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DIREITO PENAL II DANIELA DUQUE-ESTRADA AULA 20 DAS LESÕES CORPORAIS OBJETIVOS O aluno deverá ser capaz de: ● Compreender a tutela jurídico-penal da integridade corporal ou da saúde de outrem e a relevância de sua indisponibilidade por seu titular, salvo em caráter excepcional consoante a aplicação causas excludentes de tipicidade, ilicitude ou culpabilidade. ● Diferenciar, nos casos concretos apresentados, o delito de lesão corporal de outras figuras típicas, tais como: homicídio na forma tentada, injúria qualificada, contravenção penal de vias de fato, exposição a perigo a vida ou a saúde de outrem. ● Identificar, nos casos concretos apresentados, a incidência de conflito aparente de normas ou concurso de crimes. ESTRUTURA DE CONTEÚDO Lesão Corporal. 1.Bem jurídico tutelado. Considerações gerais sobre integridade física, fisiológica e mental. 2. Elementos do tipo. 3. Sujeitos do delito. 4. Consumação e tentativa. 5. Figuras típicas. 6. Conflito aparente de normas e Concurso de crimes com demais figuras típicas. 7. Perdão judicial. 1. Bem jurídico tutelado. Integridade física, fisiológica e psíquica do ser humano. A tutela penal não se restringe à normalidade anatômica, contemplando, assim, toda a funcionalidade do corpo. 2. Elementos do tipo. Compreende-se por integridade física a “alteração anatômica, interna ou externa, do corpo humano (...), a saúde fisiológica diz respeito ao equilíbrio funcional do organismo (...) e a saúde mental, à perturbação de ordem psíquica (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Especial. v2. 10 ed. São Paulo: Saraiva, pp166) Obs. A dor e o derramamento de sangue não integram a figura típica. A autolesão não é punida pelo ordenamento jurídico face ao princípio da alteridade, salvo nos casos expressamente previstos em lei – art.171, §2º, V, CP e art.184, CPM. Disponibilidade do bem jurídico tutelado. Em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como ao interesse social na manutenção da incolumidade física e mental dos indivíduos, o bem jurídico tutelado é considerado um bem público indisponível. Entretanto, tal indisponibilidade foi mitigada com o advento da Lei n. 9099/1995 – JECrim, ao estabelecer que, nos casos de lesões corporais culposas e de natureza leve, a ação penal de iniciativa pública passou a ser condicionada à representação da vítima ou de seu representante legal (art. 88, da Lei n. 9099/1995). Outro ponto relevante para o debate advém da validade do consentimento do ofendido e, conseqüente, disponibilidade do bem jurídico em determinadas situações, tais como: lesões desportivas, intervenções cirúrgicas, dentre elas, por exemplo, o transplante de órgãos e tecidos, cirurgia transexual e esterilização cirúrgica. As lesões desportivas e as intervenções médico cirúrgicas encontram-se dentre as causas excludentes de ilicitude decorrentes do exercício regular de direito, desde que consentidas pela vítima (art.23, III, CP) sendo, no caso de intervenções médico cirúrgicas, possível sua realização sem o consentimento da vítima quando configurar estado de necessidade (art. 24 e art. 146,§3º, I, ambos do CP). Cabe salientar que, há entendimentos no sentido de que as lesões desportivas configuram condutas atípicas sob a perspectiva da imputação objetiva do resultado (neste sentido, vide Fernando Capez, op,cit. pp 167). No que concerne ao transplante de órgãos e tecidos, o melhor entendimento é no sentido de compreender-se como exercício regular de direito no caso de doador “juridicamente capaz”, haja vista a finalidade terapêutica do procedimento. O referido procedimento encontra-se previsto na Constituição da República – art. 199,§4º e regulado na Lei n. 9434/1997 que prevê, expressamente a sua realização – art.9º. Artigo 9 - É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo para fins de transplante ou terapêuticos. §3º. Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. A esterilização cirúrgica, também considerada pela doutrina clássica como exercício regular de direito, tem sido considerada por parte da doutrina como conduta atípica, haja vista fundar-se em princípios constitucionais – planejamento familiar e paternidade responsável, bem como pelo fato de estar expressamente regulada em lei – art.10, da Lei n. 9263/1996 e art. 226,§7º, CRFB. Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Em relação à cirurgia transexual (tratamento de transgenitalismo), configura, em tese, lesão corporal gravíssima (art.129,§2º, IV, CP), haja vista a mutilação de órgãos e perda da função reprodutora, todavia a partir da compreensão de que a mesma configura “tratamento”, prevalece o entendimento de que a conduta do médico é atípica (neste sentido, Guilherme de Souza Nucci, Manual de Direito Penal. 6 ed. São Paulo: RT, pp 656). Acerca do tema, o Conselho Federal de Medicina, em seu Projeto de Diretrizes, bem como por meio de Resolução ( mais recente CFM n. 1955/2010) estabeleceu regras para o denominado de tratamento de transgenitalismo, tais como: Regras – A seleção dos pacientes para cirurgia continua obedecendo a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social. Este acompanhamento deve ser de, no mínimo, dois anos. O tratamento só pode ser realizado em maiores de 21 anos, depois de diagnóstico médico e com características físicas apropriadas para a cirurgia. (disponível em: http://portal.cfm.org.br). Aplicação do principio da insignificância. A partir da compreensão da possibilidade da flexibilização da indisponibilidade do bem jurídico tutelado, é possível a aplicação do principio da insignificância às pequenas lesões corporais, desde que, consentidas pela vítima, tais como a “perfuração do corpo para a colocação de adereços” (CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal Especial 2 ed. São Paulo:RT, pp 48). 3. Sujeitos do delito. Trata-se de delito comum, exceto nos casos de violência doméstica, previsto no §9º, caso a lesão seja praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, situação na qual o delito passa a ser próprio. Em relação ao sujeito passivo, em regra, todo ser humano vivo (vida extrauterina), exceto nos casos previstos nos §1º, IV e §2º, V – mulher grávida e §9º. 4.Consumação e tentativa. Delito material, de dano – a consumação ocorre com a efetiva ofensa à integridade corporal ou à saúde física ou mental da vítima, sendo necessária a realização de exame de corpo de delito (art.158, CPP). A tentativa é de difícil constatação, mas é, teoricamente, possível. 5. Figuras típicas. 5.1. Lesão corporal leve – art.129, caput, CP 5.2 Lesão corporal qualificada pelo resultado: grave ou gravíssimo – art.129, §§1º e 2º. 5.3. Lesão corporal seguidade morte – delito preterdoloso. art.129, §3º, CP 5.4. Lesão corporal privilegiada - art.129, §4º, CP. 5.5. Lesão corporal culposa - art.129, §6º, CP. 5.1. Lesão corporal leve – art.129, caput, CP. A figura típica deverá ser analisada mediante o critério de exclusão em relação às demais figuras típicas dolosas. Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano. 5.2 Lesão corporal qualificada pelo resultado: grave ou gravíssimo – art.129, §§1º e 2º. a) Resultado Grave Pena - reclusão, de um a cinco anos. Lesão corporal de natureza grave § 1º Se resulta: I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; ● qualquer atividade corporal costumeira, lícita, independentemente, de sua natureza (econômica, esportiva, intelectual etc) II - perigo de vida; ● Neste caso há que se tomar cuidado, pois a conduta do agente não visava ao perigo de vida, sendo este decorrente das lesões corporais sofridas; o perigo deve ser concreto, ou seja, séria e imediata probabilidade letal a ser aferida mediante exame pericial. III - debilidade permanente de membro, sentido ou função; ● “Debilidade é o enfraquecimento, a redução ou a diminuição da capacidade funcional” (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v2.8 ed. São Paulo:RT, pp 115). A expressão “permanente” não abrange perpetuidade, mas sim a noção de situação “duradoura”, ou seja, aquela na qual não há como determinar previamente quando terá fim. IV - aceleração de parto. ● Consiste na verdade, na ocorrência de parto prematuro. Cabe salientar que, no caso em questão, admite-se que o agente haja com dolo eventual em relação ao resultado mais gravoso, sendo indispensável que o produto da concepção sobreviva. Outrossim, é indispensável que o agente tenha conhecimento da gravidez. b)Resultado Gravíssimo Pena - reclusão, de dois a oito anos. § 2° Se resulta: I - Incapacidade permanente para o trabalho; ● Como no parágrafo anterior, aplica-se aos casos a noção de situação “duradoura”. A expressão “trabalho” abrange toda e qualquer atividade laborativa e não, somente, a atividade anteriormente exercida pela vítima. II - enfermidade incurável; ● compreende-se como a “doença irremediável, de acordo com os recursos da medicina na época do resultado, causada à vítima” (NUCCI, op. cit. pp 649). Cabe salientar que a vítima não é obrigada a submeter-se a tratamento médico, bem como a sua ocorrência não afastará a incidência da qualificadora. ● A transmissão dolosa do vírus HIV configura, consoante entendimento predominante na doutrina e jurisprudência, tentativa de homicídio ( CUNHA, op. cit. pp 51) III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função; ● a expressão “perda” compreende a destruição ou privação de algum membro, sentido ou função, enquanto “inutilização” , a perda da funcionalidade ou utilidade do membro, sentido ou função, ainda que, fisicamente, integre o organismo. IV - deformidade permanente; ● o melhor entendimento é no sentido de que “deformar” compreende a alteração duradoura nas formas originais do corpo, independentemente da realização de qualquer juízo de valor, bem como, irrelevante ser visível ou não. Ainda, caso a vítima submeta-se à intervenção cirúrgica reparadora – plástica, subsistirá a incidência da qualificadora. V – aborto. ● nesta figura, eminentemente preterdolosa, é indispensável que o agente tenha conhecimento da gravidez.. Caso o agente assuma o risco, ao lesionar a gestante, da ocorrência do resultado mais gravoso – aborto, sua conduta caracterizará concurso formal imperfeito de crimes entre o delito de lesões corporais e o delito de aborto praticado sem consentimento da gestante. Também não há que se confundir com a figura majorada do aborto prevista no art.127, CP, preterdolosa, na qual o dolo do agente consiste nas manobras abortivas e, em decorrência destas, advém, culposamente, as lesões corporais de natureza grave à gestante. 5.3. Lesão corporal seguida de morte. Delito preterdoloso. Neste caso não há que se falar em tentativa, pois não há, por parte do agente, vontade e consciência em relação ao resultado mais gravoso – morte, sendo, todavia, imputável face à previsibilidade objetiva deste resultado. Não há que se confundir com o delito de homicídio culposo, pois no delito previsto no art.129,§3º, há o concurso entre dolo e culpa – crime complexo, enquanto, na figura do art.121,§3º, o resultado morte advém de “um fato penalmente indiferente” (Nelson Hungria apud Capez, op cit pp 184) § 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quís o resultado, nem assumiu o risco de produzí-lo: Pena - reclusão, de quatro a doze anos. 5.4. Lesão corporal privilegiada. Da mesma forma que no delito de homicídio, por questões de política criminal, o legislador optou pela redução de pena em decorrência dos motivos determinantes do crime. Diminuição de pena § 4° Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. 5.5. Lesão corporal culposa. § 6° Se a lesão é culposa: Pena - detenção, de dois meses a um ano. 6. Conflito aparente de normas e Concurso de crimes com demais figuras típicas. 6.1. Crime de lesão corporal leve e injúria real. O ponto distintivo resulta do animus do agente, ou seja, se “a violência exercida for ultrajante, havendo a intenção de humilhar, envergonhar a vítima, ofender a sua dignidade ou decoro” estará configurada a figura típica de injúria real, o que não afasta a possibilidade da incidência do concurso de crimes entre ambas, consoante o disposto no §2º, do art.140, CP. Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: § 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. 6.2. Lesões corporais culposas no Código Penal e no Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9503/1997). Conflito a ser solucionado pelo princípio da especialidade. Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor: 7. Perdão Judicial. Causa extintiva de punibilidade, direito público subjetivo do réu de caráter unilateral, na qual o Estado-juiz deixa de aplicar a pena em circunstâncias expressamente previstas em lei. § 8º - Aplica-se à lesão culposa o disposto no § 5º do art. 121. 8. Questões controvertidas Distinção entre violência doméstica e violência de gênero discriminatório contra a mulher – confronto entre o art. 129, §§, 9°, 10 e 11 do Código Penal e art.5° da Lei n. 11340/2006 (Lei Maria da Penha). Não há que se confundir violência de gênero com violência doméstica. Compreende-se por violência doméstica a praticada no âmbito da vida em família, independentemente da existência de parentesco; por outro lado, a violência de gênero, no caso da Lei n. 11340/2006, possui caráter eminentemente discriminatório contra a mulher , tendo, a referida lei abarcado os dois conceitos. Neste sentido assevera Luiz Regis Prado: A violência de gênero se refere a atos de agressão ou de violência exercidos contra determinada pessoa por força de seu sexo feminino e a violência doméstica diz respeito à sua prática no âmbito doméstico ou intrafamiliar, ou a ele diretamente relacionado (op cit pp 122) Art. 5º, Lei n. 11340/2006. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gêneroque lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: Violência Doméstica § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. § 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço). § 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.
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