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Kuper, Adam. 2003 Cultura e Civilização In Cultura a visão dos antropólogos. Bauru EDUSC. Pp. 45 71

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ISBN flS-7i4tD-mt-E
9ll798574ll601464ll
BC
COS
39
K96c
KUP
ciências
BC
ag
215516
Adam Kuper
Coordenação Editorial
Irmã Jacinta Turolo Garcia
Assessoría Administrativa
Irmã Teresa Ana Sofiãtti
Coordenação da Coleção Ciências Sociais
Luiz Eugênio Véscio
Cultura
a visão dos antropólogos
T r a d u ç ã o
Mirtes Frange de Oliveira Pinheiros
caenoas^ sociais EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
00 S
EDUSC
Ia Universidade do Sagrado Coraçã<
K9678c
Kuper, Adam ,
Cultura : a visão dos antropólogos / Adam
Kuper ; tradução Miites Fraiige; de Oliveira,
.pinheiros. - Bauru/SP: EDUSC, 2002.
324 p. ; 21 cm. — (Coleção Ciências Sociais)
ISBN 85-7460-146-2
Tradução de: Culture: the anthropologisfs
account.
1. Cultura. 2. Etnologia. 3. Civilização —
Sociologia. I. Título. II. Série.
CDD. 306
ISBN 0^674-00.417-5 (original)
Copyright© Adam Kuper, 1999
Copyright© (tradução) EDUSC, 2002
Tradução realizada a partir da edição de 1999
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa
para o Brasil adquiridos pela
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO 'SAGRADO CORAÇÃO
Rua Irmã Arminda, 10-50
CEP 17011-160 - Bauru - SP
Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219
e-mail: eclusc@edusc.com,br
para Jessica
l. sumario
9 Prefácio à edição brasileira
11 Prefácio
21 Introdução: guerras culturais
Parte 1. Genealogias
45 Capítulo 1. Cultura e civilização: intelectuais franceses,
alemães e ingleses, 1930-1958
73 Capítulo 2. A visão cias ciências sociaisfTalcott
Parsons e os antropólogos americanos
Parte 2. Experimentos
lOjv Capítulo 3. Clifford Géertz: cultura como religião e
como grande ópera
101 Capítulo 4. David Schneíder: biologia como cultura
207 Capítulo 5. Marshall Sahlins: história como cultura
259 ( Capítulo 6. Admirável mundo novo
287 Capítulo 7. Cultura, diferença, identidade
Leituras adicionais
317 Agradecimentos
319 índice onomástico
l prefácio à edição brasileira
E,/m agosto cie 1999, pouco antes da publicação inicial
cie Cultura., eu era professor convidado no Museu Nacional
cio Rio de Janeiro, oncle conduzi uma série cie seminários que
sintetizavam, o assunto cio livro. As discussões foram uma
revelação para mim.'Não é demais dizer que me sentia em
casa, tanto nas mas dó Rio quanto no anfiteatro cie conférên.-.
cias. Os jovens brasileiros com os quais dialogava obviamente
entendiam muito, bem o quex eu tinha em mente. Meu
primeiro envolvimento com as questões cie identidade e
política cultural se deu na década de 1950,, quando era estu-
dante universitário na África do Sul. No Brasil, no final do
século 20, jovens antropólogos intetessavam-se por questões
muito similares, com a mesma intensidade. Tanto no Brasil
como na África do Sul, a definição de cultura e a importância
dada às causas culturais não eram apenas questões acadêmi-
cas abstratas, mas problemas com conseqüências políticas e
sociais imediatas. Essas questões estavam no âmago cios de-
bates nacionais sobre raça, sobre o caráter e o.destino dos
"povos indígenas", sobre as causas cia pobreza.
No Brasil, como tem muitos outros países, por vezes pare-
cia que a idéia de cultura havia substituído a idéia cie raça no
discurso popular, mas falar de cultura freqüentemente eqüiva-
lia a falar de raça, oferecendo uma razão para crer que as
relações econômicas, políticas e sociais eram determinadas
pela natureza interior dos diferentes grupos na: sociedade.
Para entendermos as implicações desse, tipo de pensamento
basta considerarmos alguns dos fatores que ele. rejeita: as con-
seqüências das, políticas econômicas, o poder modeíador da
políticajnternacional, a política dos grupos de interesse. Uma
antropologia que se define como o estudo da cultura despre-
zará fatores sociais, políticos, econômicos e também biológi-
!
 cos. Idéias e valores serão vistos como as causas cio compor-
tamento — cio crime, das práticas trabalhistas, cias práticas edu-
prefácio à edição brasileira
cacionais — e não como as conseqüências de outros fatores,
tais como a prosperidade e a pfobreza relativas, as oportu-
nidades de emprego, a exclusão cios processos políticos, a cor-
rupção e assim por diante.
A primeira parte deste livro explora as genealogias inte-
lectuais das diferentes noções de cultura. A segunda "parte
examina as quase sempre criativas e críticas aplicações de
uma noção particular cie .cultura na antropologia cultural nos
Estados Unidos durante a segunda metade cio século 20. Esta
parte do livro denomina-se Experimentos, pois os maiores
expoentes da antropologia cultural moderna estavam na ver-
dade testando o valor do conceito de cultura para a com-
preensão do comportamento humano. Finalinente, discuto as
versões mais recentes do determinismo cultural em antropolo-
gia e levanto questões sobre o que poderia acontecer se fôsse-
mos tentados à-adotar uma teoria cia história radicalmente ide-,
'alista e relativista.
Escrevo este Prefácio uma semana após os ataques ter-
roristas nas cidades de Nova York e Washington. As .reações
imediatas ciavam conta cie que o acontecido provava a tese de
Samuel Huntington cie que os conflitos do século 21 seriam
conflitos culturais e cjue as novas guerras seriam guerras entre
civilizações. Há um fatalismo trágico neste tipo de visão, assim
como havia na idéia muito parecida, no início cio século 20,
de que raça era destino, e que a$ grandes guerras por vir seri-
am guerras entre raças. Até certo ponto, uma profecia desse
tipo poderá, se concretizar. Vale a pena refletir muito sobre as
teorias e a própria idéia cie cultura que fundamentam essa
maneira de "pensar.
-Londres, 17 de setembro de 2001
Tradução cie Valéria Biondo
lio
(prefácio
JL álo neste livro sobre certa "tradição moderna dentro
do antigo discurso internacional em constante transformação
Sobre cultura. Já em 1917, Robert Lowie declarou que cultura
"é, na verdade, o único assunto da etnologia, assim como a
consciência é o assunto cia psicologia, a vida é o assunto clã
biologia e a eletricidade é um ramo cia física".' Palavras arre-
batadoras. Boa parte dos catedráticos alemães, por exemplo,
descreveu seu campo como ciência cultural, mas não como
etnologia. Os discípulos cie Mathew Arnold perguntaram se
era possível encontrar qualquer cultura, que fizesse jus ao
nome além das fronteiras das grandes civilizações. É alguns-
antropólogos contestaram, dizendo que o verdadeiro tema da_
süà disciplina era a evolução hivmana.-JVías. Lowie falou em
nome cie uma escola de antropologia cultural norte-america-
na recém-criacla que decidiu desafiar as idéias comumehte'
aceitas, Suas afirmações seriam, levadas mais a sério uma ge-
ração mais tarde.' Depois da Segunda Guerra Mundial, as Ciên-
cias sociais gozaram de um período de prosperidade e prestí-
gio sem precedentes nos Estados Unidos. As várias disciplinas
ficaram mais especializadas e a antropologia cultural recebeu
uma licença especial para atuar no campo cia cultura.
Os resultados foram bastante satisfatórios; pelo menos a
princípio, para os antropólogos. Stuart Chase comentou, em
1948, que o "conceito cie cultura dos antropólogos e sociólo-
gos está sendo considerado o alicerce das ciências sociais".2
Em 195t2,"a opinião respeitada cios maiores expoentes da an-
tropologia norte-americana cia época, Alfred Kroeber e Clycle
Kluckhohn, era de que "a idéia -de cultura, no sentido antro-
1. LOWIE, Robert II. Culliíre and Ethnology. Nova York: McMur-
trie, 1917. p. 5,
,2. CHASE, Saiait. TíyeProper Study ofMankind. Nova York: Harper,
194S. p. 59.
H l
prefácio prefácio
polõgico técnico, constitui, uma das principais noções do pen-
samento americano contemporâneo".3 E eles estavam confian-
tes cie que no "sentido antropológico técnico", cultura era um
conceito de promessa científica cie grande vulto, "quase ilimi-
tado. "Em importânciaexplicativa e generalidade de aplicação
é comparável á categorias como a gravidade na, física, a doen-
ça na medicina e a,evolução na biologia."
Hoje em dia as coisas estão muito diferentes. Poucos an-
tropólogos afirmariam que a noção de cultura pode ser com-
parada "em importância explicativa" com gravidade, doença
ou evolução. Embora ainda se considerem especialistas no es-
tudo cia cultura, eles precisam aceitar a idéia de quê não go-
zam mais de uma posição privilegiada na galeria condensada
e diversa cie autoridades em cultura. Além disso, -a natureza cla.
área que eles reivindicam-sofreu uma mudança radical. De
modo geral, eles transferiram sua fidelidade intelectual das
ciências sociais para as ciências humanas, e estão propensos
a fazer uma interpretação prática, até mesmo uma desconstru-
ção, e não uma análise sociológica ou -psicológica. Não obs-
tante, ,os antropólogos modernos norte-americanos vêm siste-
maciçamente aplicando as teorias culturais em uma grande va-
riedade de estudos etnográficos, e creio que seus experimen-
tos representam o mais intrigante e satisfatório teste do valor
- e talvez da validade - das teorias culturais. O objetivo pri-
mordial deste livro, por conseguinte, consiste em fazer uma
^avaliação do projeto-.central da -antropologia cultural norte-
americana cio pós-guerra.
Cheguei à conclusão de que~quanto"mais se analisam os
melhores trabalhos modernos cios antropólogos sobre cultura,
mais aconselhável se torna abandonar cie vez a palavra hiper-
:_ referencial e passar a falar de forma mais precisa sobre conhe-
cimento, convicção, arte, tecnologia, tradição ou até mesmo
ideologia (embora problemas semelhantes sejam levantados
por esses conceitos polivalentes). Existem problemas episte-
mológicos fundamentais, e não vai ser tergiversando, sobre
3. KROEBER, A. L.; KLUCKHOHN, Clyde. 'Çulture: A Criticai Re-
view of Concepts and Definitions. Cambridge, Mass.: Trabalhos cio
Peabody Musèüm, 1952, p. 3. -'.-
cultura ou apurando definições que esses problemas serão re-
solvidos. As dificuldades tornam-se maiores quando (.depois
cie todos os protestos em contrário) a cultura deixa cie ser algo
a ser descrito, interpretado ou talvez até mesmo explicado
para ser tratada como uma fonte de explicação propriamente
dita. Não quero GO m isso negar que alguma forma de explica-
ção cultural possa ser bastante útil, em seu devido lugar, mas
apelos à cultura.só podem oferecer uma explicação parcial do
que leva as pessoas a pensarem e a agirem de determinada
forma e cio que faz com que elas.mudem seu jeito cie ser. For-
ças políticas e econômicas, instituições sociais e processos
biológicos não desaparecem como num passe de mágica ape-
nas porque esse é o nosso desejo, nem podem ser assimila-
dos em sistemas de conhecimentos e crenças. E esse, eu diria,
constitui o principal empecilho no caminho da teoria.cultural,
certamente em vista de suas pretensões atuais. -
Espero que os capítulos independentes deste livro pos-
sam corroborar essas conclusões, persuadir o leitor de visão e
semear dúvidas na mente dos mais crédulos. Entretanto, po-
der-se-ia alegar que, antes cie iniciar esse projeto, eu tinha pre-
conceitos contra a maior parte cias teorias sobre cultura. Sou
membro integrante cia facção européia de antropologia que
sempre teve muita cautela em reivindicar cultura como seu
tema exclusivo, ê mais, ainda de lhe conferir poder de explica-
ção. Sem dúvida alguma, meu ceticismo inicial foi acentuado
por minhas visões políticas: sou. liberal, no sentido.europeu e
.não americano, um homem moderado, um humanista sem ex-
tremos; .mas apesar de ser bastante sensato, não posso dizer
que estou livre de preconceitos. Um materialista moderado e
com convicções brandas sobre direitos humanos universais,
sou refratário ao idealismo,e ao relativismo cia teoria cultural
moderna e não tenho muita simpatia pelos movimentos sociais
fundamentados em nacionalismo, identidade étnica ou reli-
gião, exatamente os movimentos que exibem maior tendência
de invocar a cultura para motivar ação política.
Pouco antes cie começar a escrever este livro, tomei cons-
ciência cie. que essas dúvidas teóricas e preocupações políticas
estavam profundamente enraizadas em minha própria condi-
ção cie sul-africano liberal. No estágio inicial cia recente trans-
12'
;
13!
prefácio
formação por que passou a África cio Sul, depois da eleição cie
F. W, De Klerk para á presidência mas antes da libertação cie
Nelson Mandela da prisão, um momento imbuído de grandes
possibilidades históricas, recebi uma carta de um eminente an-
tropólogo americano. Ele havia siclo convidado a proferir uma
palestra sobre liberdade acadêmica na Universidade da Cidade
cio Cabo. Naturalmente, ele se perguntava de que maneira um
antropólogo poderia contribuir para os seríssimos debates so^
bre raça, cultura e história que arrebatavam a África cio Sul, e
me pedia para lhe fornecer alguns subsídios sobre as discus-
sões travadas nos círculos antropológicos locais.:Eu lhe enviei
jrevisòes dos principais argumentos cia antropologia cultural
africânder, e ele me escreveu novamente agradecendo. Ele es-
capou por pouco de cometer uma grave impropriedacle, pois
seu primeiro impulso tinha sido dedicar a palestra a um dis-
curso boasiano clássico sobre cultura. Provavelmente ele teria
afirmado que raça e cultura eram independentes entre si, ,que
era a cultura que tornava"as pessoas o que elas, eram e que.o
respeito .pelas diferenças culturais deveria constituir a base cie
uma sociedade justa. Um argumento edificante nos Estados
Unidos, mas que na África cio Sul teria soado como uma justi-
ficativa desesperada para o apartheicl.
Esse paradoxo estava profundamente entranhaclo em mi-
nha consciência e, sem dúvida, constituiu um dos motivos
para a elaboração deste livro. Eu estava cursando a faculdade
na África do Sul no final década cie f 950. Naquela época, um
sistema africânder radical segurava firmemente as rédeas do
país, e sua política coercitiva de segregação racial, o apar-
theicl, estava sendo implementada com um tipo cie sadismo'
moralizante. O governo parecia ser praticamente invulnerável
e impérvio a críticas. Os movimentos de oposição africana
eram brutalmente reprimidos. E, no entanto, havia um campo
em que aparentemente 'algumás"das convicções mais sagradas
desgoverno podiam ser expostas por argumentos sensatos e
evidências irrefutáveis. .Embora muitas vezes estivessem en-
voltas na linguagem da teologia, _as doutrinas oficiais sobre
raça e cultura invocavam autoridade científica; o apartheicl es-
tava fundamentado numa teoria antropológica. Não era por
acaso que seu arquiteto intelectual,-W. W. M. Eiselen, tinha
sido professor cie etnologia.
 L
14
prefácio
Os nacionalistas africânderes suspeitavam da "missão ci-
vilizaclora" proclamada, com boa ou má fé, pelos poderes co-
loniais na África.4 Alguns acreditavam que os africanos não
.podiam ser socializados, e que até mesmo uma tentativa nes-
se sentido era contraproducente; ou, na melhor cias hipóteses,
que levaria séculos para alcançar tal objetivo, e talvez apenas
a um grande custo humano. Esse tipo cie argumento, em ge-
ral, é motivado por um racismo torpe, e o pensamento racis-
ta certamente era disseminado entre os brancos sul-africanos.
Entretanto, alguns intelectuais africânderes, entre eles Eiselen,
repudiavam os preconceitos populares. Não havia provas-cie
que, a inteligência variava com a raça, afirmou Eiselen numa
palestra em 1929, tampouco que uma raça ou nação privile-
giada deveria conduzir o mundo para todo o sempre na civi-
lização. Não era a raça, mas sim a cultura que constituía a ver-"
cladeira base da diferença, o sinal do destino. E as diferenças
culturais deveriam ser avaliadas. A troca cultural, até mesmo
o progresso, não era necessariamente uma dádiva.-Seu custo
podia ser demasiadamente alto. Se a integridadecias culturas
tradicionais fosse minada, haveria uma desintegração social.
Eiselen achava que o governo deveria estimular uma "cultura
banto mais elevada, e não produzir europeus negros". Mais
tarde, o slogan "desenvolvimento separado" passou a ser usa-
do. A segregação era o curso adequado ^para a África cio Sul,
pois só assim as diferenças culturais seriam preservadas.
A escola cie etnologia do apartheicl citava os antropólo-
^gos culturais , norte-americanos com aprovação, embora em
grande parte em seus próprios termos; mas seus líderes eram'
radicalmente contrários as teorias cia escola britânica de antro-
pologia social, sobretudo às teorias cie A. R. Raclcliffe-Brown;
primeiro a ocupar a cadeira cie antropologia social na África do
Sul, em Í921. Radcliffe-Brown, obviamente, não negava que
4. Para uma revisão da etnologia africânder e da carreira de Eise-
len, ver GORDON, Robert. Apartheid's Anthropologist: The Gè-
nealogy of Afrikaner Anthropology. American Ethnologist, v. 13,
n. 3, p. 535-53, 1988, e para um relato mais geral sobre a antro-
pologia sul-africana, ver HAMMOND-TOOKE, W; D. Imperfect tn-
terpreters: South Africa's Anthropologists 1920-1990. Joanesburgo:
Witwatersrand University Press1, 1997.
151
prefácio
existiam diferenças culturais no país, mas rejeitava a política de
segregação com base no argumento cie que a, África do. Sul
transformara-se numa sociedade única. As instituições nacio-
nais cruzavam as fronteiras culturais -e moldavam opções cie
vicia em todas, as aldeias e cidades no país. Todos os cidadãos
(ou indivíduos) estavam no mesmo;barco. As, políticas de base
acerca de diferenças culturais representavam uma 'receita para
o desastre. "A segregação é insuportável", afirmou ele à platéia
em uma de suas palestras. "O nacionalismo sul-africano tem cie
ser um nacionalismo composto poí pretos e brancos."
Em parte como resultado cia sua experiência sul-africa-.
na, Radcliffe-Brown,, mais tarde, tinha a tendência cie tratar
todos os assuntos ligados à cultura com reservas! "Não obser-
vamos uma 'cultura'", comentou ele em seu discurso de pos-
se como presidente cio Royal Antllrópological Institute, em
- 1940, "uma vez que essa palavra denota, não uma realidade
concreta, mas uma abstração, e da forma com é usada comu-
"mente, uma abstração vaga".5 Ele repudiava a opinião do seu
grande rival, Bronislaw Malinowski, de que uma sociedade
como a África cio Sul deveria ser estudada como uma arena
em que duas ou mais "culturas" interagiam. "Pois o que está
ocorrendo na África cio Sul [explicou Radcliffe-Brown] não é
a interação das culturas britânica, africânder (ou bôer), hoten-
to'te, banto e, indiana, mas sim a interação cie indivíduos e
grupos dentro cie uma estrutura social estabelecida que está.
em processo cie mudança. O que está acontecendo numa tri-
bo em Transkei, pôr exemplo, só pode ser descrito reconhe-
cendo-se que a tribo foi incorporada num amplo sistema es-
truturar político e econômico."6
Vindo da África do Sul, sem dúvida alguma eu estava
predisposto a aceitar esse tipo de argumento. Além do mais,
quaisquer preconceitos iniciais que e-ú tivesse foram reforça-
dos no meu curso de pós-graduação em antropologia estrütu^-
ral e social na Universidade de Cambridge no início da déca-
da, cie 196o. Todavia, alguns cios meus contemporâneos real-
.5. RADCLIFFE-BROWN, A. R. Ün Social Structure. Journal of the,
Rayal Anthropological Institute, v. 70, p. 1-12, 1940.
6. Icl., ibid.
16
prefácio
mente se libertaram desse condicionamento inicial e'abraça-
ram a escola cultural. Meu ceticismo sobre cultura era mais
forte, em parte por ter ficado, tão impressionado com o abuso
da teoria cultural na África do Sul. Mas não é de todo ruim
abordar uma teoria profundamente arraigada com uma postu-
ra cética. Ademais, as inclinações políticas não impedem, ne-
cessariamente, alguém de avaliar os pontos fortes e fracos cios-
contra-argumentos. Além disso, as teorias culturais geralmen-
te trazem em seu bojo uma carga política, justificando unia crí-
tica política. Mas embora minha experiência sul-africana tenha
influenciado minhas indagações acerca da teoria cultural, es-
pero que isso não determine as conclusões a que cheguei.
Qualquer que seja o preconceito que eu tenha trazido para
esse projeto, fiz o melhor que pude para respeitar tanto os ar-
gumentos como as evidências. ,
171
Provavelmente, isso é tudo o que se pode pedir da his-
tória, sobretudo da história de idéias: não solucionar as
questões, mas sim elevar o nível cio debate.
Albert O. Hirschman
(introdução:
(guerras culturais
Não sei -quantas vezes desejei nunca ter ouvido a maldita
palavra.'
Raymond Williams
acadêmicos americanos estão travando-guerras
culturais. (Nem todas estão moitas). Os políticos conclamam
uma revolução cultural. Aparentemente, é necessário .que haja ,
uma mudança cultural sísmica para.resolver os problemas cie
pobreza, consumo cie drogas, crime, ilegitimidade e competi-
ção industrial. Fala-se sobre diferenças culturais entre sexos e-
gerações, entre equipes de futebol ou entre agências cie pro-
paganda. Quando uma fusão entre duas empresas não dá cer-
to, dizem que suas culturas não eram compatíveis.:O bom-cie
tudo isso é cjue todo mundo entende. "Tentamos vender 'se-
miótica', mas tivemos algumas dificuldades", declarou uma
empresa londrina chamada Semiotic Solutions, "por isso agora
vendemos 'cultura'. Essa todos conhecem e, portanto, dispen-
sa explicações".2 Além disso, não há como subestimar a cultu-
ra. "Ela fala- mais alto em termos de motivação cio comporta-
mento do consumidor", afirma o folheto cia empresa, "é mais
persuasiva do que a razão, mais 'massa' do que a psicologia"!
Existe também um mercado secundário florescente no discur-
so cultural. Em meados de 1990, as livrarias montaram seções-
de "estudos culturais" em posições de destaque que antes
eram,dedicadas à religião New Age e, antes disso, áps livros de
auto-ajuda. O gerente da Olsson's em Washington, D. C., Guy
1. WILLIAMS, Raymond. Polüics and Letlers. Londres: New Left
Books, 1979. p. 174T
2. MACFARQUAHAR, Larissa. This Semiotieian Went to Market. Lín-
gua Franca, p. 62, set./out. 1994.
21
. Introdução
Brussat, explicou: "As pessoas vêem sociologia e pensam: tex-
to acadêmico árido. Elas vêem estudos culturais e pensam: Ah,
cultura! Trata-se cie uma abordagem .psicológica sutil."1
Todo inundo está envolvido com cultura atualmente.
Para os antropólogos, esse já foi um termo ligado às artes.
Hoje, os nativos falam de suas culturas. "Cultura - a própria
palavra, ou algum equivalente local - está na boca cie todos",
observou Marshall Sahlins.4 "Tíbetanos, havaianos, esquimós,
cazaques, mongóis, aborígenes australianos, balineses, caxe-
rriirenses, Ojibway, Kwakiutl e Maori neozelandeses: todos
descobrem cfue -têm uma 'cultura'." Os índios Caiapó que vi-
vem na floresta tropical da América do Sul usam o termo cul-
tura para descrever suas cerimônias tradicionais. Maurice Go-
delier descreve um trabalhador emigrante que retorna para o
seu povo na Nova Guiné, os Baruya, proclamando: "Precisa-
mos fortalecer nossos costumes; precisámos nos basear naqui-
lo que os brancos chamam de cultura." Outro habitante da
Nova Guiné diz a, um antropólogo: "Se não tivéssemos kas-
tom, seríamos exatamente como os homens brancos." Sahlins
menciona toclos esses exemplos para ilustrar uma proposição
geral: "A consciência cultural que se desenvolveu entre ás an-
tigas vítimas cio imperialismo, no final do século 20, constitui
um dos fenômenos mais notáveis cia história mundial."
Essas vítimas podem até mesmo desenvolver uma cultu-
ra crítica. Gerd Baumann mostrou que em Southall, subúrbio
multiétnico situado a oeste de Londres, em primeiro lugar as
pessoas "questionam o significado dos termos 'cultura' e 'co-
munidade'. Qs termos, por si só, tornam-sefundamentais para
a formação de uma cultura em Southall".5 Todavia, até mesmo
os nacionalistas antiocidente podem simplesmente se apro-
priar da retórica internacional dominante de cultura para afir-
mar á identidade singular do seu próprio povo, sem medo de
se contradizerem. "Achamos que a maior ameaça à nossa so-
3. MARSHALL, Jessica. .Shelf Life. Franca, p. 27, mar./abr. 1995.
4. SAHLINS, Marshall. Goodby to Tristes Tropes: Ethnography in the
Context of Moclern World Histoiy. Journal of Modem Histoiy, v. 65,
p. 3-4, 1993.
5. BAUMANN, Gerd, Contesting Culture: Discourses of Identity in
Multi-Ethnic London. Cambridge: Cambridge University Press,
1996T p. 145.
122
Introdução
ciedade atualmente", cliz um político iraniano fundamentalista,
"é cultural".".(Mas certamente falar sobre identidade cultural é
muito... americano?) Akio Morita, um cios fundadores da Sony,
rebate as alegações cie que o Japão deveria, liberalizar seus
acordos de,comércio para permitir uma maior competição cie
empresas estrangeiras. "Reciprocidade", explica ele, "significa-
ria alterar as leis para aceitar sistemas estrangeiros que podem
não ser adequados à nossa cultura".7 (Felizmente, vender tele-
visores Sony para os-américanos e fazer filmes hollywoodiafios
está perfeitamente de acordo com a cultura japonesa,) _
Talvez o futuro cie todo o mundo dependa cia cultura.
Em 1993, Samuel Huntington anunciou num artigo apocalíp-
tico para a revista norte-americana Foreign Affairs que a his-
tória global iniciou uma nova fase, em que "as principais fon-
tes cie conflito" não serão fundamentalmente econômicas ou
ideológicas. "As grandes divisões entre a humanidade e as
principais fontes de conflito serão culturais."8 Ao discorrer so-
bre essa tese recentemente num livro, ele afirmou que pode-
mos esperar um gigantesco choque cíe civilizações, cada qual
representando uma identidade cultural primordial. As "princi-
pais diferenças no desenvolvimento político e econômico en-
tre as civilizações estão claramente enraizadas em suas cultu-
ras distintas", e "a cultura e as identidades culturais... estão
moldando os padrões de coesão, desintegração:e conflito no
mundo pós-Guerra Fria,.. Nesse novo mundo, a política, lo
• cal é a política da etnicidade; a política global é a política de
civilizações, A rivalidade cias superpotências é substituída
pelo choque de civilizações".9 , .
6. International H, p. 5, 1996. __
7. Apud BURÚMA, lan, The Mtssionary and the Libertina Lovè and
War in East anel West. Londres: Faber, 1996. p, 235.
8. HUNTINGTON, Samuel P. Foreign Affairs, p. 22, verão 1993-
9. Id. The Clash of Ciinlization and the Remaking of World Or-
der. Nova York: Simon and Schuster, 1996. p, 29- As observações
seguintes são das páginas 20 e 28. Observe-que o ensaio original
fazia a pergunta ("as principais fontes de conflito"). Agora, apa-
rentemente, a pergunta foi respondida, de forma afirmativa.
231
Introdução Introdução
Não é preciso dizer que cultura tem um significado bas-
tante diferente para os pesquisadores de mercado em Lon-
'dres, para um magnata japonês, para os habitantes da Nova
Guiné e para um religioso radical de Teerã, sem falar em Sa-
muel Huntington. Há, entretanto, .uma semelhança familiar
'. entre os conceitos que eles têm em mente" Em seu sentido
mais amplo, cultura-é simplesmente uma forma de falar so-
bre identidades coletivas. Porém, o status também está em
jogo. Muitas pessoas, acreditam que, as culturas podem ser
comparadas, e tendem a prezar mais a sua própria cultura.
Elas-podem, até mesmo, acreditar que exista apenas uma ci-
vilização verdadeira, e que o futuro não. apenas cia nação,
mas do mundo, depende da sobrevivência da sua.cultura. "A
despeito dos multiculturalistas", insiste Roger Kimball, "a op-
ção atualmente não é-entre uma cultura ocidentar'repressiva'
e um paraíso multicultural, mas sim entre cultura e barbaris-
mo. Civilização não é uma dádiva, mas sim uma conquista -
uma conquista frágil que precisa ser constantemente reafir-
mada e defendida interna e externamente contra sitiadores".10
Huntington diz-que o conflito de civilizações pós-Guerra Fria .
não passa de um estágio no caminho da luta maior que está
por vir, "o conflito maior, o 'verdadeiro conflito' global, entre
Civilização e barbarismo".11
Enquanto os patriotas da Civilização ocidental reivindi-
cam a superioridade da grande tradição, os multiculturalistas
comemoram a diversidade cia América e defendem a cultura-
cios marginalizados, das minorias, cios dissidentes e cios colo-
nizados. A cultura do establishment é denunciada como
opressiva. A&_culturas das minorias fortalecem os fracos: elas
são autênticas; elas falam para pessoas cie verdade; elas man-
têm variedade e escolha; elas alimentam a dissensão. Todas as
culturas são iguais, ou deveriam ser tratadas como "tal. "Por-.-
tanto, a cultura como tema ou tópico cie estudo substituiu a
sociedade como objeto geral de indagação entre os progres-
W. KIMBALL, Roger. Tenured Radicais, New Criterío.n, p.. 13, jan.
1991. '•'(-•'•
11. HUNTINGTON, Samuel P. op. cit. p. 321.
sistas", escreve Erecl Inglis, com um leve toque de ironia.12 Mas
embora os conservadores rejeitem esses argumentos, eles con-
cordam que a cultura estabelece padrões públicos e determi-
na o destino cia nação. E quando pessoas de nações e grupos
étnicos distintos entram em contato, há um confronto total cie
culturas. Alguém deve-ceder nesse conflito.
A cultura também é usada freqüentemente com outro
sentido, para se referir à grande arte que é apreciada por pou-
cos afortunados. Mas não se trata simplesmente cie uma reali-
zação pessoal. Se a arte e a erudição forem ameaçadas, o bem-
estar cie toda a nação estará em jogo. Para Matthew Arnold, a
verdadeira luta cie classes não era travada .entre ricos e pobres,
mas sim entre os guardiões da cultura e as pessoas,a quem ele
chamava de filisteus, que serviam a Mamon. Escritores radicais,
contudo, negam que a cultura da elite dissemina doçura ejuz.
A alta cultura pode representar um instrurnento de dominação,
um ardil cias castas. Em meio à elite, argumentou Pierre Bõur-
dieu, o valor das altas culturas reside precisamente no fato cie'
que a capacidade de avaliar obras de arte e fazer distinções
por si só confere "distinção".13 A cultura é õ dom do gosto re-
finado que diferencia unia clama ou um cavalheiro do'novo-
rico. Para os adeptos da tradição marxista., a cultura tem seu
lugar numa luta de classes mais ampla. A alta cultura disfarça
as extorsões dos ricos. A cultura de massa de Ersatz confunde
os'pobres. Apenas as tradições culturais populares podem'con-
trapor-se à corrupção cia mídia de massa.,
Embora haja muita conversa em torno de cultura, discus-
sões desse tipo obviamente não são novas. Todas elas aflora-
ram durante uma explosão semelhante cie teorização cultural
.que ocorreu entre as.décadas cie 1920 e de 1950, como mostra
o próximo capítulo. (Talvez essa longa discussão apenas tenha
sido interrompida.durante uma geração em virtude cljjs preocu-
pações ideológicas cia Guerra Fria). Naquela época, assim como
agora, os autores mais reflexivos citavam seus precursores cios
séculos 18 e 19, reconhecendo que os discursos sobre cultura
tendem a se encaixar em categorias bem definidas.-
12. INGLIS, Frecl. Cultural'Studies. Oxford: Blackwell, 1993. p. 109.
13. BOURDIEU, Pierre. Distinction: A Social Critique of the Judge-
ment of Taste. Londres: Routledge, 1984.
!24
Introdução Introdução
Uma teoria francesa de cultura, uma alemã e uma Ingle-
sa muitas vezes são identificadas cie forma vaga.- Da mesma
forma, e igualmente vaga, podem-se distinguir discursos ro-
mânticos, clássicos e ilúministas. Tratam-se de rótulos toscos
para constructos complexos que são regularmente separados
e reagrupados em novos padrões, ^ adaptados, declarados
mortos, revividos, renomeados, remodelados e, em geral,su-
jeitos a uma variedade de transformações estruturais. No en-
tanto, apesar de grosseira, essa. classificação fornece uma
orientação inicial. Até mesmo os pensadores mais imaginati- ,
vos e originais podem encaixar-se em uma ou outra dessas
tradições centrais, cada uma delas especificando uma con-
; cepção de cultura e colocando-a em .ação dentro cie uma de-
terminada teoria da história.
Na: tradição francesa, a civilização ê representada como
« uma conquista progressiva, cumulativa e. distintamente, huma-
na. Os seres humanos são semelhantes, pelo menos em po-
tencial. Todos-são capazes de criar uma civilização, o que de-
pende do dom exclusivamente humano da razão. Não resta
dúvida, de que a civilização se desenvolveu mais na França,
-mas .em princípio ela pode ser usufruída, embora talvez não
com a mesma intensidade, por selvagens, bárbaros e outros
povos europeus. Segundo Louis Dürripnt, um francês, portan- :
íõ, vai "identificar inocentemente sua própria cultura com 'ci-
vilisation' ou cultura universal"." Para ser exato, um francês
"reflexivo admitiria prontamente que a razão nem sempre pre-
valece,' ela precisa lutar contra a tradição, a superstição e o
instinto irracional. Mas ele poderia ficar confiante na vitória
;suprema dá civilização, pois ela pode convocar a ciência para
vir-em seu auxílio: a. mais alta expressão da razão e, certamen-
te, da cultura ou civilização, o conhecimento verdadeiro e efi-
caz das leis que informam a natureza e a sociedade.
Esse credo secular foi formulado na França na segunda
metade do século 18, em, oposição ao que os phtiosophes con-
sideravam como forças cie reação e irracionalidade, represen-
tadas, acima cie tudo, pela igreja católica e pelo ancien regime. '
A medida que esse creçlo se espalhou pelo resto da Europa,
sua maior oposição ideológica veio cios intelectuais alemães,
amiúde ministros protestantes incitados a defender a tradição
nacional contra a civilização cosmopolita; os valores espirituais
contra o materialismo; as artes e os trabalhos manuais contra a
. "i
ciência e a tecnologia; a genialidade .individual .e a expressão
das próprias idéias contra a burocracia asfixiante; as emoções,
até mesmo as forças mais obscuras.do nosso íntimo contra a
razão árida: em suma, Kultur contra Civilização:
Ao contrário cio conhecimento científico, a sabedoria
da cultura é subjetiva. Suas reflexões mais profundas são re-
lativas, e não leis universais. O que é válido em vim lado dos
Pireneus põcle representar um erro do outro lado. Mas quan-
do a fé cultural é corroída, a vida perde todo o seu signifi-
cado. Enquanto a civilização material está ganhando terreno
em toda a sociedade européia, as nações lutam para manter
uma cultura espiritual, expressada acima cie tudo por inter-
médio cia linguagem e das artes. A autêntica Kultur dos ale-
mães certamente seria preferível à Civilização artificial de
uma elite francófona cosmopolita e materialista. De qualquer
,forma, diferença cultural era normal. Não existe uma nature-
za humana comum. "Tenho visto franceses, italianos, rus-
sos", escreveu o contra-reyolucionário, francês de Maistre.
"Mas quanto ao homem', declaro que jamais o conheci; se ele
existe, desconheço."15 (Pode ser que Henry James tivesse
esse aforismo em mente quando escreveu: "O homem não é
um só - afinal, o americano tem características muito dife-
rentes do francês, e assim por diante."16)
Essas duas correntes de pensamento sobre cultura se de-
senvolveram em oposição dialética uma ã outra. Um tema im-
portante dos pensadores iíuministas era o progresso cio ser
humano,.ao passo que seus oponentes estavam interessados
no destino específico de uma nação. Na visão do Iluminismo,
a civilização travava uma grande luta para vencer a resistên-
cia cias culturas tradicionais,.com suas superstições", seus pre-
14. DUMONT, Louis. German Ideoldgy: From France to Germany
and Back. Chicago: University ôf Chicago Press, 1994. p. 3"'
15. MAISTREj Joseph de. Considerations on France. Cambrictge:
Cambridge University Press, 1994 (publicação francesa, 1797). p. 53.
16. Heniy James, carta a William Dean Howells, i de maio de 1890.
126
27
Introdução
conceitos irracionais e suas lealclades temerosas a governan-
tes sarcásticos. (Diderot disse que só descansaria em paz
quando o último rei fosse estrangulado com as entranhas cio
último sacerdote.) Da parte cio contra-Iluminismo, a definição
cie inimigo era civilização, racional, científica e uniyersal: o
próprio Iluminismo. Associada a valores qiateriais, ao capita-
lismo e muitas vezes à política externa e à influência econô-
mica, essa civilização ameaçava a cultura autêntica e conde-
nava artes seculares à obsolescência. O cosmopoli.tanismo
corrompia a linguagem. O racionalismo perturbava a fé reli-
giosa. Juntos, eles corroíam os valores espirituais dos quais
dependia a comunidade orgânica.
Essas ideologias contrastantes poderiam alimentar a retó-
rica nacionalista e suscitar emoções populares em épocas, de
guerra, mas até mesmo em sua faceta mais virulenta, elas nun-
ca foram meramente discursos nacionais. Alguns intelectuais
franceses simpatizavam com o contra-Iluminismo apenas por-
que ele saía em defesa da religião contra a insicliosa subver-
são cia razão. Depois da batalha de Seclan, em 1870 (vencida,
assim disseram, pelos professores da Prússia), a idéia de uma
cultura naciqnah penetrou numa França humilhada, e "Ia cul-
ture Française" foi cada"vez mais contrastada com "Ia culture
allemancle", embora sem necessariamente comprometer as
reivindicações francesas de superioridade. (Ainda em 1938, o
Dicionário Quillet observou que o termo cultura podia ser
usado cie forma irônica, como na frase "Ia culture allemancle".)_.
Na Alemanha, havia uma antiga tradição do pensamento ilu-
minista que jamais submergiu completamente, embora algu-
mas vezes assumisse formas estranhas, quase irreconhecíveis.
Nietzche condenava seus compatriotas por sua caótica Bil-
dung, ou formação cultural, corrompida por -empréstimos e
moda, que ele contrastava com a Kultur orgânica da França,
que, por sua vez, equiparava com a própria Civilização. Ele
optava' pela civilização — em outras palavras, pela França:,
"berço da mais refinada e espiritual cultura européia".17 Um
dissidente francês como Baudelaire, por outro lado, podia
17. NIETZSCHE, F. Jensetis von GutunâBôse. Munique: Golclmann,
.1980. 254. p. 145.
i 28
Introdução
chamar a França de "um país verdadeiramente bárbaro" e es-
pecular que talvez a civilização "tenha se refugiado em algu-
'*ma tribo minúscula, porém ainda não descoberta".18 A Primei-
ra Guerra Mundial foi travada por trás das bandeiras rivais cia
Civilização ocidental e da Kultur alemã, mas bem na sombra
da guerra, os irmãos Thomas e Heinrich Mann se colocaram
em lados opostos - o alemão e o francês - 'num famoso de-
bate sobre cultura e civilização'.
Nessas duas tradições, cultura ou civilização representa-
va os valores supremos. Aventou-se a hipótese de que. esses •-
conceitos tenham sido propagados no século 18 porque a re-
ligião estava perdendo seu domínio sobre muitos intelectuais.
Essas tradições constituíam uma alternativa, fonte secular cie
valor e significado. Cada uma delas, todavia, tinha afinidades'
com uma determinada perspectiva cristã. A idéia de Civiliza-
ção lembra as reivindicações universalistas da igreja católica.
Comte e Saint-Simon criaram a religião do positivismo, para
a qual tomaram emprestados rituais católicos. Seu dogma
central era o progresso, que representava a salvação neste
mundo. As noções alemãs cie Bildung e Kultur, expressadas ,
de forma característica numa linguagem espiritual, compro-
metidas com as necessidades cia alma do indivíduo, que va-
lorizam mais a • virtude interior do que a aparência exterior e
encaram com pessimismo o progresso secular, por sua vez,
: estão impregnadas,dosvalores da Reforma, e Thomas. Mann
afirmou que a Reforma imunizara os alemães contra as idéias
da Revolução Francesa.
Qs ingleses, como sempre, mantiveram-se um tanto
afastados desses argumentos continentais. John Stuart Mill
tentou reunir as tradições francesas, e inglesas em seus famo-
sos ensaios sobre Bentham e Coleridge, mas os ingleses ti-
, nham suas próprias preocupações. À medida que a industria-
lização'transformava a Inglaterra, os intelectuais identifica-
vam uma crise espiritual, uma luta de vicia ou de morte entre
o que Shelley chamou cie Poesia e Mamon. A" tecnologia e o
18. BAUDELAIRE. Apud STAROBINSKI, Jean. Blessings in Disguise:
Or, The Morality of Evil. Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 1993. p. 54.
Introdução
matérialismo da civilização moderna incorporavam o inimigo,
contra o qual os intelectuais liberais lançavam valores cultu-'
Tais eternos extraídos cia grande tradição da a'rte e da filoso-
fia européias. Matthew Arnold definiu cultura como "o me-
lhor de tuclo o que se teve conhecimento e foi dito",1' um câ-
non cosmopolita duradouro. Adquirindo cultura, ficamos co-
nhecendo "a história do espírito humano". Era ela que dístin-
guia os eleitos dos bárbaros incultos.. Mas esse legado huma-
nista estava sob o cerco dos.exércitos cia civilização indus-
trial. A grande interrogação era se a cultura intelectual cia eli-
te instruída poderia, cie alguma forma, sustentar os valores
espirituais cia sociedade. Talvez a cultura cedesse, esmagada
pelo materialismo exacerbado cie homens compenetrados .
que sabiam o preço cie tuclo, mas não sabiam o valor de
nacla. "À medida que as civilizações avançam", concluiu Ma-
caulay, "há uni declínio quase inexorável da poesia".-9
No çntanto, de nada adianta exagerar o caráter distinto
da tradição inglesa. Arnold recorreu a Coleridge, e este, aos
românticos alemães. As preocupações e os valores se sobre-.
punham. Em todos os lugares, cultura representava a esfera .
dos valores supremos, sobre os quais acreditava-se que se
apoiava a ordem social. Como a cultura era transmitida atra-
vés cio Cisterna educacional e exprimida de forma mais inten-
~ sã por intermédio cias artes, essas eram áreas essenciais que
um intelectual deveria estudar para aprimorar-se. E como o
destino de uma nação dependia da condição de sua cultura,
essa era uma arena importantíssima para a ação política.
Os argumentos modernos não recapitulam cie forma pré- —
cisa as controvérsias anteriores. Os contextos cia época dei-
xam a sua marca. Cada ,geração moderniza o idioma do deba-
te, via de regra adaptando-o à terminologia científica do mo-
mento: evolucionismo no final do século 19, organicismo no
;início do século 20, relatividade na década de 1920. Metáforas
19. ARNOLD, Matthew, Ltíerature and Dogma. Londres: McMillan,
1873.
20. Thomas Babington Macaulay, "Milton". Publicado pela primei-
ra vez em 1825; retirado de Criticai and Historical Essays, 1843;
reimpressò por Everyman's Libraiy. Londres: Dent, 1907. p. 153.
130
Introdução
emprestadas cia genética competem, hoje em clia, com o jar-
gão cia teoria literária contemporânea. Entretanto, mesmo que
fossem expressados em termos modernos, os discursos sobre
cultura não são inventados livremente; :eles remontam a cleter-
rninadas tradições intelectuais que persistiram por gerações,
disseminando-se da Europa para todo o mundo, impondo
concepções da natureza humana é da história, provocando
uma série cie debates recorrentes. Vozes ancestrais perseguem
os escritores contemporâneos. Novas formulações podem ser
estabelecidas numa longa genealogia, mesmo que estejam re-
lacionadas com as necessidades cio momento.
À medida que as ciências humanas se consolidavam, es-
colas de pensamento rivais recorriam a essas perspectivas
clássicas. Temas centrais da visão iluminista do mundo ou da
ideologia francesa ressurgiram no positivismo, no socialismo
e no utilitarismo cio século 19. No século 20, a idéia cie uma
civilização mundial científica progressiva foi traduzida parada
.teoria cia globalização. A curto prazo,-a cultura representou
uma barreira à modernização (ou industrialização, ou globali-
zação), mas no final a civilização moderna passaria por cima
das tradições locais menos eficazes. A cultura foi invocada '
quando tornou-se necessário explicar por que as ..pessoas es-
tavam adotando metas irracionais e estratégias auto-clestruti-
vas. Projetos cie desenvolvimento-eram derrotados pela resis-
tência cultural. A democracia desmoronava porque estava
alheia às tradições da.'..nação. Teorias de opções racionais não
podiam explicar o que os economistas -desesperaclamente
chamam cie. "apego", formas cie pensar e agir tão arraigadas
que resistem aos argumentos mais convincentes. A cultura re-
presentava o retrocesso, para explicar o"comportamento apa-
rentemente irracional. Ela também foi responsável pelo resul-
tado, desapontadqr de muitas reformas políticas. A tradição era
o refúgio dos ignorantes e receosos, ou o recurso cios ricos, e
poderosos, que temiam perder .seus privilégios.
Vista sob outro prisma, -a resistência cias culturas locais
a globalização provavelmente é respeitada e até mesmo co-
memorada. Essa era a perspectiva cios herdeiros cio contra-
Huminismo. A tradição romântica, ou alemã, também não fi-
cou estática. • Ela passou por suas próprias transformações,
31
Introdução
..embora exibisse sempre uma afinidade eletiva com idealis-
mo, relativismo, historicismo,_.um estilo hermenêutico de aná-
lise e o que chamamos atualmente cie identidade política. Ri-
charcl A. Shweder tentou, até mesmo, fazer uma genealogia
ligando p movimento romântico cio século 19-ao que ele cha-
ma cie "rebelião romântica contra o íluminismo"21 dos antro-
pólogos contemporâneos.
Mesmo crue vestissem novas roupagens, as idéias clássi-
cas sobre cultura não eram soberanas, Elas enfrentavam novas
rivais, e a maior delas surgiu com a -publicação de A origem
das Espécies de Darwin, em 1859. Até mesmo o pensador me-
.nos científico não podia ignorar o desafio depois que Darwin
estendeu seu argumento aos seres humanos em-^4 Descendên-
cia do Homem, em 1871. Era preciso encarar a possibilidade
cie que os padrões cie comportamento humano e as diferen-
ças humanas podiam ser explicadas em termos biológicos. A
cultura segue leis naturais. Não obstante, a teoria darwiniana
íião tornava necessariamente obsoletas as idéias clássicas. A
teoria cie que todos os seres humanos tinham uma origem em
comum reafirmava a crença do íluminismo ha unidade cia hu-
manidade, A civilização ainda pode ser considerada o traço,
que define a característica humana. A evolução cia. vida tam-
bém pode fornecer um modelo para a evolução da civilização.
Os seres humanos representavam uma evolução dos macacos,
e'raças superiores - ou civilizações superiores - representa-
vam, da mesma forma, uma evolução cie raças inferiores e dê
suas civilizações. O próprio Darwin compartilhava dessa opi-
nião, mas alguns dos seus seguidores foram recrutados para a
causa do cõntra-Iluminismo. Disparidade cultural pode ser
uma expressão de diferenças raciais mais-fundamentais. A pu-
reza racial podia ser um imperativo político, ligada inextrica-
vélmente à defesa de uma identidade cultural. A história pode-
ser escrita com sangue, tendo como tema a luta pela sobrevi-
vência entre as raça-s.
21. SHWEDER, Richard A. Anthropòlogy's Romantic Rebellion
Against the Enlightenment. In: SHWEDER, Richard-A. ; LEVINE, Ro-
bert A. (Ed.X Culture Theory: Essays bn Mind, Self, and Emotion.
Cambriclge: Cambridge University Press, 1984.
132
Introdução
O desafio cie uma teoria biológica cie progresso huma-
no e diferenças humanas levou ao desenvolvimento daquilo
que, sob alguns aspectos, representava uma nova concepção
de cultura, que passou a ser considerada o oposto da biolo-
aia. Era a cultura que diferenciavaos seres humanos cios ou-
tros animais e clistinguia as nações umas cias outras. E ela não
era herdada biologicamente, mas sim assimilada, adquirida e.
até mesmo emprestada. Christopher Herbert afirmou que
essa noção cie cultura também nasceu de uma controvérsia
religiosa. Ele a associarão movimento cie revivificação evan-
gélica do início do século 19 na Inglaterra, que propagou
uma noção do pecado original que ele chama cie "o mito de
.um estado de desejo humano inçontrolado". A idéia de cul-
tura oferecia a esperança redentora de salvação secular: a
cultura era a nossa defesa contra a natureza humana. Os se-
res humanos deixavam sua condição de pecadores pelas gra-
ças dos tabus e das, leis. Herbert argumenta que "pode-se
considerar as idéias de cultura e desejo livre como dois ele-
mentos recíprocos complementares de um único padrão cie
discurso, embora um padrão repleto cie conflitos e necessa-
riamente instável".22 Talvez Herbert esteja certo e essa con-
cepção cie cultura tenha nascido em resposta a preocupações
religiosas, mas ela amadureceu em reação à revolução darwi-
1
 niana, que ameaçava conferir autoridade científica a algo
como a doutrina do desejo humano inçontrolado.
Em nenhum outro lugar, o argumento contra o darwinis-
mo foi formulado com maior premência e intensidade do que
nos idos de 1880, em Berlim. O mais proeminente darwinista
cia Alemanha, Ernst Haeckel, aduziu conclusões políticas da
teoria darwinista que cleixou o próprio Darwin bastante
apreensivo. Segundo Haeckel, Darwin apresentara arguijten-
tos científicos irrefutáveis para o livre comércio e contra aris-
tocracias hereditárias. Sua teoria também podia ser usada para
demonstrar a superioridade da raça prussiana e para subscre-
ver as políticas cie Bismarck, que demonstravam os efeitos
maravilhosos da luta e da seleção.
22. HERBERT, Christopher. Culture and Anomie: Ethnographic
Imagination in the Nineteenth Centuiy. Chicago: University of Chi-
cago Press, Í991. p. 29.
331
Introdução
O dogma de Haeckel espantou seu ex-professor, Rudolf
- Virchow, maior patologista alemão, político proeminente cie
visões liberais e mentor cia Sociedade cie Antropologia cie Ber-
lim. Do ponto de vista metodológico, sua objeção era quanto
a uma conclusão teórica prematura. O grande número de aca-
sos da mudança eyolucipnaria ainda não podia ser reduzido á
leis. Rudolf mostrava-se especialmente hostil em relação ao
determinismo racial -de Haeckel e ao nacionalismo cultural
com o qual este estava associado. Raças eram categorias ins-
táveis com fronteiras móveis, e a mistura racial era amplamen-
te disseminada, senão universal. Traços biológicos passavam
por cima das classificações raciais convencionais, que em to-
ei os os casos eram influenciadas por fatores ambientais locais.
Diferença cultural nào representava indício de diferença ra-
cial. Raça, cultura, língua e nacionalidade não coincidiam ne-
cessariamente. Os refugiados huguenotes, insistia Virchow,
"estão germanizados, assim como os numerosos judeus que
acolhemos da Polônia e da Rússia, e [que]... contribuíram so-
bremaneira para o nosso progresso cultural".23
O colega de Virchow, Adolf Bastian (que em 1886 se
tornou o primeiro diretor cio grande museu cie etnologia de
Berlim), tentou demonstrar que, assim como as raças, as cul-
turas são híbridas. Nào existem culturas puras, distintas e
permanentes': Toda cultura recorre a diversas "fontes, depen-
de de empréstimos e está em constante mudança. Os seres
humanos são bastante semelhantes, e toda cultura está enrai-
zada numa mentalidade humana universal. As diferenças cul-
turais eram causadas pelos desafios apresentados pelo am-
biente natural local é pelos contatos entre as populações. O
empréstimo era o mecanismo primário da mudança cultural.:
E como as mudanças culturais eram resultado de processos
locais imprevistos — pressões, ambientais, migrações, comér-
cio -— conseqüentemente, a história não tem um padrão fixo
de desenvolvimento.
25. Apuei ACKERKNEGHT, Erwin H. Rudolf Virchow: Doctor, Sta-
tesman, Anthropologist. Madison: .University of Wisconsin Press,
1953. p. 215-6.
134
Introdução
Essa antropologia liberal berlinense foi caracterizada como
um misto de idéias iluministas e românticas, mas na realidade
baseava-se numa rejeição dupla. Se as culturas são abertas, sin-
créticas e instáveis, obviamente não podem expressar identida-
des essenciais imutáveis ou um caracter racial subjacente. E se
as mudanças culturais são resultado de fatores locais imprevis-
tos, por conseguinte não existem leis gerais cie história. Acima
de tudo, entretanto, a escola berlinense insistia em afirmar que
a cultura funciona de uma forma bastante distinta cias forças
biológicas - e pode até mesmo sobrepujá-las.
Franz Boas, aluno.de Virchow-e Bastian, introduziu essa
abordagem na antropologia americana. À medida que esta se
desenvolvia numa disciplina acadêmica organizada no início
do" século 20, ela era definida pela luta épica entre Boas e sua
escola e a tradição evolucionista, representada nos Estados
Unidos pelos discípulos de Lewis Hemy Morgan, cujas narra-
tivas 'triunfalistas de progresso utilizávamos metáforas da teo-
ria de Darwin. Os boasianos eram céticos em relação às leis
.universais da evolução. Além disso, eles repudiavam explica-
ções raciais de diferença, um assunto -de grande importância
política nos Estados Unidos. A tese fundamental boàsiana era
de que à cultura é que nos faz, e nào a biologia. Nós nos tor-
namos o que somos ao crescer num determinado ambiente
cultural; não nascemos assim. Raça, e também sexo e idade
são constructos culturais, e -não condições naturais imutáveis.
Isso quer dizer que podemos nos transformar em algo melhor,
talvez aprendendo com o pçvo tolerante cie Samoa, ou com
os balineses perfeitamente equilibrados.
Essa era uma idéia bastante atraente na América do sé-
culo 20, mas a compreensão racial alternativa de diferença
cultural continuava a ser um grande desafio. A idéia de cultu-
ra podia realmente reforçar uma teoria racial cie diferençar
Cultura podia ser um eufemismo para raça, estimulando um
discurso sobre, identidades raciais enquanto aparentemente
abjurava o racismo. Os antropólogos podiam distinguir siste-
maticamente raça e cultura, mas na .linguagem popular ''cultu-
ra" se referia a uma qualidade inata. Á natureza cie um grupo
era evidente. a olho nu, expressada igualmente pela cor da
pele, pelas características faciais, pela religião, pelos princí-
pios morais, pelas aptídqes, pelo sotaque, pelos gestos.e pe-
35|
Introdução
Ias preferências de alimentação. Essa confusão obstinada per-
. siste, Na clécacía de 1980, Michael Moffatt, etnógrafo que esta-
va realizando um estudo'sobre os alunos brancos e negros
que "dividiam um -dormitório na Rutgers University, relatou
que os alunos literalmente se recusavam a falar sobre raça,
mas acreditavam que falar sobre diferenças culturais era mo-
-derno e politicamente correto.21 Na prática, todavia, eles fa-
. ziam uma distinção entre brancos e negros, embora a diferen-
ça entre esses alunos parecia ser essencialmente no que tan-
ge ao gosto por grupos .pop e fast fpod.
''Cultura sempre é definida em oposição a algo mais.
Trata-se da forma local autêntica cie ser diferente que resiste
à sua inimiga implacável, uma civilização material globali-
zante. Ou o domínio cio espírito armado contra o materialis-
mo. Ou a capacidade que o ser humano tem cie crescer es-
piritualmente e que sobrepuja ~sua. natureza animal. Dentro
das .ciências sociais, a cultura aparecia em outro conjunto cie
contrastes: ela era a consciência coletiva, em oposição à psi-
que individual. Ao mesmo tempo, representava a dimensão
ideológica cie vicia social que se contrapunha à organização
comum de governo, fábrica ou família. Essas idéias foram
desenvolvidas pelos fundadores da sociologia européiae in-
troduzidas na sociologia americana, tradicionalmente empí-
rica e utilitária, por Talcótt Parsons.
_- ' Jamais," nem antes nem depois, as ciências sociais ou
' "eomportamentais" receberam tantos incentivos financeiros, fo-
,ràm mais bem organizadas e, de modo geral, estiveram com o
' moral tão alto como nas décadas cie 1950 e 1960 nos Estados
Unidos, e seus líderes estavam convencidos cie que o futuro —
cjue só podia ser ainda melhor --reservava grandes projetos
científicos que apresentariam um plano racional para um mun-
do ainda melhor. Talcótt Parsons, o grande expoente das ciên-
cias sociais naquele período, insistia que o,.progresso exigia
uma divisão mais eficaz cie trabalho, tanto no campo das ciên-
cias sociais como cie qualquer empreendimento moderno. A
24. MOFFATT, Michael. Corning of Age in New Jersey: College and
American Culture. New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press,
1989,
136
psi
^
e obviamente, era estudada pelos psicólogos. O sistema
ique jj-tica e a economia estavam sendo administrados ,
""'especialistas da área, o que--era satisfatório contanto que
'°!os os envolvidos concordassem que a sociologia tinha prio-
°1 lê A cultura, contudo, foi confiada tempo demais às mãos
tnadoras dos humanistas. Daí em diante, ela deveria ser en-
tregue aos antropólogos, que finalmente poderiam transforma-
Ia em ciência, se eles pudessem ser persuadidos a se concen-
trar nessa tarefa e abandonar seus hobbies pitorescos.
Nem todo antropólogo ficou satisfeito com esse prospec-
to Alguns consideravam um rebaixamento ser um efiteridiclo
em cultura, em vez de, digamos, especialista em todos os as-
sunto- pertinentes a uma comunidade tribal ou até mesmo uma
' autoridade na história cia evolução humana. Além disso, ás dis-
putas clé demarcação com outros cientistas sociais persistiam.
Não-obstante, a idéia' de que cultura era um assunto cie preo-
cupação científica e que os antropólogos eram autoridade no
assunto passou a ser amplamente aceita na clécacía cie 1950.
Em 1952, os dois decanos cia antropologia americana', Alfred
Kroeber, de Berkeley, e Clycle Kluckhohn, de Ilarvard, publi-
caram um relatório dogmático sobre a concepção antropológi- -
= ca científica cie cultura, confiantes de que ela tornaria obsole-
tas as abordagens tradicionais. •" Duas décadas mais tarde, Roy
Wagner -pôde introduzir um ensaio sobre cultura com a obser-
vação cie que o conceito "ficou cie tal forma associado ao pen-
samento antropológico que... podíamos definir um antropólo-.
go como alguém que usa a palavra 'cultura' habitualmente".26
Na década cie 1990, o tema da cultura foi tão difundido que na
definição de Wagner praticamente todo mundo que escrevia
sobre questões cie ciências sociais teria de ser considerado an-
tiopólogo. Entretanto, um comentarista ainda poderia observar
que um antropólogo moderno que não crê em cultura de cer-
ta forma é uma contradição cie termos".2"
5. KROEBER, A. L. • KLUCKHOHN, Clyde: Culture: A Criticai Re-
view
 Of Concepts and Detinitions. Cambridge, Mass.: Papers of
eabocly Museum, Harvard University. v. 47, n. l, 1952.
- . WAGNER, R0y. "lhe Invention ofCullitre. Chicago: University of
Chicago Press, 1975.
 p i.
27. HERBERT. Culture and Anomie. p. 20.
37 i
Introdução
Mas antes que os antropólogos pudessem fazer investi-
gações científicas sobre cultura, eles tinham clé chegar a um
acordo quanto ao significado desse termo. Kroeber e Kluc-
khohn realizaram uma intensa pesquisa na literatura e, no fi-
nal, tiveram cie concordar que' Parsoiis encontrara a definição
correta de cultura, para os propósitos da ciência. Tratava-se de
um discurso simbólico coletivo sobre conhecimentos, crenças
e valores. Não era sinônimo de arte de elite, como os huma-
nistas acreditavam, pois todo membro de uma sociedade tinha
uma parte nessa cultura. Além disso, era bastante distinta da
civilização humana universal, que havia dado ao mundo a
ciência, a tecnologia e a democracia, pois tocla comunidade ti-
nha a sua própria cultura, com seus valores específicos, que a
distinguia.cle todas as outras.
Se isso era cultura, então até que ponto ela era importan-
te? Segundo Parsons, as pessoas concebem um mundo simbó-
lico a partir cie idéias recebidas, e essas idéias chocam-se com
as escolhas que elas fazem no mundo real No entanto, ele ti-
.nha certeza cie que idéias sozinhas dificilmente determinam
ação. De forma semelhante, os símbolos coletivos entram na
consciência individual, mas não a tomam completamente. En-
tretanto, quanto mais os antropólogos se entregavam à sua
nova especialidade, mais convencidos ficavam cie que a cultu-
ra era muito mais poderosa cio que Parsons tinha levado a crer.
As pessoas não apenas constróem um mundo cie símbolos; na
verdade, elas vivem nesse mundo. Os mais importantes antro-
pólogos americanos cia 'geração seguinte, Clifford Geertz, Da-
vicl Schneider e Marshall Sahlins, criaram uma galeria cie per-
sonagens nativos de espiritualidade sem paralelo. Esses perso-
nagens pareciam viver somente para as idéias, fossem sacerdo-
tes havaianos, cortesãos balineses ou cidadãos cia classe média ;
cie Chicago. No livro de Geertz, Negara, o negócio é a repre-
sentação teatral - ou melhor, o que ele chama de óperas cia
corte são a síntese do próprio modo cie vida. A política e a
economia são meros ruídos de bastidores. Para Schneider, pa-
rentesco, advém da idéia que as pessoas têm sobre prôcriação.
A biologia está na mente, ou não é nada. Para Sahlins, a his-
tória representa a encenação incessante cie um velho roteiro, a
representação teatral de uma saga. Terremotos, invasões bru-
tais de conquistadores e^até mesmo o capitalismo precisam ser
Introdução
traduzidos em termos culturais e transformados.em mitos para
que tenham influência na vicia das pessoas.
O problema seguinte era .como proceder a investigação
cie cultura. O próprio Parsons forneceu pouca orientação a
esse respeito, mas em meados cio século surgiram dois mocle-
los nos Estados Unidos, um velho e um novo. O primeiro re-
comendava explorar com simpatia a visão de mundo de um
nativo, traduzi-la e interpretá-la. O nome de Weber foi evoca-
do e a palavra Verstehen pronunciada com reverência, mesmo
que nem sempre cie forma acurada. Geertz escolheu esse cur-
so, que identificou inicialmente como parsoniano, depois
como weberiano, e, inais tarde, como uma forma cie herme-
nêutica. Aos poucos, ele ficou menos ansioso para alegar queV
era um procedimento científico, pois chegou à conclusão de
que embora a cultura podia ser interpretada, ela não poderia
ser explicada (e certamente não podia ser justificada). A cul-
tura não contava com leis gerais nem interculturais. Podia-se,
talvez, calcular o que uma representação simbólica significa-
va para os espectadores, mas não se podia separá-la do seu
significado no vernáculo e tratá-la como sintoma cie uma cau-
sa biológica ou econômica mais fundamental e livre de cultu-
ra cia qual o paciente não tinha consciência.
A abordagem alternativa, em contraste, era científica, re-
ducionista e generalizadora. Ela partia da premissa cie que a
cultura — um discurso simbólico - era muito semelhante à lin-
guagem. Conseqüentemente, o estudo da cultura devia seguir
o caminho que-estava sendo indicado pelos lingüistas moder-
nos, que estavam prestes a descobrir as leis universais. da lin-
guagem, "Durante séculos as ciências humanas e as ciências
sociais se resignaram a contemplar o mundo das ciências na-
turais e exatas como um tipo cie'paraíso no qual eles nunca
entrariam", observou Claude Lévi-Strauss numa conferência
sobre lingüística e antropologia em Blomingtpn, Indiana, em
1952. "De repente, uma pequena porta está se abrindo entre
os clois campos, e isso foi obra cia lingüística."28 Essa porta'
.
28. LEV-I STRAUSS, Claude. Structural Antbropology. Nova York:
Basic Books, 1903. p. 70-1. Altereiligeiramente a tradução da se-,
guncla 'citação.
39 i
Introdução
conduzia à fonte original .cia linguagem e clã cultura. Havia
"uma .intrusa sentada ao hòsso lado "durante toda. a eonferên-
^ cia, a mente humana", disse ele aos participantes-. Se uma
nova ciência de cultura fosse conduzida pela lingüística, en-
'tão, juntas, no final essas ciências estabeleceriam a estrutura,
•profunda que todas as línguas e culturas partilhavam e que
(certamente) era esboçada no próprio cérebro. Uma antropo-
logia científica.cartesiana estava esperando para nascer.
Isso tudo era bastante empolgante, mas era preciso ad-
mitir que os próprios lingüistas não tinham chegado a consen-
so sobre a niélhor rota para atingir a. sua grande meta. Lévi-
Strauss fora apresentado à lingüística por um companheiro de
exílio nos Estados Unidos durante a guerra, Roman Jakobson.
Seu modelo estava em conformidade com a fonologia estru-
tural ista desenvolvida pela Escola cie Praga. Ele aplicou- es.se
modelo primeiramente ao sistema do casamento, depois a
-métodos cie classificação e, por fim, a mitos. Os estruturalistas
americanos preferiram se deixar conduzir pela. gramática de
.transformação cie
 v Chpmsky. A faculdade cie Yale de Louns-
buiy e Goodenough (que recrutou vários doutores do Depar-
tamento de Relações Sociais de Harvarcl) iniciou uma investi-
gação científica formal cias estruturas subjacentes que gera-
1 vam- terminologias de parentesco, classificações botânicas,-
sintomas de doenças e .outras taxonomias. folclóricas que
constituíam domínios semióticos especializados.
Esses programas estruturalistas floresceram durante um
certo tempo, produzindo relatos notáveis de corpos específi- -
. cos de pensamento nativo, mas no final da década de 196(3
(precisamente em maio cie 1968, afirmou Lévi-Strauss), o estru-
turalismo francês perdeu seu encanto, dando'lugar a uma va-
riedade de "pós-estnituralismos" cie uma casta decididamente
rel.atívista. Seus adeptos abandonaram as ambições científicas
cio estruturalismo clássico, insistindo na qualidade indetermi-
nada das palavras e dos símbolos. A etnociência americana fi-
cou fora cie moda na mesma época, mas alguns antigos entu-
siastas descobriram uma promessa científica alternativa na
ciência cognitiva. Reprodução dos processos cio cérebro por
computador, esquemas cie conhecimento e. redes de conexão
passaram a ser procurados, em vez das regras gramaticais nas
140
Introdução
quais os praticantes da nova etnografia tinham depositado a
sua fé anteriormente. Outra facção se apoderou dos novos de-
senvolvimentos da lingüística e se determinou a adaptar a
pragmática, ou a teoria do discurso, ao-estudo cia cultura. .
Os geertzianos rejeitavam sistematicamente qualquer
afirmação de que podia haver uma ciência da cultura. A cul-
tura, na verdade, era bastante semelhante à linguagem, !mas;--
o modelo cie cultura cjue eles preferiam era o de texto. Con-
seqüentemente, eles recorriam à. teoria literária, é não à lin-
güística.. Foi essa abordagem que, se desenvolveu, e o iníer-
pretativismo se transformou na ortodoxia cia principal corren-
te cia antropologia ^ cultural americana. Embora os geertzianos
mais- novos se rebelassem contra o pai, em vez de optarem
por um projeto mais científico, eles tomaram a mesma dire-
ção dos pós-estruturalistas franceses. Uma cultura não podia :
ser tão prontamente compreendida por um, estranho solidá-
rio como Geertz sugerira. Cultura pode ser um texto, mas é
um texto fabricado, uma ficção escrita pelo etnógrãfo. Além
disso, a mensagem clara de desconstrução é" que os textos
não produzem mensagens inequívocas. Vozes discordantes
disputam a linha oficial. A cultura é contestada, como diz o
novo slogan. .Assim como não há um texto canônico, não há
leitores privilegiados. Os antropólogos pós-modernistas pre-
ferem imaginar o domínio da cultura como algo mais seme-
lhante a lima democracia ingovernável cio que a um estado
teocrático ou a uma monarquia absolutista. Apreensivos acer-
ca das insinuações totalitaristas cio termo cultura, alguns pre-
- ferem escrever sobre hábito, ideologia ou discurso, embora,
como salienta Robert Brightmãn, o efeito final dessas estraté-
gias cie retórica seja "(re)construir um conceito cie cultura es-
sencializacla nos antípodas das orientações teóricas contem-
porâneas".29 Ainda há a pressuposição de quê as pessoas vi-
vem num_ mundo cie símbolos. Os atores são dirigidos e a his-
tória é moldada (talvez inconscientemente) pelas idéias. A
corrente predominante cia antropologia cultural americana,
em suma, ainda está nas garras cie .um idealismo difuso.
29. BRIGHTMAN, Robert. Forget Culture: Replacement, Tfanscen-
dence, Relexification. Cultural Antbropology, v. 10, ri. 4,"p. 510,
199*-
41
Introdução
O idealismo teve maior ascensão nas últimas décadas,1
juntamente com seu servo, o rèlativismó. Toda cultura era fun-
damentada em premissas singulares. A generalização era im-
possível e a comparação, extremamente probJemática/H(ouve
uma tendência semelhante na filosofia, que encorajou sobre-
modo os antropólogos. Até mesmo o marxismo ficou obceca-
do pela ideologia. ("La fantaisie au pouvoir", cantavam os es-
tudantes parisienses de 68, enquanto atiravam pedras nos po-
liciais.) Mas nem sempre as coisas eram fácejs para idealistas e
culturalistas. Pelo contrário, eles achavam que estavam senclo
sitiados por grandes batalhões de rivais que marchavam por
trás de bandeiras familiares: O Mercado Decide, A Classe Do-
minante Governa, Somos Nossos Genes. Os argumentos dos
culturalistas tinham de ser lançados contra os modelos estabe-
lecidos de racionalidade econômica e determinismo biológico,
mas^ um número crescente embora heterogêneo de -;estetas,
idealistas e românticos concordava que a Cultura Nos Faz.
partel
genealogias
142
capítulo l
cultura e civilização:
intelectuais
franceses, alemães
e ingleses^
1930-1958
Civilisation naít à son heure.1
([Ar"palavra] "civilização" nasceu na hora certa.)
Lucien Fébvre
«O
J. ara reconstruir a história da palavra francesa ' Civi-
lisation'",2 observou o historiador Lucien Fébvre, "seria" neces-
sário reconstituir os estágios tia mais profunda de todas as re-
voluções pela qualpassou o espírito francês-da segunda me-
tade cio século 18.até os dias cie hoje". Este foi o tópico que
ele decidiu abordar num seminário cie fim de semana; organi-
1. FÉBVRE, Lucien. Ciyilization. In: ". et ai. Civilisation: Lê mot
e l'idée. Paris: Centre International cie Synthèse, La Renaissance clu
Livre, 1930. p. ló. Tradução publicada em BURKE, P.eter (Ecl:>. A
New Kind of History: From the Writings ofFebvre. Londres: Rou-
tledge e Kegan Paul, 1973. Burke também faz um breve relato da
carreira de Fébvre na introdução do livro.
2. Ibicl. (tradução cie Burke, ligeiramente modificada), p. 219. •
45!
capítulo l
zado em 1929 sobre o tema "Civilisátion: Lê mot et Piclée" (a
palavra e a idéia, deve-se ressaltar, e não a coisa em si). Esse
era o assunto do momento. À medida que nuvens de tempes-
tade se formavam sobre a Europa pela segunda vez no espa-
ço cie uma geração, os intelectuais foram levados a repensar
o significado cie cultura e, civilização, e a relação deles com o
.destino de suas nações. O sociólogo alemão Norbert Elias,
atraído para essas questões na .mesma época, observou que
embora as teorias de cultura e civilização estivessem sendo
discutidas (com as palavras em si) desde- a segunda metade
cio século 18, elas só passaram a despeitar o interesse geral
em determinados momentos históricos quando "alguma coisa
no presente estado da sociedade encontra expressão na cris-
talização do passado incorporado nas palavras"., r
Febvre (1878-1956) estudou na École Normale Supé-
rietire, onde se formou em história e geografia. Durante a
Primeira Guerra Mundial ele serviu ativamente de metralha-dora ein punho, e quando veio a paz, foi chamado pela Uni-
versidade de Strasbourg, que voltou a ser uma universidade
francesa em 1919, quando a Alsácia foi devolvida à França,
O jovem e brilhante corpo docente recrutado para a univer-.
siclade incluía alguns cios maioresvcientistas sociais e histo-
riadores da-geração seguinte, como Maurice Halbwachs,
Charles Blóndel, Georges Lefebvre e, juntamente com o pró-
prio Febvre, o'historiador Marc Bloch, com o qual iniciou
uma longa colaboração que transformaria a historiografia
francesa. Em 1929, eles fundaram a revista Annales, que se
transformou no fórum cie uma escola de historiadores estrei-
tamente; ligados às ciências sociais. Temas culturais, psicoló-
gicos e sociais foram resgatados para uma historiografia que
havia siclo dominada pelo estudo de política, diplomacia e
.guerra, e a história intelectual foi revivida.
x
 Na abertura do seminário sobre "Civilisátion", Febvre
chamou a atenção para o fato cie que pouco tempo antes ha-
via sido apresentada uma dissertação na Sorbonne sobre a "ci-
vilização" cios tupis-guaranis da América do Sul, que, obser-
vou ele; uma geração anterior teria chamado de selvagens.
"Mas há_ muito tempo o conceito de uma civilização formada
cultura e civilização
por pessoas incivilizadas tornou-se bastante.comum."3 (Ele co-
mentou cie forma morclaz que se poderia imaginar um ar-
queólogo "lidando tranqüilamente com' a civilização dos nu-.
nosr que um dia nos disseram ter sido 'o flagelo da civiliza-
ção'".) No entanto, muito embora os franceses admitissem
prontamente que os tupis-guaranis, e até mesmo os hunos, ti-
nham uma'civilização, eles ainda .tendiam a acreditar que ci-
vilização implicava progresso. Aparentemente, a palavra de-
signava duas noções bastante distintas. Uma delas Febvre ca-
racterizava como emprego etnográfico e se referia ao conjun-
to de características que um observador consegue registrar ao
estudar a vida coletiva de um grupo de seres humanos, con-
junto esse que englobava aspectos materiais, intelectuais, mo-
rais e políticos da vida social. Esse emprego não implicava jul-.
, gamento cie valor. Na segunda acepção,, a palavra significava
a nossa própria civilização, que era éxtrerriamente-valorizada
e à qual alguns indivíduos tinham acesso privilegiado. Como
podia uma língua famosa por sua clareza e lógica possuir um
vocábulo com clüas acepções contraditórias?
Febvre não conseguira encontrar uma fonte que -usasse
o termo civilisation em qualquer um cios seus sentidos mo-
-dernos antes de 1766. Civilisationxera empregado anterior-
mente apenas como termo técnico legal, referindo-se .à passa-.
gem de uma ação penal para a esfera civil. Entretanto, os ter-
mos civilité, politesse e pdlice (significando observânc-ia da lei)
remontam ao século 16. Durante o spculo, 17, os termos "sel-
vagem" e, para os povos mais avançados, "bárbaros" eram co-
muns em francês para descrever pessoas que não possuíam as
qualidades de "civilidade, cortesia e sabedoria.administrativa".
Com o tempo, civilisé substituiu o termo policé, mas no sécu-
lo 18, afirmou Febvre, houve necessidade de um novo termo
que descrevesse uma nova noção. Nascido a seu tempo, na
década cie 1770, o neologismo civilisation "recebeu seus pa-
péis cie naturalização", e em 1798 forçou as portas cio. Dicio-
nário da Academia Francesa.
3. W., ibid., p. 220.
146 471
capítulo l
Esse foi' um período cie .intensa atividade científica em to-
das as áreas, bem como de sínteses teóricas audaciosas. O,
grande leque'de materiais sobre culturas exóticas e o passado
remoto reunidos na Encydopédie 'suscitou reflexões sobre o
grande padrão cia história. A tendência do volume crescente
cie literatura sobre exploração, a princípio, era reforçar a cren-
ça na superioridade da civilização,. Os intelectuais franceses
começaram a conceber o esboço de uma história universal em
que a selvagerià levou ao barbarismo, e o barbarismo à civi-
lização. Esse modelo de desenvolvimento cultural imitava a
representação cie Lamarck cias relações entre as espécies em
sua versão cia grande cadeia cios seres vivos. Logo, entretan-
to, essa história triunfalista -de progresso começou a ser ques-
tionada. Não apenas níveis de civilização, mas até mesmo es-
tados cie civilização aos poucos foram clistinguiclos. O imenso
império clã "Ia Civilisatión" foi dividido em províncias autôno-
mas. Admitiu-se que maneiras características de ser civilizado
haviam-se desenvolvido em diferentes partes do mundo. Se-
gundo ..Febvre, a forma plural, Civilisatíons,' foi empregada
pela primeira vez em 1819.,
Febvre situou essa relativização cia noção cie civilização
no período compreendido entre 1780 e 1830, observando que
representava o clímax de um longo e paciente esforço de do-
cumentação e reflexão. Houve uma transição simultânea nas
áreas cie biologia, história, etnografia e lingüística, cio univer-
salismo do século 18 para uma perspectiva mais relativista. A
teoria de Lamarck também foi colocada em xeque. Cuvier in-
sistia que não havia Lima cadeia dos seres vivos, mas sim vá-
rias cadeias separadas. Essas mudanças no pensamento cien-
tífico refletiram-se numa alteração do clima intelectual. O oti-
mismo do período revolucionário entrara em declínio. Os so-
breviventes da revolução aprenderam algo novo: que uma ci-
vilização pocle morrer. ("E eles não aprenderam isso apenas
com os livros", frisou Cuvier.) A fé numa filosofia de, progres-
so e na perfecti.biliclacle da humanidade foi corroída. O apoio
ao pessimismo cie Rousseau e à sua preocupação com as ma-
zelas cia civilização foi renovado.
Com a restauração cia monarquia, a crença otimista
numa civilização progressista ganhou nova força. Ela foi pres-
sagiacla com maior intensidade nas obras De Ia civilisation en
cultura e civilização
Europe (1828) e De Ia civilisation en France (1.829) de Guizot.
Febvre cita a audaciosa afirmação de fé de Guizot: "A idéia cie
progresso, de desenvolvimento, a meu ver, parece ser a idéia
fundamental contida na palavra civilização." O progresso po-
clia ser medido tanto no nível da sociedade como do intelec-
to, embora ambos não andem necessariamente juntos. -A In-
glaterra, segundo Guizot, alcançara progresso social, mas não
intelectual; na Alemanha, o progresso espiritual não tinha sido
acompanhado pelo progresso social; apenas ria França ambos
haviam marchado lado a lado.
Febvre notou que uma linha diferente de. pensamento se
desenvolvera na Alemanha. No início, a noção de cultura era
bastante semelhante à icléía francesa cie civilização, mas com
o tempo foi feita uma distinção entre os aspectos exteriores .
da civilização e a realidade espiritual interior da cultura. Ale-
xander von Humbolt, por exemplo, afirmou que uma tribo
. selvagem podia ter urna civilizarão, no sentido de ordem po-
lítica, sem possuir um alto nível de "culture de.Pespfit" - e,
certamente, vice-versa. Não obstante, ambas as correntes cie
pensamento traziam em seu bojo um problema filosófico se-
melhante.. Uma avaliação relativista das diferenças entre cultu-
ras è compatível com "o -velho conceito de civilização humar
na em geral"? A pergunta foi deixada no ar.
Em outro trabalho, apresentado no mesmo seminário
sob o título "Lês Civilisations: Éléments et formes", o sociólo-
. go Mareei Mauss esboçou a concepção cie civilização que ele
e Emile Durkheim expuseram durante vários anos no Année
Sociologique;' Mauss discorreu rapidamente sobre o que ele
denominava usos vulgares em frases como: civilização fran-
, cesa, budista ou islâmica. O que estava em debate nesse ca-
sos eram maneiras específicas cie pensar, posturas mentais,
para as quais ele preferia usar a palavra .mentalité. Civiliza-
ção também não devia ser restringida a sinônimo de artes,
tampouco ser equiparada a Kultur, no sentido^cle aquisição
cie cultura. Essas eram representações folclóricas desprovidas

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