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ISBN flS-7i4tD-mt-E 9ll798574ll601464ll BC COS 39 K96c KUP ciências BC ag 215516 Adam Kuper Coordenação Editorial Irmã Jacinta Turolo Garcia Assessoría Administrativa Irmã Teresa Ana Sofiãtti Coordenação da Coleção Ciências Sociais Luiz Eugênio Véscio Cultura a visão dos antropólogos T r a d u ç ã o Mirtes Frange de Oliveira Pinheiros caenoas^ sociais EDUSC Editora da Universidade do Sagrado Coração 00 S EDUSC Ia Universidade do Sagrado Coraçã< K9678c Kuper, Adam , Cultura : a visão dos antropólogos / Adam Kuper ; tradução Miites Fraiige; de Oliveira, .pinheiros. - Bauru/SP: EDUSC, 2002. 324 p. ; 21 cm. — (Coleção Ciências Sociais) ISBN 85-7460-146-2 Tradução de: Culture: the anthropologisfs account. 1. Cultura. 2. Etnologia. 3. Civilização — Sociologia. I. Título. II. Série. CDD. 306 ISBN 0^674-00.417-5 (original) Copyright© Adam Kuper, 1999 Copyright© (tradução) EDUSC, 2002 Tradução realizada a partir da edição de 1999 Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela EDITORA DA UNIVERSIDADE DO 'SAGRADO CORAÇÃO Rua Irmã Arminda, 10-50 CEP 17011-160 - Bauru - SP Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219 e-mail: eclusc@edusc.com,br para Jessica l. sumario 9 Prefácio à edição brasileira 11 Prefácio 21 Introdução: guerras culturais Parte 1. Genealogias 45 Capítulo 1. Cultura e civilização: intelectuais franceses, alemães e ingleses, 1930-1958 73 Capítulo 2. A visão cias ciências sociaisfTalcott Parsons e os antropólogos americanos Parte 2. Experimentos lOjv Capítulo 3. Clifford Géertz: cultura como religião e como grande ópera 101 Capítulo 4. David Schneíder: biologia como cultura 207 Capítulo 5. Marshall Sahlins: história como cultura 259 ( Capítulo 6. Admirável mundo novo 287 Capítulo 7. Cultura, diferença, identidade Leituras adicionais 317 Agradecimentos 319 índice onomástico l prefácio à edição brasileira E,/m agosto cie 1999, pouco antes da publicação inicial cie Cultura., eu era professor convidado no Museu Nacional cio Rio de Janeiro, oncle conduzi uma série cie seminários que sintetizavam, o assunto cio livro. As discussões foram uma revelação para mim.'Não é demais dizer que me sentia em casa, tanto nas mas dó Rio quanto no anfiteatro cie conférên.-. cias. Os jovens brasileiros com os quais dialogava obviamente entendiam muito, bem o quex eu tinha em mente. Meu primeiro envolvimento com as questões cie identidade e política cultural se deu na década de 1950,, quando era estu- dante universitário na África do Sul. No Brasil, no final do século 20, jovens antropólogos intetessavam-se por questões muito similares, com a mesma intensidade. Tanto no Brasil como na África do Sul, a definição de cultura e a importância dada às causas culturais não eram apenas questões acadêmi- cas abstratas, mas problemas com conseqüências políticas e sociais imediatas. Essas questões estavam no âmago cios de- bates nacionais sobre raça, sobre o caráter e o.destino dos "povos indígenas", sobre as causas cia pobreza. No Brasil, como tem muitos outros países, por vezes pare- cia que a idéia de cultura havia substituído a idéia cie raça no discurso popular, mas falar de cultura freqüentemente eqüiva- lia a falar de raça, oferecendo uma razão para crer que as relações econômicas, políticas e sociais eram determinadas pela natureza interior dos diferentes grupos na: sociedade. Para entendermos as implicações desse, tipo de pensamento basta considerarmos alguns dos fatores que ele. rejeita: as con- seqüências das, políticas econômicas, o poder modeíador da políticajnternacional, a política dos grupos de interesse. Uma antropologia que se define como o estudo da cultura despre- zará fatores sociais, políticos, econômicos e também biológi- ! cos. Idéias e valores serão vistos como as causas cio compor- tamento — cio crime, das práticas trabalhistas, cias práticas edu- prefácio à edição brasileira cacionais — e não como as conseqüências de outros fatores, tais como a prosperidade e a pfobreza relativas, as oportu- nidades de emprego, a exclusão cios processos políticos, a cor- rupção e assim por diante. A primeira parte deste livro explora as genealogias inte- lectuais das diferentes noções de cultura. A segunda "parte examina as quase sempre criativas e críticas aplicações de uma noção particular cie .cultura na antropologia cultural nos Estados Unidos durante a segunda metade cio século 20. Esta parte do livro denomina-se Experimentos, pois os maiores expoentes da antropologia cultural moderna estavam na ver- dade testando o valor do conceito de cultura para a com- preensão do comportamento humano. Finalinente, discuto as versões mais recentes do determinismo cultural em antropolo- gia e levanto questões sobre o que poderia acontecer se fôsse- mos tentados à-adotar uma teoria cia história radicalmente ide-, 'alista e relativista. Escrevo este Prefácio uma semana após os ataques ter- roristas nas cidades de Nova York e Washington. As .reações imediatas ciavam conta cie que o acontecido provava a tese de Samuel Huntington cie que os conflitos do século 21 seriam conflitos culturais e cjue as novas guerras seriam guerras entre civilizações. Há um fatalismo trágico neste tipo de visão, assim como havia na idéia muito parecida, no início cio século 20, de que raça era destino, e que a$ grandes guerras por vir seri- am guerras entre raças. Até certo ponto, uma profecia desse tipo poderá, se concretizar. Vale a pena refletir muito sobre as teorias e a própria idéia cie cultura que fundamentam essa maneira de "pensar. -Londres, 17 de setembro de 2001 Tradução cie Valéria Biondo lio (prefácio JL álo neste livro sobre certa "tradição moderna dentro do antigo discurso internacional em constante transformação Sobre cultura. Já em 1917, Robert Lowie declarou que cultura "é, na verdade, o único assunto da etnologia, assim como a consciência é o assunto cia psicologia, a vida é o assunto clã biologia e a eletricidade é um ramo cia física".' Palavras arre- batadoras. Boa parte dos catedráticos alemães, por exemplo, descreveu seu campo como ciência cultural, mas não como etnologia. Os discípulos cie Mathew Arnold perguntaram se era possível encontrar qualquer cultura, que fizesse jus ao nome além das fronteiras das grandes civilizações. É alguns- antropólogos contestaram, dizendo que o verdadeiro tema da_ süà disciplina era a evolução hivmana.-JVías. Lowie falou em nome cie uma escola de antropologia cultural norte-america- na recém-criacla que decidiu desafiar as idéias comumehte' aceitas, Suas afirmações seriam, levadas mais a sério uma ge- ração mais tarde.' Depois da Segunda Guerra Mundial, as Ciên- cias sociais gozaram de um período de prosperidade e prestí- gio sem precedentes nos Estados Unidos. As várias disciplinas ficaram mais especializadas e a antropologia cultural recebeu uma licença especial para atuar no campo cia cultura. Os resultados foram bastante satisfatórios; pelo menos a princípio, para os antropólogos. Stuart Chase comentou, em 1948, que o "conceito cie cultura dos antropólogos e sociólo- gos está sendo considerado o alicerce das ciências sociais".2 Em 195t2,"a opinião respeitada cios maiores expoentes da an- tropologia norte-americana cia época, Alfred Kroeber e Clycle Kluckhohn, era de que "a idéia -de cultura, no sentido antro- 1. LOWIE, Robert II. Culliíre and Ethnology. Nova York: McMur- trie, 1917. p. 5, ,2. CHASE, Saiait. TíyeProper Study ofMankind. Nova York: Harper, 194S. p. 59. H l prefácio prefácio polõgico técnico, constitui, uma das principais noções do pen- samento americano contemporâneo".3 E eles estavam confian- tes cie que no "sentido antropológico técnico", cultura era um conceito de promessa científica cie grande vulto, "quase ilimi- tado. "Em importânciaexplicativa e generalidade de aplicação é comparável á categorias como a gravidade na, física, a doen- ça na medicina e a,evolução na biologia." Hoje em dia as coisas estão muito diferentes. Poucos an- tropólogos afirmariam que a noção de cultura pode ser com- parada "em importância explicativa" com gravidade, doença ou evolução. Embora ainda se considerem especialistas no es- tudo cia cultura, eles precisam aceitar a idéia de quê não go- zam mais de uma posição privilegiada na galeria condensada e diversa cie autoridades em cultura. Além disso, -a natureza cla. área que eles reivindicam-sofreu uma mudança radical. De modo geral, eles transferiram sua fidelidade intelectual das ciências sociais para as ciências humanas, e estão propensos a fazer uma interpretação prática, até mesmo uma desconstru- ção, e não uma análise sociológica ou -psicológica. Não obs- tante, ,os antropólogos modernos norte-americanos vêm siste- maciçamente aplicando as teorias culturais em uma grande va- riedade de estudos etnográficos, e creio que seus experimen- tos representam o mais intrigante e satisfatório teste do valor - e talvez da validade - das teorias culturais. O objetivo pri- mordial deste livro, por conseguinte, consiste em fazer uma ^avaliação do projeto-.central da -antropologia cultural norte- americana cio pós-guerra. Cheguei à conclusão de que~quanto"mais se analisam os melhores trabalhos modernos cios antropólogos sobre cultura, mais aconselhável se torna abandonar cie vez a palavra hiper- :_ referencial e passar a falar de forma mais precisa sobre conhe- cimento, convicção, arte, tecnologia, tradição ou até mesmo ideologia (embora problemas semelhantes sejam levantados por esses conceitos polivalentes). Existem problemas episte- mológicos fundamentais, e não vai ser tergiversando, sobre 3. KROEBER, A. L.; KLUCKHOHN, Clyde. 'Çulture: A Criticai Re- view of Concepts and Definitions. Cambridge, Mass.: Trabalhos cio Peabody Musèüm, 1952, p. 3. -'.- cultura ou apurando definições que esses problemas serão re- solvidos. As dificuldades tornam-se maiores quando (.depois cie todos os protestos em contrário) a cultura deixa cie ser algo a ser descrito, interpretado ou talvez até mesmo explicado para ser tratada como uma fonte de explicação propriamente dita. Não quero GO m isso negar que alguma forma de explica- ção cultural possa ser bastante útil, em seu devido lugar, mas apelos à cultura.só podem oferecer uma explicação parcial do que leva as pessoas a pensarem e a agirem de determinada forma e cio que faz com que elas.mudem seu jeito cie ser. For- ças políticas e econômicas, instituições sociais e processos biológicos não desaparecem como num passe de mágica ape- nas porque esse é o nosso desejo, nem podem ser assimila- dos em sistemas de conhecimentos e crenças. E esse, eu diria, constitui o principal empecilho no caminho da teoria.cultural, certamente em vista de suas pretensões atuais. - Espero que os capítulos independentes deste livro pos- sam corroborar essas conclusões, persuadir o leitor de visão e semear dúvidas na mente dos mais crédulos. Entretanto, po- der-se-ia alegar que, antes cie iniciar esse projeto, eu tinha pre- conceitos contra a maior parte cias teorias sobre cultura. Sou membro integrante cia facção européia de antropologia que sempre teve muita cautela em reivindicar cultura como seu tema exclusivo, ê mais, ainda de lhe conferir poder de explica- ção. Sem dúvida alguma, meu ceticismo inicial foi acentuado por minhas visões políticas: sou. liberal, no sentido.europeu e .não americano, um homem moderado, um humanista sem ex- tremos; .mas apesar de ser bastante sensato, não posso dizer que estou livre de preconceitos. Um materialista moderado e com convicções brandas sobre direitos humanos universais, sou refratário ao idealismo,e ao relativismo cia teoria cultural moderna e não tenho muita simpatia pelos movimentos sociais fundamentados em nacionalismo, identidade étnica ou reli- gião, exatamente os movimentos que exibem maior tendência de invocar a cultura para motivar ação política. Pouco antes cie começar a escrever este livro, tomei cons- ciência cie. que essas dúvidas teóricas e preocupações políticas estavam profundamente enraizadas em minha própria condi- ção cie sul-africano liberal. No estágio inicial cia recente trans- 12' ; 13! prefácio formação por que passou a África cio Sul, depois da eleição cie F. W, De Klerk para á presidência mas antes da libertação cie Nelson Mandela da prisão, um momento imbuído de grandes possibilidades históricas, recebi uma carta de um eminente an- tropólogo americano. Ele havia siclo convidado a proferir uma palestra sobre liberdade acadêmica na Universidade da Cidade cio Cabo. Naturalmente, ele se perguntava de que maneira um antropólogo poderia contribuir para os seríssimos debates so^ bre raça, cultura e história que arrebatavam a África cio Sul, e me pedia para lhe fornecer alguns subsídios sobre as discus- sões travadas nos círculos antropológicos locais.:Eu lhe enviei jrevisòes dos principais argumentos cia antropologia cultural africânder, e ele me escreveu novamente agradecendo. Ele es- capou por pouco de cometer uma grave impropriedacle, pois seu primeiro impulso tinha sido dedicar a palestra a um dis- curso boasiano clássico sobre cultura. Provavelmente ele teria afirmado que raça e cultura eram independentes entre si, ,que era a cultura que tornava"as pessoas o que elas, eram e que.o respeito .pelas diferenças culturais deveria constituir a base cie uma sociedade justa. Um argumento edificante nos Estados Unidos, mas que na África cio Sul teria soado como uma justi- ficativa desesperada para o apartheicl. Esse paradoxo estava profundamente entranhaclo em mi- nha consciência e, sem dúvida, constituiu um dos motivos para a elaboração deste livro. Eu estava cursando a faculdade na África do Sul no final década cie f 950. Naquela época, um sistema africânder radical segurava firmemente as rédeas do país, e sua política coercitiva de segregação racial, o apar- theicl, estava sendo implementada com um tipo cie sadismo' moralizante. O governo parecia ser praticamente invulnerável e impérvio a críticas. Os movimentos de oposição africana eram brutalmente reprimidos. E, no entanto, havia um campo em que aparentemente 'algumás"das convicções mais sagradas desgoverno podiam ser expostas por argumentos sensatos e evidências irrefutáveis. .Embora muitas vezes estivessem en- voltas na linguagem da teologia, _as doutrinas oficiais sobre raça e cultura invocavam autoridade científica; o apartheicl es- tava fundamentado numa teoria antropológica. Não era por acaso que seu arquiteto intelectual,-W. W. M. Eiselen, tinha sido professor cie etnologia. L 14 prefácio Os nacionalistas africânderes suspeitavam da "missão ci- vilizaclora" proclamada, com boa ou má fé, pelos poderes co- loniais na África.4 Alguns acreditavam que os africanos não .podiam ser socializados, e que até mesmo uma tentativa nes- se sentido era contraproducente; ou, na melhor cias hipóteses, que levaria séculos para alcançar tal objetivo, e talvez apenas a um grande custo humano. Esse tipo cie argumento, em ge- ral, é motivado por um racismo torpe, e o pensamento racis- ta certamente era disseminado entre os brancos sul-africanos. Entretanto, alguns intelectuais africânderes, entre eles Eiselen, repudiavam os preconceitos populares. Não havia provas-cie que, a inteligência variava com a raça, afirmou Eiselen numa palestra em 1929, tampouco que uma raça ou nação privile- giada deveria conduzir o mundo para todo o sempre na civi- lização. Não era a raça, mas sim a cultura que constituía a ver-" cladeira base da diferença, o sinal do destino. E as diferenças culturais deveriam ser avaliadas. A troca cultural, até mesmo o progresso, não era necessariamente uma dádiva.-Seu custo podia ser demasiadamente alto. Se a integridadecias culturas tradicionais fosse minada, haveria uma desintegração social. Eiselen achava que o governo deveria estimular uma "cultura banto mais elevada, e não produzir europeus negros". Mais tarde, o slogan "desenvolvimento separado" passou a ser usa- do. A segregação era o curso adequado ^para a África cio Sul, pois só assim as diferenças culturais seriam preservadas. A escola cie etnologia do apartheicl citava os antropólo- ^gos culturais , norte-americanos com aprovação, embora em grande parte em seus próprios termos; mas seus líderes eram' radicalmente contrários as teorias cia escola britânica de antro- pologia social, sobretudo às teorias cie A. R. Raclcliffe-Brown; primeiro a ocupar a cadeira cie antropologia social na África do Sul, em Í921. Radcliffe-Brown, obviamente, não negava que 4. Para uma revisão da etnologia africânder e da carreira de Eise- len, ver GORDON, Robert. Apartheid's Anthropologist: The Gè- nealogy of Afrikaner Anthropology. American Ethnologist, v. 13, n. 3, p. 535-53, 1988, e para um relato mais geral sobre a antro- pologia sul-africana, ver HAMMOND-TOOKE, W; D. Imperfect tn- terpreters: South Africa's Anthropologists 1920-1990. Joanesburgo: Witwatersrand University Press1, 1997. 151 prefácio existiam diferenças culturais no país, mas rejeitava a política de segregação com base no argumento cie que a, África do. Sul transformara-se numa sociedade única. As instituições nacio- nais cruzavam as fronteiras culturais -e moldavam opções cie vicia em todas, as aldeias e cidades no país. Todos os cidadãos (ou indivíduos) estavam no mesmo;barco. As, políticas de base acerca de diferenças culturais representavam uma 'receita para o desastre. "A segregação é insuportável", afirmou ele à platéia em uma de suas palestras. "O nacionalismo sul-africano tem cie ser um nacionalismo composto poí pretos e brancos." Em parte como resultado cia sua experiência sul-africa-. na, Radcliffe-Brown,, mais tarde, tinha a tendência cie tratar todos os assuntos ligados à cultura com reservas! "Não obser- vamos uma 'cultura'", comentou ele em seu discurso de pos- se como presidente cio Royal Antllrópological Institute, em - 1940, "uma vez que essa palavra denota, não uma realidade concreta, mas uma abstração, e da forma com é usada comu- "mente, uma abstração vaga".5 Ele repudiava a opinião do seu grande rival, Bronislaw Malinowski, de que uma sociedade como a África cio Sul deveria ser estudada como uma arena em que duas ou mais "culturas" interagiam. "Pois o que está ocorrendo na África cio Sul [explicou Radcliffe-Brown] não é a interação das culturas britânica, africânder (ou bôer), hoten- to'te, banto e, indiana, mas sim a interação cie indivíduos e grupos dentro cie uma estrutura social estabelecida que está. em processo cie mudança. O que está acontecendo numa tri- bo em Transkei, pôr exemplo, só pode ser descrito reconhe- cendo-se que a tribo foi incorporada num amplo sistema es- truturar político e econômico."6 Vindo da África do Sul, sem dúvida alguma eu estava predisposto a aceitar esse tipo de argumento. Além do mais, quaisquer preconceitos iniciais que e-ú tivesse foram reforça- dos no meu curso de pós-graduação em antropologia estrütu^- ral e social na Universidade de Cambridge no início da déca- da, cie 196o. Todavia, alguns cios meus contemporâneos real- .5. RADCLIFFE-BROWN, A. R. Ün Social Structure. Journal of the, Rayal Anthropological Institute, v. 70, p. 1-12, 1940. 6. Icl., ibid. 16 prefácio mente se libertaram desse condicionamento inicial e'abraça- ram a escola cultural. Meu ceticismo sobre cultura era mais forte, em parte por ter ficado, tão impressionado com o abuso da teoria cultural na África do Sul. Mas não é de todo ruim abordar uma teoria profundamente arraigada com uma postu- ra cética. Ademais, as inclinações políticas não impedem, ne- cessariamente, alguém de avaliar os pontos fortes e fracos cios- contra-argumentos. Além disso, as teorias culturais geralmen- te trazem em seu bojo uma carga política, justificando unia crí- tica política. Mas embora minha experiência sul-africana tenha influenciado minhas indagações acerca da teoria cultural, es- pero que isso não determine as conclusões a que cheguei. Qualquer que seja o preconceito que eu tenha trazido para esse projeto, fiz o melhor que pude para respeitar tanto os ar- gumentos como as evidências. , 171 Provavelmente, isso é tudo o que se pode pedir da his- tória, sobretudo da história de idéias: não solucionar as questões, mas sim elevar o nível cio debate. Albert O. Hirschman (introdução: (guerras culturais Não sei -quantas vezes desejei nunca ter ouvido a maldita palavra.' Raymond Williams acadêmicos americanos estão travando-guerras culturais. (Nem todas estão moitas). Os políticos conclamam uma revolução cultural. Aparentemente, é necessário .que haja , uma mudança cultural sísmica para.resolver os problemas cie pobreza, consumo cie drogas, crime, ilegitimidade e competi- ção industrial. Fala-se sobre diferenças culturais entre sexos e- gerações, entre equipes de futebol ou entre agências cie pro- paganda. Quando uma fusão entre duas empresas não dá cer- to, dizem que suas culturas não eram compatíveis.:O bom-cie tudo isso é cjue todo mundo entende. "Tentamos vender 'se- miótica', mas tivemos algumas dificuldades", declarou uma empresa londrina chamada Semiotic Solutions, "por isso agora vendemos 'cultura'. Essa todos conhecem e, portanto, dispen- sa explicações".2 Além disso, não há como subestimar a cultu- ra. "Ela fala- mais alto em termos de motivação cio comporta- mento do consumidor", afirma o folheto cia empresa, "é mais persuasiva do que a razão, mais 'massa' do que a psicologia"! Existe também um mercado secundário florescente no discur- so cultural. Em meados de 1990, as livrarias montaram seções- de "estudos culturais" em posições de destaque que antes eram,dedicadas à religião New Age e, antes disso, áps livros de auto-ajuda. O gerente da Olsson's em Washington, D. C., Guy 1. WILLIAMS, Raymond. Polüics and Letlers. Londres: New Left Books, 1979. p. 174T 2. MACFARQUAHAR, Larissa. This Semiotieian Went to Market. Lín- gua Franca, p. 62, set./out. 1994. 21 . Introdução Brussat, explicou: "As pessoas vêem sociologia e pensam: tex- to acadêmico árido. Elas vêem estudos culturais e pensam: Ah, cultura! Trata-se cie uma abordagem .psicológica sutil."1 Todo inundo está envolvido com cultura atualmente. Para os antropólogos, esse já foi um termo ligado às artes. Hoje, os nativos falam de suas culturas. "Cultura - a própria palavra, ou algum equivalente local - está na boca cie todos", observou Marshall Sahlins.4 "Tíbetanos, havaianos, esquimós, cazaques, mongóis, aborígenes australianos, balineses, caxe- rriirenses, Ojibway, Kwakiutl e Maori neozelandeses: todos descobrem cfue -têm uma 'cultura'." Os índios Caiapó que vi- vem na floresta tropical da América do Sul usam o termo cul- tura para descrever suas cerimônias tradicionais. Maurice Go- delier descreve um trabalhador emigrante que retorna para o seu povo na Nova Guiné, os Baruya, proclamando: "Precisa- mos fortalecer nossos costumes; precisámos nos basear naqui- lo que os brancos chamam de cultura." Outro habitante da Nova Guiné diz a, um antropólogo: "Se não tivéssemos kas- tom, seríamos exatamente como os homens brancos." Sahlins menciona toclos esses exemplos para ilustrar uma proposição geral: "A consciência cultural que se desenvolveu entre ás an- tigas vítimas cio imperialismo, no final do século 20, constitui um dos fenômenos mais notáveis cia história mundial." Essas vítimas podem até mesmo desenvolver uma cultu- ra crítica. Gerd Baumann mostrou que em Southall, subúrbio multiétnico situado a oeste de Londres, em primeiro lugar as pessoas "questionam o significado dos termos 'cultura' e 'co- munidade'. Qs termos, por si só, tornam-sefundamentais para a formação de uma cultura em Southall".5 Todavia, até mesmo os nacionalistas antiocidente podem simplesmente se apro- priar da retórica internacional dominante de cultura para afir- mar á identidade singular do seu próprio povo, sem medo de se contradizerem. "Achamos que a maior ameaça à nossa so- 3. MARSHALL, Jessica. .Shelf Life. Franca, p. 27, mar./abr. 1995. 4. SAHLINS, Marshall. Goodby to Tristes Tropes: Ethnography in the Context of Moclern World Histoiy. Journal of Modem Histoiy, v. 65, p. 3-4, 1993. 5. BAUMANN, Gerd, Contesting Culture: Discourses of Identity in Multi-Ethnic London. Cambridge: Cambridge University Press, 1996T p. 145. 122 Introdução ciedade atualmente", cliz um político iraniano fundamentalista, "é cultural".".(Mas certamente falar sobre identidade cultural é muito... americano?) Akio Morita, um cios fundadores da Sony, rebate as alegações cie que o Japão deveria, liberalizar seus acordos de,comércio para permitir uma maior competição cie empresas estrangeiras. "Reciprocidade", explica ele, "significa- ria alterar as leis para aceitar sistemas estrangeiros que podem não ser adequados à nossa cultura".7 (Felizmente, vender tele- visores Sony para os-américanos e fazer filmes hollywoodiafios está perfeitamente de acordo com a cultura japonesa,) _ Talvez o futuro cie todo o mundo dependa cia cultura. Em 1993, Samuel Huntington anunciou num artigo apocalíp- tico para a revista norte-americana Foreign Affairs que a his- tória global iniciou uma nova fase, em que "as principais fon- tes cie conflito" não serão fundamentalmente econômicas ou ideológicas. "As grandes divisões entre a humanidade e as principais fontes de conflito serão culturais."8 Ao discorrer so- bre essa tese recentemente num livro, ele afirmou que pode- mos esperar um gigantesco choque cíe civilizações, cada qual representando uma identidade cultural primordial. As "princi- pais diferenças no desenvolvimento político e econômico en- tre as civilizações estão claramente enraizadas em suas cultu- ras distintas", e "a cultura e as identidades culturais... estão moldando os padrões de coesão, desintegração:e conflito no mundo pós-Guerra Fria,.. Nesse novo mundo, a política, lo • cal é a política da etnicidade; a política global é a política de civilizações, A rivalidade cias superpotências é substituída pelo choque de civilizações".9 , . 6. International H, p. 5, 1996. __ 7. Apud BURÚMA, lan, The Mtssionary and the Libertina Lovè and War in East anel West. Londres: Faber, 1996. p, 235. 8. HUNTINGTON, Samuel P. Foreign Affairs, p. 22, verão 1993- 9. Id. The Clash of Ciinlization and the Remaking of World Or- der. Nova York: Simon and Schuster, 1996. p, 29- As observações seguintes são das páginas 20 e 28. Observe-que o ensaio original fazia a pergunta ("as principais fontes de conflito"). Agora, apa- rentemente, a pergunta foi respondida, de forma afirmativa. 231 Introdução Introdução Não é preciso dizer que cultura tem um significado bas- tante diferente para os pesquisadores de mercado em Lon- 'dres, para um magnata japonês, para os habitantes da Nova Guiné e para um religioso radical de Teerã, sem falar em Sa- muel Huntington. Há, entretanto, .uma semelhança familiar '. entre os conceitos que eles têm em mente" Em seu sentido mais amplo, cultura-é simplesmente uma forma de falar so- bre identidades coletivas. Porém, o status também está em jogo. Muitas pessoas, acreditam que, as culturas podem ser comparadas, e tendem a prezar mais a sua própria cultura. Elas-podem, até mesmo, acreditar que exista apenas uma ci- vilização verdadeira, e que o futuro não. apenas cia nação, mas do mundo, depende da sobrevivência da sua.cultura. "A despeito dos multiculturalistas", insiste Roger Kimball, "a op- ção atualmente não é-entre uma cultura ocidentar'repressiva' e um paraíso multicultural, mas sim entre cultura e barbaris- mo. Civilização não é uma dádiva, mas sim uma conquista - uma conquista frágil que precisa ser constantemente reafir- mada e defendida interna e externamente contra sitiadores".10 Huntington diz-que o conflito de civilizações pós-Guerra Fria . não passa de um estágio no caminho da luta maior que está por vir, "o conflito maior, o 'verdadeiro conflito' global, entre Civilização e barbarismo".11 Enquanto os patriotas da Civilização ocidental reivindi- cam a superioridade da grande tradição, os multiculturalistas comemoram a diversidade cia América e defendem a cultura- cios marginalizados, das minorias, cios dissidentes e cios colo- nizados. A cultura do establishment é denunciada como opressiva. A&_culturas das minorias fortalecem os fracos: elas são autênticas; elas falam para pessoas cie verdade; elas man- têm variedade e escolha; elas alimentam a dissensão. Todas as culturas são iguais, ou deveriam ser tratadas como "tal. "Por-.- tanto, a cultura como tema ou tópico cie estudo substituiu a sociedade como objeto geral de indagação entre os progres- W. KIMBALL, Roger. Tenured Radicais, New Criterío.n, p.. 13, jan. 1991. '•'(-•'• 11. HUNTINGTON, Samuel P. op. cit. p. 321. sistas", escreve Erecl Inglis, com um leve toque de ironia.12 Mas embora os conservadores rejeitem esses argumentos, eles con- cordam que a cultura estabelece padrões públicos e determi- na o destino cia nação. E quando pessoas de nações e grupos étnicos distintos entram em contato, há um confronto total cie culturas. Alguém deve-ceder nesse conflito. A cultura também é usada freqüentemente com outro sentido, para se referir à grande arte que é apreciada por pou- cos afortunados. Mas não se trata simplesmente cie uma reali- zação pessoal. Se a arte e a erudição forem ameaçadas, o bem- estar cie toda a nação estará em jogo. Para Matthew Arnold, a verdadeira luta cie classes não era travada .entre ricos e pobres, mas sim entre os guardiões da cultura e as pessoas,a quem ele chamava de filisteus, que serviam a Mamon. Escritores radicais, contudo, negam que a cultura da elite dissemina doçura ejuz. A alta cultura pode representar um instrurnento de dominação, um ardil cias castas. Em meio à elite, argumentou Pierre Bõur- dieu, o valor das altas culturas reside precisamente no fato cie' que a capacidade de avaliar obras de arte e fazer distinções por si só confere "distinção".13 A cultura é õ dom do gosto re- finado que diferencia unia clama ou um cavalheiro do'novo- rico. Para os adeptos da tradição marxista., a cultura tem seu lugar numa luta de classes mais ampla. A alta cultura disfarça as extorsões dos ricos. A cultura de massa de Ersatz confunde os'pobres. Apenas as tradições culturais populares podem'con- trapor-se à corrupção cia mídia de massa., Embora haja muita conversa em torno de cultura, discus- sões desse tipo obviamente não são novas. Todas elas aflora- ram durante uma explosão semelhante cie teorização cultural .que ocorreu entre as.décadas cie 1920 e de 1950, como mostra o próximo capítulo. (Talvez essa longa discussão apenas tenha sido interrompida.durante uma geração em virtude cljjs preocu- pações ideológicas cia Guerra Fria). Naquela época, assim como agora, os autores mais reflexivos citavam seus precursores cios séculos 18 e 19, reconhecendo que os discursos sobre cultura tendem a se encaixar em categorias bem definidas.- 12. INGLIS, Frecl. Cultural'Studies. Oxford: Blackwell, 1993. p. 109. 13. BOURDIEU, Pierre. Distinction: A Social Critique of the Judge- ment of Taste. Londres: Routledge, 1984. !24 Introdução Introdução Uma teoria francesa de cultura, uma alemã e uma Ingle- sa muitas vezes são identificadas cie forma vaga.- Da mesma forma, e igualmente vaga, podem-se distinguir discursos ro- mânticos, clássicos e ilúministas. Tratam-se de rótulos toscos para constructos complexos que são regularmente separados e reagrupados em novos padrões, ^ adaptados, declarados mortos, revividos, renomeados, remodelados e, em geral,su- jeitos a uma variedade de transformações estruturais. No en- tanto, apesar de grosseira, essa. classificação fornece uma orientação inicial. Até mesmo os pensadores mais imaginati- , vos e originais podem encaixar-se em uma ou outra dessas tradições centrais, cada uma delas especificando uma con- ; cepção de cultura e colocando-a em .ação dentro cie uma de- terminada teoria da história. Na: tradição francesa, a civilização ê representada como « uma conquista progressiva, cumulativa e. distintamente, huma- na. Os seres humanos são semelhantes, pelo menos em po- tencial. Todos-são capazes de criar uma civilização, o que de- pende do dom exclusivamente humano da razão. Não resta dúvida, de que a civilização se desenvolveu mais na França, -mas .em princípio ela pode ser usufruída, embora talvez não com a mesma intensidade, por selvagens, bárbaros e outros povos europeus. Segundo Louis Dürripnt, um francês, portan- : íõ, vai "identificar inocentemente sua própria cultura com 'ci- vilisation' ou cultura universal"." Para ser exato, um francês "reflexivo admitiria prontamente que a razão nem sempre pre- valece,' ela precisa lutar contra a tradição, a superstição e o instinto irracional. Mas ele poderia ficar confiante na vitória ;suprema dá civilização, pois ela pode convocar a ciência para vir-em seu auxílio: a. mais alta expressão da razão e, certamen- te, da cultura ou civilização, o conhecimento verdadeiro e efi- caz das leis que informam a natureza e a sociedade. Esse credo secular foi formulado na França na segunda metade do século 18, em, oposição ao que os phtiosophes con- sideravam como forças cie reação e irracionalidade, represen- tadas, acima cie tudo, pela igreja católica e pelo ancien regime. ' A medida que esse creçlo se espalhou pelo resto da Europa, sua maior oposição ideológica veio cios intelectuais alemães, amiúde ministros protestantes incitados a defender a tradição nacional contra a civilização cosmopolita; os valores espirituais contra o materialismo; as artes e os trabalhos manuais contra a . "i ciência e a tecnologia; a genialidade .individual .e a expressão das próprias idéias contra a burocracia asfixiante; as emoções, até mesmo as forças mais obscuras.do nosso íntimo contra a razão árida: em suma, Kultur contra Civilização: Ao contrário cio conhecimento científico, a sabedoria da cultura é subjetiva. Suas reflexões mais profundas são re- lativas, e não leis universais. O que é válido em vim lado dos Pireneus põcle representar um erro do outro lado. Mas quan- do a fé cultural é corroída, a vida perde todo o seu signifi- cado. Enquanto a civilização material está ganhando terreno em toda a sociedade européia, as nações lutam para manter uma cultura espiritual, expressada acima cie tudo por inter- médio cia linguagem e das artes. A autêntica Kultur dos ale- mães certamente seria preferível à Civilização artificial de uma elite francófona cosmopolita e materialista. De qualquer ,forma, diferença cultural era normal. Não existe uma nature- za humana comum. "Tenho visto franceses, italianos, rus- sos", escreveu o contra-reyolucionário, francês de Maistre. "Mas quanto ao homem', declaro que jamais o conheci; se ele existe, desconheço."15 (Pode ser que Henry James tivesse esse aforismo em mente quando escreveu: "O homem não é um só - afinal, o americano tem características muito dife- rentes do francês, e assim por diante."16) Essas duas correntes de pensamento sobre cultura se de- senvolveram em oposição dialética uma ã outra. Um tema im- portante dos pensadores iíuministas era o progresso cio ser humano,.ao passo que seus oponentes estavam interessados no destino específico de uma nação. Na visão do Iluminismo, a civilização travava uma grande luta para vencer a resistên- cia cias culturas tradicionais,.com suas superstições", seus pre- 14. DUMONT, Louis. German Ideoldgy: From France to Germany and Back. Chicago: University ôf Chicago Press, 1994. p. 3"' 15. MAISTREj Joseph de. Considerations on France. Cambrictge: Cambridge University Press, 1994 (publicação francesa, 1797). p. 53. 16. Heniy James, carta a William Dean Howells, i de maio de 1890. 126 27 Introdução conceitos irracionais e suas lealclades temerosas a governan- tes sarcásticos. (Diderot disse que só descansaria em paz quando o último rei fosse estrangulado com as entranhas cio último sacerdote.) Da parte cio contra-Iluminismo, a definição cie inimigo era civilização, racional, científica e uniyersal: o próprio Iluminismo. Associada a valores qiateriais, ao capita- lismo e muitas vezes à política externa e à influência econô- mica, essa civilização ameaçava a cultura autêntica e conde- nava artes seculares à obsolescência. O cosmopoli.tanismo corrompia a linguagem. O racionalismo perturbava a fé reli- giosa. Juntos, eles corroíam os valores espirituais dos quais dependia a comunidade orgânica. Essas ideologias contrastantes poderiam alimentar a retó- rica nacionalista e suscitar emoções populares em épocas, de guerra, mas até mesmo em sua faceta mais virulenta, elas nun- ca foram meramente discursos nacionais. Alguns intelectuais franceses simpatizavam com o contra-Iluminismo apenas por- que ele saía em defesa da religião contra a insicliosa subver- são cia razão. Depois da batalha de Seclan, em 1870 (vencida, assim disseram, pelos professores da Prússia), a idéia de uma cultura naciqnah penetrou numa França humilhada, e "Ia cul- ture Française" foi cada"vez mais contrastada com "Ia culture allemancle", embora sem necessariamente comprometer as reivindicações francesas de superioridade. (Ainda em 1938, o Dicionário Quillet observou que o termo cultura podia ser usado cie forma irônica, como na frase "Ia culture allemancle".)_. Na Alemanha, havia uma antiga tradição do pensamento ilu- minista que jamais submergiu completamente, embora algu- mas vezes assumisse formas estranhas, quase irreconhecíveis. Nietzche condenava seus compatriotas por sua caótica Bil- dung, ou formação cultural, corrompida por -empréstimos e moda, que ele contrastava com a Kultur orgânica da França, que, por sua vez, equiparava com a própria Civilização. Ele optava' pela civilização — em outras palavras, pela França:, "berço da mais refinada e espiritual cultura européia".17 Um dissidente francês como Baudelaire, por outro lado, podia 17. NIETZSCHE, F. Jensetis von GutunâBôse. Munique: Golclmann, .1980. 254. p. 145. i 28 Introdução chamar a França de "um país verdadeiramente bárbaro" e es- pecular que talvez a civilização "tenha se refugiado em algu- '*ma tribo minúscula, porém ainda não descoberta".18 A Primei- ra Guerra Mundial foi travada por trás das bandeiras rivais cia Civilização ocidental e da Kultur alemã, mas bem na sombra da guerra, os irmãos Thomas e Heinrich Mann se colocaram em lados opostos - o alemão e o francês - 'num famoso de- bate sobre cultura e civilização'. Nessas duas tradições, cultura ou civilização representa- va os valores supremos. Aventou-se a hipótese de que. esses •- conceitos tenham sido propagados no século 18 porque a re- ligião estava perdendo seu domínio sobre muitos intelectuais. Essas tradições constituíam uma alternativa, fonte secular cie valor e significado. Cada uma delas, todavia, tinha afinidades' com uma determinada perspectiva cristã. A idéia de Civiliza- ção lembra as reivindicações universalistas da igreja católica. Comte e Saint-Simon criaram a religião do positivismo, para a qual tomaram emprestados rituais católicos. Seu dogma central era o progresso, que representava a salvação neste mundo. As noções alemãs cie Bildung e Kultur, expressadas , de forma característica numa linguagem espiritual, compro- metidas com as necessidades cia alma do indivíduo, que va- lorizam mais a • virtude interior do que a aparência exterior e encaram com pessimismo o progresso secular, por sua vez, : estão impregnadas,dosvalores da Reforma, e Thomas. Mann afirmou que a Reforma imunizara os alemães contra as idéias da Revolução Francesa. Qs ingleses, como sempre, mantiveram-se um tanto afastados desses argumentos continentais. John Stuart Mill tentou reunir as tradições francesas, e inglesas em seus famo- sos ensaios sobre Bentham e Coleridge, mas os ingleses ti- , nham suas próprias preocupações. À medida que a industria- lização'transformava a Inglaterra, os intelectuais identifica- vam uma crise espiritual, uma luta de vicia ou de morte entre o que Shelley chamou cie Poesia e Mamon. A" tecnologia e o 18. BAUDELAIRE. Apud STAROBINSKI, Jean. Blessings in Disguise: Or, The Morality of Evil. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993. p. 54. Introdução matérialismo da civilização moderna incorporavam o inimigo, contra o qual os intelectuais liberais lançavam valores cultu-' Tais eternos extraídos cia grande tradição da a'rte e da filoso- fia européias. Matthew Arnold definiu cultura como "o me- lhor de tuclo o que se teve conhecimento e foi dito",1' um câ- non cosmopolita duradouro. Adquirindo cultura, ficamos co- nhecendo "a história do espírito humano". Era ela que dístin- guia os eleitos dos bárbaros incultos.. Mas esse legado huma- nista estava sob o cerco dos.exércitos cia civilização indus- trial. A grande interrogação era se a cultura intelectual cia eli- te instruída poderia, cie alguma forma, sustentar os valores espirituais cia sociedade. Talvez a cultura cedesse, esmagada pelo materialismo exacerbado cie homens compenetrados . que sabiam o preço cie tuclo, mas não sabiam o valor de nacla. "À medida que as civilizações avançam", concluiu Ma- caulay, "há uni declínio quase inexorável da poesia".-9 No çntanto, de nada adianta exagerar o caráter distinto da tradição inglesa. Arnold recorreu a Coleridge, e este, aos românticos alemães. As preocupações e os valores se sobre-. punham. Em todos os lugares, cultura representava a esfera . dos valores supremos, sobre os quais acreditava-se que se apoiava a ordem social. Como a cultura era transmitida atra- vés cio Cisterna educacional e exprimida de forma mais inten- ~ sã por intermédio cias artes, essas eram áreas essenciais que um intelectual deveria estudar para aprimorar-se. E como o destino de uma nação dependia da condição de sua cultura, essa era uma arena importantíssima para a ação política. Os argumentos modernos não recapitulam cie forma pré- — cisa as controvérsias anteriores. Os contextos cia época dei- xam a sua marca. Cada ,geração moderniza o idioma do deba- te, via de regra adaptando-o à terminologia científica do mo- mento: evolucionismo no final do século 19, organicismo no ;início do século 20, relatividade na década de 1920. Metáforas 19. ARNOLD, Matthew, Ltíerature and Dogma. Londres: McMillan, 1873. 20. Thomas Babington Macaulay, "Milton". Publicado pela primei- ra vez em 1825; retirado de Criticai and Historical Essays, 1843; reimpressò por Everyman's Libraiy. Londres: Dent, 1907. p. 153. 130 Introdução emprestadas cia genética competem, hoje em clia, com o jar- gão cia teoria literária contemporânea. Entretanto, mesmo que fossem expressados em termos modernos, os discursos sobre cultura não são inventados livremente; :eles remontam a cleter- rninadas tradições intelectuais que persistiram por gerações, disseminando-se da Europa para todo o mundo, impondo concepções da natureza humana é da história, provocando uma série cie debates recorrentes. Vozes ancestrais perseguem os escritores contemporâneos. Novas formulações podem ser estabelecidas numa longa genealogia, mesmo que estejam re- lacionadas com as necessidades cio momento. À medida que as ciências humanas se consolidavam, es- colas de pensamento rivais recorriam a essas perspectivas clássicas. Temas centrais da visão iluminista do mundo ou da ideologia francesa ressurgiram no positivismo, no socialismo e no utilitarismo cio século 19. No século 20, a idéia cie uma civilização mundial científica progressiva foi traduzida parada .teoria cia globalização. A curto prazo,-a cultura representou uma barreira à modernização (ou industrialização, ou globali- zação), mas no final a civilização moderna passaria por cima das tradições locais menos eficazes. A cultura foi invocada ' quando tornou-se necessário explicar por que as ..pessoas es- tavam adotando metas irracionais e estratégias auto-clestruti- vas. Projetos cie desenvolvimento-eram derrotados pela resis- tência cultural. A democracia desmoronava porque estava alheia às tradições da.'..nação. Teorias de opções racionais não podiam explicar o que os economistas -desesperaclamente chamam cie. "apego", formas cie pensar e agir tão arraigadas que resistem aos argumentos mais convincentes. A cultura re- presentava o retrocesso, para explicar o"comportamento apa- rentemente irracional. Ela também foi responsável pelo resul- tado, desapontadqr de muitas reformas políticas. A tradição era o refúgio dos ignorantes e receosos, ou o recurso cios ricos, e poderosos, que temiam perder .seus privilégios. Vista sob outro prisma, -a resistência cias culturas locais a globalização provavelmente é respeitada e até mesmo co- memorada. Essa era a perspectiva cios herdeiros cio contra- Huminismo. A tradição romântica, ou alemã, também não fi- cou estática. • Ela passou por suas próprias transformações, 31 Introdução ..embora exibisse sempre uma afinidade eletiva com idealis- mo, relativismo, historicismo,_.um estilo hermenêutico de aná- lise e o que chamamos atualmente cie identidade política. Ri- charcl A. Shweder tentou, até mesmo, fazer uma genealogia ligando p movimento romântico cio século 19-ao que ele cha- ma cie "rebelião romântica contra o íluminismo"21 dos antro- pólogos contemporâneos. Mesmo crue vestissem novas roupagens, as idéias clássi- cas sobre cultura não eram soberanas, Elas enfrentavam novas rivais, e a maior delas surgiu com a -publicação de A origem das Espécies de Darwin, em 1859. Até mesmo o pensador me- .nos científico não podia ignorar o desafio depois que Darwin estendeu seu argumento aos seres humanos em-^4 Descendên- cia do Homem, em 1871. Era preciso encarar a possibilidade cie que os padrões cie comportamento humano e as diferen- ças humanas podiam ser explicadas em termos biológicos. A cultura segue leis naturais. Não obstante, a teoria darwiniana íião tornava necessariamente obsoletas as idéias clássicas. A teoria cie que todos os seres humanos tinham uma origem em comum reafirmava a crença do íluminismo ha unidade cia hu- manidade, A civilização ainda pode ser considerada o traço, que define a característica humana. A evolução cia. vida tam- bém pode fornecer um modelo para a evolução da civilização. Os seres humanos representavam uma evolução dos macacos, e'raças superiores - ou civilizações superiores - representa- vam, da mesma forma, uma evolução cie raças inferiores e dê suas civilizações. O próprio Darwin compartilhava dessa opi- nião, mas alguns dos seus seguidores foram recrutados para a causa do cõntra-Iluminismo. Disparidade cultural pode ser uma expressão de diferenças raciais mais-fundamentais. A pu- reza racial podia ser um imperativo político, ligada inextrica- vélmente à defesa de uma identidade cultural. A história pode- ser escrita com sangue, tendo como tema a luta pela sobrevi- vência entre as raça-s. 21. SHWEDER, Richard A. Anthropòlogy's Romantic Rebellion Against the Enlightenment. In: SHWEDER, Richard-A. ; LEVINE, Ro- bert A. (Ed.X Culture Theory: Essays bn Mind, Self, and Emotion. Cambriclge: Cambridge University Press, 1984. 132 Introdução O desafio cie uma teoria biológica cie progresso huma- no e diferenças humanas levou ao desenvolvimento daquilo que, sob alguns aspectos, representava uma nova concepção de cultura, que passou a ser considerada o oposto da biolo- aia. Era a cultura que diferenciavaos seres humanos cios ou- tros animais e clistinguia as nações umas cias outras. E ela não era herdada biologicamente, mas sim assimilada, adquirida e. até mesmo emprestada. Christopher Herbert afirmou que essa noção cie cultura também nasceu de uma controvérsia religiosa. Ele a associarão movimento cie revivificação evan- gélica do início do século 19 na Inglaterra, que propagou uma noção do pecado original que ele chama cie "o mito de .um estado de desejo humano inçontrolado". A idéia de cul- tura oferecia a esperança redentora de salvação secular: a cultura era a nossa defesa contra a natureza humana. Os se- res humanos deixavam sua condição de pecadores pelas gra- ças dos tabus e das, leis. Herbert argumenta que "pode-se considerar as idéias de cultura e desejo livre como dois ele- mentos recíprocos complementares de um único padrão cie discurso, embora um padrão repleto cie conflitos e necessa- riamente instável".22 Talvez Herbert esteja certo e essa con- cepção cie cultura tenha nascido em resposta a preocupações religiosas, mas ela amadureceu em reação à revolução darwi- 1 niana, que ameaçava conferir autoridade científica a algo como a doutrina do desejo humano inçontrolado. Em nenhum outro lugar, o argumento contra o darwinis- mo foi formulado com maior premência e intensidade do que nos idos de 1880, em Berlim. O mais proeminente darwinista cia Alemanha, Ernst Haeckel, aduziu conclusões políticas da teoria darwinista que cleixou o próprio Darwin bastante apreensivo. Segundo Haeckel, Darwin apresentara arguijten- tos científicos irrefutáveis para o livre comércio e contra aris- tocracias hereditárias. Sua teoria também podia ser usada para demonstrar a superioridade da raça prussiana e para subscre- ver as políticas cie Bismarck, que demonstravam os efeitos maravilhosos da luta e da seleção. 22. HERBERT, Christopher. Culture and Anomie: Ethnographic Imagination in the Nineteenth Centuiy. Chicago: University of Chi- cago Press, Í991. p. 29. 331 Introdução O dogma de Haeckel espantou seu ex-professor, Rudolf - Virchow, maior patologista alemão, político proeminente cie visões liberais e mentor cia Sociedade cie Antropologia cie Ber- lim. Do ponto de vista metodológico, sua objeção era quanto a uma conclusão teórica prematura. O grande número de aca- sos da mudança eyolucipnaria ainda não podia ser reduzido á leis. Rudolf mostrava-se especialmente hostil em relação ao determinismo racial -de Haeckel e ao nacionalismo cultural com o qual este estava associado. Raças eram categorias ins- táveis com fronteiras móveis, e a mistura racial era amplamen- te disseminada, senão universal. Traços biológicos passavam por cima das classificações raciais convencionais, que em to- ei os os casos eram influenciadas por fatores ambientais locais. Diferença cultural nào representava indício de diferença ra- cial. Raça, cultura, língua e nacionalidade não coincidiam ne- cessariamente. Os refugiados huguenotes, insistia Virchow, "estão germanizados, assim como os numerosos judeus que acolhemos da Polônia e da Rússia, e [que]... contribuíram so- bremaneira para o nosso progresso cultural".23 O colega de Virchow, Adolf Bastian (que em 1886 se tornou o primeiro diretor cio grande museu cie etnologia de Berlim), tentou demonstrar que, assim como as raças, as cul- turas são híbridas. Nào existem culturas puras, distintas e permanentes': Toda cultura recorre a diversas "fontes, depen- de de empréstimos e está em constante mudança. Os seres humanos são bastante semelhantes, e toda cultura está enrai- zada numa mentalidade humana universal. As diferenças cul- turais eram causadas pelos desafios apresentados pelo am- biente natural local é pelos contatos entre as populações. O empréstimo era o mecanismo primário da mudança cultural.: E como as mudanças culturais eram resultado de processos locais imprevistos — pressões, ambientais, migrações, comér- cio -— conseqüentemente, a história não tem um padrão fixo de desenvolvimento. 25. Apuei ACKERKNEGHT, Erwin H. Rudolf Virchow: Doctor, Sta- tesman, Anthropologist. Madison: .University of Wisconsin Press, 1953. p. 215-6. 134 Introdução Essa antropologia liberal berlinense foi caracterizada como um misto de idéias iluministas e românticas, mas na realidade baseava-se numa rejeição dupla. Se as culturas são abertas, sin- créticas e instáveis, obviamente não podem expressar identida- des essenciais imutáveis ou um caracter racial subjacente. E se as mudanças culturais são resultado de fatores locais imprevis- tos, por conseguinte não existem leis gerais cie história. Acima de tudo, entretanto, a escola berlinense insistia em afirmar que a cultura funciona de uma forma bastante distinta cias forças biológicas - e pode até mesmo sobrepujá-las. Franz Boas, aluno.de Virchow-e Bastian, introduziu essa abordagem na antropologia americana. À medida que esta se desenvolvia numa disciplina acadêmica organizada no início do" século 20, ela era definida pela luta épica entre Boas e sua escola e a tradição evolucionista, representada nos Estados Unidos pelos discípulos de Lewis Hemy Morgan, cujas narra- tivas 'triunfalistas de progresso utilizávamos metáforas da teo- ria de Darwin. Os boasianos eram céticos em relação às leis .universais da evolução. Além disso, eles repudiavam explica- ções raciais de diferença, um assunto -de grande importância política nos Estados Unidos. A tese fundamental boàsiana era de que à cultura é que nos faz, e nào a biologia. Nós nos tor- namos o que somos ao crescer num determinado ambiente cultural; não nascemos assim. Raça, e também sexo e idade são constructos culturais, e -não condições naturais imutáveis. Isso quer dizer que podemos nos transformar em algo melhor, talvez aprendendo com o pçvo tolerante cie Samoa, ou com os balineses perfeitamente equilibrados. Essa era uma idéia bastante atraente na América do sé- culo 20, mas a compreensão racial alternativa de diferença cultural continuava a ser um grande desafio. A idéia de cultu- ra podia realmente reforçar uma teoria racial cie diferençar Cultura podia ser um eufemismo para raça, estimulando um discurso sobre, identidades raciais enquanto aparentemente abjurava o racismo. Os antropólogos podiam distinguir siste- maticamente raça e cultura, mas na .linguagem popular ''cultu- ra" se referia a uma qualidade inata. Á natureza cie um grupo era evidente. a olho nu, expressada igualmente pela cor da pele, pelas características faciais, pela religião, pelos princí- pios morais, pelas aptídqes, pelo sotaque, pelos gestos.e pe- 35| Introdução Ias preferências de alimentação. Essa confusão obstinada per- . siste, Na clécacía de 1980, Michael Moffatt, etnógrafo que esta- va realizando um estudo'sobre os alunos brancos e negros que "dividiam um -dormitório na Rutgers University, relatou que os alunos literalmente se recusavam a falar sobre raça, mas acreditavam que falar sobre diferenças culturais era mo- -derno e politicamente correto.21 Na prática, todavia, eles fa- . ziam uma distinção entre brancos e negros, embora a diferen- ça entre esses alunos parecia ser essencialmente no que tan- ge ao gosto por grupos .pop e fast fpod. ''Cultura sempre é definida em oposição a algo mais. Trata-se da forma local autêntica cie ser diferente que resiste à sua inimiga implacável, uma civilização material globali- zante. Ou o domínio cio espírito armado contra o materialis- mo. Ou a capacidade que o ser humano tem cie crescer es- piritualmente e que sobrepuja ~sua. natureza animal. Dentro das .ciências sociais, a cultura aparecia em outro conjunto cie contrastes: ela era a consciência coletiva, em oposição à psi- que individual. Ao mesmo tempo, representava a dimensão ideológica cie vicia social que se contrapunha à organização comum de governo, fábrica ou família. Essas idéias foram desenvolvidas pelos fundadores da sociologia européiae in- troduzidas na sociologia americana, tradicionalmente empí- rica e utilitária, por Talcótt Parsons. _- ' Jamais," nem antes nem depois, as ciências sociais ou ' "eomportamentais" receberam tantos incentivos financeiros, fo- ,ràm mais bem organizadas e, de modo geral, estiveram com o ' moral tão alto como nas décadas cie 1950 e 1960 nos Estados Unidos, e seus líderes estavam convencidos cie que o futuro — cjue só podia ser ainda melhor --reservava grandes projetos científicos que apresentariam um plano racional para um mun- do ainda melhor. Talcótt Parsons, o grande expoente das ciên- cias sociais naquele período, insistia que o,.progresso exigia uma divisão mais eficaz cie trabalho, tanto no campo das ciên- cias sociais como cie qualquer empreendimento moderno. A 24. MOFFATT, Michael. Corning of Age in New Jersey: College and American Culture. New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 1989, 136 psi ^ e obviamente, era estudada pelos psicólogos. O sistema ique jj-tica e a economia estavam sendo administrados , ""'especialistas da área, o que--era satisfatório contanto que '°!os os envolvidos concordassem que a sociologia tinha prio- °1 lê A cultura, contudo, foi confiada tempo demais às mãos tnadoras dos humanistas. Daí em diante, ela deveria ser en- tregue aos antropólogos, que finalmente poderiam transforma- Ia em ciência, se eles pudessem ser persuadidos a se concen- trar nessa tarefa e abandonar seus hobbies pitorescos. Nem todo antropólogo ficou satisfeito com esse prospec- to Alguns consideravam um rebaixamento ser um efiteridiclo em cultura, em vez de, digamos, especialista em todos os as- sunto- pertinentes a uma comunidade tribal ou até mesmo uma ' autoridade na história cia evolução humana. Além disso, ás dis- putas clé demarcação com outros cientistas sociais persistiam. Não-obstante, a idéia' de que cultura era um assunto cie preo- cupação científica e que os antropólogos eram autoridade no assunto passou a ser amplamente aceita na clécacía cie 1950. Em 1952, os dois decanos cia antropologia americana', Alfred Kroeber, de Berkeley, e Clycle Kluckhohn, de Ilarvard, publi- caram um relatório dogmático sobre a concepção antropológi- - = ca científica cie cultura, confiantes de que ela tornaria obsole- tas as abordagens tradicionais. •" Duas décadas mais tarde, Roy Wagner -pôde introduzir um ensaio sobre cultura com a obser- vação cie que o conceito "ficou cie tal forma associado ao pen- samento antropológico que... podíamos definir um antropólo-. go como alguém que usa a palavra 'cultura' habitualmente".26 Na década cie 1990, o tema da cultura foi tão difundido que na definição de Wagner praticamente todo mundo que escrevia sobre questões cie ciências sociais teria de ser considerado an- tiopólogo. Entretanto, um comentarista ainda poderia observar que um antropólogo moderno que não crê em cultura de cer- ta forma é uma contradição cie termos".2" 5. KROEBER, A. L. • KLUCKHOHN, Clyde: Culture: A Criticai Re- view Of Concepts and Detinitions. Cambridge, Mass.: Papers of eabocly Museum, Harvard University. v. 47, n. l, 1952. - . WAGNER, R0y. "lhe Invention ofCullitre. Chicago: University of Chicago Press, 1975. p i. 27. HERBERT. Culture and Anomie. p. 20. 37 i Introdução Mas antes que os antropólogos pudessem fazer investi- gações científicas sobre cultura, eles tinham clé chegar a um acordo quanto ao significado desse termo. Kroeber e Kluc- khohn realizaram uma intensa pesquisa na literatura e, no fi- nal, tiveram cie concordar que' Parsoiis encontrara a definição correta de cultura, para os propósitos da ciência. Tratava-se de um discurso simbólico coletivo sobre conhecimentos, crenças e valores. Não era sinônimo de arte de elite, como os huma- nistas acreditavam, pois todo membro de uma sociedade tinha uma parte nessa cultura. Além disso, era bastante distinta da civilização humana universal, que havia dado ao mundo a ciência, a tecnologia e a democracia, pois tocla comunidade ti- nha a sua própria cultura, com seus valores específicos, que a distinguia.cle todas as outras. Se isso era cultura, então até que ponto ela era importan- te? Segundo Parsons, as pessoas concebem um mundo simbó- lico a partir cie idéias recebidas, e essas idéias chocam-se com as escolhas que elas fazem no mundo real No entanto, ele ti- .nha certeza cie que idéias sozinhas dificilmente determinam ação. De forma semelhante, os símbolos coletivos entram na consciência individual, mas não a tomam completamente. En- tretanto, quanto mais os antropólogos se entregavam à sua nova especialidade, mais convencidos ficavam cie que a cultu- ra era muito mais poderosa cio que Parsons tinha levado a crer. As pessoas não apenas constróem um mundo cie símbolos; na verdade, elas vivem nesse mundo. Os mais importantes antro- pólogos americanos cia 'geração seguinte, Clifford Geertz, Da- vicl Schneider e Marshall Sahlins, criaram uma galeria cie per- sonagens nativos de espiritualidade sem paralelo. Esses perso- nagens pareciam viver somente para as idéias, fossem sacerdo- tes havaianos, cortesãos balineses ou cidadãos cia classe média ; cie Chicago. No livro de Geertz, Negara, o negócio é a repre- sentação teatral - ou melhor, o que ele chama de óperas cia corte são a síntese do próprio modo cie vida. A política e a economia são meros ruídos de bastidores. Para Schneider, pa- rentesco, advém da idéia que as pessoas têm sobre prôcriação. A biologia está na mente, ou não é nada. Para Sahlins, a his- tória representa a encenação incessante cie um velho roteiro, a representação teatral de uma saga. Terremotos, invasões bru- tais de conquistadores e^até mesmo o capitalismo precisam ser Introdução traduzidos em termos culturais e transformados.em mitos para que tenham influência na vicia das pessoas. O problema seguinte era .como proceder a investigação cie cultura. O próprio Parsons forneceu pouca orientação a esse respeito, mas em meados cio século surgiram dois mocle- los nos Estados Unidos, um velho e um novo. O primeiro re- comendava explorar com simpatia a visão de mundo de um nativo, traduzi-la e interpretá-la. O nome de Weber foi evoca- do e a palavra Verstehen pronunciada com reverência, mesmo que nem sempre cie forma acurada. Geertz escolheu esse cur- so, que identificou inicialmente como parsoniano, depois como weberiano, e, inais tarde, como uma forma cie herme- nêutica. Aos poucos, ele ficou menos ansioso para alegar queV era um procedimento científico, pois chegou à conclusão de que embora a cultura podia ser interpretada, ela não poderia ser explicada (e certamente não podia ser justificada). A cul- tura não contava com leis gerais nem interculturais. Podia-se, talvez, calcular o que uma representação simbólica significa- va para os espectadores, mas não se podia separá-la do seu significado no vernáculo e tratá-la como sintoma cie uma cau- sa biológica ou econômica mais fundamental e livre de cultu- ra cia qual o paciente não tinha consciência. A abordagem alternativa, em contraste, era científica, re- ducionista e generalizadora. Ela partia da premissa cie que a cultura — um discurso simbólico - era muito semelhante à lin- guagem. Conseqüentemente, o estudo da cultura devia seguir o caminho que-estava sendo indicado pelos lingüistas moder- nos, que estavam prestes a descobrir as leis universais. da lin- guagem, "Durante séculos as ciências humanas e as ciências sociais se resignaram a contemplar o mundo das ciências na- turais e exatas como um tipo cie'paraíso no qual eles nunca entrariam", observou Claude Lévi-Strauss numa conferência sobre lingüística e antropologia em Blomingtpn, Indiana, em 1952. "De repente, uma pequena porta está se abrindo entre os clois campos, e isso foi obra cia lingüística."28 Essa porta' . 28. LEV-I STRAUSS, Claude. Structural Antbropology. Nova York: Basic Books, 1903. p. 70-1. Altereiligeiramente a tradução da se-, guncla 'citação. 39 i Introdução conduzia à fonte original .cia linguagem e clã cultura. Havia "uma .intrusa sentada ao hòsso lado "durante toda. a eonferên- ^ cia, a mente humana", disse ele aos participantes-. Se uma nova ciência de cultura fosse conduzida pela lingüística, en- 'tão, juntas, no final essas ciências estabeleceriam a estrutura, •profunda que todas as línguas e culturas partilhavam e que (certamente) era esboçada no próprio cérebro. Uma antropo- logia científica.cartesiana estava esperando para nascer. Isso tudo era bastante empolgante, mas era preciso ad- mitir que os próprios lingüistas não tinham chegado a consen- so sobre a niélhor rota para atingir a. sua grande meta. Lévi- Strauss fora apresentado à lingüística por um companheiro de exílio nos Estados Unidos durante a guerra, Roman Jakobson. Seu modelo estava em conformidade com a fonologia estru- tural ista desenvolvida pela Escola cie Praga. Ele aplicou- es.se modelo primeiramente ao sistema do casamento, depois a -métodos cie classificação e, por fim, a mitos. Os estruturalistas americanos preferiram se deixar conduzir pela. gramática de .transformação cie v Chpmsky. A faculdade cie Yale de Louns- buiy e Goodenough (que recrutou vários doutores do Depar- tamento de Relações Sociais de Harvarcl) iniciou uma investi- gação científica formal cias estruturas subjacentes que gera- 1 vam- terminologias de parentesco, classificações botânicas,- sintomas de doenças e .outras taxonomias. folclóricas que constituíam domínios semióticos especializados. Esses programas estruturalistas floresceram durante um certo tempo, produzindo relatos notáveis de corpos específi- - . cos de pensamento nativo, mas no final da década de 196(3 (precisamente em maio cie 1968, afirmou Lévi-Strauss), o estru- turalismo francês perdeu seu encanto, dando'lugar a uma va- riedade de "pós-estnituralismos" cie uma casta decididamente rel.atívista. Seus adeptos abandonaram as ambições científicas cio estruturalismo clássico, insistindo na qualidade indetermi- nada das palavras e dos símbolos. A etnociência americana fi- cou fora cie moda na mesma época, mas alguns antigos entu- siastas descobriram uma promessa científica alternativa na ciência cognitiva. Reprodução dos processos cio cérebro por computador, esquemas cie conhecimento e. redes de conexão passaram a ser procurados, em vez das regras gramaticais nas 140 Introdução quais os praticantes da nova etnografia tinham depositado a sua fé anteriormente. Outra facção se apoderou dos novos de- senvolvimentos da lingüística e se determinou a adaptar a pragmática, ou a teoria do discurso, ao-estudo cia cultura. . Os geertzianos rejeitavam sistematicamente qualquer afirmação de que podia haver uma ciência da cultura. A cul- tura, na verdade, era bastante semelhante à linguagem, !mas;-- o modelo cie cultura cjue eles preferiam era o de texto. Con- seqüentemente, eles recorriam à. teoria literária, é não à lin- güística.. Foi essa abordagem que, se desenvolveu, e o iníer- pretativismo se transformou na ortodoxia cia principal corren- te cia antropologia ^ cultural americana. Embora os geertzianos mais- novos se rebelassem contra o pai, em vez de optarem por um projeto mais científico, eles tomaram a mesma dire- ção dos pós-estruturalistas franceses. Uma cultura não podia : ser tão prontamente compreendida por um, estranho solidá- rio como Geertz sugerira. Cultura pode ser um texto, mas é um texto fabricado, uma ficção escrita pelo etnógrãfo. Além disso, a mensagem clara de desconstrução é" que os textos não produzem mensagens inequívocas. Vozes discordantes disputam a linha oficial. A cultura é contestada, como diz o novo slogan. .Assim como não há um texto canônico, não há leitores privilegiados. Os antropólogos pós-modernistas pre- ferem imaginar o domínio da cultura como algo mais seme- lhante a lima democracia ingovernável cio que a um estado teocrático ou a uma monarquia absolutista. Apreensivos acer- ca das insinuações totalitaristas cio termo cultura, alguns pre- - ferem escrever sobre hábito, ideologia ou discurso, embora, como salienta Robert Brightmãn, o efeito final dessas estraté- gias cie retórica seja "(re)construir um conceito cie cultura es- sencializacla nos antípodas das orientações teóricas contem- porâneas".29 Ainda há a pressuposição de quê as pessoas vi- vem num_ mundo cie símbolos. Os atores são dirigidos e a his- tória é moldada (talvez inconscientemente) pelas idéias. A corrente predominante cia antropologia cultural americana, em suma, ainda está nas garras cie .um idealismo difuso. 29. BRIGHTMAN, Robert. Forget Culture: Replacement, Tfanscen- dence, Relexification. Cultural Antbropology, v. 10, ri. 4,"p. 510, 199*- 41 Introdução O idealismo teve maior ascensão nas últimas décadas,1 juntamente com seu servo, o rèlativismó. Toda cultura era fun- damentada em premissas singulares. A generalização era im- possível e a comparação, extremamente probJemática/H(ouve uma tendência semelhante na filosofia, que encorajou sobre- modo os antropólogos. Até mesmo o marxismo ficou obceca- do pela ideologia. ("La fantaisie au pouvoir", cantavam os es- tudantes parisienses de 68, enquanto atiravam pedras nos po- liciais.) Mas nem sempre as coisas eram fácejs para idealistas e culturalistas. Pelo contrário, eles achavam que estavam senclo sitiados por grandes batalhões de rivais que marchavam por trás de bandeiras familiares: O Mercado Decide, A Classe Do- minante Governa, Somos Nossos Genes. Os argumentos dos culturalistas tinham de ser lançados contra os modelos estabe- lecidos de racionalidade econômica e determinismo biológico, mas^ um número crescente embora heterogêneo de -;estetas, idealistas e românticos concordava que a Cultura Nos Faz. partel genealogias 142 capítulo l cultura e civilização: intelectuais franceses, alemães e ingleses^ 1930-1958 Civilisation naít à son heure.1 ([Ar"palavra] "civilização" nasceu na hora certa.) Lucien Fébvre «O J. ara reconstruir a história da palavra francesa ' Civi- lisation'",2 observou o historiador Lucien Fébvre, "seria" neces- sário reconstituir os estágios tia mais profunda de todas as re- voluções pela qualpassou o espírito francês-da segunda me- tade cio século 18.até os dias cie hoje". Este foi o tópico que ele decidiu abordar num seminário cie fim de semana; organi- 1. FÉBVRE, Lucien. Ciyilization. In: ". et ai. Civilisation: Lê mot e l'idée. Paris: Centre International cie Synthèse, La Renaissance clu Livre, 1930. p. ló. Tradução publicada em BURKE, P.eter (Ecl:>. A New Kind of History: From the Writings ofFebvre. Londres: Rou- tledge e Kegan Paul, 1973. Burke também faz um breve relato da carreira de Fébvre na introdução do livro. 2. Ibicl. (tradução cie Burke, ligeiramente modificada), p. 219. • 45! capítulo l zado em 1929 sobre o tema "Civilisátion: Lê mot et Piclée" (a palavra e a idéia, deve-se ressaltar, e não a coisa em si). Esse era o assunto do momento. À medida que nuvens de tempes- tade se formavam sobre a Europa pela segunda vez no espa- ço cie uma geração, os intelectuais foram levados a repensar o significado cie cultura e, civilização, e a relação deles com o .destino de suas nações. O sociólogo alemão Norbert Elias, atraído para essas questões na .mesma época, observou que embora as teorias de cultura e civilização estivessem sendo discutidas (com as palavras em si) desde- a segunda metade cio século 18, elas só passaram a despeitar o interesse geral em determinados momentos históricos quando "alguma coisa no presente estado da sociedade encontra expressão na cris- talização do passado incorporado nas palavras"., r Febvre (1878-1956) estudou na École Normale Supé- rietire, onde se formou em história e geografia. Durante a Primeira Guerra Mundial ele serviu ativamente de metralha-dora ein punho, e quando veio a paz, foi chamado pela Uni- versidade de Strasbourg, que voltou a ser uma universidade francesa em 1919, quando a Alsácia foi devolvida à França, O jovem e brilhante corpo docente recrutado para a univer-. siclade incluía alguns cios maioresvcientistas sociais e histo- riadores da-geração seguinte, como Maurice Halbwachs, Charles Blóndel, Georges Lefebvre e, juntamente com o pró- prio Febvre, o'historiador Marc Bloch, com o qual iniciou uma longa colaboração que transformaria a historiografia francesa. Em 1929, eles fundaram a revista Annales, que se transformou no fórum cie uma escola de historiadores estrei- tamente; ligados às ciências sociais. Temas culturais, psicoló- gicos e sociais foram resgatados para uma historiografia que havia siclo dominada pelo estudo de política, diplomacia e .guerra, e a história intelectual foi revivida. x Na abertura do seminário sobre "Civilisátion", Febvre chamou a atenção para o fato cie que pouco tempo antes ha- via sido apresentada uma dissertação na Sorbonne sobre a "ci- vilização" cios tupis-guaranis da América do Sul, que, obser- vou ele; uma geração anterior teria chamado de selvagens. "Mas há_ muito tempo o conceito de uma civilização formada cultura e civilização por pessoas incivilizadas tornou-se bastante.comum."3 (Ele co- mentou cie forma morclaz que se poderia imaginar um ar- queólogo "lidando tranqüilamente com' a civilização dos nu-. nosr que um dia nos disseram ter sido 'o flagelo da civiliza- ção'".) No entanto, muito embora os franceses admitissem prontamente que os tupis-guaranis, e até mesmo os hunos, ti- nham uma'civilização, eles ainda .tendiam a acreditar que ci- vilização implicava progresso. Aparentemente, a palavra de- signava duas noções bastante distintas. Uma delas Febvre ca- racterizava como emprego etnográfico e se referia ao conjun- to de características que um observador consegue registrar ao estudar a vida coletiva de um grupo de seres humanos, con- junto esse que englobava aspectos materiais, intelectuais, mo- rais e políticos da vida social. Esse emprego não implicava jul-. , gamento cie valor. Na segunda acepção,, a palavra significava a nossa própria civilização, que era éxtrerriamente-valorizada e à qual alguns indivíduos tinham acesso privilegiado. Como podia uma língua famosa por sua clareza e lógica possuir um vocábulo com clüas acepções contraditórias? Febvre não conseguira encontrar uma fonte que -usasse o termo civilisation em qualquer um cios seus sentidos mo- -dernos antes de 1766. Civilisationxera empregado anterior- mente apenas como termo técnico legal, referindo-se .à passa-. gem de uma ação penal para a esfera civil. Entretanto, os ter- mos civilité, politesse e pdlice (significando observânc-ia da lei) remontam ao século 16. Durante o spculo, 17, os termos "sel- vagem" e, para os povos mais avançados, "bárbaros" eram co- muns em francês para descrever pessoas que não possuíam as qualidades de "civilidade, cortesia e sabedoria.administrativa". Com o tempo, civilisé substituiu o termo policé, mas no sécu- lo 18, afirmou Febvre, houve necessidade de um novo termo que descrevesse uma nova noção. Nascido a seu tempo, na década cie 1770, o neologismo civilisation "recebeu seus pa- péis cie naturalização", e em 1798 forçou as portas cio. Dicio- nário da Academia Francesa. 3. W., ibid., p. 220. 146 471 capítulo l Esse foi' um período cie .intensa atividade científica em to- das as áreas, bem como de sínteses teóricas audaciosas. O, grande leque'de materiais sobre culturas exóticas e o passado remoto reunidos na Encydopédie 'suscitou reflexões sobre o grande padrão cia história. A tendência do volume crescente cie literatura sobre exploração, a princípio, era reforçar a cren- ça na superioridade da civilização,. Os intelectuais franceses começaram a conceber o esboço de uma história universal em que a selvagerià levou ao barbarismo, e o barbarismo à civi- lização. Esse modelo de desenvolvimento cultural imitava a representação cie Lamarck cias relações entre as espécies em sua versão cia grande cadeia cios seres vivos. Logo, entretan- to, essa história triunfalista -de progresso começou a ser ques- tionada. Não apenas níveis de civilização, mas até mesmo es- tados cie civilização aos poucos foram clistinguiclos. O imenso império clã "Ia Civilisatión" foi dividido em províncias autôno- mas. Admitiu-se que maneiras características de ser civilizado haviam-se desenvolvido em diferentes partes do mundo. Se- gundo ..Febvre, a forma plural, Civilisatíons,' foi empregada pela primeira vez em 1819., Febvre situou essa relativização cia noção cie civilização no período compreendido entre 1780 e 1830, observando que representava o clímax de um longo e paciente esforço de do- cumentação e reflexão. Houve uma transição simultânea nas áreas cie biologia, história, etnografia e lingüística, cio univer- salismo do século 18 para uma perspectiva mais relativista. A teoria de Lamarck também foi colocada em xeque. Cuvier in- sistia que não havia Lima cadeia dos seres vivos, mas sim vá- rias cadeias separadas. Essas mudanças no pensamento cien- tífico refletiram-se numa alteração do clima intelectual. O oti- mismo do período revolucionário entrara em declínio. Os so- breviventes da revolução aprenderam algo novo: que uma ci- vilização pocle morrer. ("E eles não aprenderam isso apenas com os livros", frisou Cuvier.) A fé numa filosofia de, progres- so e na perfecti.biliclacle da humanidade foi corroída. O apoio ao pessimismo cie Rousseau e à sua preocupação com as ma- zelas cia civilização foi renovado. Com a restauração cia monarquia, a crença otimista numa civilização progressista ganhou nova força. Ela foi pres- sagiacla com maior intensidade nas obras De Ia civilisation en cultura e civilização Europe (1828) e De Ia civilisation en France (1.829) de Guizot. Febvre cita a audaciosa afirmação de fé de Guizot: "A idéia cie progresso, de desenvolvimento, a meu ver, parece ser a idéia fundamental contida na palavra civilização." O progresso po- clia ser medido tanto no nível da sociedade como do intelec- to, embora ambos não andem necessariamente juntos. -A In- glaterra, segundo Guizot, alcançara progresso social, mas não intelectual; na Alemanha, o progresso espiritual não tinha sido acompanhado pelo progresso social; apenas ria França ambos haviam marchado lado a lado. Febvre notou que uma linha diferente de. pensamento se desenvolvera na Alemanha. No início, a noção de cultura era bastante semelhante à icléía francesa cie civilização, mas com o tempo foi feita uma distinção entre os aspectos exteriores . da civilização e a realidade espiritual interior da cultura. Ale- xander von Humbolt, por exemplo, afirmou que uma tribo . selvagem podia ter urna civilizarão, no sentido de ordem po- lítica, sem possuir um alto nível de "culture de.Pespfit" - e, certamente, vice-versa. Não obstante, ambas as correntes cie pensamento traziam em seu bojo um problema filosófico se- melhante.. Uma avaliação relativista das diferenças entre cultu- ras è compatível com "o -velho conceito de civilização humar na em geral"? A pergunta foi deixada no ar. Em outro trabalho, apresentado no mesmo seminário sob o título "Lês Civilisations: Éléments et formes", o sociólo- . go Mareei Mauss esboçou a concepção cie civilização que ele e Emile Durkheim expuseram durante vários anos no Année Sociologique;' Mauss discorreu rapidamente sobre o que ele denominava usos vulgares em frases como: civilização fran- , cesa, budista ou islâmica. O que estava em debate nesse ca- sos eram maneiras específicas cie pensar, posturas mentais, para as quais ele preferia usar a palavra .mentalité. Civiliza- ção também não devia ser restringida a sinônimo de artes, tampouco ser equiparada a Kultur, no sentido^cle aquisição cie cultura. Essas eram representações folclóricas desprovidas
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