiva em uma atividade escolar ou acadêmica e se torna realidade dentro do contexto e das condições da comunidade e da sociedade. Em primeiro lugar, a aprendizagem nas instituições acadêmicas se organiza de acordo com o projeto cultural e, portanto, o currículo depende da escolha de conteúdos. Esse projeto cultural (ou pedagógico ou social) se realiza em determinados contextos ou condições políticas, administrativas e institucionais. Essas condições estão condicionadas pela realidade, que por sua vez está estruturada sobre ideias, valores e visões de mundo. Logo, podemos pensar em três grandes operadores da cultura curricular: a seleção da cultura, ou seja o que selecionamos e como organizamos o conjunto de conhecimentos que consideramos necessários para a formação do cidadão; as condições institucionais, isto é, a política curricular, a estrutura do sistema educacional e a organização escolar; e as concepções curriculares ensejadas pelas opções políticas, psicológicas, epistemológicas, assim como pelos valores sociais e modelos educativos. Esses paradigmas são determinantes do currículo como “cultura”, ou seja, a partir desses elementos, selecionamos os conteúdos, os códigos e as estratégias de ensino e o resultado da aprendizagem. 3.1 TEORIAS SOBRE O CURRÍCULO As teorias sobre o currículo, embora tenham como meta apresentar uma teoria única e homogênea, não respeitam um consenso, consideradas as dificuldades para se abarcar toda a complexidade relacionada ao currículo, assim como em discutir os problemas práticos atinentes ao tema. Assim, os teóricos acabam descrevendo especificidades sobre o currículo. Por exemplo, o currículo centrado na gestão racional, radical-crítica, existencial, acadêmica ou reacionária, deliberativa. Há também uma classificação que assinala as perspectivas ou ideologias: acadêmica, eficiência social. Também, segundo Sacristán1, a literatura cita enfoques como o humanístico, reconstrucionista social, teológico e acadêmico. 22 Com base nisso, Sacristán2 definiu algumas perspectivas teóricas e práticas em vista de facilitar a compreensão do currículo. São elas: o currículo como soma de exigências acadêmicas, o currículo como base de experiências, o legado tecnológico e eficientista no currículo, o currículo como configurador da prática (a ponte entre a teoria e a ação). Veremos tais perspectivas a seguir. 3.1.1 O currículo como soma de exigências acadêmicas Nessa perspectiva, o currículo é analisado sob o ponto de vista dos conteúdos organizados em disciplinas. Nela se valoriza a tradição acadêmica no campo educacional, bem como os saberes especializados em disciplinas ou em áreas do saber. O currículo, então, concretiza-se pela listagem de conteúdos a serem trabalhados ou cumpridos em um período letivo. As construções institucionais de pressão acadêmica como a organização dos professores, a administração acadêmica, a gestão científica acabam por impor esse modelo, embora tenhamos clareza que essa não é a melhor maneira de ensinar e de aprender. 3.1.2 O currículo como base de experiências O interesse pelas experiências e vivências dos alunos tem relação com o movimento pela renovação da escola. O movimento da Escola Nova questionava a teoria curricular centrada em matérias, disciplinas, sugerindo um pluralismo de formas para organizá-lo, buscando também novas concepções segundo princípios democráticos. Sacristán3 assinala que, partindo do pressuposto de que os aspectos intelectuais, físicos, emocionais e sociais são importantes no desenvolvimento e na vida do indivíduo, levando em conta, além disso, que terão de ser objeto de tratamentos coerentes para que se consigam finalidades tão diversas, ter-se-á que ponderar, como consequência inevitável, os aspectos metodológicos do ensino, já que destes depende a consecução de muitas dessas finalidades e não de conteúdos estritos do ensino. A função do currículo, sob essa perspectiva, é atender as necessidades emocionais, cognitivas e sociais, proporcionando um conjunto de experiências planejadas sob a orientação da escola e do professor. Enfatiza-se então a visão da escola como uma instituição socializadora e de formação humana, cumprindo ainda o papel de prover a capacitação para o trabalho. Ou seja, um projeto global de 23 educação, pois além dos conteúdos, o currículo abarca as experiências do estudante em atividades escolares planejadas e operacionalizadas em contextos formais de educação. 3.1.3 O legado tecnológico e eficientista no currículo Essa perspectiva fundamenta-se na administração, na organização, na burocracia e no controle escolar imposto como padrão na escola. Trata-se de um modelo de currículo cuja preocupação é a formação do cidadão para a vida, atendendo as demandas do mercado e tendo como ideal a obtenção de resultados e da eficiência. Callahan e Kliebard, citados por Sacristán4, assinalam que ”a gestão científica é para a burocracia o que o taylorismo foi para a produção industrial em série, querendo estabelecer os princípios de eficácia, controle, previsão, racionalidade e economia na adequação de meios e fins, como elementos-chave da prática, o que fez surgir toda uma tradição de pensar o currículo”. Tyler5 assevera que o currículo é composto pelas experiências de aprendizagens planejadas, organizadas e operacionalizadas pela escola com a intenção de alcançar os objetivos educativos estabelecidos pelo projeto pedagógico. O currículo, nesse sentido, é um conjunto de objetivos de aprendizagem condicionados e determinados que oportunizam experiências de aprendizagem adequadas ao contexto escolar e social. 3.1.4 O currículo como configurador da prática Essa linha de pensamento centra a sua ação na dialética entre teoria e prática. Enfatiza a prática curricular como resultado das oposições, contradições, gerando uma prática teorizada, uma prática modelar, uma reflexão crítica. A prática surge como um novo discurso em didática, buscando compreender o fenômeno ensino e aprendizagem, separando-os; ou seja, conteúdos separados de métodos, administração das ações técnicas,escola e sociedade. A teoria serve como instrumento de análise da prática e, ao mesmo tempo, para apoiar a reflexão crítica da teoria e da prática constituída nessa dialética. Essas condições são essenciais para a autonomia, tão ausente nas teorias curriculares. A crítica tem apontado para a dificuldade de inovações na educação e, portanto, à dificuldade dos professores serem criativos – no sentido de desenvolverem metodologias inovadoras que levem os alunos à autonomia, à emancipação e à 24 reflexão crítica –, pois eles convivem com estruturas de escola controladoras e centralizadoras. Grundy, citado por Sacristán6, assinala que, para o currículo cumprir a sua função emancipadora, o jovem precisa ser visto como práxis, apoiada em uma reflexão, uma interação entre o refletir e o atuar. A práxis acontece em um mundo real em condições concretas, através de interações entre os agentes, o contexto, as condições de ensino e de aprendizagem. Logo, pode-se entender que o conteúdo do currículo é um processo social, pois ao aprender os alunos se tornam participantes, construtores de seu próprio saber. A prática ocorre em uma situação social complexa. Cada participante do processo – os agentes – age sob a orientação de uma certa ordem de ações ou regras. O currículo é um artefato histórico, social, político, pedagógico e prático. Dessa forma, precisamos compreender o caráter duplo do currículo: teórico e prático. Pode- se depreender daí que ele é um fenômeno social e educativo, é a ponte entre esses dois mundos. Essa concepção busca focar o currículo como um fenômeno que está ocorrendo, isto é, busca descrever e compreender o processo, seu desdobramento na prática. É fundamental compreender que o currículo não deve estabelecer regras gerais, generalizações sobre o que deveria ser feito, mas adotar uma perspectiva prática e teórica. Essa relação social e cultural modela a própria prática concreta, a qual também é afetada por ela. Agora podemos compreender a complexidade e a circularidade das relações entre teoria, prática, currículo, construção social, cultural, histórica e crítica, ensino e aprendizagem. Compreender as relações do currículo com o mundo externo e interno é um dos objetivos dessa teoria curricular. O currículo também pode ser classificado em dois grandes grupos, conforme orienta Paixão et al7: o que aceita o currículo como um plano; e o que considera o currículo como um processo. Segundo os autores, a primeira categoria considera as propostas tradicionais e as propostas tecnicistas, enfatizando sempre o plano, o ambiente, o conteúdo e as regras da organização escolar. O segundo grupo abriga as concepções do currículo de forma dialética, dialógica, ou seja, um processo em que todos os envolvidos tem participação e são agentes do processo: alunos, professores etc. Nesse sentido, podemos encontrar a participação do aluno na construção de seu conhecimento, na organização do ambiente, oportunizando situações capazes de provocar a cognição, a emoção e a construção social do conhecimento. Também há lugar para a práxis, para a relação 25 entre a teoria e a prática através de uma ponte de aproximação entre as compreensões teóricas e as práticas educativas. Em geral, nas perspectivas apresentadas, o currículo tem como função preparar um cidadão consciente, que domina um conjunto de conhecimentos fundamentais para a sua formação social e profissional – em vista de seu ingresso no mercado de trabalho. Essa formação ocorre através de atividades planejadas e organizadas dentro de um espaço formal de educação, com supervisão ou acompanhamento de professores, cuja atuação respeita normas e regras. Essas perspectivas tem, ainda, um caráter epistemológico, o que nos ajuda a compreender o mundo em que vivemos. Internalizar o conhecimento nos possibilita assumir novas maneiras de nos relacionar com o saber. Podemos, então, compreender porque a definição de currículo é tão complexa, uma vez que, ao se buscar defini-lo, depara-se com complicadores sociais, políticos, históricos, administrativos etc., criando-se alternativas de se ter um currículo como forma de manutenção ou de manipulação de posicionamentos políticos e sociais. Outros aspectos que fazem parte da organização curricular têm valores determinantes, e muitas vezes, não nos interessamos por questões do currículo, da manutenção do pensamento e da formação do corpus geral relacionado à educação e ao desenvolvimento da sociedade. Esses pontos de vista nos colocam na condição de problematizadores de ideias relativas ao currículo. Talvez seja interessante pensar o currículo como o fez Ferraço8 ao conceituá-lo como “redes coletivas de fazeres e saberes dos sujeitos que praticam o cotidiano”. Sob esse prisma, vários são os currículos e as formações possíveis de se realizar, pois os conhecimentos se processam através das redes de saberes e fazeres na sala de aula, na prática. Dessa etapa, surge a ideia do currículo praticado. Carvalho9 esclarece que o currículo pode ser entendido “a partir dos processos e produtos em circulação nas práticas discursivas engendradas no trato da questão da diferença na prática escolar curricular”. O currículo pode assumir, segundo a autora, a forma de concebido e vivido. Entende-se o concebido, aqui, como currículo formal. No nível do vivido indica o que efetivamente se manifesta, a concretização do concebido . PONTO FINAL O currículo pode ser compreendido de diferentes maneiras ou sob diferentes perspectivas teóricas. Nesse capítulo exploramos o currículo enquanto um aparato exigido pela tradição acadêmica, como um recurso que valoriza e proporciona que os alunos aprendam pela experiência, como um instrumento que pode assegurar a 26 eficiência nos resultados buscados pela escola, e como uma ferramenta que privilegia a prática e não apenas a teoria. Também é possível compreender o currículo enquanto um plano (formal, técnico, menos aberto à participação) e enquanto um processo (prático, dinâmico, mais aberto à participação). Essas perspectivas permitem-nos vislumbrar aspectos que tornam o currículo um fenômeno significativamente complexo. ATIVIDADE Compare os currículos de mesmos níveis de educação em dois países diferentes. Faça algumas observações sobre os currículos e suas características e semelhanças. 4 A ORGANIZAÇÃO SOCIAL E A SELEÇÃO CULTURAL DO CURRÍCULO O currículo reflete o projeto educativo, considerados diversos aspectos a ele implícitos – a cultura, o desenvolvimento pessoal e social, os conteúdos organizados em disciplinas ou matérias. A teoria moderna do currículo tem, cada vez mais, gerado uma sobrecarga curricular ao sugerir ou estabelecer novos conteúdos necessários à formação dos alunos. Torna-se preciso, por exemplo, que a escola inclua em seu escopo curricular noções sobre higiene pessoal, educação sexual, educação para o trânsito, educação ambiental, consumo de drogas etc. No entanto, a escola já sente dificuldades para prover suficientemente uma formação baseada nos conteúdos tradicionais, dificuldade essa que se amplia quando ela assume o compromisso de prover os alunos com novos saberes. A necessidade de dar conta de todas as áreas do saber é uma preocupação da escola na medida em que não se consegue estabelecer um núcleo básico de conhecimento e de cultura para todos. Muitas áreas são importantes e escolhidas para formar esse grupo de conhecimentos necessários para a formação dos alunos. Sacristán1, nesse aspecto, sugere as seguintes áreas: artes e ofícios, meio ambiente, habilidades e raciocínio matemático, estudos sociais, cívicos e culturais, educação para a saúde, conhecimento científico e tecnológico, comunicação, pensamento moral e mundo do trabalho. Essa seleção baseia-se, segundo o autor,na busca de ”elementos básicos para iniciar os estudantes no conhecimento e acesso aos modos e formas de conhecimentos e experiência humana, aprendizagens necessárias para a participação em uma sociedade democrática”2. Essa é apenas uma das opções de seleção. O conflito de interesses no sentido de selecionar a melhor base de conhecimentos para a sociedade, leva a compor um universo muito extenso de conteúdos, além de não parecer neutra a escolha desses conteúdos. O currículo determina a todos os alunos que alcancem níveis que somente um número pequeno de alunos pode atingir – ou, em outros termos, a distribuição da cultura e do conhecimento não ocorre de forma homogênea na população. Assim, a cultura de um currículo obrigatório e comum para todos não é justa e adequada no sentido de oferecer oportunidades iguais a desiguais. No currículo tradicional, o princípio de seleção foi dirigido à cultura da classe média e alta, o que tem causado o fracasso dos alunos das classes menos favorecidas. A tarefa de selecionar os conteúdos que devem constituir o currículo da população não parece ser fácil, uma vez que não há consenso a respeito do que é básico ou fundamental para os alunos de um determinado grupo social, pois não 28 estamos levando em conta as diferenças individuais entre os alunos, grupos, comunidades e sociedades. Sacristán3 assevera que ”em caso de oportunidades desiguais, o currículo deve se tornar, pelo menos, um elemento de compensação, já que não poderá sê-lo de total igualdade”. É fundamental salientar o que escreve Cornall, citado por Sacristán4: Há grupos de alunos de baixo rendimento que encontram pouca satisfação no trabalho atual nos últimos anos da educação obrigatória, e devemos aceitar o objetivo de melhorar sua moral e seu rendimento. Mas não é evidente que a solução consista em dar relevo a sua singularidade e segregá-la, conta todos os princípios não-seletivos, numa categoria especial, em lugar de nos perguntarmos que mudanças devemos fazer, em enfoques, em método, em material, com o fim de lhes ajudar a gozar dos benefícios de um currículo comum bem pensado que tenha por objeto satisfazer as necessidades que têm em comum com todos seus contemporâneos e com seus futuros concidadãos. Sacristán5 observa que “esse é o sentido da educação compreensiva, na qual se realiza um currículo básico igual para todos, fazendo esforços na formação do professorado, adaptação metodológica e na organização escolar, para que todos os alunos possam obter um mínimo de rendimento”. Portanto, parece que o currículo deveria proporcionar alternativas para lidar com as diversidades que se refletem em cada realidade social e cultural. As diversidades podem ser tratadas de diversas formas, tais como: oportunizar currículos diferenciados; ofertar disciplinas opcionais; moldar o conteúdo interno; criar atividades compensatórias na entrada do aluno; propor novas metodologias; ofertar caminhos curriculares diferenciados. Além disso, temos que enfrentar a demanda do mercado de trabalho, que não leva em consideração as diferenças e exige uma formação geral e profissional mais flexível. O currículo para todos, com núcleo comum, precisa ser ressignificado, levando em consideração os diferentes sentidos da cultura, do conhecimento dos grupos sociais e suas possibilidades culturais e determinantes históricos. Não é possível formar para o mercado de trabalho e para a ascensão dentro da estrutura educacional, sem cair nas duas escolas: para pobres e para ricos. O aumento de conteúdos no currículo – como, por exemplo, educação sexual e educação para o trânsito – não representa uma solução para a questão da diversidade, pois esses acréscimos acabam trazendo resultados negativos pensando- se nos resultados alcançados na educação como um todo. Nesse aspecto, Sacristán6 afirma que “ampliar conteúdos curriculares, sem uma mudança qualitativa [...] para os professores e para os alunos, assim como nos procedimentos de transmissão, sem 29 uma atitude diferente frente aos mesmos, agravará os defeitos atribuídos à educação tradicional”. Entretanto, esses pontos de vista não têm auxiliado a reduzir o efeito da tendência de ampliar os conteúdos no ensino, em detrimento de um currículo que pretende ser socializador. Esse movimento tem como base uma visão eficientista, capitalista, que busca melhorar resultados em uma fase de intenso tecnicismo educacional, o que alguns tem chamado de back to basics, ou seja, retornar as alternativas eficientes do modelo neoliberal. As instituições educacionais têm dificuldades de assimilar mudanças no currículo, pois precisam fazer muitas mudanças em sua estrutura. Para tanto, elas acabam fazendo algumas adaptações no currículo vigente para acomodar as mudanças propostas pela sociedade – através de atividades extras, atividades fora da escola, projetos, feiras, atividades de visita etc. –, mas todas essas alternativas acabam não trazendo a mudança de qualidade necessária para que o currículo possa ser transformado com base na diversidade. Outro fator não compreendido dessa inadequação do currículo às mudanças é que elas continuam ocorrendo dissociadas da aprendizagem experiencial dos alunos. A instituição educacional também não utiliza o potencial que as novas tecnologias podem representar no currículo como agente cultural. Esse papel das tecnologias pode ser ampliado e articulado nas atividades e tarefas realizadas na escola, fazendo com que os alunos possam usufruir de metodologias diferenciadas que facilitem a aprendizagem. A escola encontra dificuldades em definir e escolher os conteúdos curriculares mais adequados no que diz respeito aos problemas sociais de seu entorno. Isso aumenta a pressão sobre a escola e sobre a comunidade escolar – professores, alunos, pais, funcionários etc. –, ocasionando uma escola paralela, que atua fora das aulas formais, com horários diferenciados, envolvendo conflitos entre metodologias. Sacristán7 assevera que a mudança dos currículos para a educação [...] deveria considerar essa situação cultural em nossa sociedade, aproveitar decididamente todos os meios de que hoje se dispõe. [Além disso], a melhora da qualidade do ensino deve partir dessas novas realidades culturais. Escolas que se localizam em regiões socialmente desprivilegiadas tendem também à estarem desatualizadas e curricularmente inadequadas, em detrimento de seus alunos. Por sua vez, os alunos dessas escolas normalmente não valorizam a cultura e o conhecimento, são desmotivados, sem interesse e abandonam e representam um número significativo nas estatísticas de evasão escolar. Para os 30 alunos de classes mais abastadas, ao contrário, há mais interesse pela aprendizagem, assim como maior participação em cursos, projetos etc. Ao mesmo tempo em que todos os aspectos até aqui apresentados demonstram a necessidade de efetuar mudanças no currículo e na escola, a sociedade continua a enfatizar a classificação e a validação acadêmica para o mercado de trabalho, através do currículo de formação geral e formação profissional. Com isso, podemos entender que o modelo de transmissão de saberes acaba sendo reforçado, gerando o currículo oculto, o que coloca em questão os papéis desempenhados pela escola e pelo sistema formal de educação. Sacristán8, nesse aspecto, afirma que “a escola, numa sociedade de mudança rápida e frente a uma cultura sem abrangência, tem que se centrar cada vez mais nas aprendizagens essenciais e básicas, com métodos atrativos para favorecer as bases de uma educação permanente, mas sem renunciar a ser um instrumento cultural”. O currículo é, em última análise a cultura contextualizada, selecionada, organizada em um formato pedagógico. O currículo, então, possui um formato como resultado dos objetivos, dos meios,das tecnologias envolvidas para sua expressão. Portanto, todo currículo apresenta uma ordem, métodos, meios de transmissão. Ele também é um código, uma linguagem, uma mensagem. O currículo fala, expressa seu desejo, sua intenção, é ativo e realiza-se em um contexto, tem sentido e opera sentidos também. De acordo com King e Brownell, citados por Sacristán9, o currículo envolve a seleção de conteúdos ou conhecimentos, e há diferentes dimensões do conhecimento: a) Um campo de conhecimento é uma comunidade de especialistas e professores que compartilham uma parcela do saber ou um determinado discurso intelectual com a preocupação de realizar contribuições para o mesmo; b) Uma área de conhecimento é expressão de uma certa capacidade de criação humana, dentro de um determinado território especializado ou em facetas fronteiriças entre vários deles, cuja dinâmica se mantém, seguindo certos princípios metodológicos, mas que também se alimenta de impulsos imaginativos, súbitos e oportunos; c) Uma disciplina ou campo especializado de conhecimento é um domínio, um território, mais ou menos delimitado, com fronteiras permeáveis, com uma certa visão especializada e, em muitos casos, egocêntrica, sobre a realidade, com um determinado prestígio entre outros domínios, com conflitos internos e interterritoriais também, com uma determinada capacidade de desenvolvimento num determinado momento histórico etc.; d) Um campo de conhecimento é uma acumulação de tradição, tem uma história [...]; e) Um âmbito de saber está composto por uma determinada estrutura conceitual, formado por ideias básicas, hipóteses, conceitos, princípios, generalizações aceitas como válidas no momento de seu desenvolvimento [...]; f) Uma área de saber é uma forma de indagar, tem uma estrutura sintática. O campo é composto de uma série de conceitos básicos ligados por relações entre eles [...]; g) Os campos de saber supõem linguagens e sistemas 31 de símbolos especializados, que criam mundos de significações próprias, em diferentes graus segundo as disciplinas de que tratem, com facilitação consequente da comunicação precisa que esses códigos permitem e com a dificuldade de aproximar o conhecimento aos que não possuem [...]; h) As diferentes esferas do saber constituem uma herança ou acumulação de informação e contribuições diversas materializadas em tipos diversos de suportes, que representam as fontes essenciais para a continuidade do próprio campo [...]; i) Uma disciplina é, inclusive, um ambiente afetivo que não se esgota na experiência intelectual. Expressa valores, formas de conceber os problemas humanos e sociais, um tipo de beleza; tem ou poderia despertar certo dinamismo emocional, possui também uma dimensão estética. Esse componente é inerente à criação do saber e deveria ser considerado nas experiências para seu ensino, cultivando atitudes etc. O desenvolvimento do saber em geral e o de cada campo especializado impõe mudanças profundas nos modelos de conhecimento, ou paradigmas científicos e de criação, mudanças no conceito de conhecimento, no entendimento do que é saber e sua utilidade. Avaliar a relatividade da verdade do conhecimento, ou seja, ter a perspectiva de que o conhecimento modifica constantemente e que não há conhecimento eterno que não possa ser reinventado, torna necessário fazer com que o currículo seja continuamente revisado quanto à seleção de conhecimentos que o compõem. Essa revisão, essa mudança, obriga o professor a modificar suas aulas para que o conhecimento tenha sentido, valor, significado para os alunos. O currículo pode se constituir em formatos diferentes, sendo organizado, por exemplo, em cadeiras, disciplinas, matérias, áreas de conhecimento, módulos. Bernstein (1980) defende a ideia de currículo coleção ou de componentes justapostos, mosaico e currículo integrado, em que os conteúdos são relacionados. O autor ainda observa que, no formato coleção, os professores tem menos influência e poder sobre os conteúdos. Já no integrado, o professor tem mais possibilidades de interferência e mudança. Os currículos por áreas do saber ou de conhecimento tendem a possibilitar o ensino mais “interdisciplinar”, mas demanda maior participação dos professores e da escola. Uma outra forma de conhecimento nesse formato são os projetos curriculares, integração de componentes em um projeto mais amplo. A especialização de professores e o currículo por cadeira, disciplinas ou mosaico tem caracterizado os currículos escolares. Esse currículo, uma vez implantado, acaba gerando uma série de condições e contextos que o enraíza: seu código, sua expressão em práticas escolares. Por isso a mudança é lenta e muito difícil de ocorrer, pois demandam alterações em projetos pedagógicos, estilos 32 pedagógicos dos professores, na administração escolar. E exige uma política de integração e comunicação entre os participantes do processo educativo. Sacristán10 apresenta a ordenação do currículo por ciclos. Para o autor, um ciclo consiste em “uma unidade que engloba vários cursos, que permite uma organização do conteúdo com um tempo mais dilatado para sua superação, avaliação”. Para Sacristán, o ciclo oportuniza maior flexibilidade ao professor de se adequar às necessidades de aprendizagem dos alunos, à diversidade e a mudança. O currículo enquanto código, comunica, expressa através de sua linguagem, determinados princípios sobre a educação, o desenvolvimento humano, a aprendizagem, o ensino e a metodologia. Portanto, a seleção de conteúdos é realizada tendo em mente as chances de aprendizagem dos alunos, os interesses, os desejos de saber desses alunos, seus estilos de aprendizagem. O currículo também expressa a melhor forma de organizar esses conteúdo, dando-lhes sentido, criando contextos. Ele define, ainda, os meios pelos quais o ensino terá sucesso, respeitando os princípios pedagógicos, psicológicos, epistemológicos. O processo de ensino e aprendizagem deve ter um lócus, a definição de onde vai ocorrer, bem como um formato de monitoramento. Nesse sentido, concordamos com Sacristán11 quando afirma que “currículo é um projeto cultural elaborado sob chaves pedagógicas”. As chaves pedagógicas são os caminhos da renovação do ensino e da aprendizagem. A teoria curricular tem enfatizado a necessidade de o professor ter maior capacidade de definição quanto à concepção do currículo e possa, a partir dos conhecimentos e competências selecionados, moldar sua prática, estabelecendo a ponte entre teoria e prática, transformando-se em agente do processo de construção do saber, cultural e historicamente situado. PONTO FINAL O currículo reflete o conhecimento da humanidade em um determinado contexto e tempo. Portanto, ele é uma soma de contribuições, descobertas e estudos. Neste capítulo abordamos diferentes aspectos relativos à seleção dos conteúdos que compõem o currículo. Constatamos que é comum a inclusão de novos temas em vista de questões sociais ou de determinantes regionais e culturais, mas isso muitas vezes implica em uma menor atenção da escola aos temas que compõem o núcleo comum do currículo. Por outro lado, não deve ser descartada a diversidade cultural. Há diferentes culturas, e o currículo escolar deveria retratar ou representar o local, o regional e o universal ao mesmo tempo. Observamos também a complexidade da construção social do currículo e de que forma ele contribui para interpretar as atividades de um grupo social. Tudo isso evidencia a importância da participação dos 33 professores no processo de seleção dos conteúdos, assim como para facilitarem a aprendizagem destes conteúdos. ATIVIDADE 1) Elabore um mapa conceitual com as ideias fundamentais do capítulo. 2) Lembre-se de uma escola que você conheceu ou estudou e procure descrever como era e funcionavao currículo dessa escola. 5 O CURRÍCULO ESCOLAR, APRENDIZAGEM E ESCOLA O currículo é uma construção cultural, histórica, social que a escola torna real através de suas práticas diárias. Essas práticas modelam princípios a partir das dimensões da experiência, dos ambientes de aprendizagem criados e dos processos educativos proporcionados. As práticas estabelecem interações com os participantes e com o ambiente, gerando o contexto de aprendizagem e a consolidação do currículo enquanto prática. O presente estudo tem demonstrado que o currículo é o que ocorre nas salas de aulas, nas experiências que os alunos adquirem na escola, constituindo o que se conhece como a prática pedagógica. A complexidade do ato educativo demanda transformações junto à comunidade acadêmica, aos processos burocráticos e administrativos, bem como professores, conteúdos e ao mercado de trabalho. Todas as relações entre esses elementos geram novas ações estruturantes do sistema. O currículo exerce um papel fundamental enquanto um elemento determinante e determinado pelas relações que ocorrem nas salas de aula, bem como nas experiências vividas pelos alunos dentro do espaço escolar. As políticas ou princípios educacionais estabelecidos pela instituição educacional, assim como o fazer do professor e o fazer do aluno, constituem o currículo. Segundo Sacristán1, esses elementos sofrem a regulação específica da legislação ou dos órgãos fiscalizadores, do pessoal administrativo ou de gestão, dos meios didáticos, do espaço físico, do horário, do tempo, da distribuição das turmas, do número de alunos por sala de aula, do controle, da disciplina ou indisciplina, que são fatores interferentes e determinantes mais próximos ou imediatos que o processo educativo sofre. Essas forças determinantes do currículo e de seus constituintes podem ser motivadoras de uma visão mais ecológica da construção do saber dentro do contexto formal escolar. Os atos de educação são dependentes de ações internas dos componentes últimos do processo: professor e aluno. Mas todos os elementos do sistema também dependem de constituintes estruturantes externos, que ocorrem antes, durante e depois dos atos, podendo ainda ser simultâneos ao processo. Por isso a complexidade de se estabelecer um currículo para uma comunidade e generalizá-lo. Os teóricos do currículo, tais como Lundgren, citado por Sacristán2, referem-se aos sistemas condicionadores dos processos educativos que são: o currículo, o sistema administrativo, as regulações legais. Esses três sistemas, para o autor, são determinados pela estrutura econômica, social, cultural e política de onde se enquadram. Os três condicionantes estabelecem as metas, as regras para que os 35 processos educacionais ocorram. Sacristán3, buscando interpretar essa abordagem de Lundgren, elaborou a Figura 5.1, apresentada a seguir. Figura 5.1 - Sistemas condicionadores dos processos educativos Fonte: Sacristán, 1998, p. 91. Pode-se concluir que as aprendizagens proporcionadas pela constituição do currículo são determinadas pelas relações apresentadas na Figura 5.1, não oferecendo liberdade para professores e alunos construírem seus currículos livremente. Ao mesmo tempo, esse mesmo sistema condicionador também estabelece certa liberdade para trabalhar e criar dentro dessas condições. Portanto, o contexto em que ocorrem as aprendizagens é um fator determinante para as atividades curriculares. O currículo, como projeto cultural, ocorre em um ambiente ou contexto que é modelador ou “mediatizador” das atividades simbólicas de aprendizagem. Esse mesmo contexto, somado às atividades mediadoras, deve representar um fator de motivação para que o currículo possa ser colocado em prática: ação motivada. O contexto, o ambiente escolar resultantes das relações e interações entre os diferentes sistemas que se tornam presentes no currículo, geram novas relações de ESTRUTURA CURRI SISTEMA ADMINISTR SISTE MA MET AS CAMPOS DE REGRA S PROCESSO EDUCATIVOPROCESSO EDUCATIVOPROCESSO EDUCATIVOPROCESSO EDUCATIVO Dirigem Dirigem Dirigem Dirigem RestringemRestringemRestringemRestringem Regulam Regulam Regulam Regulam 36 aprendizagens que não esperávamos: o currículo oculto. Ele é fonte de inumeráveis aprendizagens para o aluno, originadas pelas vivências, experiências e pelas inter- relações entre teoria e prática. Portanto, a criação e o desenvolvimento de ambientes de aprendizagem, ricos e motivadores, leva à construção de uma rede de interações fundamentais para que nossos sensores cognitivos e afetivos possam iniciar o processo de internalização e construção das aprendizagens. Esses ambientes são os mediadores do processo de aprendizagem, fundamental para que ela ocorra. Os ambientes mediatizadores são os elementos que fornecem uma leitura ecológica da aprendizagem, que leva em consideração as condições psicológicas, sociais e culturais que afetam a vida subjetiva e escolar, bem como os elementos externos do ambiente constituinte da educação já citados anteriormente. Apple4, no que se refere ao ambiente educacional, procura distinguir seis elementos básicos: - a estrutura física da escola, ou a arquitetura; - os materiais e tecnologias; - os sistemas simbólicos e de informação; - as habilidades dos professores; - os estudantes e outros componentes auxiliares; - os gestores e a relação de poder. Autores como Schubert5, ampliando os aspectos anteriores, citam as dimensões do ambiente escolar: - física; - material; - interpessoal; - institucional; - psicossocial. Independente das categorias elencadas pela teoria curricular – como currículo, escola, estrutura administrativa, professores, conteúdos –, pode-se compreender que os ambientes e os formatos de aprendizagem dependem da forma como esses componentes atuam no planejamento e na organização das etapas do ato educativo. As ações e os fluxos resultantes do contexto levam à aprendizagem e ao monitoramento desse processo. O monitoramento ou a avaliação é uma das etapas fundamentais do processo educativo, pois as aprendizagens formais são atividades avaliadas, controladas. Esses processos educativos nos possibilitam intuir os currículos escolares modificados, assim como implicam em uma mudança no conceito e conteúdo da 37 competência docente, sua formação cultural e pedagógica. Mudanças no currículo demandam uma dinâmica social nova, um novo professor. Essas competências requerem também uma formação aberta do professor. Um currículo diferenciado obriga o professor a se desenvolver e criar novas metodologias e saberes, modificando a relação professor-aluno que atualmente é muito diferente. Por outro lado, o professor, na sociedade em que vivemos, heterogênea e pluralista, tem dificuldades de se modificar, pois as condições ambientais e contextuais são determinantes. Nessas condições, ele sente uma contradição entre manter sua prática dentro do modelo curricular dominante ou tentar a mudança para um currículo mais rico e criativo. Os professores, orientando-se segundo o modelo curricular vigente, favorecem o crescimento acadêmico dos alunos para que possam atingir os estudos superiores, seguindo a lógica das disciplinas e do modelo por coleção. A transformação das relações pedagógicas, resultantes das combinações dos elementos acima expostos, incluindo o ambiente educativo de forma ampla, faz com que as relações de poder sejam, de certa forma, ampliadas entre: professores, alunos, gestores, currículo, administração etc. O currículo é um artefato que se constitui no processo de modelação, implantação e operacionalização da cultura e determinadas práticas pedagógicas.
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