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Metodologias de Trabalho Integrado e Protagonismo Popular W BA 01 33 _v 1_ 0 2/241 Metodologias de Trabalho Integrado e Protagonismo Popular Autora: Therese Abdel Messih Araujo Como citar este documento: ARAUJO, Therese. Metodologias de Trabalho Integrado e Protagonismo Popular. Valinhos: 2015. Sumário Apresentação da Disciplina 03 Unidade 1: Gestão Social e a execução de Políticas Sociais 05 Assista a suas aulas 31 Unidade 2: Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional 39 Assista a suas aulas 61 Unidade 3: Fundamentos da prática profissional 69 Assista a suas aulas 96 Unidade 4: A atuação profissional interdisciplinar 104 Assista a suas aulas 121 Unidade 5: Metodologia de trabalho integrado 129 Assista a suas aulas 144 2/241 3/241 Unidade 6: Trabalho em rede: conceito, organização, classificação e requisitos 152 Assista a suas aulas 172 Unidade 7: Protagonismo popular 180 Assista a suas aulas 199 Unidade 8: Perspectiva da Territorialização 207 Assista a suas aulas 233 Sumário 3/241 4/241 Apresentação da Disciplina A gestão social tem nos apresentado vários desafios, entre eles o desenvolvimento e a instrumentalização de metodologias de trabalho na perspectiva da integralidade e da intersetorialidade. O conceito de gestão nos remete imediatamente à ideia de gerência, de administração, de equacionamento de problemas através de procedimentos que garantam o alcance dos objetivos e de metas propostas. No entanto, pensar na gestão social obriga-nos a introduzir outra perspectiva para além de modelos matemáticos e processos “controláveis”, uma vez que se refere à gestão de demandas e necessidades dos cidadãos, portanto de humanas. Partiremos do conceito de gestão social enquanto gestão de ações públicas que, no âmbito das políticas sociais, são desenvolvidas como resposta às necessidades sociais de uma sociedade. Não é possível abordar metodologias de trabalho no âmbito da gestão social, sem contextualizar o cenário político e econômico em que as políticas públicas são debatidas, definidas e desenvolvidas. Nesse sentido, a presente disciplina se propõe a trabalhar conceitos fundamentais da gestão social, como esfera pública, governança, democracia, práxis profissional e participação popular, entre outros, na perspectiva da intersetorialidade e territorialidade enquanto eixos norteadores das ações sociais. 5/241 Unidade 1 Gestão Social e a execução de Políticas Sociais Objetivos 1. Compreender o cenário político-econômico em que emergem as políticas sociais 2. Apreender o conteúdo de políticas de proteção social 3. Analisar o conceito de gestão social à luz do processo histórico 4. Contextualizar a gestão social no Brasil Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais6/241 Introdução Toda política social tem o seu surgimento na relação e na conjugação de interesses entre Estado, mercado e sociedade civil. Nos países centrais do capitalismo, as políticas sociais têm sua emergência no cenário pós 2ª Guerra Mundial, no qual o Estado interveio diretamente na recuperação da economia dos países afetados pela guerra e na provisão das necessidades sociais através da garantia de direitos sociais para todos os cidadãos. No entanto, a crise do capitalismo na década de 1970 e o avanço do ideário neoliberal de redução do papel do Estado fizeram com que esse modelo conhecido como Estado de Bem Estar Social perdesse força e ganhasse novos contornos. Sob a ideia de que a intervenção do Estado deve ser limitada e que a sociedade civil pode e deve dar respostas às necessidades sociais é que emerge o conceito de gestão social, atribuindo a ele um papel relevante no contexto de reforma do Estado, que desloca a gestão das demandas sociais da esfera pública para a esfera privada. No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, o Estado é responsável pela organização e gestão das políticas sociais, introduzindo a participação de novos sujeitos (sociedade civil) na formulação e controle social da execução das ações. No bojo da redemocratização do país, após 20 anos de ditadura militar, a nova Carta Magna traz explícita uma dimensão ético-política, na qual se destacam ações sociais voltadas a todos os cidadãos na qualidade de direitos Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais7/241 sociais, e uma dimensão instrumental através do novo arranjo político- administrativo estabelecido no país, com o reconhecimento dos entes federativos (municípios) e a participação popular. A descentralização político-administrativa desencadeou processos de reorganização tanto na elaboração e oferta de serviços públicos, em especial das políticas sociais como saúde, educação, habitação e assistência social, bem como na relação entre os entes federativos no que diz respeito à definição de diretrizes e provisão de financiamento. A municipalização das políticas sociais trouxe a necessidade de incorporar novos fundamentos para o poder público local, exigindo uma qualificação cada vez maior dos gestores e da administração pública. Não se trata mais de administrar recursos públicos federais e estaduais de acordo com programas estabelecidos nessas outras esferas, mas de identificar, diagnosticar e elaborar a oferta de serviços, programas e projetos de acordo com sua realidade local. Inaugura-se a perspectiva territorial e intersetorial na execução de políticas sociais. Ocorre que, o avanço do ideário neoliberal se configura como cenário político no início da década de 1990 e desencadeia uma maior institucionalização da sociedade civil organizada, que é chamada a participar na qualidade de executora das políticas sociais, deslocando então a responsabilidade da esfera estatal para Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais8/241 esfera privada. É nesse contexto que no Brasil é introduzida a ideia da gestão social, também denominada de governança social. 1. Políticas sociais e gestão social Desde os anos 1990, o desenvolvimento das políticas sociais brasileiras tem sido tensionado pela contradição que coloca de um lado os avanços do processo de democratização do Estado e da sociedade com a institucionalização dos direitos sociais; e, de outro, o rebatimento das transformações societárias decorrentes da globalização da economia, que fragiliza a objetivação das políticas sociais em direção à mudança do cenário de desigualdades e iniquidades sociais. A insegurança social é uma experiência que atravessou a história (CASTEL, 2005), constituindo par com a ideia de proteção social, cuja equação configurou mecanismos e estratégias para prover necessidades vitais aos indivíduos frente às situações nas quais não pudessem provê-las por si mesmos, dando origem a um conjunto de políticas sociais ao que denominamos sistema de proteção social. Embora a Seguridade Social brasileira, de acordo com a Constituição Federal de 1988, seja composta pelas políticas de Saúde, Previdência Social e Assistência Social, para essa disciplina, tomaremos por base o que se denomina de sistema Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais9/241 de proteção social e abrange as políticas de saúde, educação, assistência social e previdência social, podendo a ele agregarem-se outras políticas sociais que objetivem a provisão de necessidades sociais. Link DI GIOVANNI, G. Sistema de proteção social. 2008. Disponível em: <http://geradigiovanni. blogspot.com.br/2008/08/sistema-de-proteo-social.html>. Acesso em: 10 set. 2015 1.1. Políticas sociais e o contexto histórico Na sociedade moderna, a origem e organização dos sistemas de proteção social estiveram ancoradas à cobertura de riscos relativos à perda temporáriaou permanente da capacidade do indivíduo para o trabalho. Sob a matriz deste, num cenário de crescimento econômico e pleno emprego na Europa pós 2ª Guerra até os anos 1970, a aquisição de proteções era feita a partir da inscrição dos indivíduos enquanto trabalhadores em instâncias de organização coletiva, protagonizando importantes lutas pela garantia de direitos sociais. Com substantiva Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais10/241 regulação estatal no âmbito econômico e político - seja de acesso à renda através do trabalho, seja de acesso a serviços sociais a todos os cidadãos através das políticas sociais - os sistemas de proteção social na Europa, decorrentes dos Estados de Bem Estar Social (EBES), estavam sustentados na premissa do equilíbrio econômico em direção ao restabelecimento da acumulação capitalista. Embora se constate a existência de vários regimes, conforme a orientação político-ideológica de cada país e a correlação de forças em torno do processo de acumulação, todos apontam para a proteção social como uma política social voltada para a reprodução social da totalidade da classe trabalhadora. Os anos 1970 são marcados, contudo, pela ocorrência de mudanças nas condições sociais, políticas e econômicas em que a proposta de Estado de Bem Estar Social foi gestada e desenvolvida. O capitalismo enfrenta nova desestabilização com a ocorrência das crises do petróleo, de aumento da inflação e diminuição das taxas de consumo e de acumulação, possibilitando o avanço do neoliberalismo e a defesa da desregulamentação da economia em favor da autorregulação do mercado. Vincula-se a isso a crítica neoliberal que atribui como determinante da crise o próprio Estado de Bem Estar Social, considerado excessivamente generoso em benefícios e direitos e, portanto, na estrutura institucional necessária para processá-los. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais11/241 Segundo Silva: [...] na Europa e nos Estados Unidos, o Estado de Bem Estar Social foi a forma mais expressiva pela qual a sociedade capitalista buscou a regulação de conflitos sociais em torno do acesso à riqueza [...], ou seja, foi solução para a crise capitalista. Depois o mesmo Estado de Bem Estar Social passou a ser apontado como causa da crise. (SILVA, 2004: 82) As mudanças no cenário macroeconômico – que provocaram transformações no mundo do trabalho e na garantia de renda - e a transnacionalização da economia comprometeram a manutenção de um estado nacional fundante para o projeto de Estado de Bem Estar Social. (COUTO, 2008:67-68). Nos países centrais do capitalismo, que apresentavam um sistema de proteção social forte, a introdução do ajuste neoliberal enfrentou resistência para sua implantação. Já nos países periféricos, nos quais a proteção social não estava consolidada nem universalizada, observou-se um enfraquecimento dos direitos sociais e um deslocamento do atendimento das demandas sociais para a iniciativa privada, delineada pela caridade e pelo mérito. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais12/241 Como analisa Castel (2005:69), as transformações no mundo do trabalho no final do século XX decorrentes da globalização da economia, da flexibilização das relações de trabalho e do aumento do desemprego conduzem a uma mudança do paradigma da proteção social, como conjunto de dispositivos vinculados à matriz do trabalho, de proteção das relações de trabalho e das trajetórias profissionais, para um conjunto de dispositivos sob a matriz da cidadania, que afiance seguranças relativas ao acesso a bens materiais, mas também de acesso a um patamar básico de condições de vida. Torna-se necessário encontrar outros mecanismos de atenção e oferta de proteção que não só pela via do trabalho, exigindo um deslocamento da discussão e aprofundamento da reflexão quanto à causalidade da desproteção social, sua multidimensionalidade e a configuração do conjunto de direitos de cidadania. Para saber mais SILVA, Ademir Alves da. A gestão da Seguridade Social brasileira. São Paulo: Cortez, 2004. No Brasil, o sistema de proteção social também teve seu desenvolvimento vinculado à matriz do trabalho, embora em um contexto sócio-político-econômico diverso daquele vivido nos países capitalistas centrais. O colonialismo, Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais13/241 característica da evolução sócio-histórica brasileira, cunhou a relação de subordinação e de dependência ao capital estrangeiro, circunscrevendo o Brasil à periferia do capitalismo, cujos rebatimentos são percebidos na formação social brasileira, na estruturação do Estado e na evolução das políticas sociais. A configuração do sistema de proteção social brasileiro e dos direitos sociais foi marcada por um conceito de cidadania diverso daquele que constituiu o Estado de Bem Estar Social europeu, em que a defesa por melhores condições de vida para toda a sociedade esteve na pauta dos movimentos revolucionários do final do século XIX até os movimentos sindicais, tendo sido relativamente incorporada na constituição dos EBES. No Brasil, essa luta foi mediada pela inscrição dos trabalhadores no processo de industrialização do país a partir da década de 30, que de saída fragmentou a sociedade em “cidadãos” porque trabalhadores, e “os outros” porque pobres. Conforme esclarece Raichelis: Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais14/241 [...] ao contrário do que aconteceu historicamente com o capitalismo nos países centrais, o Estado nos países periféricos, e o brasileiro em particular, não criou condições para a reprodução da totalidade da força de trabalho, nem estendeu direitos de cidadania ao conjunto da classe trabalhadora, excluindo imensas parcelas da população do acesso às condições mínimas de sobrevivência. (RAICHELIS, 2005:69) O reconhecimento da condição de cidadão ocorreu somente àqueles cujas profissões estivessem regulamentadas por lei e, portanto, participassem do processo de acumulação, configurando a cultura de cidadania impressa no país. O acesso aos direitos sociais vinculava-se desde a sua origem à posição que o trabalhador ocupava no processo de produção, devidamente regulada por lei, tendo sido ampliado também através dessa matriz – reconhecimento legal e manutenção do processo de acumulação – reiterando a ideia de cidadania vinculada ao trabalho. Santos (1979, p.74) analisa que o conceito de cidadania no Brasil tem sua origem “não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional”, o que denomina cidadania regulada. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais15/241 Como aponta Santos, essa associação “proporcionará as condições institucionais para que se inflem, posteriormente, os conceitos de marginalidade e de mercado informal de trabalho” (1979, p. 74), abrangendo trabalhadores que, embora desenvolvessem atividades em condições estáveis, não obtiveram sua ocupação regulamentada por lei, desempregados, subempregados, além dos trabalhadores rurais. Fleury (1995:44), ao elaborar o conceito de cidadania invertida, ilumina a análise sobre essa parcela de trabalhadores não cidadãos, que ao serem excluídos dos mecanismos oficiais de garantia de direitos sociais, passam a compor o universo de políticas assistenciais instáveis, com base na caridade e no voluntariado, mesmo quando desenvolvidas por instituições estatais. Para saber mais a cidadania invertida refere-se ao que Sposati (1995) denomina “invisíveis” ao capital, ou seja, trabalhadores do mercado informal, crianças, idosos e pessoas com deficiência. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais16/241 2. Proteçãosocial – direito ou mérito? Importante fixar que a perspectiva de cidadania e de direitos sociais no Brasil, ao dar centralidade à manutenção das condições de acumulação do capital, restringiu o usufruto de direitos para o conjunto da classe trabalhadora, repercutindo na direção assumida pelas políticas sociais. O caráter da intervenção do Estado na objetivação da proteção social subordinou-se, assim, mais aos interesses do capital do que aos interesses do trabalho, o que não impediu, contudo, que segmentos organizados da classe trabalhadora obtivessem importantes conquistas em suas lutas. Por outro lado, o “modelo fordista-keynesiano” possibilitou que o Estado, nos países Link FLEURY, S. Políticas sociais. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. M. C.; VIEIRA, L. M. F. Dicionário: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. CDROM. Disponível em: <http://app.ebape.fgv.br/comum/arq/pp/peep/cap_liv/pol%C3%ADticas_ sociais.pdf>. Acesso em: 10 set. 2015. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais17/241 centrais do capitalismo - embora com o objetivo precípuo de manutenção das condições de acumulação do capital - se tornasse o regulador das relações econômicas e sociais, viabilizando a configuração de uma esfera pública de negociação e de disputa das forças sociais, de mediação de conflitos, fortalecendo a democracia. No Brasil, dadas as características sócio-históricas de conformação do Estado em defesa de interesses privados, aliadas à sucessão de governos autoritários e repressores, pouco contribuiu para a consolidação de instituições democráticas e a configuração da cidadania e dos direitos sociais como um bem público. No caso brasileiro, a própria conformação das classes sociais e todos os conflitos básicos foram permanentemente mediados pelo Estado capturado pelos interesses da burguesia, que a esta se associa para a reprodução das condições de acumulação e apropriação privada do capital. Do ponto de vista ideológico-cultural, o Estado foi figura de proa na organização da hegemonia das classes burguesas, o que contribuiu para a manutenção do consentimento das classes dominadas a respeito de sua própria dominação. (RAICHELIS, 2005:71) Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais18/241 Embora adotando a mesma matriz para implementação dos direitos sociais, o Brasil, mesmo no período de expansão da economia nos anos 1970, o chamado “milagre econômico”, sustentou o seu desenvolvimento na produção e acumulação de capital em detrimento das condições de trabalho e de vida dos trabalhadores. A política econômica caracterizava-se pela geração de alta concentração de renda, pelo aprofundamento da exploração do trabalho, num cenário de forte repressão política e restrição de direitos sociais e políticos. No que se refere às políticas sociais, observa-se, de um lado, a ampliação de programas assistenciais, definidos de forma centralizadora e autoritária; e, de outro, a transformação das políticas sociais - como saúde, educação, habitação - em campo de investimento e lucratividade do capital privado. A ampliação das políticas sociais observada nesse período ocorre, assim, em um contexto de modernização conservadora, assentada, segundo Raichelis: [...] sobre a lógica permanente de privatização dos ganhos e socialização das perdas, favorecendo a simbiose entre interesses estatais e privados em detrimento dos interesses públicos. Agora, a questão social passa a ser tratada por meio da articulação assistência/repressão. (RAICHELIS, 2005: 92) Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais19/241 Não é difícil compreender como o Brasil atingiu índices tão preocupantes de desigualdade social, quando se constata que historicamente a intervenção do Estado priorizou a defesa de interesses privados, incorporando de modo subordinado interesses das classes trabalhadoras. Oportuno ressaltar que, enquanto na Europa o Estado de Bem Estar Social, em suas diversas formas de realização, desenvolveu-se a partir de um pacto político, quando os movimentos sindicais protagonizaram a luta por direitos sociais, no Brasil foram os movimentos sociais que impulsionaram a construção de um modelo de regulação social que buscou vincular democracia e cidadania, configurando o processo de redemocratização do país nos anos 80, objetivado na Constituição Federal de 1988. De inspiração no modelo social-democrata de proteção social, delineava-se a construção de direitos sociais garantidos pelo Estado com base nos princípios de universalidade e igualdade, possibilitando a consolidação da democracia, da participação da sociedade e por consequência a efetivação da cidadania. 1 Se, por um lado, ocorria um novo ordenamento sociopolítico em direção à consolidação da democracia e de um Estado Social – que garante as condições de reprodução social através 1 Cabe esclarecer que no Brasil o sistema de proteção social, também denominado Seguridade Social, abrange as políticas de saúde, previdência social e assistência social. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais20/241 de um conjunto de ações estatais de proteção social na condição de direito social (BEHRING; BOSCHETTI, 2006) - por outro, com o rebatimento das mudanças no cenário político- econômico internacional, ocorria um contramovimento que dificultava a efetivação do ordenamento recém-instituído pela Constituição Federal brasileira. Importante lembrar a elaboração em 1989, do “receituário” dos organismos internacionais (Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento e Fundo Monetário Internacional) para a crise das economias periféricas, conhecido como Consenso de Washington. Adotado no Brasil, as orientações prescritas a partir da doutrina neoliberal, previam estabilização da economia, reforma do Estado para redução dos gastos sociais e privatização de serviços estatais, aumento da competitividade da economia através da abertura comercial, inclusive com reforma tributária, introduzindo o Brasil em novo ciclo do processo de globalização e desregulamentação das políticas sociais. No caso brasileiro, o quadro do final do século XX, das transformações societárias, das relações de trabalho e de globalização da economia é agravado pelo aprofundamento da desigualdade social e pelo crescimento da pobreza – produzidos e herdados do “modelo” de desenvolvimento adotado no país - sem que a recém-inaugurada Seguridade Social estivesse institucionalmente consolidada. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais21/241 3. Políticas sociais e gestão social É nesse contexto que emerge o conceito de gestão social como a gestão das ações sociais púbicas, o que supõe o reconhecimento de demandas sociais presentes na sociedade, atendidas através das políticas sociais, programas e projetos. Carvalho afirma que: Para saber mais BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social - fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2006. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais22/241 Quando falamos em gestão social, estamos nos referindo à gestão das ações sociais públicas. A gestão social é, em realidade, a gestão das demandas e necessidades dos cidadãos. A política social, os programas sociais, os projetos são canais e respostas a estas necessidades e demandas. (CARVALHO, 1999:19) O conceito de gestão social porta um fundamento ético e político que, sob valores democráticos como equidade, universalidade e justiça social, é objetivado nas ações públicas voltadas aos cidadãos, em direção à ampliação do acesso à riqueza social na qualidade de direito social. O processo da gestão social só se efetiva com a participação do Estado, mercadoe sociedade civil e é permeado pelo confronto de interesses contraditórios em torno do acesso à riqueza socialmente produzida. Como Nogueira2 destaca: 2 NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. São Paulo: Cortez, 2004. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais23/241 Por se dispor a dirigir, coordenar e impulsionar a formação ampliada de decisões, a gestão democrática opera em um terreno que não se esgota no administrativo, no manuseio de sistemas e recursos, mas se abre para o universo organizacional como um todo. Ela é essencialmente dialógica, e transcorre em ambiente ético e político povoado de pessoas, desejos e interesses que não podem ser simplesmente ‘gerenciados’. (NOGUEIRA, 2004:11-12) Assim, não se trata de adotar medidas administrativas que garantam a realização das ações e que corresponderiam à função de gerência. A gestão social é propriamente a gestão democrática de necessidades sociais em direção a mudanças que promovam a igualdade e a justiça social. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais24/241 Link DOWBOR, l. Gestão social e transformação da sociedade. 2013. 17p. (versão atualizada e revisada do texto de 1999). Disponível em: <http://dowbor.org/2013/05/gestao-social-e- transformacao-da-sociedade.html/>. Acesso em: 10 set. 2015. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais25/241 Glossário Oralidade: toda situação de comunicação que ocorre por meio da fala. A linguagem oral é, em geral, mais espontânea e informal e se caracteriza pela proximidade física entre emissor e receptor. Ainda assim, há práticas orais bastante formais, como os discursos, palestras e conferências. Semântica: é o estudo sincrônico ou diacrônico da significação como parte dos sistemas das línguas naturais, o componente do sentido das palavras e da interpretação das sentenças e dos enunciados no processo de comunicação. Hiperônimo: é o vocábulo relativo a um sentido mais genérico de determinada palavra, em que há a relação de continente/conteúdo. Por exemplo: “Avistei uma vaca amarelada. A linha do horizonte estava repleta de ruminantes”. Em que “ruminante” retoma o termo “vaca”. Assim, as “vacas” estão contidas no grupo de “ruminantes”. Léxico: repertório de palavras existentes numa determinada língua e que pode ser agrupado por campos semânticos, ou seja, por grandes conjuntos de sentido. Glossário Ideário: Reunião das ideias mais importantes que compõem o pensamento político, social, filosófico, econômico etc.: o ideário do capitalismo. Reunião dos desejos, das aspirações, metas, objetivos e programas que fazem parte de uma ação, organização ou agremiação. Cidadania: Característica ou estado de quem é cidadão ou de quem recebeu o título de cidadão; quem possui todos os direitos e deveres garantidos pelo Estado. Estado do indivíduo que possui direitos civis, políticos e sociais que lhe garantem a participação na vida política. Neoliberalismo: Forma moderna do liberalismo, que permite uma intervenção limitada do Estado, no plano jurídico e econômico. Democracia: Política. Governo em que o poder é exercido pelo povo. Política. Sistema governamental e político em que os dirigentes são escolhidos através de eleições populares. Regime que se baseia na ideia de liberdade e de soberania popular; regime em que não existem desigualdades e/ou privilégios de classes. Hierarquia: Ordem que existe de forma a priorizar um membro, poderes, categorias, patentes e/ou dignidades de suas organizações: a hierarquia eclesiástica. Qualquer classificação que tenha como base as relações entre superiores e dependentes. Questão reflexão ? para 26/241 Com base na sua experiência e analisando o cenário político-econômico atual, quais são as bases para a realização da gestão social? 27/241 Considerações Finais » Sistema de proteção social abrange as políticas de saúde, educação, assistência social e previdência social, podendo a ele agregarem-se outras políticas sociais que objetivem a provisão de necessidades sociais. » O conceito de gestão social porta um fundamento ético e político que, sob valores democráticos como equidade, universalidade e justiça social, é objetivado nas ações públicas voltadas aos cidadãos, em direção à ampliação do acesso à riqueza social na qualidade de direito social. » Gestão Social não corresponde à adoção de medidas administrativas que garantam a realização das ações e que corresponderiam à função de gerência. A gestão social é propriamente a gestão democrática de necessidades sociais em direção a mudanças que promovam a igualdade e justiça social. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais28/241 Referências BACELAR, T. Desenvolvimento regional: a descentralização valorizaria a diversidade. In: FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil & Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. GUARÁ, Isa. Família e território, eixos centrais do trabalho social. In: GUARÁ, Isa Maria F. R. (Coord.). Redes de proteção social. 1. ed. São Paulo: Associação Fazendo História: NECA - Associação dos Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, 2010. KOGA, Dirce. Medidas de cidades: entre territórios de vida e territórios vividos. São Paulo: Editora Cortez, 2003. Demais Referências BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social - fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2006. CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. Gestão Social: alguns apontamentos para o debate. In: RICO, Elizabeth de M.; RAICHELIS, Raquel (Org.). Gestão social: uma questão em Debate. São Paulo: EDUC; IEE, 1999, p. 19-29. Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais29/241 CASTEL, Robert. A insegurança social: O que é estar protegido. Rio de Janeiro: Vozes. 2005 COUTO, Berenice Rojas. O Direito Social e a Assistência Social na Sociedade Brasileira: uma equação possível? 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008. GUARÁ, Isa M. Ferreira da Rosa et al. Gestão Municipal dos serviços de atenção à criança e ao adolescente. São Paulo: IEE/PUC - SP; Brasília: SAS/MPAS, 1998. JACCOUD, Luciana. Garantia de renda na perspectiva dos direitos socioassistenciais. In: Caderno de Textos - VI Conferência Nacional de Assistência Social. Ministério de Desenvolvimento e Combate à Fome/Conselho Nacional de Assistência Social. Brasília, 2007. JUNQUEIRA, L. A.; INOJOSA, R. M.; KOMATSU, S. Descentralização e intersetorialidade na gestão pública municipal no Brasil: a experiência de Fortaleza. Caracas: UNESCO/CLAD, 1997. Série Concurso de Ensayos CLAD. Disponível em: <http://nute.ufsc.br/bibliotecas/upload/ junqueira_inojosa_komatsu_1997.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2015. JUNQUEIRA, L. A.; INOJOSA, R. M.; KOMATSU, S. Proteção Social: Debates e Desafios. In: Curso de Formação de Multiplicadores - 1ª etapa. Ministério de Desenvolvimento e Combate à Fome/ Escola Nacional de Administração Pública. Brasília, 2007. KOGA, Dirce; GANEV, E.; FAVERO, E. Cidades e questões sociais medidas de cidades: entre Referências Unidade 1 • Gestão Social e a execução de Políticas Sociais30/241 territórios de vida e territórios vividos. São Paulo: Terra Costa, 2009. RAICHELIS, Raquel. Esfera Pública e Conselhos de Assistência Social - caminhos da construção democrática. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005. SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça - A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus Ltda., 1979. SILVA, Ademir Alves da. A gestão da Seguridade Social brasileira. São Paulo: Cortez, 2004. SILVEIRA, Jucimeri Isolda. Sistema Único de Assistência Social: institucionalidade e práticas. In: BATTINI, Odaria (Org.). SUAS- Sistema Único de Assistência Social em debate. São Paulo: Véras, 2007. WANDERLEY, L. E.; RAICHELIS, R. D. Gestão pública democrática no contexto do Mercosul. In: Los rostros del Mercosur. El difícil camino de lo comercial a lo societal. Argentina, 2001. Referências 31/241 Aula 1 - Tema: Gestão Social e a Execução de Políticas Sociais – Bloco I Disponível em: <http://fast.player.liquidplatform.com/ pApiv2/embed/dbd3957c747affd3be431606233e0f1d/ 07347cb3f3b1fc1213d19a5eb486a101>. Aula 1 - Tema: Gestão Social e a Execução de Políticas Sociais – Bloco II Disponível em: <http://fast.player.liquidplatform.com/ pApiv2/embed/dbd3957c747affd3be431606233e0f1d/ e02d1c6137d69aa88828f6af7f9d01de>. Assista a suas aulas 32/241 1. Gestão social é: a) conjunto de políticas na área social b) gerência de processos das políticas públicas c) gestão de ações públicas no âmbito das políticas sociais executadas na perspectiva da participação popular d) administração de recursos públicos e) gerência de equipe que atua na área social Questão 1 33/241 2. A gestão social assume papel relevante quando: a) A Constituição Federal de 1988 é aprovada b) O Estado de Bem Estar Social atinge seu ápice c) Se encerra o período de ditadura militar no Brasil d) O pensamento neoliberal torna-se dominante e) Na crise do petróleo Questão 2 34/241 3. Sistema de proteção social significa: a) conjunto de estratégias para prover necessidades vitais aos indivíduos b) medidas administrativas adotadas em situações de emergência c) contribuição previdenciária para garantir a aposentadoria d) garantia de acesso à escola e) oferta de serviços gratuitos de saúde Questão 3 35/241 4. A Seguridade Social brasileira abrange: a) Saúde, Educação e Habitação b) Saúde e Educação c) Previdência Social e Saúde d) Saúde, Previdência Social e Educação e) Saúde, Previdência Social e Assistência Social Questão 4 36/241 5. A gestão social tem como pressupostos: a) excelência administrativa b) participação democrática e justiça social c) a necessidade de contrapartida d) financiamento privado e) sensibilidade às mazelas sociais Questão 5 37/241 Gabarito 1. Resposta: C. Gestão Social supõe um processo de participação democrática, com vistas a equacionar as necessidades socialmente produzidas. Assim, tem como prerrogativa a existência de espaços institucionais de participação popular. 2. Resposta: D. O avanço do ideário neoliberal se configura como cenário político no início da década de 1990 e desencadeia uma maior institucionalização da sociedade civil organizada que é chamada a participar na qualidade de executora das políticas sociais, deslocando então a responsabilidade da esfera estatal para esfera privada. É nesse contexto que no Brasil é introduzida a ideia da gestão social, também denominada de governança social. 3. Resposta: A. A insegurança social é uma experiência que atravessou a história (CASTEL, 2005), constituindo par com a ideia de proteção social, cuja equação configurou mecanismos e estratégias para prover necessidades vitais aos indivíduos frente às situações nas quais não pudessem provê-las por si mesmos, dando origem a um conjunto de políticas sociais ao que denominamos sistema de proteção social. 38/241 Gabarito 4. Resposta: E. A seguridade social brasileira, também compreendida como sistema de proteção social, foi instituída em 1988 pela Constituição Federal e abrange as políticas de Saúde, Previdência Social e Assistência Social. Em outros países, se agregam à proteção social as políticas de educação e habitação. 5. Resposta: B. A gestão social pressupõe a gestão democrática de necessidades sociais em direção a mudanças que promovam a igualdade e a justiça social. 39/241 Unidade 2 Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional Objetivos 1. Compreender a configuração da esfera pública 2. Incorporar a territorialidade e intersetorialidade como eixos organizativos da gestão social 3. Identificar aspectos fundantes da práxis profissional na gestão social Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional40/241 Introdução Falar em gestão social nos remete a um diálogo com o conceito de gestão pública, entendida como o conjunto de ações públicas realizadas na perspectiva de dar respostas às necessidades sociais que têm origem na sociedade e são incorporadas e processadas pelo Estado em suas diferentes esferas de poder (federal, estadual e municipal). Embora as políticas públicas sejam de competência do Estado, não são decisões impositivas e injunções do governo para a sociedade, mas envolvem relações de reciprocidade e antagonismo entre essas duas esferas. (WANDERLEY; RAICHELIS, 2001, p. 156) Mas, no que consiste a esfera pública? 1. ESFERA PÚBLICA – Compreendendo o campo da gestão social Para Grau1 (1988), a noção de público tem um significado normativo, relativo ao reconhecimento do direito de todos em participar das decisões relacionadas ao bem comum 1 Nuria Cunill Grau – cientista social chilena. Seus estudos são voltados para a democratização da relação Estado e sociedade, gestão e políticas públicas. Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional41/241 e afirma que “isso interpela a sociedade e não apenas o Estado”, mas também tem um significado topográfico vinculado aos espaços onde essa participação da sociedade pode se realizar e nos interpela “onde são adotadas as decisões que interessam a todos? A quem cabe produzir e proteger os bens públicos?”. De acordo com Wanderley e Raichelis (2001), o público, aqui tratado como esfera pública, não se reduz à esfera estatal, nem o privado à esfera mercantil. A esfera pública se constrói a partir do reconhecimento da determinação sócio- histórica das necessidades sociais que no decorrer do tempo exigem dos diversos sujeitos ações adequadas às situações apresentadas na realidade social. A esfera pública precisa ser construída e tecida nas relações entre Estado e sociedade civil, e no interior dessas duas instâncias de poder, no sentido de ultrapassar a dicotomia estatal-privado com a instauração de uma esfera capaz de introduzir transformações, nos âmbitos estatizados e privados da vida social, resultando daí um novo processo de interlocução e decisão públicas. (WANDERLEY; RAICHELIS, 2001, p. 157) Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional42/241 É nesse cenário que a gestão social encontra suas bases de ação, ou seja, a convocação da participação da sociedade civil nos processos de decisão sobre a oferta de serviços compõe a construção da esfera pública. 1.1 Esfera pública e proteção social Herbert de Souza, popularmente conhecido como Betinho, nos ajuda a compreender o conceito de esfera pública e nos esclarece de maneira muito objetiva: O público é o que nos permite hoje escapar desse dilema entre privado e estatal, entre mercado e Estado, entre o direito de uns poucos e o de todos. Nesse sentido, o público é o espaço da solidariedade, da igualdade, da participação, da diversidade, da liberdade. Enfim, o público é a expressão da democracia aplicada ao conceito do que deve e pode ser universal. Mas é também um modo de pensar a reorganização da nossa sociedade marcada por esta dicotomia entre o privado e o estatal. Não estamos propondo que não haja espaços privados, onde cada pessoa possa exercitar sua privacidade e defender seus direitos. Essa seria uma forma de totalitarismo do social sobre o pessoal, ou individual. Também não estamos propondo a eliminação do estatal,naquilo que só o Estado pode e deve Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional43/241 se responsabilizar, como as questões de segurança, a garantia dos direitos, a proteção contra o abuso do privado sobre o público. Estamos propondo que o democrático seja abrangente, que o público seja a forma democrática de existir e equacionar os problemas de todos, em que a cidadania se realiza em toda sua universalidade. (SOUZA, 1995)2 Indiscutivelmente, as situações sociais às quais as políticas sociais se propõem a enfrentar são fruto da própria 2 SOUZA, H. Em nome do bem público. In: Folha S. Paulo. São Paulo, 1995. sociedade e do modo de produção capitalista. Os sistemas de proteção social se originam a partir do exercício da solidariedade, elevada institucionalmente a uma solidariedade social. As primeiras iniciativas de proteção ao trabalho se deram a partir da implantação de “caixas”, que nada mais eram que a contribuição de cada trabalhador que, solidariamente, garantiria proteção a outro trabalhador na ocorrência de privação temporária ou permanente da capacidade laborativa. Como apresenta Jaccoud (2007:3), a proteção social “está identificada à solidariedade da sociedade com o indivíduo nas situações em que este se encontra em dificuldades de prover o seu sustento, ou de provê-lo adequadamente”, Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional44/241 cujo enfrentamento objetiva-se através de “um conjunto de iniciativas públicas ou estatalmente reguladas para a provisão de serviços e benefícios sociais” (idem, 2007, p.2), sublinhando o direcionamento para o reconhecimento público das inseguranças sociais, ou seja, das condições que comprometem a reprodução social dos trabalhadores e de suas famílias e do seu enfrentamento com ações organizadas e articuladas entre Estado e sociedade civil (estatal e privado = esfera pública). Para saber mais RAICHELIS, Raquel. Esfera Pública e Conselhos de Assistência Social - caminhos da construção democrática. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005 . Link Gestão pública e participação. Fundação Luís Eduardo Magalhães. Salvador: FLEM, 2005. Disponível em: <http://edital.flem.org.br/paginas/cadernosflem/ cadernosflem.jsp>. Acesso em: 10 set. 2015. Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional45/241 1.2. Descentralização e perspectivas ideológicas do papel do estado A descentralização político-administrativa, inaugurada com a Constituição de 1988, consiste na transferência do poder central (esfera federal) para outras esferas de poder (estadual e municipal), exigindo, como já foi dito, um reordenamento do aparato estatal com rebatimentos na organização administrativa do poder local/municipal, formas e fontes de financiamento e, sobretudo, na responsabilidade do poder público de conhecer, propor e intervir de acordo com as características e necessidades locais. No entanto, a centralidade dada ao Estado na elaboração e na implementação de políticas públicas acessadas pela via do direito de cidad(ania, está eivada de tensões de acordo com a perspectiva político-ideológica no decorrer do processo histórico. A Constituição Federal de 1988 foi discutida e aprovada em decorrência de amplo debate entre os vários sujeitos, num contexto de superação da ditadura militar e, portanto, de valorização da vocalização de interesses e necessidades dos diversos segmentos da sociedade brasileira. Podemos afirmar que foi um período em que a perspectiva mais progressista foi hegemônica em um momento político internacional em que ocorria seu refluxo, ou seja, o debate e a crítica sobre o “tamanho” do Estado ocorria na perspectiva neoliberal. Como nos esclarece Junqueira, Inojosa e Komatsu (1998): Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional46/241 Enquanto os neoliberais preconizam o Estado mínimo e o mercado como regulador das relações sociais, os progressistas não retiram o caráter de intervenção do Estado, mas concebem uma nova relação Estado e sociedade. (JUNQUEIRA; INOJOSA; KOMATSU, 1998) O pensamento neoliberal, ao criticar o padrão de acumulação capitalista e a relação Estado e sociedade, também critica a intervenção pública na economia e propõe que o mercado seja o mediador para que a economia possa ser mais competitiva. A perspectiva neoliberal, portanto, defende que competências públicas sejam transferidas para o setor privado, considerado mais eficiente, e que a ação do Estado na área social seja limitada a programas de auxílio à pobreza. Dessa forma, para o pensamento neoliberal, a descentralização possibilita que o aparato organizacional do Estado torne-se mais ágil e destine-se a atenuar “as desigualdades mais aparentes” (JUNQUEIRA; INOJOSA; KOMATSU, 1998). Já o pensamento progressista, que inspirou a implantação do denominado Estado de Bem Estar Social (suficientemente abordado no subitem anterior), não ignora a interferência da crise e a necessidade de medidas de recuperação da economia, mas defende que aquele modelo, pautado na igualdade de acessos e da justiça social, seja mantido para a garantia dos Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional47/241 direitos sociais dos cidadãos. Para o pensamento progressista, a descentralização significa a democratização da administração pública, a possibilidade de desenvolvimento da economia de acordo com vocações e características locais que objetivem o desenvolvimento social e humano. O deslocamento do poder de decisão é um meio para democratizar a gestão através da participação, o que aponta para a redefinição da relação Estado e sociedade. Esse movimento deve ter como horizonte a implementação de políticas que promovam a universalização dos benefícios sociais, de modo eficiente e equânime. (JUNQUEIRA; INOJOSA; KOMATSU, 1998). Para saber mais SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça - A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus Ltda., 1979. Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional48/241 2. A intersetorialidade como eixo organizativo da gestão social A segmentação da administração pública no Brasil, nas três esferas de governo, por áreas de intervenção correspondem a uma estrutura organizacional verticalizada e setorializada reproduzida na oferta de serviços públicos fragmentados. Essa lógica setorial de operação do Estado trata o cidadão e os problemas a serem enfrentados de forma fragmentada, com serviços ofertados isoladamente, sem considerar que sua execução incidirá no mesmo espaço territorial e junto aos mesmos cidadãos. Essa ação desarticulada dificulta uma perspectiva mais integral de atendimento das demandas sociais, pois não considera a inter-relação e multidimensão da vida social. Link CARDOSO JR., José Celso; COUTINHO, Ronaldo (Orgs.). Planejamento estratégico em contexto democrático: lições da América Latina. Brasília: ENAP, 2014. Disponível em: <www.enap.gov.br>. Acesso em: 10 set. 2015. Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional49/241 Assim, com o objetivo de considerar a inter-relação de aspectos e fatores particulares de cada localidade, a intersetorialidade, aliada à territorialidade se propõe à mudança da lógica de organização do Estado e a execução de políticas públicas. Contrapondo-se à lógica da setorialidade, as prioridades são definidas a partir da leitura multidimensional da realidade, sobre a qual serão desenvolvidas ações integradas dos vários setores, ou seja, através do olhar específico de cada setor é construído um diagnóstico que abrange a integralidade das necessidades sobre as quais ocorrerão intervenções na perspectiva de complementariedade. Intersetorialidade é aqui entendida como a articulação de saberes eexperiências no planejamento, realização e avaliação de ações, com o objetivo de alcançar resultados integrados em situações complexas, visando um efeito sinérgico no desenvolvimento social. Visa promover um impacto positivo nas condições de vida da população, num movimento de reversão da exclusão social. (JUNQUEIRA; INOJOSA; KUMATSU, 1997). Cabe sublinhar que a conexão entre territorialidade e intersetorialidade consiste em desafio no processo de gestão de políticas sociais, pois exige a criação de mecanismos de articulação Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional50/241 entre organizações e sujeitos políticos no território que, para além da otimização de recursos humanos, materiais, físicos e financeiros, possam construir consensos que resultem em mudanças nas concepções e práticas desenvolvidas junto à população. Para saber mais PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Como conjugar especificidade e intersetorialidade na concepção e implementação da política de assistência social. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 77, p. 54-62. São Paulo: Cortez, 2004. Link BELLINI, M. I. e Faler, C (0rgs) Intersetorialidade e Politicas Sociais: interfaces e dialogos.EDIPUCRS. 2014 disponível em http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85-397-0573-3.pdf acessado em 01/08/2015 Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional51/241 3. A práxis profissional Na gestão social, intersetorialidade e descentralização são conceitos que se aproximam, pois enquanto a descentralização supõe a transferência do poder de decisão para esfera mais próxima dos cidadãos, a intersetorialidade refere-se à perspectiva da integralidade do atendimento de necessidades de grupos populacionais. Sua objetivação deve considerar as particularidades do território, aspectos ambientais, características de urbanização e a dinâmica e organização social local. Fique atento! Assim como descentralização não é sinônimo de democratização, mas um meio de viabilizá-la, a intersetorialidade não é um fim e nem irá, por si, promover o desenvolvimento e a inclusão social, mas é um fator de sua viabilização enquanto ação do Estado. A articulação de ambos - descentralização e intersetorialidade, referidos ao processo de desenvolvimento social, constituem um novo paradigma orientador da modelagem de gestão pública. (JUNQUEIRA; INOJOSA; KUMATSU, 1997). Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional52/241 A Gestão Social tem se apresentado como um desafio aos profissionais por tratar-se de um processo complexo a ser desenvolvido de forma organizada e sistemática. No entanto, o direcionamento ético-político da intervenção profissional deve estar alinhado com a perspectiva de superação das situações que afetam grupos populacionais. Compreender que as características e particularidades de cada território são definidas a partir da própria dinâmica em que as relações nele se estabelecem é ponto de partida para definição da ação profissional. Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional53/241 Para interferir, respeitando e atendendo as suas peculiaridades, é preciso estabelecer critérios para comparar grupos populacionais entre si e em relação a padrões de qualidade e permitir o estabelecimento de objetivos e metas que promovam a qualidade de vida, através do acesso a bens materiais e imateriais disponíveis na sociedade contemporânea. Essa nova lógica deve viabilizar a identificação dos problemas e potencialidades dos grupos populacionais em relação a padrões de qualidade de vida, considerados a partir dos direitos de cidadania, e promover a interferência, transdisciplinar, holística, intencional e monitorada, nas questões que estão no espaço de governabilidade do poder público. (JUNQUEIRA; INOJOSA; KUMATSU, 1997). Knopp3 esclarece que a gestão social exige compromisso com: 3 KNOPP, Glauco. Governança Social, Território e Desenvolvimento. In: Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, v. IV, n. 8, p. 53-74, jul./dez. 2011. Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional54/241 [...] a discussão sobre as modificações da relação Estado-Sociedade: seja numa perspectiva gerencial, mais focada na descentralização e compartilhamento de responsabilidades pela prestação de serviços e produção de bens públicos, visando maior eficiência e eficácia na gestão pública; seja numa perspectiva democrático-participativa ou social, que enseja maior participação e controle social nos diversos estágios do ciclo de política pública; tendo, como principal fim, a ampliação da cidadania ativa e a obtenção de resultados democráticos. (KNOPP, 2011) Nessa direção, os conceitos aqui trabalhados demonstram que você, enquanto profissional, deve integrar várias formas de racionalidade: 1) crítica: sustentada em um arcabouço teórico- metodológico; 2) técnico-instrumental: ancorada em instrumentos técnico-operativos e 3) política: relacionada aos processos democráticos de debate e construção. Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional55/241 Para saber mais GARAJAU, N. Reflexões sobre a intersetorialidade como estratégia de gestão social. Disponível em: <http://www.cress-mg.org.br/arquivos/simposio/ REFLEX%C3%95ES%20SOBRE%20A%20INTERSETORIALIDADE%20COMO%20 ESTRAT%C3%89GIA%20DE%20GEST%C3%83O%20SOCIAL.pdf>. Acesso em: 10 set. 2015. Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional56/241 Glossário Público: adj. Que se refere ao povo em geral: interesse público. Relativo ao governo de um país: negócios públicos. A que todas as pessoas podem comparecer: reunião pública. Práxis: s.f. Na filosofia marxista, conjunto de atividades que visam a transformar o mundo e, particularmente, os meios e as realizações de produção, sobre a qual repousam as estruturas sociais. No existencialismo sartriano, aquilo pelo qual o ser se revela na História. Descentralizar: Afastar; separar do centro. Implantar a descentralização administrativa de: o serviço público foi descentralizado. Questão reflexão ? para 57/241 Quais as estratégias, em sua opinião, devem ser adotadas para que a gestão social seja efetivamente uma gestão democrática de serviços? 58/241 Considerações Finais » A adoção da perspectiva territorial responde à necessidade de considerar a diversidade, os conflitos e particularidades das realidades regionais e locais, no desvelamento da realidade social enquanto totalidade dinâmica e contraditória, a partir dos múltiplos condicionantes sócio-político-econômico-culturais que a configuram. » A esfera pública se constrói a partir do reconhecimento da determinação sócio- histórica das necessidades sociais que no decorrer do tempo exigem dos diversos sujeitos ações adequadas às situações apresentadas na realidade social. » O direcionamento ético-político da intervenção profissional deve estar alinhado com a perspectiva de superação das situações que afetam grupos populacionais Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional59/241 Referências BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social - fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2006. CASTEL, Robert. A insegurança social: O que é estar protegido. Rio de Janeiro: Vozes. 2005 COUTO, Berenice Rojas. O Direito Social e a Assistência Social na Sociedade Brasileira: uma equação possível? 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008. JACCOUD, Luciana. Garantia de renda na perspectiva dos direitos socioassistenciais. In: Caderno de Textos - VI Conferência Nacional de Assistência Social. Ministério de Desenvolvimento e Combate à Fome. Conselho Nacional de Assistência Social. Brasília, 2007. JACCOUD, Luciana.Proteção Social: Debates e Desafios. In: Curso de Formação de Multiplicadores - 1ª etapa. Ministério de Desenvolvimento e Combate à Fome. Escola Nacional de Administração Pública. Brasília, 2007. RAICHELIS, Raquel. Esfera Pública e Conselhos de Assistência Social - caminhos da construção democrática. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005 . SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça - A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus Ltda., 1979. WANDERLEY, L. E.; RAICHELIS, R. D. Gestão pública democrática no contexto do Mercosul. In: Unidade 2 • Esfera Pública, Gestão Social e Práxis Profissional60/241 Los rostros del Mercosur. El difícil camino de lo comercial a lo societal. Argentina, 2001. SILVA, Ademir Alves da. A gestão da Seguridade Social brasileira. São Paulo: Cortez, 2004. SILVEIRA, Jucimeri Isolda. Sistema Único de Assistência Social: institucionalidade e práticas. In: BATTINI, Odaria (Org.). SUAS - Sistema Único de Assistência Social em debate. São Paulo: Véras, 2007. Referências 61/241 Aula 2 - Tema: Esfera Pública, Gestão Social e Praxis Profissional – Bloco I Disponível em: <http://fast.player.liquidplatform.com/ pApiv2/embed/dbd3957c747affd3be431606233e0f- 1d/314c25981c66db2a0e2143d4e9dff310>. Aula 2 - Tema: Esfera Pública, Gestão Social e Praxis Profissionall – Bloco II Disponível em: <http://fast.player.liquidplatform.com/pA- piv2/embed/dbd3957c747affd3be431606233e0f1d/e9e- 0bafa0b443d8ba3205a4a8ab17e73>. Assista a suas aulas 62/241 1. O que é esfera pública? a) relativo ao poder público b) o que diz respeito à população c) administração pública com eficiência d) relativo ao bem público e) reconhecimento do direito de todos em participar das decisões relacionadas ao bem comum Questão 1 63/241 2. O reordenamento do aparato estatal estabelecido na Constituição Federal de 1988 é denominado: a) Entes federados b) Descentralização politico-administrativa c) Democracia d) Municipalismo e) Territorialidade Questão 2 64/241 3. Entende-se por território: a) A delimitação geográfica de acordo com características do município. b) Municípios regionalizados conforme atividade econômica. c) É um sistema de relações e estruturas decorrentes da combinação entre fatores políticos, sociais, econômicos e culturais. d) Local onde devem ser implantados equipamentos de saúde. e) A delimitação geográfica de áreas com incidência de problemas sociais. Questão 3 65/241 4. Intersetorialidade reflete: a) leitura multidimensional da realidade b) existência de vários serviços c) fluxo administrativo de encaminhamento entre setores d) sistema que interliga todos os serviços públicos e) estratégia ultrapassada de governar Questão 4 66/241 5. A práxis profissional consiste em: a) Prática profissional com competência b) Saber trabalhar em equipe c) Sobrepor a pratica à teoria d) Intervir na perspectiva da mudança e) Respeitar a hierarquia organizacional Questão 5 67/241 Gabarito 1. Resposta: E. A esfera pública não se reduz à esfera estatal nem o privado à esfera mercantil. A esfera pública se constrói a partir do reconhecimento da determinação sócio- histórica das necessidades sociais que no decorrer do tempo exigem dos diversos sujeitos ações adequadas às situações apresentadas na realidade social. 2. Resposta: B. A descentralização político-administrativa, inaugurada com a Constituição de 1988, consiste na transferência do poder central (esfera federal) para outras esferas de poder (estadual e municipal), exigindo, como já foi dito, um reordenamento do aparato estatal com rebatimentos na organização administrativa do poder local/municipal, formas e fontes de financiamento e, sobretudo, na responsabilidade do poder público de conhecer, propor e intervir de acordo com as características e necessidades locais. 3. Resposta: C. A adoção da perspectiva territorial responde à necessidade de considerar a diversidade, os conflitos e particularidades das realidades regionais e locais, no desvelamento da realidade social enquanto totalidade dinâmica e contraditória, a partir dos múltiplos condicionantes 68/241 sócio-político-econômico-culturais que a configuram. 4. Resposta: A. Contrapõe-se a lógica da setorialidade uma vez que as prioridades são definidas a partir da leitura multidimensional da realidade sobre a qual serão desenvolvidas ações integradas dos vários setores, ou seja, através do olhar específico de cada setor é construído um diagnóstico que abrange a integralidade das necessidades sobre as quais ocorrerão intervenções na perspectiva de complementariedade. Gabarito 5. Resposta: D. A práxis profissional refere-se ao direcionamento ético-político da intervenção profissional alinhado com a perspectiva de superação das situações que afetam grupos populacionais. 69/241 Unidade 3 Fundamentos da prática profissional Objetivos a. Reconhecer direcionamento ético-politico profissional b. Analisar os fundamentos teórico-metodológicos c. Identificar a instrumentalidade profissional no cotidiano Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional70/241 Introdução Toda prática profissional carrega uma teleologia, uma intenção. Na área social, por incidir na dinâmica social junto a grupos populacionais, deve em cada intervenção reproduzir o compromisso ético-político com a mudança. Isso coloca para você imensos desafios, uma vez que intervir na realidade significa intervir nas relações sociais e no modo como as condições de vida e de sobrevivência se estabelecem em determinado território. Você já viu anteriormente a importância de adotar a territorialidade e a intersetorialidade como eixos organizativos do trabalho social. Viu, também, que a participação popular é colocada como constitutiva da gestão social. Ao abordar o tema referente aos fundamentos da prática profissional, reiteraremos o direcionamento ético- político dos profissionais inseridos nos processos de gestão social, que ancorados na perspectiva de mudança, devem construir e reconstruir os seus instrumentos técnico- operativos. 1. Construindo caminhos Quando discutimos as políticas sociais, falamos em um processo complexo, racional, ético e cívico, que sustenta o referencial que introduziu no campo dos direitos sociais as políticas públicas de Seguridade Social a partir da Constituição Federal de 1988. Processo racional, Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional71/241 pois toda política deve resultar em um conjunto de decisões coletivas a partir de indicadores científicos que sustentarão planos, metas, prioridades para atendimento de necessidades socialmente determinadas. Ético, porque constitui responsabilidade moral do Estado suprir, dar condições de vida ao conjunto da sociedade. Cívico, dada sua vinculação com os direitos de cidadania, onde é dever do Estado oferecer um conjunto de benefícios e serviços à população. Enquanto política no campo dos direitos sociais, regidos pelos princípios de igualdade e justiça social, pressupõe postura ativa do Estado na sua garantia. A centralidade do Estado, a descentralização político-administrativa, o controle social, a territorialidade e a intersetorialidade desencadeiam mudanças na gestão municipal no que diz respeito às condições estruturais, políticas, técnicas e administrativas, que possibilitem assumir a gestão das políticas sociais na perspectiva de um sistema integrado. Isso não é tarefa fácil. Supõe uma desconstrução de referenciais e de práticas dos gestores e agentes municipais, o enfrentamento de conflitos e a reconstrução da identidade das políticassociais em direção a uma nova legitimidade enquanto políticas públicas de direitos de cidadania. Podemos afirmar que as mudanças desencadeadas desde a CF/88 apresentam Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional72/241 dimensões conceituais e organizativas. Conceituais no sentido de que exigem um esforço de elaboração para situar as políticas sociais no âmbito das políticas públicas, de proteção social, delimitar seu campo de atuação, formular estratégias e metodologias de intervenção, que possam sustentar a passagem do paradigma da tutela para o de direitos de cidadania. Não se trata, pois, de perpetuar ações para atendimento de necessidades emergenciais, comumente paternalistas e clientelistas, mas do reconhecimento dos direitos sociais que essas políticas garantem e os correspondentes serviços públicos abrangidos. A dimensão organizativa reside no estabelecimento de uma nova lógica de gestão nacional, capaz de impulsionar e ampliar direitos da população, especialmente daqueles segmentos sociais excluídos do acesso a bens e serviços. Tome por base o SUS e o SUAS, modelos únicos, orgânicos e sistematizados, definem estruturas, normas de gestão, competências e atribuições de cada ente federado, colocando em movimento princípios e diretrizes na perspectiva da construção de políticas públicas universalizantes. O processo de sua institucionalização deve ser analisado sob os aspectos teórico-metodológicos, formal-organizativo, técnico-operativo, nos quais estão imbricadas as dimensões conceitual e organizativa, que condicionam a direção política da execução. Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional73/241 A definição da Assistência Social, Saúde e Previdência Social como políticas públicas no campo da Seguridade Social institucionalizou um sistema de proteção social para todos os cidadãos, reconhecendo a existência de um conjunto de necessidades sociais decorrentes das condições objetivas de sobrevivência e configurando como direito o acesso a programas, projetos, serviços e benefícios de iniciativa pública que garantam o atendimento às suas necessidades básicas (art. 1º LOAS/1993). Dessa forma, circunscritos os campos específicos de cada política na perspectiva de sua abrangência e completude, sem qualquer subordinação, cada uma delas e o seu conjunto devem atuar para a garantia das condições de vida digna a todos os cidadãos brasileiros, na direção da universalização do acesso aos direitos humanos e sociais. A ideia de proteção está atrelada à de prevenção, que porta uma dinamicidade. Prevenir significa dar condições para o enfrentamento de uma situação que pode prejudicar algo ou alguém, antes que ela se instale, demonstrando a possibilidade de deslocamento da condição mais frágil, vulnerável, para a condição mais forte, protegida. Como esclarece Sposati: Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional74/241 Estar protegido significa ter forças próprias ou de terceiros, que impeçam que alguma agressão/precarização/privação venha a ocorrer deteriorando uma dada condição. Porém, estar protegido não é uma condição inata, ela é adquirida não como mera mercadoria, mas pelo desenvolvimento de capacidades e possibilidades. No caso, ter proteção e/ou estar protegido não significa meramente portar algo, mas ter uma capacidade de enfrentamento e resistência. (SPOSATI, 2007:17) Para identificar essa dinamicidade, essa potencialidade de mudança, é necessário reconhecer as situações que demandam atenção/atendimento, mas também um conjunto de situações que vulnerabilizam a população que podem ser transmutadas, fortalecendo a sua capacidade de enfrentamento em face de ocorrência de riscos sociais. Devemos estar atentos a algumas “armadilhas” conceituais relacionadas. Em primeiro lugar, à própria concepção de família nos moldes tradicionais, que de saída pode imprimir uma leitura preconceituosa com relação aos novos arranjos familiares. A adoção de um modelo idealizado de família pode reeditar práticas adaptadoras e higienistas que pouco contribuirão para o seu fortalecimento enquanto lócus básico de proteção. Em segundo lugar, a centralidade da Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional75/241 ausência ou insuficiência de renda como determinante da necessidade social, pode valorizar ações voltadas ao fornecimento de recursos materiais isoladas do conjunto de serviços que devem ser ofertados no âmbito da assistência social, desqualificando-os, minimizando sua importância na configuração da proteção social. Para isso, a orientação político-ideológica das ações merece atenção, pois podem reiterar práticas focalizadas e emergenciais, potencializar a segregação e permanecer distantes da perspectiva protetiva que devem objetivar. Link SPOSATI, A. Os desafios da proteção social. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=6xXbp12-i1c>. Acesso em: 30 jul. 2015. Viana e Fausto (2005), analisando a atenção básica na área da saúde, apresentam que essa discussão nas políticas de proteção social é tensionada, por um lado, pela perspectiva focalista, configurando a atenção básica como uma estratégia de combate à pobreza e, por outro, pela perspectiva universalista, enquanto “componente estratégico da estruturação, operação, coordenação e instrumento de equidade”. Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional76/241 A adoção da perspectiva focalista transforma problemas estruturais em faltas morais, cujo enfrentamento sustenta-se na comprovação da necessidade, vinculando-a a uma “deficiência” individual a ser compensada através do cumprimento de condições. Pereira (2003) analisa que ocorre uma perversa inversão no campo das políticas sociais, na qual “os pobres, que são credores de uma dívida social acumulada, têm de oferecer contrapartida aos seus credores, quando estes se dispõem a saldar parcelas dessa dívida”, caracterizando-as como residuais e distanciando-as da ideia de cidadania e de direitos sociais. A focalização provoca também alteração no conceito de política social, que enquanto mediadora da relação Estado- sociedade-mercado, configura-se como a objetivação de um pacto social, assegurando proteções nas várias dimensões relativas às necessidades humanas e sociais. A política social fica reduzida a um conjunto de programas fragmentados, voltados ao combate à pobreza monetária, caracterizados por critérios de elegibilidade e cumprimento de condicionalidades. Ao princípio da universalidade - que emergiu com a democracia em defesa do acesso indiscriminado a bens e serviços públicos a todos os cidadãos – vincula-se a ideia de investimento social, ou seja, a garantia de condições para a reprodução social do conjunto da sociedade através Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional77/241 de políticas sociais. Difundido com o desenvolvimento do Estado de Bem Estar Social, e materializado através dos direitos sociais, reforça o papel do Estado enquanto regulador das relações sociais em direção à manutenção da igualdade de condições de vida da população. No entanto, com a mudança do contexto sócio-político-econômico nacional e internacional, esse princípio tem sido sobreposto pelo princípio da seletividade como estratégia de racionalidade da alocação de recursos, sob a alegação de que são os grupos mais vulneráveis aqueles que demandam intervenção estatal via políticas sociais. Como apresenta Pereira (2003), o princípio da seletividade, que poderia guardar alguma preocupação com o atendimento das necessidades sociais, foi adotado devido às limitações operacionais para efetivar a universalidade em uma sociedade de classes. No entanto, por orientação dos organismos internacionais, foi substituídopelo conceito de focalização, deslocando também a conexão das necessidades sociais à questão social e desfigurando o conceito de direito social. Essa discussão, eivada de posições ideológicas, está na pauta das políticas sociais em geral. 1.1 Direito social e a garantia das necessidades sociais Até aqui, temos falado que as políticas Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional78/241 sociais voltam-se para o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos, mínimos sociais, cuja interpretação geral tem dado ênfase aos mínimos sem a necessária clareza ao que se referem, nem tampouco ao que seria entendido como básico. Analisando o artigo 1º da LOAS (lei Orgânica da Assistência Social), observa-se que ao estabelecer o mínimo de provisão e o básico de atendimento, imbrica dois conceitos diversos e de certa forma paradoxais, cuja leitura acrítica pode permitir que sejam considerados como equivalentes. Por mínimo, segundo Pereira, entende- se o menor dentro de uma escala de valores, não necessariamente vinculado ao fundamental, principal, primordial. Em relação ao atendimento de necessidades, a equivalência é ao menor patamar sem relacioná-lo com um padrão básico. O básico, as necessidades básicas “constituem o pré-requisito ou as condições prévias suficientes para o exercício da cidadania em sua acepção mais larga” (PEREIRA, 2008) e reúnem um conjunto de requisições relativas às condições concretas em que se objetiva a reprodução social e que devem ser protegidas. A sobrevivência na sociedade brasileira, sob forte influência do pensamento liberal, tem sido considerada uma questão que diz respeito ao âmbito privado e não público, obtendo historicamente “respostas” pela via da caridade e pelo favor, portanto, Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional79/241 relacionada ao “quando possível” e “o que for possível”. Por ser “assunto” da assistência social, a natureza discricionária atribuída a essa prática (como não política), deixou marcas de difícil superação e tem se configurado como uma tensão na objetivação da atenção às necessidades sociais pela via do direito de cidadania. O conceito de necessidades básicas, cuja dimensão material tem relativa centralidade, tem sido considerado sinônimo de necessidades de sobrevivência, sem o balizamento necessário para diferenciar os seres humanos dos animais, ou em outros termos, a passagem da natureza para a cultura (TELLES, 2008). Pereira (2008), ao referir-se à construção social das necessidades humanas mediadas pelo trabalho, caracteriza- as como um conjunto de necessidades que correspondem à sobrevivência, mas, ao mesmo tempo, também se referem à sociabilidade, a universalidade, a autoconsciência e a liberdade inerentes ao processo de humanização. Nesse sentido, as necessidades humanas, determinadas por aspectos históricos, filosóficos e culturais, não podem ser reduzidas ao plano econômico, considerando que no capitalismo a necessidade imperativa é a da valorização do capital1. 1 Para aprofundar essa análise, consultar BARROCO, (2007) e NETTO e BRAZ, (2006) Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional80/241 Em que pese a inexistência de definição clara do que sejam necessidades humanas básicas, como afirma Pereira (2008), a dimensão humana tem sido valorizada como indicador do estágio de desenvolvimento das sociedades e sua análise utilizada como subsídio para a formulação de políticas sociais e econômicas no mundo inteiro. Presente nos documentos oficiais de diversas agências internacionais desde os anos 1990, a concepção de desenvolvimento abrange aspectos relativos à renda, longevidade, escolaridade, conhecimento, direitos humanos, segurança, liberdade política, econômica e social. Para saber mais BARROCO, M. L. Ética e Serviço Social: Fundamentos Ontológicos. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2007. Braz, M e Netto, J.P. Economia Política - Uma Introdução Crítica. Col. Biblioteca Básica de Serviço Social. Vol. 1. São Paulo: Cortez Editora, 2006. Disponível em: <https://docs. google.com/file/d/0B1nta3CLzwJXRHpOUzI4d1pGdW8/edit>. Acesso em 10 set. 2015. Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional81/241 Nessa direção, o resultado do esforço da pesquisa e da produção de conhecimento no âmbito da academia em demarcar a dimensão objetiva e universal das necessidades sociais para reprodução social, coloca como parâmetro aquelas condições cuja ausência “impedem ou põem em risco a possibilidade objetiva dos seres humanos de viver física e socialmente em condições de poder expressar a sua participação ativa e crítica” (PEREIRA, 2008 p. 67), configurando dois conjuntos que devem concomitantemente ser satisfeitos: a saúde física e a autonomia. Para saber mais PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Necessidades Humanas - subsídios à crítica dos mínimos sociais. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008. Sendo assim, podemos entender que as necessidades humanas básicas se referem às necessidades de sobrevivência e de autonomia, enquanto dimensões indissociáveis que devem estimular a “capacidade do indivíduo de eleger objetivos e crenças, de valorá-los com discernimento e de pô-los em prática sem opressões” (PEREIRA, 2008). Isto significa, em primeiro lugar, que a autonomia não está reduzida ao autossustento, mas que se realiza social e dialeticamente a Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional82/241 partir da possibilidade do indivíduo poder fazer escolhas e contar com condições objetivas para sua concretização. Como você viu, “os sistemas de proteção social têm origem na necessidade imperativa de neutralizar ou reduzir o impacto de determinados riscos sobre o individuo e a sociedade” (VIANA; LEVCOVITZ, 2005). O sistema de proteção social brasileiro, fundado no trabalho formal, tem como marco paradigmático a Constituição Federal de 1988, que sustentada nos princípios de direito e justiça social, introduz a ideia de seguridade social, incorporando benefícios não contributivos para os segmentos excluídos ou que sequer foram incorporados pelo mercado formal de trabalho e aos direitos daí decorrentes, o que não significa que não sejam ou não tenham sido trabalhadores ao longo de sua vida. Considerando o cenário de profundas desigualdades sociais, a proteção social brasileira cumpre (ou deverá cumprir) um duplo papel: garantir cobertura através da provisão monetária temporária ou permanentemente aos indivíduos e suas famílias que não o garantam por seus próprios meios em virtude dos riscos “clássicos” como a doença, a velhice, a invalidez, o desemprego e a exclusão; e organizar-se “para a equalização de oportunidades, o enfrentamento das situações de destituição e pobreza, o combate às desigualdades sociais e Unidade 3 • Fundamentos da prática profissional83/241 a melhoria das condições sociais da população.” (JACCOUD, 2007, p. 3) Aos riscos “clássicos” agregam-se aqueles decorrentes de processos sociais excludentes e discriminatórios relativos à etnia, à raça, à orientação sexual, além daqueles que decorrem do desenvolvimento do capitalismo globalizado e excludente, que aprofunda “distâncias sociais” na realidade nacional e mundial, assolada pela violência, pela quimiodependência e pela destruição do meio ambiente, entre outros na esteira das manifestações atuais da questão social. Como afirma Sposati (2007), é a “seguridade-cidadã” que, com base em parâmetros éticos, humanistas e científicos, deve assegurar a todos os cidadãos instrumentos que garantam a sustentabilidade em padrões dignos de vida e a sobrevivência. A apreensão da realidade social a partir dessas reflexões constitui o arcabouço teórico
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