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Universidade regional do noroeste do estado do rio grande do sUl – UnijUí vice-reitoria de gradUação – vrg coordenadoria de edUcação a distância – cead coleção educação a distância série livro-texto Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil 2013 Patrícia Marques oliveski acesso à jUstiça 2013, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 98700-000 - Ijuí - RS - Brasil Fone: (0__55) 3332-0217 Fax: (0__55) 3332-0216 E-mail: editora@unijui.edu.br Http://www.editoraunijui.com.br Editor: Gilmar Antonio Bedin Editor-adjunto: Joel Corso Capa: Elias Ricardo Schüssler Designer Educacional: Jociane Dal Molin Berbaum Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) Catalogação na Publicação: Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí O489a Oliveski, Patrícia Marques. Acesso à justiça / Patrícia Marques Oliveski. – Ijuí : Ed. Unijuí, 2013. – 142 p. – (Coleção educação a distância. Série livro-texto) ISBN 978-85-419-0061-4 1. Direito. 2. Justiça. 3. Cidadania. 4. Democracia. 5. I. Título. CDU : 342.72/.73 Sumário CONHECENDO A PROFESSORA ................................................................................................5 APRESENTAÇÃO ...........................................................................................................................7 O QUE VAMOS ESTUDAR ............................................................................................................9 UNIDADE 1 – ACESSO À JUSTIÇA E SEUS FUNDAMENTOS .............................................11 Seção 1.1 – Cidadania: A Condição Política Do Status Do Direto A Ter Direitos ......................11 Seção 1.2 – A Evolução Conceitual de Estado e Direito: a Construção do Estado Democrático de Direito e a Cidadania ............................17 Seção 1.3 – A Importância da Constituição no Estado Democrático de Direito ........................30 Seção 1.4 – Cidadania e Acesso à Justiça no Estado Democrático de Direito ...........................32 UNIDADE 2 – O ACESSO À JUSTIÇA COMO ACESSO À JURISDIÇÃO ..............................41 Seção 2.1 – A Jurisdição Como Elemento De Inclusão Social ...................................................41 Seção 2.2 – O Acesso à Justiça como Acesso ao Poder Judiciário ..............................................46 Seção 2.3 – As Formas Alternativas de Justiça ............................................................................57 2.3.1 – Da Mediação ..........................................................................................................58 2.3.2 – Da Arbitragem........................................................................................................60 UNIDADE 3 – ASPECTOS HISTÓRICOS DO ACESSO À JUSTIÇA .......................................65 Seção 3.1 – Aspectos Históricos do Acesso à Justiça ..................................................................65 Seção 3.2 – Evolução do Acesso à Justiça no Brasil ....................................................................72 Seção 3.3 – Princípios Fundamentais que Informam o Acesso à Justiça ...................................79 3.3.1 – Princípio da Acessibilidade ...................................................................................79 3.3.2 – Princípio da Operosidade ......................................................................................80 3.3.3 – Princípio da Utilidade............................................................................................80 3.3.4 – Princípio da Proporcionalidade .............................................................................81 Seção 3.4 – As limitações do Acesso à Justiça .............................................................................82 UNIDADE 4 – O ACESSO À JUSTIÇA E O PROCESSO JUDICIAL ........................................89 Seção 4.1 – Acesso à Justiça e Magistratura ...............................................................................90 Seção 4.2 – Acesso à Justiça e o Ministério Público ...................................................................95 Seção 4.3 – Acesso À Justiça e a Assistência Judiciária ...........................................................101 UNIDADE 5 – O ACESSO À JUSTIÇA E JUDICIÁRIO: DA CRISE À BUSCA DE SOLUÇÕES ..............................................................109 Seção 5.1 – Breve Histórico Sobre a Administração da Justiça no Brasil ................................109 Seção 5.2 – Poder Judiciário: Acesso à Justiça e a Identificação da Crise ...............................116 Seção 5.3 – Poder Judiciário e Acesso à Justiça: da Crise à Busca de Soluções ....................131 REFERÊNCIAS ...........................................................................................................................137 EaD 5 acesso à jUstiça Patricia Marques oliveski Advogada, a professora possui Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí (1995). No ano de 1998 cursou especialização em Direito Público pela mesma Instituição. Em 1999 ingressou no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito pela Universi- dade de Santa Cruz – Unisc –, obtendo o título em 2001, com área de concentração em Políticas Públicas e Direitos Sociais. Especialista em Direito Registral e Notarial pela Unisul – SC. Desde 1998 é docente do curso de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Unijuí. Também atuou por vários anos como docente nos cursos de Graduação e Pós- Graduação em Direito na Universidade de Passo Fundo – UPF – e na Universidade Luterana do Brasil – Ulbra. Sua atuação na docência atualmente abrange o campo do Direito Penal, Processual Penal e Práticas Jurídicas, tendo igualmente ministrado aulas de Acesso à Justiça, Metodologia da Pesquisa e Ensino Superior em diversos cursos de Especialização. Além disso, é autora de artigos científicos publi- cados em revistas especializadas, voltados para a temática do acesso à Justiça, cidadania, poder Judiciário, sistema penal e penitenciário, dentre outras temáticas jurídicas. Atualmente cursa o Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Doutorado em Direito na Universidade de Buenos Aires – UBA-AR. Conhecendo a Professora EaD 7 acesso à jUstiçaApresentação O componente curricular optativo Acesso à Justiça objetiva proporcionar aos acadêmicos uma visão geral teórico-crítica acerca do direito fundamental do acesso à justiça, viabilizando no processo de ensino-aprendizagem uma compreensão ampla sobre o tema. Pretende-se aprofundar o estudo sobre o conceito de acesso à Justiça sob o ângulo da função jurisdicional, desenvolvendo estudos sobre a razoabilidade como expressão do princípio de Justiça. Buscar-se-á problematizar, a partir de um enfoque crítico, as principais questões acerca do acesso à Justiça, desenvolvendo estudos sobre o acesso à Justiça enquanto acesso ao poder Judiciário e suas limitações, bem como analisar a questão da efetividade do processo, tendo como pano de fundo a realização da cidadania. Enfim, oportunizar ao acadêmico conhecimentos necessários à formação de um referencial teórico que o habilite a analisar o atual modelo de poder Judiciário, os aspectos da crise e as propostas de soluções e democratização desse poder. EaD 9 acesso à jUstiça Este componente curricular vai-se dedicar ao estudo do acesso à justiça com vistas a pro- porcionar ao acadêmico do curso de Direito conhecimentos teórico-práticos que lhe ofereçam uma visão crítica acercada realização da Justiça no Estado Democrático de Direito. Inicialmente serão analisados os fundamentos do acesso à Justiça, tendo como pano de fundo a questão da cidadania e da construção do Estado Democrático de Direito. A seguir estudar- se-á o acesso à justiça como acesso à jurisdição, partindo-se de uma concepção instrumental do processo e da função de inclusão social da jurisdição, para então analisar as formas alternativas de jurisdição. A partir desses conhecimentos teóricos prévios passa-se ao estudo específico do acesso à Justiça, sob seus aspectos históricos, princípios e limitações, para se ter ferramentas aptas à aná- lise da atuação da magistratura, do Ministério Público, tanto em relação à realização do acesso à Justiça quanto à viabilidade da assistência judiciária, como forma de concretizar tal direito. Assim, o estudo culmina na análise do acesso à Justiça e do modelo de poder Judiciário estabelecido no Estado Democrático de Direito, na identificação da chamada crise judiciária e no levantamento das medidas que se tem adotado como solução a esta crise com vistas à efetivação do acesso à Justiça e realização da cidadania. Unidade 1 Objetiva compreender as noções introdutórias relativas aos fundamentos do acesso à Jus- tiça. A questão da cidadania enquanto um status do direito a ter direitos e sua importância na efetivação do acesso à Justiça. Estudar a questão do acesso à Justiça e sua realização no Estado Democrático de Direito, observando a importância da Constituição e a realização da cidadania e o acesso à Justiça neste modelo de Estado. Unidade 2 Nesta unidade o objetivo é estudar o acesso à Justiça como acesso à jurisdição. Para tanto faz-se imprescindível a compreensão da importância da jurisdição como instrumento e como elemento de inclusão social. A partir dessa concepção vai-se analisar, então, o acesso à Justiça como acesso ao poder Judiciário e às formas alternativas de jurisdição como meios de resolução de conflitos. O Que Vamos Estudar EaD Patrícia Marques oliveski 10 Unidade 3 Compreendido o acesso à Justiça como acesso à jurisdição, neste momento passa-se ao estudo dos aspectos históricos do acesso à Justiça para que se possa ter uma compreensão do significado do termo e da abrangência de seus efeitos. A análise conceitual do acesso à Justi- ça, portanto, não poderia prescindir do estudo de seus princípios fundamentais, que norteiam qualquer concepção teórica ou prática e dão suporte para viabilizar a compreensão dos limites e obstáculos do acesso à Justiça. Unidade 4 Numa concepção mais restrita do acesso à Justiça, nesta unidade o foco passa a ser a questão da realização deste direito fundamental via instrumento do processo judicial, razão pela qual se traz à baila a correlação indispensável do acesso à Justiça e a magistratura e o Ministé- rio Público enquanto órgãos responsáveis pela concretização deste fim. E para complementar o estudo analisa-se a questão da assistência judiciária e a atuação do juiz e do Promotor diante da necessidade de se garantir a todos o acesso à Justiça. Unidade 5 Para fechar o estudo acerca do acesso à Justiça com vistas à concretização da cidadania, apresenta-se inicialmente um breve relato histórico acerca da administração da Justiça no Brasil, para que se identifique o modelo de poder Judiciário vigente. A partir de então, identifica-se a chamada crise do poder Judiciário para então culminar no levantamento das medidas que se tem adotado como solução à crise judiciária e por consequência à efetivação do acesso à Justiça e realização da cidadania. EaD 11 acesso à jUstiça acesso à jUstiça e seUs FUndaMentos oBjetivos desta Unidade Compreender os fundamentos do acesso à Justiça, notadamente em relação à questão da cidadania enquanto um status do direito a ter direitos e sua importância na efetivação do acesso à Justiça. Estudar a questão do acesso à Justiça e sua realização no Estado de Direito e a impor- tância da Constituição neste processo. as seçÕes desta Unidade Seção 1.1 – Cidadania: a Condição Política do Status do Direito a ter Direitos Seção 1.2 – A Evolução Conceitual de Estado e Direito: a Construção do Estado Democrático de Direito e a Cidadania Seção 1.3 – A Importância da Constituição no Estado Democrático de Direito Seção 1.4 – Cidadania e Acesso à Justiça no Estado Democrático de Direito seção 1.1 cidadania: a condição Política do status do direto a ter direitos A cidadania nasceu vinculada à questão do Direito, ou melhor, ao discurso jusnaturalista formulado no bojo do contexto literário e revolucionário da época moderna (Corrêa, 1999). Para Carvalho, no entanto, a cidadania surge no mercantilismo, ou seja, com o sistema que se vai criar com a burguesia. Não é ainda sob o domínio da burguesia. É na cons- trução do burguês, do comerciante ainda, que se vai colocando a questão da cidadania, quando ele está rejeitando a própria situação do direito feudal existente e outras situações no sistema feudal (apud Corrêa,1999, p. 210). Unidade 1 EaD Patrícia Marques oliveski 12 De acordo com Corrêa, a cidadania moderna surge como incompatível com o feudalismo medieval por este não ter padrões comuns nem direitos compartilhados por todos. De outro ângulo, analisa-se o capitalismo onde esse se caracteriza como um sistema de desigualdades, embora não mais por “status social”. Demonstra-se que mesmo com o surgimento da cidadania não se deixou de constituir um princípio de igualdade, uma instituição em desenvolvimento. Corrêa enfoca o pensamento de Marshall, que esclarece: Começando do ponto no qual todos os homens eram livres, em teoria, capazes de gozar de direitos, a cidadania se desenvolveu pelo enriquecimento do conjunto de direitos de que eram capazes de gozar. Mas esses direitos não estavam em conflitos com as desigualdades da sociedade capitalista; eram, ao contrário, necessários para a manutenção daquela determinada forma de desigualdade. A explicação reside no fato de que o núcleo da cidadania, nesta fase, se compunha de direitos civis. E os direitos civis eram indispensáveis a uma economia de mercado competitivo. Davam a cada homem, como parte de seu status individual, o poder de participar, como uma unidade independente, na concorrên- cia econômica, e tornou possível negar-lhe a proteção social com base na suposição de que o homem estava capacitado a proteger a si mesmo (apud Corrêa, 1999, p. 213). Corrêa continua demonstrando o pensamento de Marshall, em que este analisa o surgimento da cidadania em três partes: civil, político e social. Primeiramente enfoca o Direito Civil, este no século 18, compostos dos direitos necessários à liberdade individual, como exemplo: liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, etc. Essa cidadania civil é enriquecida com a valorização dos direitos políticos, no século 19, direitos esses de participar como eleitor, ou direito ao voto, ou membro de um organismo investido de autoridade política. E no século 20, surgem então os direitos sociais, que dizem respeito a um direito mínimo de bem-estar econômico: direito a um sistema educacional e aos serviços sociais (Corrêa, 1999). Assim, analisar-se-á mais detalhadamente o surgimento da cidadania no decorrer dos séculos 18, 19 e 20, ou melhor, o desenvolver dos direitos para a conquista da cidadania, como mencionado anteriormente. Segundo Bagatini (2001), os direitos civis tendem a diminuir o poder do Estado e garantir alguns direitos aos cidadãos. E entre estes, estão o direito à vida, a liberdade de expressão, a liberdade de consciência, etc. Nota-se então que a liberdade passou a ser um elemento forte no surgimento da cidadania dos direitos civis.E além da liberdade ser considerada um elemento forte, é definida também como um elemento fundamental para o desenvolvimento da economia da época. A cidadania do Direito Civil básico se dá no setor econômico como direito de trabalhar, desaparecendo o privilégio da ocupação laboral a ser exercida apenas por aqueles que moravam nas cidades, não possibilitando EaD 13 acesso à jUstiça aos estranhos sobreviverem. A lei e os costumes da Idade Média, porém, haviam negado esses direitos, pois determinados trabalhos eram destinados a certas classes sociais, e ainda, por regu- lamento, os habitantes das cidades tinham direitos de preferência sobre os demais interessados (Bagatini, 2001). Ocorre que somente na sociedade moderna foi possível a concretização da condição uni- versal de liberdade, pois na sociedade caracterizada como feudal o status era a marca distintiva de classe, e portanto, a medida da desigualdade. Já na Idade Média só havia a imposição de deveres, e não existiam direitos, em decorrência da absoluta desigualdade. 1 De acordo com o exposto, na cidadania dos direitos civis, séculos 18 e 19, só existia igualdade formal, pois como foi estudado ante- riormente, foi possível notar que apenas alguns tinham acesso aos remédios jurídicos. 1Mesmo assim, todavia, era pregado que o pobre tinha os mesmos direitos que os ricos à propriedade, por exemplo, mas somente o rico tinha acesso a ela. O direito à igualdade estava à disposição, mas o remédio jurídico para satisfazer essa igualdade, para a grande maioria era inacessível. Na visão de Bagatini (2001) a cidadania dos direitos políticos consistia não na criação de novos direitos, mas na doação de velhos direitos a novos setores da população, por exemplo, o voto, que já existia no século 18, era destinado apenas a uma parte da população, o qual, no decorrer dos séculos passou a privilegiar outros grupos de pessoas que não o usufruíam e que, portanto, eram consideradas deficientes para os padrões da cidadania democrática. No decorrer dos séculos tudo foi se transformando, as sociedades evoluindo gradativamente, passando de um voto, a que a minoria da população tinha acesso, para o que hoje estamos viven- do, uma democracia, em que todos, independentemente de condições financeiras, têm direito de escolher seu representante, pelo voto secreto. E mesmo assim não conseguiram reduzir a desi- gualdade social, pois a classe hierarquicamente inferior não possuía um poder político efetivo. Em se tratando de direitos sociais, esses elencados como sendo do século 20, trata Bagatini em sua obra que têm como objetivo a redução das diferenças existentes entre pessoas. A sua maior determinação é buscar uma transformação de toda a estrutura da sociedade. 1 Disponível em: <http://www.fem.org.br/cidadania/cidadania.php>. Acesso em: 6 abr. 2013. EaD Patrícia Marques oliveski 14 Mais rapidamente se tentará passar uma ideia do surgimento da cidadania e de como ela irá se desenvolver desde o seu surgimento na Idade Antiga até a Idade Contemporânea, ou seja, do século 18 até os dias atuais. 2 Primeiramente, a ideia de cidadania surgiu na Idade Antiga, após Roma conquistar a Grécia (século 5º d.C.), expandindo-se para o restante da Europa. Nesta época apenas homens e proprietários de terra (desde que esses não fossem estrangeiros), eram considerados cidadãos, diminuindo assim a ideia de cidadania, uma vez que mulheres, crianças, velhos, etc., não eram considerados cidadãos. Já na Idade Média (século 5º ao século 15 d.C.), surgiram os feudos (mais conhecidos como fortalezas particulares) cujos proprietários eram os dominadores da época, e os servos que habitavam nesses feudos só trabalhavam para o seu senhor e não podiam participar de nenhuma decisão. Com isso, demonstra-se que a ideia de cidadania se acaba, pois não havia participação do povo, era apenas uma pequena minoria que ditava as regras. Após a Idade Média, termina- ram as invasões bárbaras, extinguindo-se também os feudos, entrando-se assim em uma grande crise. Os feudos se decompõem, formando cidades e depois países. Na Idade Moderna (di século 15 ao 18 d.C.) a formação dos países depois do desapare- cimento dos feudos ocorreu em consequência da união do rei com a burguesia. Nessa época o rei mandava em tudo, era forte graças aos impostos que recebia. Com esse dinheiro nas mãos formava exércitos cada vez mais fortes e, além disso, dava apoio político à burguesia. Com o passar do tempo a burguesia, cada vez mais rica, começou a ver o rei como um obstáculo a seu progresso. Então a burguesia resolveu tirar o rei do poder, ou melhor, acabar com o Absolutismo (poder total nas mãos do rei), e realizou cinco grandes revoluções burguesas: Revolução Industrial, Iluminismo, Revolução Francesa, Independência dos Estados Unidos e Revolução Inglesa. Todas essas cinco revoluções tinham o mesmo objetivo: tirar o rei do poder. Com o fim do Absolutismo, passa-se à Idade Contemporânea (século 18 até os dias de hoje), surgindo nessa nova idade um novo tipo de Estado, o Estado de Direito, que é uma grande característica do modelo atual. A principal característica do Estado de Direito é “que todos têm direitos iguais perante a Constituição”, percebendo-se assim uma grande mudança no conceito de cidadania. Por um lado, trata-se do mais avançado processo que a humanidade já conheceu; por outro lado, porém, surge a exploração do trabalho e dominação do capital. 2 Disponível em: <http://unijuv.org.br/ecidadania/historico-da-cidadania/>. Acesso em: 6 abr. 2013. EaD 15 acesso à jUstiça Nessa idade surge a grande contradição: cidadania X capitalismo. Cidadania é a parti- cipação de todos em busca de benefícios sociais e igualdade. A sociedade capitalista, porém, alimenta-se de pobreza. No capitalismo a grande maioria não pode ter dinheiro. Então, mesmo na atualidade, ainda não temos a grande aplicação do conceito da cidadania na sua íntegra (re- tirado do site: <http://www. webciencia.com/18_cidadania.htm>. Acesso em: 9 maio 2012). A questão da cidadania está hoje em nossa Constituição, tendo assim uma garantia de sua aplicação e, a partir disso, analisaremos, segundo a visão de Bagatini (2001), as Constituições já existentes e de que modo a cidadania era enquadrada nas Constituições antigas. Neste sentido, afirma Bagatini (2001) que a primeira Constituição do Brasil, de 25 de março de 1824, já nos artigos iniciais refere-se ao termo “cidadão”, identificando-o com direitos políticos. Faz uma aproximação da cidadania com a nacionalidade, e seu artigo 6º prescreve o seguinte: Art. 6º São cidadãos brasileiros: I. Os que no Brasil tiveram nascido, quer sejam ingenuosos, ou libertos, ainda que o pai seja estran- geiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação. II. Os filhos de pai Brasileiro, e os ilegítimos de mãe Brasileira, nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no império. III. Os filhos de pai Brasileiro, que estivesse em país estrangeiro em serviço do império, embora eles não venham estabelecer domicílio no Brasil. IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas possessões, que sendo já residentes no Brasil na época em que se proclamou a Independência nas Províncias, onde habitavam, aderiram a esta expressa, ou tacitamente pela continuação de sua residência. V. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de Naturalização (Campanhole apud Bagatini, 2001, p. 54). A segunda Constituição brasileira foi promulgada a 24 de fevereiro de 1891 e também traz o conceito de cidadania ligado à nacionalidade, mantendo a mesma redação da Constituição anterior.Em relação à terceira Constituição brasileira, a segunda republicana, foi promulgada em 16 de julho de 1934, e não traz o termo cidadania, e o capítulo dos direitos políticos somente trata de brasileiros. Quando foi decretada a Constituição dos Estados Unidos foi reintroduzido no título da Na- cionalidade e da Cidadania o termo “cidadania”. Já em 18 de setembro de 1946, foi promulgada mais uma Constituição Republicana, e no título “Da declaração de direitos”, trata de nacionalidade e cidadania, não aparecendo o termo “cidadania” em seu artigo 129 e sim o termo brasileiros. EaD Patrícia Marques oliveski 16 A quarta Constituição Republicana do Brasil foi outorgada em 24 de janeiro de 1967 e no seu texto não aparece o termo cidadania. E em relação à atual Constituição da República Fe- derativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, deixa claro que essa se diferencia das demais no trato do tema cidadania, como o artigo 1º, II. Assim, a Constituição de 1988 destaca os direitos e garantias fundamentais, relacionado-os com a cidadania, prevendo em seu artigo o que segue: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político (Constituição Federal de 1988). No decorrer desta seção foi realizada uma análise da contextualização histórica da cidada- nia, o desenvolver da cidadania no perpassar dos séculos, suas conquistas, seus avanços dentro de nossa Constituição, considerada como um direito básico. Depois de toda essa explanação, passa-se a analisar a cidadania como uma concepção moderna. Na concepção moderna de cidadania, pode-se afirmar, portanto, que o conceito sofreu uma evolução histórica e sob esses aspectos procuramos entender o cidadão como um membro com- pleto da sociedade. Segundo Marshall, “há uma espécie de igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade – ou como eu diria, de cidadania – o qual não é inconsistente com as desigualdades que diferenciam os vários níveis econômicos da sociedade” (apud Corrêa, 1999, p. 212). O referido conceito vem mais ligado ao direito, ou aos direitos, conferindo-se praticamente com os referentes direitos humanos. Como regra, cidadãos são os portadores de direitos, entre eles os discriminados (Corrêa, 1999). Na visão de Corrêa (1999), a cidadania significa a realização democrática de uma sociedade, compartilhada por todos os indivíduos a ponto de garantir a todos o acesso ao espaço público e condições de sobrevivência digna, tendo como valor fonte a plenitude da vida. Isso requer orga- nização e articulação política da população, voltada para a superação da exclusão existente. EaD 17 acesso à jUstiça Na visão de Barbalet, “a cidadania pode ser descrita como participação numa comunidade ou como a qualidade do membro dela. Sendo que tipos diversos de comunidades políticas dão origens a diferentes formas de cidadania” (1989, p. 55). Cidadania também pode ser considerada um conjunto de ações que fazem um cidadão. Pode ser a maneira de o cidadão viver o seu dia a dia, seja mulher, homem ou criança, usando plenamente os direitos e deveres do país em que nasceu e onde mora. seção 1.2 a evolução conceitual de estado e direito: a construção do estado democrático de direito e a cidadania Em fins do século 17, a Europa passa por profundas transformações políticas e sociais, com especial relevância para a transmissão do poder político da antiga nobreza feudal para a burguesia comercial e industrial, cujo ápice deu-se com a Revolução Francesa. Cita-se, portanto, a Revolução como aquele ponto crítico em que se dá a passagem do cha- mado ancien régime, poder político absoluto, ao novo poder político da burguesia, que fundou um regime de autoridade limitada, uma organização do poder con tido em bases jurídicas. E o Estado jurídico, emergente após a Revolução Francesa, representa para a teoria constitucional o coroamento ideológico das posições liberais e democráticas daqueles teoristas que já conhecemos: Locke e Montesquieu, e, em parte, Rousseau. Quando se dá a Revolução, a doutrina do Estado liberal-democrático surge completa com a obra de Locke e Montesquieu, e a contribuição parcial de Rousseau. Chegamos, assim, a um período das ideias políticas em que todos os princípios democráticos haviam sido exaustivamente expostos, discutidos (Bonavides, 1995, p. 47). A Revolução Francesa, então, concluiu uma considerável obra de trans formação social, pois […] apagara as desigualdades sociais baseadas no privilégio, suprimira a velha monarquia absoluta e com ela pu sera termo à tese do direito divino das realezas, proclamara os direitos fundamentais do cidadão a título de direitos naturais, sagrados, imprescritíveis e inalienáveis, e estabelecera as formas limitadas de exercício do poder, fazendo nascer para proteção da liberdade o conceito novo dos direitos e garantias constitucionais (Bonavides, 1995, p. 48). O liberalismo, no entanto, se contentou com o modelo de sociedade que criara, ou seja, uma sociedade parcialmente democrática. A partir da industrialização, surge, ao final do século 18, o mundo contemporâneo, no qual a Revolução Industrial passa a gerar consideráveis e dra- máticos efeitos sobre o sistema capitalista, que são agravados em razão da conquista de novos mercados. EaD Patrícia Marques oliveski 18 A Inglaterra se substituía a Portugal e Espanha e, da contradição operada, todo um continente se emancipava politicamente, à sombra protetora dos interesses comerciais e industriais do capitalismo inglês. Deste lado do mundo a Revolução Industrial fazia, por reflexo, nações nominalmente livres, do outro lado do Atlântico, nas ilhas britânicas, o mesmo fenômeno escravizava uma considerável parcela da sociedade: o miserável proletariado urbano, filho das fábricas e da exploração do suor humano, transformado em máquina de trabalho e produção, sujeito a condições de vida mais duras e penosas que a do servo da gleba, na Idade Média. A Inglaterra da fome, das epidemias, da superpopulação impressionava-se com os efeitos daquele quadro (Bonavides, 1995, p. 49). As revoluções burguesas do século 18, ao final do século 19, encontravam-se ameaçadas pelas forças conservadoras do feudalismo em iminente decomposição, representadas pela no- breza e pelo clero, que ansiavam por res taurar o Estado absoluto e retirar a burguesia do poder político. As forças revolucionárias eram representadas pela burguesia e pelo crescente proletariado, ambos descontentes com a situação socioeconômica. O embate dessas forças se fez sentir em 1830 e 1848 nos grandes movimentos liberais e nacionais que, iniciados na França, se estenderam pela Bélgica, Polônia, Alemanha, Itália, Portugal e Espanha. A partir de 1848, o proletariado procura a expressão de sua própria ideologia, oposta ao pensamento liberal e inspirada de início no socialismo utópico. Começa a ficar mais clara a cisão entre as duas classes cuja contradição será explicitada pelas teorias que criticam o liberalismo. Na Alemanha ainda não ocorrera a unificação dos diversos Estados, o que se dará apenas em 1871, sob o comando da Prússia e seu primeiro-mi nistro Bismarck, depois de três guerras e muitas táticas de unificação econômica (Vicentino, 1993, p. 200). Eis que surge, então, o marxismo numa Alemanha agitada e cheia de problemas. Na verdade, esse movimento é fruto não só de Karl Marx (1818-1883), mas também de seu amigo Friedrich Engels (1820-1895), que, além da colaboraçãoteórica, tinha boa situação financeira e pôde, por diversas vezes, ajudar Marx nos momentos mais críticos da vida deste. Escreveram juntos O Manifesto Comunista (1848). Marx e Engels formularam seu pensamento a partir da realidade social por eles observada: de um lado, o aumento do poder do homem sobre a natureza, o enriquecimento e o progresso; de outro, e contraditoriamente, a escravização crescente da classe operária, cada vez mais empo- brecida. “O materialismo histórico não é mais do que a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao campo da história. E, como o próprio nome indica, é a explicação da história por fa- tores materiais (econômicos, técnicos)” (Aranha, 1986, p. 271). O referido autor afirma, ainda: O senso comum pretende explicar a história pela ação dos “grandes homens”, das grandes idéias ou, às vezes, até pela intervenção divina. Marx inverte esse processo: no lugar das idéias, estão, os fatos materiais; no lugar dos heróis, a luta de classes. Não nega, com isso, que o homem tenha idéias, mas EaD 19 acesso à jUstiça as explica pela estrutura material da sociedade: a idéia é algo secundário, não no sentido de menos importante, mas no de algo derivado das condições materiais. Marx chama de infra-estrutura a estru- tura material da sociedade – sua base econômica -, que consiste nas formas pelas quais os homens pro duzem os bens necessários à sua vida. A superestrutura corresponde à estrutura jurídico-política (Estado, direito, etc.) e à estrutura ideológica (formas da consciência social) (1986, p. 272). O materialismo histórico “propõe que toda sociedade é determinada, em última instância, pelas suas condições socioeconômicas — a chamada infra-estrutura. Adaptadas a ela, as ins- tituições, a política, a ideologia e a cultura, como um todo, compõem o que Marx chamou de superestrutura” (Vicentino, 1993, p. 211). Esse princípio fica claro ao se considerar a passagem do modo de produção feudal para o capitalista, quando as relações de produção, as bases eco- nômicas, sociais e a cultura como um todo se transformaram. A teoria marxista também contribuiu para as teses sobre a origem do Estado, e se funda, a partir dos estudos de Marx, sobre a economia política, que analisa, segundo Corrêa, […] os fundamentos materiais da sociedade civil (esfera das relações econômicas), concluindo que essa esfera particularista das relações econômicas vem marcada por uma contradição antagônica fundamental: a divisão em classes sociais. De um lado estão os burgueses, detentores dos meios de produção (capital) e, do outro, os proletários-trabalhadores, que possuem apenas sua capacidade de trabalho (força-de-trabalho). [...] Desse tipo de relações de produção Marx deduz a função e a natureza específica do Estado no sistema capitalista: ao invés de representar a encarnação formal do suposto interesse universal (nos moldes de Hegel), ele se caracteriza como um organismo que garante a propriedade privada, assegurando e reproduzindo a sociedade de classes pela repressão coativa dos conflitos oriundos de tal antagonismo (1999, p. 127). Esse contexto representa uma transformação pela qual passou o Estado Liberal e, nesse sentido, Bonavides lembra que o Estado Social conserva a sua adesão à ordem capitalista. [...] este (o Estado Social) representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado Liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o marxismo socialista intenta implementar: é que ele conserva a sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia (1996, p. 205). As manifestações e alterações havidas na superestrutura passam a ser determinadas em razão das alterações da infraestrutura, consequência da passagem econômica do sistema feudal para o capitalista. Assim, para estudar a sociedade deve-se, segundo Marx, partir da forma como os homens produzem os bens materiais necessários a sua vida. “Analisando o contato que os homens estabelecem com a natureza para transformá-la por meio do tra balho e as relações entre si, é que se descobre como eles produzem sua vida e suas idéias” (Aranha, 1986, p. 274). EaD Patrícia Marques oliveski 20 As relações fundamentais de toda sociedade humana são as relações de produção, que revelam a ma- neira pela qual os homens, a partir das condi ções naturais, usam as técnicas e se organizam através de uma divisão do trabalho social. As relações de produção correspondem a um certo estágio das forças produtivas. Estas consistem no conjunto formado pelo clima, água, solo, matérias-primas, máquinas, mão-de-obra, instrumentos de traba lho. Assim, por exemplo, os instrumentos de pedra são substituí- dos pelos de metal, o desenvolvimento da agricultura supõe a descoberta de técnicas de irrigação, de adubagem do solo, o uso de arado e de veículos de roda. A maneira pela qual as forças produtivas se organizam em determi nadas relações de produção num dado momento histórico chama-se modo de produção. No entanto, as forças produtivas só podem se desenvolver até certo ponto, pois, ao atingirem um estágio por demais avançado, entram em contradição com as antigas relações de produção, que se tornam inade quadas. Surgem então as divergências e a necessidade de uma nova divisão de trabalho. A contradição aparece como antagonismo de classes (Aranha, 1986, p. 275). Segundo Marx, em seu prefácio à Contribuição Crítica da Economia Política, […] a produção econômica e a organização social que dela resulta necessariamente para cada época da história constituem a base da história política e intelectual dessa época. Pois, na produção social dos meios de existência, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que são correlativas a determinado estágio do desenvolvimento de suas forças produtivas. Todo o conjunto dessas relações da produção forma a estrutura econômica da sociedade. Essa estrutura econômica é a base real, fundamental, a infra-estrutura, sobre a qual se constrói uma superestrutura jurídica, política, intelectual ou ideológica (1972, p. 12). Numa visão marxista contemporânea, segundo Corrêa, os autores passam a trabalhar com a concepção de que o Estado não é instrumento exclusivo de dominação burguesa, embora as instituições político-jurídicas da atualidade estejam hegemonicamente comprometidas com as economicamente fortes. Nesse sentido se procura valorizar o papel da política e do direito como um lugar estratégico da luta de classes numa sociedade desigual e excludente, sendo abordado em sua natureza de classe, mas não como instrumento exclusivo da burguesia. Seu fundamento continua sendo colocado nas relações de produção e na divisão social do trabalho, mas é visto como um espaço de poder onde se confronta a relação de forças das classes em conflito: capital e trabalho (Corrêa, 1999, p. 132). Assim sendo, o modelo liberal de Estado caracterizou-se pela instituição de uma ordem social, econômica e política regida pela burguesia e as relações socioeconômicas passaram a ser reguladas pela lei do mercado, da oferta e da procura. Simultaneamente, verificava-se uma situação de miséria e exploração do trabalho, situação esta que clamava pelo estabelecimento de um novo modelo de Estado. EaD 21 acesso à jUstiça É nesse contexto que se constata a transição do Estado liberal para o Estado social, cuja prioridade passa a ser a tutela dos direitos sociais e a garantia do comprometimento do Estado com a dignidade da pessoa humana. Tal transição ocorreu como uma tentativa da burguesia para evitar sua queda do poder até então instituído. É oportuno ressaltar,no entanto, que, não obs- tante as transformações estruturais pelas quais passou, o Estado, o novo modelo não repudiava os preceitos e princípios capitalistas até então instituídos. Assim sendo, é pertinente que se estabeleça, desde logo, uma concepção de Estado a nor- tear a análise dos temas propostos, razão pela qual se adota, por sua completude, a concepção de Corrêa que institui no bojo conceitual a finalidade do Estado e sua preeminente preocupação com a realização da cidadania, redefinindo o atual Estado capitalista, de modo que seu conceito dê conta de explicar politicamente as contradições da sociedade capitalista e que propicie as condições teóricas para uma estratégia de luta em prol da construção da cidadania. Corrêa en- tende o Estado capitalista como sendo […] a representação idealizada do espaço público que, sob forma jurídica, isto é, como dever-ser ju- ridicamente qualificado, se materializa em aparatos repressivos, simbólicos e econômicos, os quais expressam e legitimam institucionalmente a relação de forças dos poderes sociais (1999, p. 221). O que Corrêa pretende avançar com essa reconceituação do Estado e do direito é a dimen- são política da nacionalidade e da cidadania, pois “enquanto se contrapõem como dicotômicas a cidadania civil (passiva) e a cidadania política (ativa), não se consegue apreender em profundidade a dimensão da cidadania plena” (1999, p. 226). Para se alcançar tal intento é preciso descons- truir essa dicotomia que separa o sujeito jurídico do sujeito político, mediante a desconstrução/ reconstrução do público e do privado. Segundo o autor, “se continuarmos colocando o público como a esfera do político-estatal em oposição ao privado como a esfera das relações econômicas não conseguiremos esclarecer suficientemente as implicações e as contradições presentes nos discursos dos direitos huma- nos e da cidadania” (1999, p. 226). Deve-se, portanto, entender que o público-estatal inclui o econômico-social em sua referência, pois a produção da vida material faz com que o trabalho seja um dos componentes da construção do espaço público, que diz respeito à sobrevivência da humanidade como um todo. Embora o esforço neoliberal ocorra no sentido de preservar essa dicotomia público/privado com a separação do político e do econômico, não há como se negar essa nova dimensão do es- paço público, na qual a cidadania assume um novo sentido, porque numa “sociedade capitalista o exercício da cidadania se dá de forma conflitiva na relação capital/trabalho, caracterizando avanços e recuos em termos de direitos sociais de acordo com a relação de forças das classes e poderes sociais dentro dos aparelhos de Estado” (Corrêa, 1999, p. 229). EaD Patrícia Marques oliveski 22 Não é mais possível reduzir-se o Estado a um mero defensor dos interesses de um deter- minado grupo social, tampouco a uma função simplesmente distribuidora de “direitos” e favores aos setores oprimidos. O Estado e o Direito assumem uma nova dimensão, como componentes indispensáveis ao processo de materialização do espaço público, o que só é possível mediante a igualdade fundamental, principalmente no campo econômico. José Theodoro Corrêa, em sua dissertação Justiça e Inclusão Social – uma construção con- flitiva, ressalta que o Estado capitalista, “visto como representação simbólica concreta e ideali- zada do espaço público, prevê em suas declarações constitucionais uma ordem social que deve respeitar os direitos do homem” (2000, p. 126). Assim, a expressão “idealizada” é empregada no sentido de ressaltar que tais direitos não são, necessariamente, aplicados na prática. Dessa forma, o Estado e o Direito não podem menosprezar os valores presentes nas relações sociais porque, segundo Darcísio Corrêa, “são construções histórico-culturais de que fazem parte os direitos humanos e a cidadania” (1999, p. 222), defendendo, assim, a necessidade da superação da polaridade Estado-mercado; em contrapartida, entende que um Estado forte e intervencionista com a marca registrada de estatal não pode ser a tônica do projeto socialista. É nesse sentido que José Theodoro Corrêa, ao citar Borón, lembra que “a renovação da esquerda passa, entre outros fatores, pela possibilidade de repensar o espaço público como uma esfera fundamental na qual podem ser criados instrumentos e instituições controladas so- cialmente, sendo o Estado apenas uma delas, e por certo a longo prazo não a mais importante” (2000, p. 127). Ao construir um novo conceito de Estado, Darcísio Corrêa explica, politicamente, as contradições da sociedade capitalista e sustenta as condições teóricas necessárias para uma estratégia de luta em prol da construção da cidadania. Verifica-se, portanto, ser equivocada e insuficiente uma definição de Estado que não inclua a dimensão simbólico-discursiva, pois se faz necessária para a institucionalização do poder público uma autojustificação legitimadora do exercício desse poder. A formulação teórica do Estado e do Direito, portanto, não pode prescindir dos valores presentes nas relações sociais, uma vez que tanto Estado quanto o Direito são construções histórico-culturais, de que fazem parte os direitos humanos e a cidadania. Enquanto represen- tação idealizada do espaço público, o Estado assume forma jurídica, pois os avanços e recuos no campo simbólico são conformados pelo Direito (Corrêa, 1999, p. 222). O dever-ser jurídico é a forma contemporânea que expressa e constitui a relação de força dos diversos poderes sociais em constante contradição. A institucionalização constitucional dos direitos humanos e sua efetiva viabilização através da legislação infraconstitucional dependem desse embate de forças de classe e das diversas forças sociais organizadas (1999, p. 223-224). EaD 23 acesso à jUstiça Enquanto forma jurídica, o “dever-ser” do Estado é uma forma contemporânea que ex- pressa e constitui a relação de forças dos diversos poderes sociais em constante contradição. Neste caso, [...] a forma jurídica expressa a dupla função que o discurso dos direitos humanos pode ter numa so- ciedade de classes: por um lado legitima ideologicamente o sistema capitalista [...]. Por outro lado, a forma jurídica também consagra na Constituição um marco positivo, uma referência de sentido para os trabalhadores lutarem dentro da legalidade pela efetivação de tais direitos formalmente garantidos (1999, p. 224). Outro aspecto a considerar na definição de Estado capitalista, apresentada pelo autor, diz respeito aos seus diversos aparelhos, que se realizam por meio de uma estrutura material formalmente separada dos aparelhos privados da economia. Corrêa prossegue, ainda, alertando que tais mecanismos materiais não têm poder próprio, constituindo-se em lugares estratégicos para o embate da luta de classes e dos poderes socialmente organizados (p. 224). Essa representação, portanto, somente se materializa quando se tomarem decisões e me- didas concretas, ou seja, políticas públicas resultantes da relação de forças dos diversos poderes em conflito (grupos dominantes/maiorias dominadas). Assim, somente tem sentido falar em direitos humanos e cidadania uma vez que sejam caracterizados como produtores de sentido no embate político pela ocupação do espaço público- estatal. Evidentemente que a universalização, tanto dos direitos humanos quanto da cidadania, depende da superação das contradições fundamentais do sistema, ou seja, enquanto houver sociedade de classes haverá violação de direitos, pois as desigualdades do sistema sempre con- dicionarão uma ocupação desigual do espaço público-estatal, seja qual for sua representação simbólica (Corrêa, 1999, p. 231-232). A ideia moderna de um Estado Democrático temsuas raízes no século 18, implicando a afirmação de certos valores fundamentais da pessoa humana, bem como a exigência de organi- zação e funcionamento do Estado, tendo em vista a proteção daqueles valores. Para a entendi- mento da ideia de Estado Democrático, inclusive para que se chegue a uma conclusão quanto à viabilidade de sua realização, em primeiro lugar será necessária a fixação dos princípios que estão implícitos na própria ideia de Estado Democrático. Segundo Dallari, a base do conceito de Estado Democrático é, sem dúvida, a noção de governo do povo, revelada pela própria etimologia do termo democracia, devendo-se estudar, portanto, como se chegou à supremacia da preferência pelo governo popular. Depois disso, numa complementação necessária, deverá ser feito o estudo do Estado que se organizou para EaD Patrícia Marques oliveski 24 ser democrático, surgindo aqui a noção de Estado Constitucional, com todas as teorias que vêm informando as Constituições quanto às formas de Estado e de governo. Só então é que se poderá chegar à ideia atual de Estado Democrático (2000, p. 145-146). O termo democracia no vocabulário político é controverso e assume distintas acepções. A palavra democracia, com procedência da língua grega, (de demos = povo, e kratos = autoridade) significa, etimologicamente, governo do povo. É reforçada, comumente, em seu sentido, a fim de expressar “governo do povo, pelo povo e para o povo”,3 mas, mesmo em Atenas, “no áureo período democrático, poder do povo, ou Democracia, nunca foi, como alguns pensaram, gover- no exercido direta e exclusivamente pelo povo, identificação e coincidência de governantes e governados” (Azambuja, 1971, p. 216). Nesse sentido, democracia, segundo Menezes, é “simples e prodigiosamente o meio, a condição, o ambiente em que se efetua um governo, republicano ou monárquico, no sentido de atingir o Estado, qualquer que seja também a forma por que se apresente a sua alta destinação” (1996, p. 268). A democracia, segundo Aristóteles, é forma de governo. Esse entendimento milenar assim se conservou entre os publicistas romanos e os teólogos da Idade Média, tendo em vista que não discreparam também do juízo aristotélico pensadores políticos da categoria de Montesquieu e Rousseau, presos à herança clássica. O primeiro a incluiu, por igual, na sua célebre classificação de formas de governo. Acontece, porém, que no século 19, surgiu o marxismo. (...) O socialismo marxista rebaixou, portanto, a democracia, desvalorizando-a como forma de governo da socie- dade burguesa (Bonavides, 1995, p. 189). Após o regime feudal, na Idade Média, depois das monarquias absolutas que se organiza- ram desde o século 15, surgiu em fins do século 18, nos Estados Unidos da América e, no final do século 19, em quase toda a Europa, a chamada Democracia clássica, que se consolidava na Inglaterra desde o século 17. Essa Democracia clássica, segundo Azambuja, foi a vitória das ideias de liberdade política e civil contra o absolutismo, e seus traços característicos poderiam ser assim resumidos: 3 Segundo Aderson de Menezes, em sua obra Teoria Geral do Estado (1996, p. 267-268), trata-se de uma definição concisa, que desde o século 18, foi proposta e vem sendo intensificada em seu sentido popular, conforme assinala A. Powell Davies, mas foi Thomas Cooper quem lançou, em 1795, o enunciado “Democracia é o governo do povo para o povo”. Já em 1819 o Juiz John Marshall, na Suprema Corte, disse que o governo dos Estados Unidos, como uma democracia, era, “enfaticamente e verdadeiramente um governo do povo”, porque na forma e na substância emanava do povo, recebia poderes do povo, que exercia sobre o povo e em seu benefício. Mais tarde, em 1850, Theodore Parker, pretendendo melhorar e revigorar a assertiva, define democracia como sendo “um governo de todo o povo, exercido por todo o povo, para todo o povo”, até que Abraham Lincon, em 1863, reduziu a expressão, para considerar a democracia como o “governo do povo, pelo povo e para o povo”. EaD 25 acesso à jUstiça a) o poder político pertence ao povo, é a soberania popular; b) o poder político é exercido por órgãos diferentes, autônomos e independentes, é a teoria da divisão dos poderes; c) as prerrogativas dos go- vernantes são limitadas explicitamente pela Constituição; d) são declarados e assegurados os direitos individuais (1971, p. 219). O conceito de democracia ainda está em elaboração, pois não é concebida como devendo ser unicamente política, ademais, é reclamada a intervenção do Estado em matéria econômica, até porque não poderia haver liberdade política sem segurança econômica. Charles A. Beard, citado por Azambuja, entende que democracia engloba quatro princípios substanciais, quais sejam: O 1º princípio diz que o povo é a fonte de todo o poder político e os votantes elegem dire- tamente os principais agentes do governo; o 2º, diz que por esses agentes, eleitos pelos votan- tes são feitas todas as leis; o 3º, que, em determinadas épocas, todos os principais agentes do governo, pelo menos os que compõem os poderes Legislativo e Executivo, são obrigados ou a se afastarem ou, se pretendem continuar exercendo suas funções, a se submeterem, bem como seus atos, à manifestação da vontade popular nas urnas; o 4º, diz que nesses processos todos os votantes são iguais e, nas eleições, o candidato que obtém o maior número de votos é elevando ao cargo em disputa. Resumindo, logicamente, democracia quer dizer igualdade no direito de votar, igualdade no direito de pleitear e obter um cargo público, e o critério da maioria ou da pluralidade nas eleições (1971, p. 221). Democracia, contudo, não se restringe ao aspecto político. A democracia, ao lado dos direitos individuais, “deve também assegurar os direitos sociais, não somente deve defender o direito do homem à vida, à liberdade, mas também à saúde, à educação, ao trabalho, e daí, nos Estados modernos a abundante legislação social. Em resumo, a democracia não deve ser apenas política, e sim política e social” (Azambuja, 1971, p. 220). É preciso ainda lembrar que todas as reivindicações que visam a amparar os trabalhadores, a infância, a velhice, que procuram evitar abuso do poder econômico e limitar a propriedade são conquistas democráticas, estampadas nas Constituições de quase todos os Estados. A democracia é, pois, o regime em que o povo governa a si mesmo, quer diretamente, quer por meio de representantes eleitos por ele, para administrar os negócios públicos e fazer as leis de acordo com a opinião geral. Baseia-se em determinadas ideias cujo reconhecimento e rea- lização foram demorados e difíceis, em reivindicações que foram a causa, e ainda são, de lutas prolongadas, quase sempre sangrentas, entre o povo e os indivíduos que lhe queriam impor pela força sua autoridade e sua vontade. Baseia-se, em primeiro lugar, na ideia de que cada povo é senhor de seu destino e tem o direito de viver de acordo com as leis que livremente adotar e de escolher livremente as pessoas que, em nome dele e de acordo com a opinião dele, hão de tratar dos interesses coletivos (Azambuja, 1971, p. 237). EaD Patrícia Marques oliveski 26 A democracia, pois, supõe a liberdade e a igualdade. A democracia de que tratamos é um regime político, uma forma de vida social, um método de coexistência e cooperação entre indivíduos membros de uma organização estatal. A liberdade que a democracia supõe, como fundamento e finalidade, é o fruto de uma longa elaboração histórica e está expressa em docu- mentos públicos, cuja letra e espírito formam o ideal político da nossa civilização: são os direitos individuais, também chamados liberdades individuais, proclamadas solenemente nos Estados Unidosem 1776 e na França em 1789, e incorporadas a todas as Constituições democráticas (Azambuja, 1971, p. 239). Assim, é por intermédio de três grandes movimentos político-sociais que se transpõem do plano teórico para o prático os princípios que iriam conduzir ao Estado Democrático: o primeiro deles foi a Revolução Inglesa, fortemente influenciada por Locke; o segundo foi a Revolução Americana, cujos princípios foram expressos na Declaração de Independência das 13 colônias americanas, em 1776; e o terceiro foi a Revolução Francesa, que teve sobre os demais a virtude de dar universalidade aos seus princípios, os quais foram expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, sendo evidente a influência direta de Rousseau, e contendo uma definição lapidar da igualdade democrática: “A lei deve ser a mesma para todos, quer quando protege, quer quando pune. Todos os cidadãos são iguais perante ela e são igualmente admissí- veis a todas as dignidades, cargos e funções públicas, conforme a sua capacidade, e sem outras distinções senão as de suas virtudes e talentos” (Montoro apud Azambuja, 1981, p. 201-202). Foram esses movimentos e ideias, expressões dos ideais preponderantes na Europa no século 18, que determinaram as diretrizes na organização do Estado a partir de então. Consolidou-se a ideia de Estado Democrático como o ideal supremo, chegando-se a um ponto em que nenhum sistema e nenhum governante, mesmo quando patentemente totalitários, admitem que não sejam democráticos (Dallari, 2000, p. 150). O autor prossegue, ainda, afirmando que [...] uma síntese dos princípios que passaram a nortear os Estados, como exigências da democracia, permite-nos indicar três pontos fundamentais: a supremacia da vontade popular, que colocou o pro- blema da participação popular no governo, suscitando acesas controvérsias e dando margem às mais variadas experiências, tanto no tocante à representatividade, quanto à extensão do direito de sufrágio e aos sistemas eleitorais e partidários. A preservação da liberdade, entendida sobretudo como o poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem qualquer interferência do Estado. A igualdade de direitos, entendida como a proibição de distinções no gozo de direitos, sobretudo por motivos econômicos ou de discriminação entre classes sociais (p. 151). EaD 27 acesso à jUstiça Assim, as transformações do Estado seriam determinadas pela busca da realização dos preceitos fundamentais antes mencionados, que se impunham, também, como limite a qualquer objetivo político. Dessa forma, a preocupação foi sempre a participação do povo na organiza- ção do Estado, na formação e na atuação do governo, com vistas a resguardar a liberdade e a igualdade. 4 Nesse aspecto, a democracia pode ser con- siderada a igualdade de oportunidade para todos, ou seja, é aquela que garante a todos o acesso ao exercício dos direitos civis, sociais, econômicos e políticos, em igualdade de condições, sendo que o produto dessa oportunidade dependerá da capacidade de cada cidadão. 3 Menezes, analisando a democracia sob os fundamentos da igualdade, liberdade e filosofia de vida, trazendo à colação a posição de vários juristas e sociólogos, idealiza um conceito gené- rico de democracia, entendendo-a como “o ambiente em que um governo de feitio constitucio- nal garante, com base na liberdade e na igualdade, o funcionamento ativo da vontade popular, através do domínio da maioria em favor do bem público, sob fiscalização e crítica da minoria atuante” (1996, p. 277). Tomando por base esses parâmetros e analisando o Estado Democrático de Direito, a partir de um conceito operacional de Estado cujo fundamento e pressuposto é a realização da cidadania, como fim último da sociedade política, far-se-á uma breve análise das transformações que perpassaram o Estado de Direito, desde a vigência do Estado Liberal até o atual Estado De- mocrático, tendo como enfoque as finalidades instituídas em cada modelo, pois cada um deles molda a sociedade e a cidadania com seu conteúdo próprio. O Estado Liberal de Direito apresenta-se caracterizado pelo conteúdo liberal de sua legali- dade – a submissão da soberania estatal à lei – com ênfase nas liberdades negativas, mediante a regulação restritiva da atividade estatal e a divisão de poderes, princípios esses que incorporam a qualidade de serem garantidores dos direitos individuais. Nestes termos afirma-se que o foco central desse modelo concentra-se na lei, motivo pelo qual Morais sustenta que 4 Disponível em: <http://www.a12.com/noticias/noticia.asp?ntc=brasil_comemora_hoje_dia_da_democracia_.html>. Acesso em: 6 abr. 2013. EaD Patrícia Marques oliveski 28 a lei como instrumento da legalidade, caracteriza-se como uma ordem geral e abstrata, regulando a ação social através do não-impedimento de seu livre desenvolvimento; seu instrumento básico é a coerção através da sanção das condutas contraditórias. O ator característico é o indivíduo (1996, p. 79). Esse favorecimento da lei decorre de algumas características fundantes desse modelo, dentre as quais Morais aponta as seguintes: A. Separação entre Estado e Sociedade Civil mediada pelo Direito, este visto como ideal de justiça. B. A garantia das liberdades individuais; os direitos do homem aparecendo como mediadores das relações entre indivíduos e o Estado. C. A democracia surge vinculada ao ideário da soberania da nação produzido pela Revolução Francesa, implicando a aceitação da origem consensual do Estado, o que aponta para a idéia de representação, posteriormente matizada por mecanismos de democracia semidireta – referendum e plebiscito, etc. – bem como para a imposição de um controle hierárquico da produção legislativa através do controle de constitucionalidade. D. O Estado tem um papel reduzido, apresentando-se como Estado Mínimo, assegurando, assim, a liberdade de atuação dos indivíduos (1996, p. 70-71). Quando as relações sociais propiciam novas demandas há a transformação do modelo de Estado Liberal, emergindo, então, o Estado Social de Direito. Essa passagem está intimamente relacionada com a luta dos movimentos operários pela conquista de uma regulação da questão social. […] o Estado Social de Direito, da mesma forma que o anterior, tem por conteúdo jurídico o próprio ideário liberal, agregado pela convencionalmente chamada questão social, a qual traz à baila os pro- blemas próprios ao desenvolvimento das relações de produção e aos novos conflitos emergentes de uma sociedade renovada radicalmente, com atores sociais diversos e conflitos próprios a um modelo industrial-desenvolvimentista (Morais, 1996, 71). Verifica-se, nesse contexto, que o novo modelo de Estado caracteriza-se por um conjunto de garantias e prestações positivas, razão pela qual a lei assume uma nova função, a de instrumen- talizar a ação concreta do Estado, que assume uma nova agenda de ação. Em outras palavras, ocorre a transformação ou passagem de um Estado Mínimo, cuja função era não impedir o livre desenvolvimento das relações socioeconômicas, para um Estado Intervencionista, que passa a exercer tarefas que até então eram relegadas à iniciativa privada. EaD 29 acesso à jUstiça Assim, o Estado social deve garantir a concretização de uma agenda assistencial, podendo ser definido, no entendimento de Bobbio et al. como sendo o Estado que garante “tipos mínimos de renda, saúde, habitação, educação, assegurados a todo o cidadão, não como caridade mas como direito público” (1992, p. 416). Na instituição do Estado Democrático de Direito verifica-se uma nova conjugação que incorpora novas características ao modelo tradicional,até então sustentadas pelo Estado Liberal e pelo Estado Social. O Estado Democrático de Direito carrega consigo um caráter transgressor que implica em agregar o feitio incerto da Democracia ao Direito, impondo um caráter reestruturador à sociedade e, revelando uma contradição fundamental com a juridicidade liberal a partir da reconstrução de seus primados básicos de certeza e segurança jurídicas, para adaptá-los a uma ordenação jurídica voltada para a garantia/implementação do futuro, e não para a conservação do passado (Morais, 1996, p. 81). Nestes termos, o Estado Democrático de Direito caracteriza-se pela incorporação efetiva da questão da igualdade, pois ao lado do núcleo liberal agregado à questão social, “a atuação do Estado passa a ter um conteúdo de mudança do status quo, a lei aparecendo como um ins- trumento de transformação por incorporar um papel simbólico prospectivo de manutenção do espaço vital da humanidade” (Morais, 1996, p. 81). Isso posto, para se conceber plenamente a democracia, é pertinente que se tenha presente o núcleo do Estado Liberal e Social, ou seja, de que aqueles que detêm o poder de decisão o façam de forma livre, mediante a garantia de que direitos de opinião, expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, dentre outros, sejam assegurados. Tais direitos constituem a base do surgimento do Estado Liberal e da construção da doutrina do Estado de Direito, pois, no entender de Bobbio, o Estado Liberal é exatamente o pressuposto, não histórico, mas jurídico, do Estado Democrático. Nesse sentido, afirma: Estado liberal e Estado democrático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do li- beralismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamen- tais (2000, p. 33). É sob essa perspectiva que Streck vai afirmar que no Estado Democrático de Direito “o Direito deve ser visto como instrumento de transformação social” (1999, p. 31), e essa transfor- mação há que ocorrer, inevitavelmente, mediante a concretização dos direitos assegurados na Constituição Federal. Essa tarefa se viabiliza mediante a atuação do poder Judiciário, enquanto EaD Patrícia Marques oliveski 30 poder do atual modelo de Estado, com vistas à concretização do princípio do acesso à Justiça e da realização da cidadania. É por essa razão que, a seguir, vamos analisar o papel assumido pela Constituição Federal no Estado Democrático de Direito. seção 1.3 a importância da constituição no estado democrático de direito Antes, porém, da análise da importância da Constituição no Estado Democrático de Direito faz-se necessário o estudo de seu significado, pois todo sistema político, quando funciona normal- mente, pressupõe uma ordem de valores sobre a qual repousam as instituições. Em se tratando de um modelo democrático, essa ordem é representada pela Constituição, cujos princípios guiam a vida pública e garantem a liberdade dos cidadãos. Nas formas democráticas a Constituição, segundo Bonavides, é tudo, ou seja, […] o fundamento do Direito ergue-se perante a Sociedade e o Estado como o valor mais alto, porquan- to, de sua observância deriva o exercício permanente da autoridade legítima e consentida. Num certo sentido, a Constituição aí se equipara ao povo, cuja soberania ela institucionaliza de modo inviolável. (...) A Constituição se converte, assim, na imagem da legitimidade nacional, valor supremo que limita todos os poderes e faz impossível o exercício da autoridade despótica, espancando as sombras do ar- bítrio sempre familiar à ditadura e aos regimes sem participação popular (1995, p. 206-207). O Estado constitucional, no sentido de Estado enquadrado num sistema normativo fun- damental, é uma criação moderna, tendo surgido paralelamente ao Estado Democrático e, em parte, sob influência dos mesmos princípios. De um modo geral pode-se assegurar que o consti- tucionalismo começou a nascer em 1215, quando os barões da Inglaterra obrigaram o Rei João Sem Terra a assinar a Carta Magna, jurando obedecê-la e aceitando a limitação de seus poderes. Finalmente, no século 18, conjugam-se vários fatores que iriam determinar o aparecimento das Constituições e infundir-lhes as características fundamentais. A afirmação da supremacia do indivíduo, a necessidade de limitação do poder dos gover- nantes e a crença quase religiosa nas virtudes da razão, apoiando a busca da racionalização do poder, são os três grandes objetivos que, conjugados, segundo Dallari, iriam resultar no consti- tucionalismo. Este último objetivo, atuando como que um instrumento para criação das condições que permitissem a consecução dos demais, foi claramente manifestado pelos autores que mais de perto influíram na Revolução Francesa. E assim como ocorrera com a idéia de democracia, também a de Constituição teve EaD 31 acesso à jUstiça mais universalidade na França, de lá se expandindo para outras partes do mundo, justamente porque apoiada na razão, que é comum a todos os povos, mais do que em circunstâncias peculiares ao lugar e à época. Com efeito, embora a primeira Constituição escrita tenha sido a do Estado de Virgínia, de 1776, a primeira posta em prática tenha sido a dos Estados Unidos da América, de 1787, foi a francesa, de 1789/1791, que teve maior repercussão (Dallari, 2000, p. 198). Por seus próprios fundamentos e objetivos o constitucionalismo teve, no geral, um caráter revolucionário em alguns países enquanto instrumento de afirmação política de novas classes econômicas; noutros, porém, teve um sentido quase simbólico, para gerar as monarquias cons- titucionais, em que o absolutismo adquire um fundamento legal. Do ponto de vista material, a Constituição é, segundo Bonavides, “o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais” (1986, p. 57), conteúdo este que se refere à composição e ao funcionamento da ordem pública. Assim, aque- las matérias que não dizem respeito a esse conteúdo, mas que estão inseridas na Constituição, apenas formalmente adquirem aparência constitucional, passando a gozar da garantia e do valor supremo que o texto constitucional lhes confere. O conceito de Constituição, portanto, resultante da conjugação de seus dois sentidos (for- mal e material), tem como resultado a ideia de que o titular do poder constituinte será sempre o povo. Segundo Dallari, é no povo que […] se encontram os valores fundamentais que informam os comportamentos sociais, sendo, portanto, ilegítima a Constituição que reflete os valores e as aspirações de um indivíduo ou de um grupo e não do povo a que a Constituição se vincula. A Constituição autêntica será sempre uma conjugação de valores individuais e valores sociais, que o próprio povo selecionou através da experiência (2000, p. 202). A Constituição vista, então, como um conjunto principiológico material é, no entendimento de Hesse, uma força normativa, ou seja, a Constituição não é simplesmente um conjunto de re- gulações do espaço público da sociedade, mas é uma norma que estabelece o norte, o programa que o Estado (governo) deve seguir, afirmando que a Constituição Jurídica, condicionada pela realidade histórica, […] não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dadarealidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever-ser (Sollen) (1991, p. 24). EaD Patrícia Marques oliveski 32 No mesmo sentido, para caracterizar a supremacia e a devida importância da Constitui- ção, cabe trazer à baila o ensinamento de Canotilho que, para caracterizar a Constituição como normativa e dirigente, explicita que […] a fundamentação da ordem jurídica da comunidade pode limitar-se à definição dos princípios materiais estruturantes (princípio do Estado de Direito, princípio Democrático, princípio Republicano, princípio da Socialidade, princípio Pluralista) ou estender-se à imposição de tarefas e programas que os poderes públicos devem concretizar. Esta constitucionalização de tarefas torna mais importante a legitimação material, embora se considere, em geral, que o fato de a lei constitucional fornecer linhas e programas de ação à política não pode nem deve substituir a luta política. (...) Da articulação destas várias funções se deduzirá que o problema da Constituição não é hoje o de escolher entre uma Consti- tuição-garantia (ou Constituição quadro) e uma Constituição dirigente (ou Constituição programática), mas o de otimizar as funções de garantia e de programática da lei constitucional (1993, p. 74). Essa, portanto, é a ideia da Constituição como dirigente, como explicitação do contrato social, é a ponte para tudo, todas as normas que se contrapuserem a esta norma básica deverão ser tidas como inconstitucionais, porque ferem este princípio da Constituição. Em razão desse quadro é que se defende, no presente trabalho, o necessário comprometimento do Judiciário com a Constituição, com vistas a realizar a cidadania e o princípio constitucional do acesso à Justiça, daí decorrendo a sua suprema importância. seção 1.4 cidadania e acesso à justiça no estado democrático de direito O princípio constitucional da cidadania, no atual Estado Democrático de Direito, está devi- damente previsto na Constituição Federal de 1988, já no seu artigo 1O, inciso II, ao instituir que: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: II – a cidadania”. Assim, a cidadania foi erigida a princípio fundamental, como valor supremo, em posição hierarquicamente superior às demais normas constitucionais. Sabe-se, no entanto, que o conceito de cidadania evoluiu historicamente para passar a considerar o cidadão como integrante da sociedade; devendo, atualmente, ser entendida como a participação deste na comunidade da qual faz parte, como titular de direitos fundamentais, com direito de ter garantida a sua dignidade enquanto pessoa humana, entendendo-o como EaD 33 acesso à jUstiça participante do “processo do poder com a igual consciência de que essa situação subjetiva en- volve também deveres de respeito à dignidade do outro, de contribuir para o aperfeiçoamento de todos” (Silva, 1999, p. 11). A ideia essencial do conceito de cidadania consiste na sua vinculação com o princípio democrático. Por isso pode-se afirmar que, sendo a democracia um conceito histórico que evolui e se enriquece com o tempo, também a cidadania ganha novos contornos com a evolução de- mocrática. É pertinente, assim, conceituar etimologicamente cidadania, que, segundo alguns, originou-se do termo “Cidade” (Civitas – latim), porém representa muito mais do que a fatali- dade de nascer em determinado lugar no tempo e no espaço, sujeitando-se às regras impostas circunstancialmente. Como lembra Plácido e Silva: Segundo a teoria, que se firmou entre nós, a cidadania, palavra que se deriva de cidade, não indica somente a qualidade daquele que habita a cidade, mas, mostrando a efetividade dessa residência, o direito político que lhe é conferido, para que possa participar da vida política do país em que reside (1993, p. 427). No dicionário, a definição de cidadania é descrita como “qualidade ou estado de um ci- dadão” que, por sua vez, é definido como, “indivíduo no gozo dos direitos civis ou políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este” (Schmidt, 1997, p. 74). Mais importante, porém, que a definição da palavra em plano semântico é a tentativa de entender seu significado ao longo do tempo para que fiquem claros os termos de sua conceituação. O primeiro aspecto que deve ser ressaltado é o da ruptura do discurso sustentado pela bur- guesia que distinguia o “homem” do “cidadão”, cuja consequência foi a Declaração de Direitos de 1789 – Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Esse discurso sustentava os direitos do homem como sendo aqueles direitos individuais, enquanto os direitos do cidadão referiam- se aos direitos políticos de votar e ser votado. Essa ruptura ocorre a partir do momento em que surge uma nova concepção de cidadania, decorrente da ideia de Constituição dirigente, que se constitui em um sistema de previsão de direitos sociais, mais ou menos eficazes, em torno dos quais é que se vem construindo a nova ideia de cidadania (Silva, 1999, p. 10). Assim, o desenvolvimento das forças produtivas e os agentes sociais que protagonizavam a história na passagem do regime de escravidão para a “liberdade” do sistema burguês emer- gente impuseram novos limites e novas contradições ao exercício da cidadania plena. A classe burguesa, além de estabelecer novos parâmetros para definição do indivíduo e suas relações com a sociedade e o Estado baseados na trilogia liberdade, igualdade, fraternidade, postulou um projeto político de organização social expresso na fundamentação jurídica, em que o direito era, de fato, substitutivo do privilégio. EaD Patrícia Marques oliveski 34 Quanto à sua origem histórica a noção moderna de cidadania nasceu vinculada à questão do direito, ou seja, ao discurso jusnaturalista formulado no bojo do contexto libertário e revolucionário da época moderna. O projeto social da burguesia como nova classe emergente alicerçava-se em um novo status: não mais o status servil caracterizador do período medieval do feudalismo, marcado pela desigualdade institucionalizada em estamentos ou ordens, mas o status da cidadania civil (Corrêa, 1999, p. 210). A partir deste marco histórico surgem as definições e conceitos de cidadania, traduzindo, assim, necessidades do novo indivíduo que emergiu da expansão das condições socioeconômicas. Pode-se, sem temor, afirmar que o conteúdo dessas novas conceituações era libertário, o que vai caracterizar todo o movimento de emancipação daí por diante. A participação dos indivíduos na vida do Estado e o seu reconhecimento como pessoa in- tegrada à sociedade significa que o funcionamento do Estado está submetido à vontade popular, e a cidadania, assim considerada, consiste na identificação do homem como titular de direitos fundamentais e em sua integração participativa no processo do poder e da dignidade da pessoa humana. Percebe-se, sob um outro aspecto, que a cidadania está intimamente vinculada à ideia de direitos humanos, aliás, o projeto da burguesia do século 18 surge sob a forma de direitos civis, tendo como forte expoente o direito de liberdade. Para se entender precisamente o conceito de cidadania, sem confundi-la com os direitos humanos, é preciso superar a postura estreita e re- ducionista presente nas análises marcadas pelo ideário positivista-liberal. As desigualdades que surgiram diante da nova ordem instaurada pela burguesia carac- terizam-se por uma lógica de mercado que privilegia o lucro e o acúmulo de capitais, desen-
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