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Os espíritos do Espiritismo Adilson Schultz1 Espiritismo é chamado a desempenhar imenso papel na Terra. Ele reformará a legislação ainda tão freqüentemente contrária às leis divinas; retificará os erros da história; restaurará a religião do Cristo.2 Allan Kardec “Nascer, morrer, renascer novamente, progredir sem cessar, tal é a lei”. Inscrição no túmulo de Alan Kardec O início do espiritismo moderno3: O espiritismo moderno tem dois episódios que configuram seu mito fundante: o primeiro é o dia 31 de março de 1848: neste dia as irmãs Margaret, Leah e Catharine Fox – eram Metodistas! – ouviram misteriosas batidas na parede de sua casa, na cidade de Nova York, EUA. Tendo o fenômeno se repetido algumas vezes, logo as meninas desenvolveram um código de comunicação, um alfabeto de batidas, vindo elas a descobrir que o autor das batidas era o espírito de um homem morto que habitara a casa tempos atrás. Logo a notícia se espalhou e um grupo de pessoas interessadas no fenômeno passou a comunicar-se assiduamente com este e outros espíritos através de batidas e mesas girantes. As pessoas mais sensitivas atuavam como médiuns, interlocutoras entre o mundo material e o mundo espiritual. Rapidamente a prática se espalhou pelos EUA. Em 1852 já acontecia o 1o Congresso Espiritualista, em Cleveland, EUA. O segundo episódio do mito fundante do espiritismo moderno está na França, o fenômeno Allan Kardec: tendo ouvido falar (?) do fenômeno das irmãs Fox e do sucesso do espiritismo nos EUA, Léon Hippolyte Denizard Rivail (1804-1869), médico e pedagogo dedicado aos estudos de magnetismo animal, do hipnotismo e do sonambulismo, começa uma investigação científica tentando provar a veracidade do fenômeno, que de resto também se dava na França. Seus estudos desenvolveriam as bases da futura doutrina ou ciência espírita: a possibilidade de comunicação entre o mundo material e o mundo das 1 Adilson Schultz é Teólogo e Sociólogo, e Doutor em Teologia. Contato: adilson.schultz@gmail.com 2 Alan KARDEC, Obras póstumas, p. 299. 3 Para as informações históricas e doutrinais do espiritismo cf. Ingo WULFHORST, Discernindo os espíritos, p. 31- 43, e, sobretudo, Maria I. V. de Castro CAVALCANTI, O mundo invisível. entidades espirituais desencarnadas - ou o mundo dos espíritos - e a ciência da reencarnação, dando as bases para uma cosmovisão que aliava a concepção cármica negativista do mundo de inspiração hindu, os preceitos morais cristãos europeus e certo racionalismo científico típico do século XIX.4 Por orientação de um espírito, o médico adotou um nome que teve em uma de suas outras vidas, Allan Kardec. Em 18 de abril de 1857 - considerada a data oficial da fundação do espiritismo moderno – Kardec publica O livro dos Espíritos, a base filosófica do movimento. Publica também revistas, artigos e vários escritos sobre o mundo espiritual. Rapidamente o Espiritismo espalhou-se pela Europa e pelo mundo. Em 1864 já havia sociedades espíritas em vários países europeus.5 Kardec nunca disse ser o inventor do espiritismo, mas o observador; um decodificador. Não teria inventado algo novo, mas apenas sistematizado as revelações que recebeu. O espiritismo insiste em afirmar que fragmentos da doutrina espírita já estavam presentes em concepções filosóficas e religiosas da Índia, do Egito e da Grécia, tendo se completado em Jesus e vindo a revelar-se completamente através das novas decodificações feitas por Allan Kardec - Kardec faleceu subitamente em 31 de março de 1869 – curiosamente a mesma data do fenômeno das batidas das irmãs Fox. No Brasil o espiritismo apareceu primeiro no Ceará. A data oficial, no entanto, remonta a Salvador, BA, onde a 17 de setembro de 1865 ocorreu a 1a sessão espírita no Brasil. Logo seriam várias sociedades espíritas pelo país afora. Para uni-las, surge, já em 1884, a FEB, Federação Espírita Brasileira. Tal como na Europa, as sociedades espíritas eram, pelo menos no início, organizações de estudos científicos - ninguém deixava de ser católico para ser espírita. Espiritismo não era entendido como religião. Esta realidade mudaria rapidamente, no entanto. O contexto amplamente religioso, a força do catolicismo e a crença geral em espíritos difundida nas religiões de matriz africana logo transformariam a pretensa ciência numa das religiões mais importantes do país. O plano material e o plano espiritual: O mundo é composto de dois planos: o espiritual, invisível ou desencanado, e o material, visível ou encarnado. O planeta Terra faz 4 Reginaldo PRANDI, Referências sociais das religiões afro-brasileiras, p. 98. 5 O ambiente acadêmico europeu do século XIX ajuda a compreender o sucesso da nova doutrina: estavam em alta as idéias iluministas-positivistas de progresso total, confiança no futuro da sociedade e fé na ciência. O conflito ciência versus religião estava pendendo cada vez mais para a primeira. O catolicismo ia perdendo sua hegemonia na configuração do imaginário social europeu. O espiritismo entra justamente nessas brechas da sociedade. Nesse contexto deve ser entendida a insistência de Kardec em afirmar que o espiritismo tem bases científicas. Tratava-se de uma ciência, e não de uma religião: os fatos vieram primeiro, depois as teorias e a decodificação. parte do mundo visível, onde vivem os espíritos encarnados – existem outros mundos semelhantes à Terra, onde também acontecem encarnações. No mundo invisível vivem as entidades espirituais desencarnadas. Os dois mundos estão em permanente relação. O mundo verdadeiro e ideal é o plano espiritual. O mundo material foi criado por Deus para servir como “escola” para a purificação dos espíritos ou almas. A existência terrena é passageira, mas os espíritos são eternos. Os espíritos encarnam no mundo material para purificar-se e ascender na escala hierárquica da perfeição espiritual, seja fazendo o bem e assim acumulando benefícios para futuras encarnações ou pagando dívidas de encarnações passadas. A existência no plano material é regida pelo plano espiritual. Tudo o que acontece neste plano tem uma razão de ser. Bons acontecimentos na vida são compensações por uma boa vida do espírito em encarnações passadas. Maus acontecimentos são punição. Nada é casual; tudo é causal. As provações e punições são didáticas, e pretendem despertar a pessoa para a oportunidade de uma opção moral da conduta. O mundo dos espíritos: Deus criou um mundo de espíritos, com diferentes graus de pureza. Sua missão e sua essência é ir evoluindo até tornar-se um espírito de luz, um estágio onde não precisa mais encarnar em um corpo. Nesse processo sua principal missão é contribuir para o progresso geral da criação de Deus e, sobretudo, garantir sua salvação. Alguns espíritos são submetidos por Deus à expiação ou a missões degradantes. Os espíritos estão distribuídos pelo cosmos numa hierarquia que respeita justamente seu grau de pureza e imaterialidade. De acordo com seu grau de materialidade ou espiritualidade, os espíritos são inferiores/maus, bons, superiores ou iluminados. Por isso as pessoas precisam ter uma vida reta e cheia de luz, para espiritualizar-se. Há muito mais espíritos na terra do que os espíritos encarnados. São denominados espíritos errantes, que geralmente são imperfeitos e desordeiros e estão aguardando encarnação, mas também podem ser bons ou puros, como espíritos de pessoas recém falecidas. Esses espíritos podem se manifestar constantemente e estão em todos os lugares ao nosso redor. São eles que visitam as sessões espíritas de iluminação, ou habitam clandestinamente ou temporariamente um corpo jáhabitado, causando malefícios. Podem ser espírito de antepassados familiares ou longínquos, inclusive tendo vivido em outros planos. Ser humano é corpo, espírito e perispírito: O ser humano é entendido como uma unidade de duas faces: o corpo - visível, material, e a alma - invisível, espiritual. Depois da morte a alma sai do corpo e volta para o mundo espiritual de onde tinha vindo. O corpo é “vestimenta”, invólucro temporário da verdadeira identidade da pessoa, o espírito. A alma necessita do corpo para se depurar. Conforme o justo e misericordioso desígnio de Deus, todas as almas almejam a perfeição. Essa é a razão das constantes reencarnações. Além do corpo material e da alma espiritual, todas as pessoas têm um terceiro elemento na sua constituição, o perispírito6, uma porção de natureza semimaterial, uma espécie de laço ou aura espiritual que une o espírito ao corpo. Está ligado ao espírito, mas recolhe em si todas as significações do corpo. É a parte do espírito que registra a memória dos corpos que habitou. No perispírito são acumulados todos os ganhos e perdas na escala evolutiva. Esse perispírito permanece apesar da morte do corpo e da reencarnação do espírito, ou seja, ele carrega os elementos positivos e negativos da encarnação anterior. É a personalidade do espírito. É o perispírito que permite a união do espírito ao corpo no processo de encarnação. É no perispírito também que se manifestam no corpo dos médiuns os espíritos de luz no momento da incorporação. Através do perispírito é que o espírito poderá atuar sobre o mundo material e dar-se a conhecer aos encarnados. Alguns espíritos desencarnados podem manifestar-se na Terra aos olhos humanos graças às materializações temporárias de seu perispírito, as auras espirituais. O processo de encarnação: A ligação do espírito com o corpo no processo de encarnação acontece através da união de plexos e chacras, centros de força do corpo e do espírito, pontos de junção que regulam todo o corpo, entroncamentos nervosos ou sanguíneos do corpo. Cada um dos sete plexos corresponde a sete chacras do perispírito.7 A encarnação pressupõe a acomodação perfeita e extremamente delicada do corpo somático e do espírito através do perispírito. O perispírito está fora do corpo, ao seu redor. Ao redor dos dois está a aura protetora de luz. Quando os plexos do corpo somático e os chacras do perispírito se unem adequadamente, o indivíduo se diz em perfeito equilíbrio em os seus elementos. Mas isto nem sempre é o caso. Freqüentemente o encaixe não é perfeito. Uma má adaptação entre os perispírito e o corpo somático, de acordo com os espíritas, se manifesta como uma doença.8 Mediunidade: Algumas pessoas têm a capacidade mediúnica de entrar em contato com espíritos de antepassados. O objetivo desses contatos é transmitir às pessoas conhecimentos que lhes permitam aperfeiçoar-se moralmente. Toda pessoa tem mediunidade, desenvolvida em maior ou menor escala. O médium é qualquer pessoa capaz 6 Cf. Sidney M. GREENFIELD, Cirurgias do Além, p. 34-39. 7 Os centros de força do perispírito correspondem aos seguintes plexos do corpo físico: coronário - cérebro, glândula pineal (sistema nervoso); frontal - glândula hipófise (intelecto); laríngeo - glândulas tireóide (respiração e fala); cardíaco coração (sentimentos e emoção); esplênico – baço (filtra energias que circulam no perispírito); gástrico - plexo solar (estômago alimentação, bons e maus fluidos); genésico - plexo sexual (reprodução, sexualidade e criatividade). Cf. Maria CAVALCANTI, O mundo invisível, p. 84-85. 8 Sidney M. GREENFIELD, Cirurgias do Além, p. 34. de desdobrar-se e de emitir a energia de seu perispírito para colocar-se em comunicação com os espíritos. Os tipos de comunicação mais usados são a psicografia - o espírito escreve pela mão do médium -, a mediunidade falante - o espírito incorpora no médium e transmite sua mensagem em viva voz - e a mediunidade curadora - a pessoa recebe do espírito a faculdade de curar ou aliviar o doente, seja pelo simples toque, por passes ou ainda por meio de intervenções cirúrgicas. Salvação, carma e lei de causa e efeito: A salvação acontece de acordo com a evolução do espírito na escala hierárquica rumo à perfeição, num processo de constantes reencarnações9. Não há interferência direta de Deus nesse processo. Desta concepção evolutiva emerge a noção de carma.10 A encarnação registra no perispírito o carma do espírito, muitas vezes para ser pago ou expiado na próxima encarnação, de forma a evoluir na escala da perfeição. Por isso se fala em lei de causa e efeito: de acordo com a sua encarnação passada, o espírito tem mais ou menos matéria registrada em seu perispírito. Se a pessoa não pratica a caridade e não exercita seu lado espiritual, na próxima encarnação ela terá que pagar pelas falhas desta encarnação. Allan Kardec afirma: “As vicissitudes da vida são de duas espécies, ou, se quisermos, têm duas origens bem diversas, que importa distinguir: umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida”11. A caridade é tudo: Para purificar seu espírito, a pessoa precisa praticar o auto- conhecimento espiritual em sessões de doutrinamento e, sobretudo, praticar a caridade. A caridade é o 1o mandamento da doutrina espírita kardecista. Exercer a caridade para com as outras pessoas angaria pontos positivos para uma futura encarnação. “Fora da caridade não há salvação”, disse Allan Kardec, numa clara releitura da máxima católica fora da igreja não há salvação. Rituais e culto: Disto resulta também que, oficialmente, não há culto, templo, oração ou qualquer outro elemento religioso no espiritismo. O que o espiritismo faz são 9 Para um estudo sobre as diferentes compreensões de reencarnação no Brasil, na perspectiva do diálogo-inter- religioso, cf. Etienne Alfred HIGUET, A fé na reencarnação nos movimentos religiosos populares do Brasil. 10 O espiritismo kardecista tem influências de religiões orientais, especialmente do hinduísmo, seja no caráter individualista da experiência religiosa, seja na idéia de carma e evolução espiritual. No entanto o espiritismo kardecista desconsidera a transmigração das almas, crença hinduísta que diz que o espírito pode encarnar nos planos animal, humano e vegetal. Para Kardec, as reencarnações se dão apenas no plano humano. Segundo o hinduísmo, antes de atingir a iluminação a alma encarna 108 vezes no ser humano, 108 nos vegetais e minerais, e 108 nos animais. Isso se repete até 3.000 ciclos de evolução, até o nirvana, o nada. Para informações sobre hinduísmo, carma, reencarnação e nirvana nas religiões indianas, cf. Hugo SCHLESSINGER, Dicionário enciclopédico das religiões, p. 450 (carma), 1268-1269 (hinduísmo), 2176 (reencarnação). Detalhe curioso à p. 1269: “A vaca representa o último estágio da peregrinação da alma no mundo, antes de atingir a divindade. Ela é considerada sagrada porque sempre tem acompanhado o povo nas suas peregrinações, alimentando-o com leite”. 11 Allan KARDEC, O evangelho segundo o espiritismo, p. 76. reuniões de estudos com os espíritos, sessões de comunicação com espíritos de luz e passes magnéticos. Sequer há um Deus para adorar. O espiritismo codificado por Kardec reconhece Deus como uma grande energia cósmica; Jesus Cristo é o maior exemplo de pessoa dedicada à purificação espiritual, e deve ser imitado. Os centros espíritas pouco se assemelham a igrejas; raramente têm fotos de Jesus ou Kardec ou inscrições e símbolos nas paredes. O centro das reuniões é sempre uma mesa – para estudos entre os espíritas ou destes com um espírito que se manifeste. Curas espirituais: Um fenômenomarcante do espiritismo brasileiro é o Dr Fritz e suas curas espirituais. Em 1950 o médium José Pedro de Freitas, o Zé Arigó, passa a incorporar o espírito do Dr. Adolf Fritz, um médico alemão morto na 2a Guerra Mundial. Milhares de doentes são curados por ele. As operações eram feitas com uma faca de cozinha. Zé Arigó morreu em 1971, num acidente automobilístico. Depois disso apareceram uma série de médiuns que incorporam o Dr. Fritz e fazem cirurgias pelo país.12 Religião, filosofia de vida ou ciência? O espiritismo brasileiro é muitas vezes considerado um desvio da matriz francesa. Ele teria traído Kardec por causa de sua grande ênfase religiosa. Originalmente o espiritismo seria uma ciência; aqui, teria sido uma modernização dos cultos afro-brasileiros. Ou ela é considerada uma terapia ou magia de pobres, ou então uma filosofia de vida de ricos. De um lado o misticismo; de outro, a racionalidade. A culpa do desvio seria do ethos religioso brasileiro. A rápida ascensão do espiritismo à condição de religião teria se dado no lastro dos cultos de comunicação com os ancestrais e possessão espiritual observados entre os povos indígenas e comunidades candomblecistas.13 Kardec teria enfatizado o lado científico do espiritismo porque queria legitimar cientificamente suas descobertas. Chico Xavier, o codificador do espiritismo brasileiro, enfatizou o lado doutrinal, pois o contexto brasileiro reconhecia amplamente a religião como dado essencial da cultura; não era necessária a legitimação científica. Os 12 Dor e doença no espiritismo: O espiritismo explica a dor e a doença espiritualmente, de acordo com um dos motivos seguintes: a) espíritos desencarnados causam perturbações (encostos) no organismo e no psiquismo dos encarnados, seja por motivo de vingança, maldade ou mesmo ignorância; b) trata-se de provação cármica para expiação de faltas cometidas em encarnações anteriores; c) baixo desenvolvimento mediúnico e espiritual do indivíduo; d) a acoplagem de corpo espiritual e material no perispírito não foi bem sucedida, o que gera desequilíbrio no indivíduo. Por isso, antes de realizar a intervenção cirúrgica espiritual o médium curador pergunta para o espírito do indivíduo doente qual a origem da doença. Dependendo do caso, ele opta pelo afastamento do encosto (desencosto), através de cirurgia ou passes, pelo desenvolvimento da mediunidade do paciente ou pela aceitação religiosa da natureza cármica dos sofrimentos como meio de purificação espiritual. Algumas doenças ou dores sequer devem ser curadas, mas suportadas, visto serem parte do carma de cada indivíduo. A cura atrapalharia a evolução espiritual. Cf. Sidney M. GREENFIELD, Cirurgias do Além, p. 34-35. 13 Cf. Sandra Jacqueline STOLL, Espiritismo à brasileira, p. 57. intelectuais do início do século e alguns poucos racionalistas contemporâneos apropriaram- se dele como uma ciência. De qualquer forma, no Brasil o espiritismo tornou-se religião. Experiências como a fluidificação da águas distribuída no final das reuniões aos doentes e adeptos, os passes de luz, as comunicações com espíritos e palestras por eles proferidas, as curas espirituais, as conferências e os retiros de estudo onde a oração está amplamente presente, conferem ao espiritismo as características religiosas reconhecidas pela população. O espiritismo veicula elementos amplamente aceitos pela população brasileira enquanto religiosos. O passe de luz, por exemplo, dá ao espiritismo uma instrumentalização de eficácia curativa. O médium que recebe um espírito de luz e passa levemente as mãos sobre a cabeça do fiel, transmitindo-lhe bons fluídos, curando, certamente não está agindo cientificamente; está agindo como sacerdote. O teor religioso do espiritismo brasileiro fica evidente ao considerar que seu grande interlocutor é justamente o catolicismo. Certamente ele se assenta sobre as práticas mediúnicas e os ritos de possessão da matriz indígena e africana, mas é do catolicismo que ele recebe seus maiores impulsos teológicos: a caridade, já estabelecida na Europa por Kardec e amplamente difundida no espiritismo-religião brasileiro e, de maneira mais forte, a noção de santidade, amplamente difundida na figura de Chico Xavier, o maior médium e difusor do espiritismo no mundo.14 Chico Xavier: A grande figura do espiritismo brasileiro é Chico Xavier. Este médium publicou quase 400 livros e milhares de breves mensagens, todos psicografados. Só o livro Nosso Lar teve mais de 40 edições – é um dado de 1992 -, alcançando uma tiragem de 880 mil exemplares. Para Xavier o espiritismo é religião, que tem como cerne a caridade e a promoção da fraternidade através do movimento assistencial, e a santidade. Chico Xavier é reconhecido como uma espécie de beato, figura amplamente difundida no catolicismo popular. Ele é um exemplo de santidade: sua vida pessoal é uma vida de santo; viveu afastado do mundo - virgindade, celibato, renúncia, desapego a bens materiais; como bom médium-beato, dedicou-se com sofrimento resignado para viver para os outros; debilitou-se fisicamente; seus escritos são de consolação e de virtude; nele se cumpriu a 14 Cf. Sandra Jacqueline STOLL, Espiritismo à brasileira, p. 61: “O Espiritismo é uma religião importada, que se difunde no país confrontando-se com uma cultura religiosa já consolidada, hegemônica e, portanto, conformadora do ethos nacional. Sua difusão (...) foi em parte favorecida pelo fato das práticas mediúnicas já estarem socialmente disseminadas, de longa data, no âmbito das religiões de tradição afro. No entanto, em contraposição a estas, o Espiritismo define a sua identidade, elegendo como sinais diacríticos elementos do universo católico. Deste, porém, não endossa apenas (...) certas práticas rituais. O Espiritismo brasileiro assume um ‘matiz perceptivelmente católico’ na medida em que incorpora à sua prática um dos valores centrais da cultura religiosa ocidental: a noção cristã de santidade”. mensagem de levar a vida na terra como uma missão cármica que todos precisam cumprir. Castidade, pobreza e obediência: em Chico Xavier está explícita a estrutura ética básica do sacerdote ou beato católico. Renúncia, sofrimento, afastamento do mundo: milhões de pessoas no Brasil espelharam-se no exemplo de Chico Xavier, dando uma configuração monástica de santidade católica ao espiritismo. Esse modo católico de ser espírita, concretizado por Chico Xavier através do exemplo de vida, parece ser responsável, em larga medida, pela transformação dessa que era que (sic!) uma doutrina estrangeira em religião integrante do ethos nacional. (...) No Brasil o espiritismo se consolidou, ao contrário do ocorrido na França, porque não tentou construir uma espiritualidade radicalmente diferente daquela corrente na sociedade brasileira. Apropriou-se dela.15 Luiz Gaspareto: O contexto religioso brasileiro produz também movimentos de renovação do espiritismo, que procura afastá-lo do catolicismo, sobretudo de seus aspectos morais e da santidade, aproximando-o do espiritualismo, da new age ou neo-esoterismo e incorporando ao espiritismo todo tipo de terapia alternativa. O ícone dessa nova ênfase espírita é Luiz Gaspareto, médium famoso por suas pinturas psicografadas. Seus escritos reinterpretam a evolução, a reencarnação, o carma e o livre arbítrio, distanciando-se do cunho católico sacrificial e moralista de Xavier. Gaspareto não rompe com as bases do Espiritismo, mas com a doutrina católica que o instrumentalizou no Brasil. A maior novidade talvez seja o aproveitamento da teologia da prosperidade: o consumo é incentivado, a clássica caridade é mitigada pelos discursos de auto-ajudae de auto-sugestão, reivindicando-se uma nova estrutura ética, contraposta à ética católica da virtude e do ascetismo. Para marcar o confronto e a diferenciação entre o espiritismo de Chico Xavier e o de Gaspareto podem ser feridos os seguintes binômios ideais 16 : sofrimento versus felicidade, sacrifício versus prazer, renúncia versus auto-realização, pobreza e desapego versus prosperidade, caridade versus auto-ajuda, literatura de “consolação” versus literatura de auto- ajuda. Segundo Gaspareto, o procedimento é para o bem do espiritismo, que não tem conseguido alcançar aquelas pessoas que o consideram muito científico, perdendo-as para a Umbanda, e também não aquelas que o consideram muito moral, perdendo-as para os 15 Sandra Jacqueline STOLL, Espiritismo à brasileira, p. 196. O espiritismo é uma resposta local a um sistema que se pretende universal. Certamente ocorrem deslocamentos culturais criativos, mas a base está mantida. O que ocorre no Brasil é “o privilegiamento de determinadas práticas, bem como o deslocamento da ênfase de certos preceitos doutrinários (...) Trata-se, portanto, de uma reinterpretação, de uma particularização cultural e histórica de idéias e práticas concebidas com pretensão de universalidade. Nesse sentido, o Espiritismo ‘à brasileira’ seria uma versão original e não um produto ‘menor’, ‘adulterado’ ou desviante”. Sandra Jacqueline STOLL, Espiritismo à brasileira, p. 58. “A produção da diferença é própria da lógica da universalização das religiões”. (p. 61) Esse processo vale, em certa medida, para todas as religiões brasileiras aqui descritas, pois, em certa medida, são todas importadas. 16 Cf. Sandra Jacqueline STOLL, Espiritismo à brasileira, p. 274. cultos neopentecostais. No entanto, ao desvincular o espiritismo do catolicismo e, por sua vez, vinculá-lo ao neo-esoterismo e à auto-ajuda, Gaspareto abandona completamente o apelo moral e ético do espiritismo; afinal, caridade e amor ao próximo não são ingredientes essenciais no discurso de auto-ajuda e prosperidade.17 17 Para uma rápida e precisa análise dos pontos de diferença entre espiritismo e cristianismo – sobretudo ressurreição cristã versus reencarnação espírita, liberdade cristã e possibilidade do perdão versus a ‘prisão’ espírita a atos maus ou bons e ao carma - cf. Oneide BOBSIN, Histórias de vida e fé, p. 61-63. Para uma breve avaliação cristã do espiritismo e das religiões mediúnicas a partir do critério da encarnação e conseqüente valorização da vida e do corpo versus a doutrina da reencarnação espírita e conseqüente desvalorização da vida e do corpo, cf. Oneide BOBSIN, Transformações no universo religioso, p. 57-59. Para uma apresentação ampla do espiritismo e um questionamento cristão aprofundado, cf. Ingo WULFHORST, Espiritismo e fé cristã: onde está a diferença? Para uma análise ampla e independente do espiritismo e outras religiões espiritualistas no Brasil e na América Latina, com descrição de pesquisas de campo, análises sociológicas, psicológicas, psiquiátricas e parapsicológica dos fenômenos espíritas, e reflexões bíblico-teológico-pastorais sobre espíritos e espiritualismo, veja a excelente publicação da Federação Luterana Mundial, cf. Ingo WULFHORST (org.) Espiritualismo/espiritismo. Estratégias recomendadas pela CNBB para o combate da umbanda e do espiritismo. Rio de Janeiro, 1953.∗ a) Aproveitar as devoções populares para instruir o povo. Proibição expressa, nas festas dos santos explorados pelo Espiritismo, de tudo o que leva à superstição. b) Incremento à devoção do Divino Espírito Santo, ao Senhor Bom Jesus, a Nossa Senhora, aos anjos e às almas do Purgatório, como antídoto ao florescimento das superstições espíritas. c) Critério e moderação na venda e bênção das estátuas e quadros de santos, máxime de São Jorge, São Cosme e São Damião. Atuação junto às fábricas desses produtos para que se submetam às leis elementares da arte e do bom gosto e às prescrições da Igreja. d) Farta utilização das bênçãos e demais sacramentos, em contraposição aos passes espíritas. e) Instituição da bênção dos enfermos. ∗ REB – Revista Eclesiástica Brasileira, v. 13, 1953, p. 764-766. Apud Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, p. 205-206. O passe espírita O centro espírita de São Leopoldo, RS, fica lotado toda segunda- feira. Nesta noite cerca de 200 pessoas aguardam ansiosas o início da sessão de passes. São pessoas de todas as idades, inclusive crianças, a mesma quantidade de homens e mulheres. Pontualmente às vinte horas uma senhora saúda os presentes, pergunta se todos pegaram a senha distribuída, e passa a palavra para o irmão que nesta noite vai fazer a mensagem. O irmão saúda os presentes e lê a parábola do semeador, seguida dos comentários do Evangelho segundo o espiritismo, falando das diferentes formas de ser espírita: Não nos oferece o símbolo dos que se apegam apenas aos fenômenos materiais, não tirando do mesmo nenhuma conseqüência, pois que neles só vêem um objeto de curiosidade? Dos que só procuram o brilho das comunicações espíritas, interessando-se apenas enquanto satisfazem-lhes a imaginação, mas que, após ouvi-las, continuam frios e indiferentes como antes. (Allan KARDEC, O evangelho segundo o espiritismo, 220. cap. 17, ponto 6). Em seguida tece comentários sobre como aproveitar melhor a luz que vem de Deus. Depois de 15 minutos de mensagem, instaura-se um grande silêncio na sala. Os médiuns preparam-se para o momento do passe, ficando reunidos numa sala reservada por cerca de 10 minutos. Quando começam os passes, as pessoas são chamadas para dentro desta sala em grupos de cinco pessoas, podendo estender a espera por até uma hora. No momento do passe, as pessoas sentam-se em cadeiras colocadas lado a lado, numa postura ereta e relaxada. Os médiuns pedem que todos fechem os olhos. Cada médium, então, aproxima-se de uma pessoa e ergue as mãos sobre ela; circulamba a pessoa com as mãos, sem a tocar, vindo de sobre a cabeça até as mãos depositadas sobre o colo. Volta para a cabeça e segue para os ombros. O mesmo gesto é repetido três vezes, sendo que na última as mãos dos médiuns abrem-se para cima, indicando os céus. Uma outra pessoa da sala pede que todos se levantem. Antes de sair, todas recebem um pequeno copo com água fluidificada que tomarão em seguida. Trecho de entrevista a Daniel, minutos após tomar o passe. “_ Ah, rapaz! Isso daqui é uma coisa incrível. Tem 14 anos que eu venho aqui toda segunda-feira; toda segunda... Só de vez em quando, nas férias, é que eu falto – mas sinto falta. Sei lá... Isso aqui dá uma força pra gente. Você fica, como se diz, mais leve pra semana. (...) _ A gente precisa acreditar em Alguma Coisa, não é? (...) _ Não: não faço mais nada. Só venho nas segundas à noite. Nem mesa, nem estudo, nada. Só nas segundas à noite.”
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