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A CIÊNCIA DO DIREITO Admar Cass io Fer re i ra Neto 1. A c iência Todo ser humano, de uma forma ou de outra, acumula conhecimentos, ou, em outras palavras, todos tem memória, todos guardam lembranças. Qualquer pessoa, mesmo sem nenhuma bagagem cientí f ica, é capaz de um mínimo de operação mental que demonstre algum conhecimento a respei to de alguma coisa. Mesmo o ser humano não al fabet izado é capaz de conhecer e até de elaborar e operar códigos de comunicação para a transmissão de algum conhecimento. Esse conhecimento usual que o homem tem de si mesmo e do mundo é chamado conhecimento vulgar, is to é, é um conhecimento não c ientí f ico. E até por isso lhe t i ram o termo “conhecimento”, para chamá-lo apenas “senso”, senso comum, reservando-se a palavra “conhecimento” para o c ient í f ico. O conhecimento c ientí f ico é uma espécie de ot imização desse conhecimento vulgar. A ciência busca organizar e s is tematizar o conheci- mento do homem. O cient is ta é um ser preocupado com a veracidade e a comprovação de seu conhecimento, o que faz com que construa uma sér ie de enunciados e regras r igorosas que permitem a descoberta e a prova desse conhecimento. Enquanto o senso comum é di fuso, desorganizado, assistemat izado e advém de vár ias fontes desordenadas e s imul tâneas, o conhecimento c ientí f ico tenta ser coerente, coeso, organizado, s is temático, ordenado e or ientado a part i r de fontes específ icas e muitas vezes pré- const i tuídas. O senso vulgar impl ica ou parte de constatações - c ircunstâncias apreendidas no dia-a-dia do homem comum. O conhecimento c ientí f ico também impl ica constatações e delas parte; porém pretende exercer sobre elas certo domínio para conseguir expl icar o que exist iu, o que existe e, também, o que exist i rá. A ciência tenta r igorosamente descrever s i tuações, constatando efei tos a part i r de causas. Esta re lação de causa e efei to é um elemento norteador do pensamento cientí f ico, que pretende apontar os acontecimentos futuros. É um pr incípio lógico da c iência: se um efei to x é ocasionado pelas causas a, b, c , toda vez que forem acionadas as causas a, b, c, nas mesmas condições que a anter ior , dá-se novamente o efei to x. Em outras palavras, conhecida a le i da gravidade e sua força, o c ient is ta sabe - e todos sabem – que, ao sol tar uma pedra no ar , e la vai ao chão. O c ient is ta consegue, inc lus ive, porque tem o controle adequado do conhecimento, calcular com bastante precisão, por exemplo, a velocidade da pedra ao cair e o tempo que ela leva para chegar ao solo. Claro que, como se sabe, a f ís ica inser iu aí o componente da relat iv idade e da probabi l idade, o que não impediu que se calculasse com muita aproximação a probabi l idade. Agora, pode-se dizer que a base para a s is tematização e do conhecimento cientí f ico são os dados comprovados plenamente. Esses dados tornam-se leis que ordenam todo o conhecimento relat ivo ao campo de estudo. Quando o c ient is ta e labora enunciados que ainda não podem ser comprovados, porque não existe conhecimento acumulado suf ic iente para ta l , ou porque é uma proposta in ic ia l que visa a uma comprovação futura, fa la-se não em leis , mas em hipóteses, que serão ou não comprovadas. E, ao serem comprovadas. t ransformam-se em leis. É por isso que c iência é teor ia, a inda que suas hipóteses e suas le is , bem como o aprendizado, as comprovações e as constatações, tenham caráter prát ico, ver i f icadas e v ivenciadas que são na real idade social e real . Apesar d isso, cont inua sendo teor ia. Toda c iência postula um método de invest igação e também um objeto de invest igação que lhe pertence. O método pode ser l igado dire- tamente ao t ipo de c iência que dele se ut i l iza, is to é, cada c iência tem, ou, pelo menos, pode ter, um método apropr iado para seu campo. É pelo método que se elabora o conhecimento c ientí f ico, o que faz com que ele seja parte integrante do própr io s istema a que serve. O objeto, por sua vez, var ia, também, em função da c iência, o que vai impl icando uma necessária opção de método. Mas, naturalmente, quando se fa la em ciência, objeto e método, tem-se de fa lar também no c ient is ta, que é o suje i to da invest igação. Assim, no conhecimento c ientí f ico estão l igados sujei to e objeto, através de um método; tudo possibi l i tando a constatação, a construção, a apl icação e a transmissão do conhecimento c ientí f ico. Quanto à c lassi f icação das c iências, existem vár ios t ipos propostos pela doutr ina. Encontramos c lassi f icações conhecidas e famosas, como as de Ar istóteles ou a de Augusto Comte. Podemos apontar uma básica, e quase sempre acei ta: a dis t inção entre dois t ipos de ciências, as naturais e as humanas. Dentre as di ferenças possíveis entre esses dois t ipos, podemos apontar o seguinte: nas c iências naturais o conhecimento é construído com o objet ivo de expl icar os fatos e tentar descobr ir as l igações entre eles, organizando um mundo próprio de constatações descr i tas e expl icadas. Nas c iências humanas busca-se igualmente expl icação para os fatos e suas l igações. Contudo, nelas aparece o homem com suas ações como objeto de invest igação. As ações dos homens e suas intr incadas re lações interpessoais, que trazem resultados imprevisíveis, obr igam à introdução do ato de compreender junto ao de expl icar. É necessár io, nas ciências humanas, captar o sent ido dos fenômenos humanos; é preciso compreendê-Io, portanto, numa acepção valorat iva. Além disso, não basta ao cient is ta tentar compreender o sent ido da ação ou do comportamento humano; é preciso, também, invest igar o que o homem que gerou a ação, e le própr io, pensa ou sente em relação a seu ato, bem como das inter-re lações pessoais dal i provenientes. Isso acaba aumentando a complexidade dos objetos postos em anál ise nas c iências humanas, de forma que alguma coisa se perca ou seja di f íc i l de ser captada. A introdução do valor na ciência causa, sem dúvida, um transtorno enorme ao c ient is ta. Chega-se, por isso, a pôr em dúvida o grau de c ient i f ic idade dessa c iência, pois não se pode ter certeza precisa das relações de causal idade. Nem sempre as mesmas causas já conhecidas geram o efei to esperado. Daí o l imite e a importância da compreensão dos fenômenos para as c iências humanas. Acrescente-se a tudo isso o quest ionamento que se faz da relação do c ient is ta com o objeto a ser invest igado. Discute-se se é possível ao c ient is ta agir com “neutral idade” em relação ao objeto de invest igação, is to é, se ele, ao ir aval iar o objeto, deixa seus própr ios valores e sent imentos pessoais de lado. Há os que dizem que s im, apostando na capacidade do c ient is ta de observar fatos sem se envolver e a part i r deles elaborar seu trabalho c ientí f ico, sem interferência pessoal. Há os que af i rmam ser impossível ao c ient is ta invest igar os fatos sem uma tomada de posição pessoal , uma vez que a própr ia escolha do objeto é, por s i só, real izada com base em informações preconcebidas no inter ior do c ient is ta. Sem querer aprofundar aqui esse debate, pode-se dizer ser verdade que, em alguns ramos, parece possível a e le operar com neutral idade, como acontece, por exemplo, com o cálculo matemático do c ient is ta que não pode, aparentemente, sofrer inf luência de seus valores e sentimentos. Acontece que a c iência - a inda que matemát ica - é voltada para o út i l , para uma ef icácia social p lena, para um uso real , enf im. E aí qualquer esforço por neutral idade se esvai. Nas ciênciashumanas, então. não há a mínima possibi l idade de neutral idade, v is to que o c ient is ta é ao mesmo tempo pesquisador e pesquisado. Part ic ipa do mesmo fenômeno socia l invest igado, sendo certo que até mesmo suas buscas inf luem no própr io processo de formação do comportamento humano que se invest iga, o que, sem dúvida, t raz mais angúst ia para o seio das já angust iadas c iências humanas, que l idam com objetos tão di f íceis de ser captados. As c iências ref letem, assim, condutas engajadas dos c ient is tas no momento histór ico das sociedades em que v ivem e pesquisam. 2. As escolas c ientí f icas São vár ias as al ternat ivas de estudo aqui, pois são inúmeras as escolas que apresentam métodos e crenças para a obtenção do conhecimento. Vamos trabalhar com posições escolhidas e que possib i l i tam, a nosso ver, uma v isão panorâmica - ainda que não exaust iva - das vár ias correntes cientí f icas. 2.1. O empir ismo No empir ismo, a escola mais conhecida e radical é a do posi t iv ismo, representada pelo pensador francês Augusto Comte (1798-1857). Essa escola af i rma que o conhecimento cientí f ico nasce do objeto. É neste que repousa a verdade c ientí f ica, apresentando-se ao suje i to como de fato é na real idade. Al iás, d iz essa escola, o real é objeto que dir ige o conhecimento como um vetor ao sujei to, que, sendo racional , basta estar preparado para colher do objeto sua essência. O posi t iv ismo, portanto, funda-se na crença de que os objetos em si possuem essências própr ias, que só dependem de uma, cada vez me- lhor, maneira de observar do sujei to, para serem reveladas. E, de fato, o aperfe içoamento do observador - o c ient is ta - ape- nas se dá porque ele, antes, extraíra dos objetos, pelo mesmo método, verdades que agora, por acúmulo de conhecimento, lhe permitem observar melhor, e assim por d iante. Porém, nada muda a crença, porquanto é lá, no objeto, que todas as verdades - ocul tas nas essências - já res idiam. O que se al tera com novas descobertas não são os objetos - que sempre t iveram as mesmas essências - , mas a maneira de vê-Ios. O cient is ta ter ia, assim, uma miopia que se ia curando, com o passar do tempo. Na medida em que ele observava melhor os objetos e arquivava os conhecimentos daí resul tantes, estes se iam acumulando. E melhoravam sua v isão. Mas os objetos ainda eram os mesmos. Daí poder-se af i rmar certas máximas do empir ismo e, especial- mente, do posi t iv ismo: só é cientí f ico o conhecimento ver i f icável empir icamente; é do objeto que def lu i o conhecimento; o objeto é trans- parente e o conhecimento c ientí f ico deve descrevê-Io o melhor possível ; quanto mais exata a descr ição do objeto, tanto mais avançado o conhe- cimento c ient í f ico. Um exemplo bastante v ivo desse método posi t iv is ta é o das pes- quisas genéticas. Nelas há uma pretensão de penetração cada vez mais profunda no real , de ta l forma que dele se extraiam as verdades buscadas - mas buscadas nele, objeto real , e a part i r dele. Vejam-se, no exemplo, os genes. Eles f icam si tuados dentro do núcleo das células do corpo, nos chamados cromossomos. E esses genes são hoje ident i f icados em nível molecular como ácido desoxirr ibonucléico: o DNA. 2.2. O racional ismo Em posição exatamente oposta ao empir ismo e posit iv ismo está a escola racional is ta. O conhecido f i lósofo f rancês Descartes (1596- 1650), de frase não menos famosa – “Penso. logo existo” - , é considerado o fundador do racional ismo moderno. Os postulados do racional ismo têm aí , em Descartes, seu ponto de part ida. Já em sua época (século XVII) , ao separar corpo e mente, o dual ismo cartesiano pusera os f i lósofos diante da questão: se a mente é dist inta do corpo e seus órgãos, e se são estes que entram em contato com o mundo exter ior , como ter cer teza da existência do próprio mundo exter ior? É importante por isso consignar o que Descartes deixa marcado desde o século XVII com seu Discurso do método (de 1637), a obra da frase famosa. Rejei tou ele a posição escolást ica da unidade substancial do composto humano, segundo a qual o corpo e a alma const i tuem um único ser e agem como um todo. Para Descartes, corpo e alma (ou mente), cada qual , são substâncias completas, auto-suf ic ientes e sem relações imediatas recíprocas. Acompanhemos seu pensamento: Descartes decidira colocar tudo em dúvida para ver se alguma proposição resist ia a esse esforço, quando deparou com o famosíss imo “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum). Nenhum objeto do pensamento resiste a essa objeção. Contudo, o própr io ato de duvidar é indubitável . (É conveniente notar que Descartes não diz "duvido, logo existo", v is to que para ele a dúvida não importa como ato, mas como conhecimento do fato de que duvida.) Assim, Descartes, observando que podia pôr tudo em dúvida, exceto o fato de que pensava, d isse: “compreendi por aí que (eu) era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessi ta de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa mater ia l . De sorte que esse eu, is to é, a a lma, pela qual sou o que sou, é inte iramente dist inta do corpo e, mesmo, que é mais fáci l de conhecer do que ele, e, a inda que este nada fosse, e la não deixar ia de ser tudo o que é”. Com esses pressupostos foi-se f i rmando o racional ismo moderno, que af i rma resid ir no sujei to o fundamento do ato de conhecer, sendo o objeto mero ponto de referência. O pensamento opera com idéias e não com coisas concretas; o objeto de conhecimento é uma idéia construída pela razão. Não há, é verdade, no racional ismo um desprezo total ao chamado objeto concreto; o problema em relação a este é que é incapaz de oferecer condições de certeza, ou, em outras palavras, os fatos não são fonte segura para o conhecimento. Um exemplo das incertezas que cercam os fatos pode ser dado por um trecho do famoso e cr í t ico f i lme de Char les Chapl in, “Tempos Modernos”. Em certa cena, o personagem Carl i tos está andando por uma rua, quando passa um caminhão carregando madeiras. Como se sabe, quando o comprimento das madeiras é maior que a carrocer ia, costuma-se pendurar na ponta extrema de alguma madeira uma bandeir inha vermelha, como s inal ização de segurança. Pois bem, Car l i tos vê o caminhão com madeiras passar, deixando cair à sua frente a tal bandeir inha de s inal ização. Cé lere, Car l i tos a apanha do chão e começa a correr atrás do caminhão, acenando com ela, levantada ao al to de sua mão. Ao passar por uma esquina, surge atrás de Carl i tos um grupo de trabalhadores em greve, mas ele não se dá conta disso. Continua indo atrás do caminhão, acenando a bandeir inha vermelha, agora tendo atrás de si um número enorme de trabalhadores grevistas em passeata. Na seqüência, o caminhão desaparece e surge perante Carl i tos a pol íc ia. Esta vê a passeata, com uma pessoa à frente, agi tando a bandeir inha vermelha: Car l i tos é preso como l íder grevista. A pergunta é, portanto, re levante: pode-se conf iar nos fatos? Claro que o exemplo é s imból ico, mas aponta já a relat iv idade da possível verdade fatual . Dependendo de quem olha, o fato muda: o pol ic ia l vê um l íder grevista; os trabalhadores vêem um desconhecido; Car l i tos, esse só quer ia devolver a bandeir inha, e nem viu a passeata atrás de s i . (É necessár io colocar que Augusto Comte, com seu posi t iv ismo, reconhecia e af i rmava que o conhecimento c ient í f ico é sempre relat ivo; jamais absoluto.) Daria para tomar posições mais adequadas, de maior certeza em relação aosfatos? O racional ismo responder ia que não. É necessár io colocar, também, que nessa escola há uma corrente bastante radical , que prat icamente ignora qualquer objeto concreto: é o ideal ismo. Para o ideal is ta, o conhecimento nasce e esgota-se no própr io su je i to cognoscente. Por isso, o objeto real é ignorado ou, no máximo, admit ido numa posição completamente secundária. 2.3. A dialét ica A dialét ica é uma escola que pretende superar um obstáculo colocado pelas duas correntes anter iormente tratadas: o da distância existen- te entre sujei to cognoscente e objeto real . Com efei to, conforme se v iu, no empir ismo acredi ta-se que a verdade está no objeto concreto e é dele extraída. No racional ismo, ao contrár io, o invest igador opera apenas com idéias, deixando o objeto concreto de lado. Olhando para ambas, em especial nas correntes mais radicais – posi t iv ismo e ideal ismo, respect ivamente - , percebe-se que há entre suje i to e objeto concreto uma distância instransponível . E é para superar esse obstáculo que a dialét ica coloca suas diretr izes. Para a dialét ica, o importante é a própr ia re lação entre sujei to cognoscente e objeto, que sempre se estabelece em qualquer invest igação c ientí f ica. É verdade que, antes, dentro das própr ias escolas empir is ta e racional is ta, surgiram correntes mais moderadas, que t iveram a pretensão de superar esse obstáculo, mas sem nunca tê- lo fei to. Assim é que na pr imeira escola surgiu o posi t iv ismo lógico, que acei ta a ver i f icabi l idade empír ica por pr incípio da invest igação, is to é, a proposição c ient í f ica é acei ta como potencialmente ver i f icável , o que não el imina a caracter ís t ica de que a pesquisa cient í f ica tem de ser, de uma forma ou de outra, comprovada empir icamente. No racional ismo, por sua vez, surgiu o inte lectual ismo, corrente moderada que tem assente que o conhecimento não pode passar sem a exper iência empír ica; porém é o suje i to cognosccnte que, usando da razão, deve atr ibuir uma val idade lógica-universal ao conhecimento. Há uma racional ização, assim, do objeto concreto. Podemos, agora, colocar a a l ternat iva da dia lét ica para tentar superar o problema da distância existente entre suje i to e objeto. Em resumo são os seguintes os postulados da dialét ica conforme exposto por Agost inho Ramalho Marques Neto. Para a dia lét ica, como já se disse, o importante não é nem sujei to, nem objeto, mas sim a relação que necessar iamente se estabelece entre eles. Essa relação há de ser tomada não abstrata, mas concretamente, dentro do momento v iv ido do processo histór ico-real , no qual se dá o ato de conhecer. Para essa corrente é preciso dist inguir “objeto real” de “objeto de conhecimento” . Aquele é a coisa que existe independentemente do pen- samento, quer em si mesmo (númeno), quer na sua manifestação concreta ( fenômeno). Este é um “objeto construído” pelo própr io suje i to, já no ato de conhecer, porque é obt ido mediante o referencia l teór ico e pelo método que norte ia a pesquisa, e que é fruto da escolha do pesquisador. Para a dialét ica, por isso, o invest igador não vai “nu” ao objeto. Na verdade, quando busca o objeto, o escolhe e o constrói como objeto de conhecimento, ut i l iza-se de todo um conhecimento já acumulado h isto- r icamente; e na invest igação sua preocupação é a de, superando os co- nhecimentos anter iores, t razer a públ ico novos conhecimentos. Na pior das hipóteses, o c ient is ta da dia lét ica confi rma as verdades anter iores; mas, quando o faz, age dentro do processo histór ico-real da invest igação, e não como uma aceitação de verdade dogmática preestabelecida. Por isso é que a dia lét ica diz que “dado” não é “dado”, mas “construído”, e, por conseqüência, todo conhecimento obt ido é essen- cia lmente ret i f icável . As verdades c ientí f icas são, então, re lat ivas e provisór ias, podendo sempre ser superadas no decorrer do processo histór ico da c iência. Há de se reconhecer urna v ir tude importante da dia lét ica, que é a de tentar tomar para s i e acatar as contr ibuições traz idas pelas outras escolas cientí f icas. Mas, de qualquer forma, a escola dia lét ica tem de ser c lassi f icada como racional is ta, uma vez que seu vetor epistemológico caminha do racional (suje i to) em direção ao real , sendo que o objeto é construído, apesar de ter o real corno referência ou dele (do real) par t i r . E essa c lassi f icação vale ainda que a dialét ica ponti f ique que é a relação do sujei to e do objeto, o que importa, e que ela é uma relação concreta, porquanto essa escolha é uma opção da razão. 2.4. A fenomenologia Teçamos, agora, alguns comentár ios sobre a fenomenologia, v is to que não só inf luenciou largas correntes do pensamento contemporâneo como também f i lósofos de porte, ta is como Sartre, Heidegger e Jaspers, mas, sobretudo, porque a postulação de seu método é importante para uma ciência com as caracter ís t icas da Ciência do Direi to. A escola fenomenológica fo i fundada por Edmund Husser l com a pretensão de encontrar para a f i losof ia um método e um ponto de part ida tão indiscut íveis quanto os da matemát ica. Ambicioso projeto já tentado por Descartes, que o inspirou. No método husser l iano constata-se uma relação essencial e lógica entre sujei to e objeto, numa tensão dia lét ica que os une. Husser l recusa-se a tomar part ido em relação ao ideal ismo ou empir ismo, optando pela “neutral idade”. Mas há de reconhecer-se, como se verá, que ele consegue ul trapassar tanto um quanto outro, cr iando algo totalmente novo. Acompanhemos os fundamentos, o funcionamento e os postulados da fenomenologia. Husser l , pr imeiramente matemático, interessou-se, poster iormente, pela psicologia. Ambas as esferas de conhecimento em Husser l encontraram no terreno fér t i l preparado por Descartes as sementes, que far iam brotar o método fenomenológico. Recordemos: ao separar corpo e mente, Descartes pusera os f i lósofos diante da questão: se a mente é dist inta do corpo e seus órgãos, e se são estes que entram em contato com o mundo exter ior , como ter cer teza da existência do própr io mundo exter ior? Não resta dúvida que ternos representações muito ní t idas desse mundo, r icas, coerentes e que se complementam; representações que são, todavia, inte iramente subjet ivas, cuja correspondência com um objeto exter ior à nossa subjet iv idade (a nossa consciência) é impossível de ser ver i f icada. Estamos encerrados em nós mesmos e por isso não podemos at ingir nenhuma real idade objet iva. É-nos vedado ir a lém do pensamento; esse além é impensável. Husser l é bem específ ico quanto a todos esses aspectos: “O caminho que aqui se abre para o pensamento é o seguinte: por mais que eu estenda a dúvida da cr í t ica do conhecimento, não posso duvidar de que eu sou e duvido, de que eu represento, ju lgo, s into, ou, seja corno for que possam ainda ser chamadas as apar ições internamente percebidas, delas não posso duvidar durante a v ivência mesma em que as tenho; uma dúvida nesses casos ser ia evidentemente um contra-senso. Portanto, temos ‘evidência’ da existência dos objetos da percepção interna, temos o mais claro dos conhecimentos, aquela certeza inabalável que dist ingue o saber, no sent ido mais estr i to. O que acontece com a percepção externa é completamente di ferente. Falta a ela a evidência, e, de fato, uma múlt ip la contradição nos enunciados nela conf iados indica que ela é capaz de nos induzir em erros e i lusões. De antemão, não temos, portanto, o d ire i to de acreditar que os objetos das percepções externas existam efet iva e verdadeira mente ta is como eles nos aparecem”. Com efei to, a at i tude fenomenológica surgiu como resposta à fa l ta de argumentos apodít icos (evidentes, i r refutáveis) que pusessem f im ao drama revelado pela impossibi l idade de penetrar na natureza dos objetos conhecidos. Ao invés de eternizar-se nessa busca, a fenomenologia escolheu dedicar-se ao estudo dos dados do conhecimento. Para o entendimento adequado do trabalho do fenomenólogo, é importante examinar o sent ido em que o termo “ fenomenologia” é empregado. A palavra “ fenômeno”, or ig inalmente, tanto no sent ido c ientí f ico quanto no f i losóf ico comum, tem relação com a palavra aparência. Por isso o “ fenômeno” é um “relat ivo” , pois é aqui lo que “aparece” para o suje i to que o observa, ou seja, só existe na medida em que é observado na relação com o sujei to. Além disso, o termo “aparente” sofre inf luência do termo “ i lusó- r io” , “ i r real” , o que vai afetar também o termo “ fenômeno”, que ganha esse caráter de “ i lusór io” , “ i r real” . É verdade que o fenômeno faz parte da real idade, mas é como se pertencesse a um nível infer ior de real . As coisas são um absoluto, enquanto o fenômeno é um relat ivo ao aparecer para o suje i to. Daí é que se f i rmou a tendência no espír i to de considerar real apenas “a coisa em si” ou o “númeno”, cuja essência todavia é impenetrável . Para o suje i to só há o fenômeno. Na perspect iva fenomenológica a relação é invert ida: o fenômeno é que é absoluto; as coisas, o mundo exter ior , a árvore, a montanha, só tem existência relat iva perante o fenômeno. Ao contrár io da v isão anter ior , não é a representação subjet iva ou fenômeno que depende das coisas ou do objeto; são as coisas ou os objetos que dependem da representação ou do fenômeno. A consciência é a base essencial de todas as representações, quer sejam cientí f icas, quer vulgares, da real idade conhecida como objet iva. A consciência é a condição necessár ia para a af i rmação das coisas que são estranhas à consciência. Se pudéssemos remontar todos os conhecimentos das coisas di tas objet ivas e fôssemos vol tando de forma a decompô- los, chegaríamos na essência pr imeira, que é a consciência. Daí concluir -se que as coisas ou objetos só têm real idade a part i r da consciência. Para a fenomenologia existe uma confusão, t raz ida pelo natural ismo, entre o f ís ico e o psíquico. Este não é o conjunto de mecanismos cerebrais e nervosos, mas uma região que possui especi f ic idade e pecul iar idade; o psíquico é fenômeno, não é coisa. As coisas pertencem ao mundo f ís ico, ao fato exter ior , ao empír ico e são governadas por relações causais e mecânicas. Já o fenômeno é a consciência, enquanto f luxo temporal de v ivências, e que é capaz de outorgar s igni f icado às coisas exter iores. A isso a fenomenologia acrescenta uma part icular idade essencial de todos os fenômenos psíquicos: a “ intencional idade”. A noção de “ intencional idade” realmente vem dos escolást icos, no conceito de intenção, apl icado ao conhecimento. A palavra " intenção" indica uma direção ou uma tensão de espír i to para o objeto; e, por analogia, chama-se também intent io o conteúdo de pensamento em que se f ixa o espír i to. Esse caráter de intenc ional idade é estendido a todos os fatos psíquicos. É a própr ia consciência que é in- tencional. A consciência tende sempre para alguma coisa. Ao contrár io de se dobrar sobre si mesmo, como propunha a psicologia inspirada em Descartes, o caráter própr io do fato psíquico é reportar-se a um objeto. Todo fenômeno psíquico contém em si algo a t í tu lo de objeto, mas cada um o contém à sua maneira. Na representação, é a lguma coisa que é representada; no juízo, que é admit ida ou reje i tada; no amor, que é amada; no ódio, que é odiada; no desejo, que é desejada; e assim por diante. 3. A CIÊNCIA DO DIREITO É preciso ressaltar que existem até dúvidas sobre o caráter de c ient i f ic idade do Dire i to, d iante de uma sér ie de pressupostos de di f íc i l aval iação. Contudo, fazendo-se uma le i tura ampla dos comentadores, percebe-se c laramente que, de um je i to ou de outro, todos, ou pelo menos a maior ia, tratam o Direi to como c iência, numa evidente mani festação de acei tação de seu caráter c ient í f ico. Até se compreendem tantas dúvidas, uma vez que o Direi to teve e ainda tem muitas escolas de pensamentos que propõem formas di ferentes de invest igação para sua ciência. A nós importa o fato de que existe uma Ciência do Direi to, mesmo que com formas de pesquisas diversas. Como ramo de c iência humana, a Ciência do Direi to tem como substrato de pesquisa o homem, em todos os aspectos valorat ivos de sua personal idade. Da mesma maneira, como não se compreende uma c iência humana que exclu i de seu âmbito de pesquisa o ser humano, é inadmissível pensar uma Ciência do Direi to que não tenha como fundamento e centro de suas atenções o homem. É colocado assim, como pressuposto, o homem e sua condição existencial como pr incípio de invest igação. A Ciência do Dire i to deve, portanto, respeitar o homem na inte ireza de sua dignidade e nos l imi tes postos e reconhecidos universalmente como seus: a vida, a saúde, a honra, a int imidade, a educação, a l iberdade etc. ; bens essenciais e ind isponíveis que, em conjunto com bens socia is como a verdade, o bem comum e a Just iça, são norteadores de todo o mater ia l de invest igação da Ciência do Direi to. A Ciência do Direi to é uma ciência de invest igação de condutas que têm em vista um “dever-ser” jur íd ico, is to é, a Ciência do Direi to invest iga e estuda as normas juríd icas. Estas prescrevem aos indivíduos certas regras de conduta que devem ser obedecidas. É certo que, uma vez cumpr ida a determinação da norma, o “dever-ser” exaure-se num “ser” , ou, quando descumprida a determinação da norma, ocorre um outro “ser” , porém de conteúdo aparentemente contrár io ao pretendido pelo regramento jur íd ico. Contudo, na s ingeleza dessas observações, ocul ta-se uma enormidade de questões, de problemas que precisam ser examinados. Tomemos um simples e corr iqueiro exemplo de problema v isto a part i r de uma lei escr i ta: uma norma jur íd ica que discip l ina o trânsi to. Ao s inal de luz vermelha corresponde a ordem “o motor ista deve parar” . Essa ordem é um “dever-ser” jur íd ico, pois aponta o que a norma jur íd ica pretende que seja. É um comando dir ig ido aos indivíduos, especialmente, no caso, aos motor is tas. Quando diante de um sinal vermelho a ordem é cumprida, ocorre um fato que se ajusta ao conteúdo da norma; a norma jur ídica é vivenciada como um acontecimento no mundo do “ser” , dos fatos. Já quando o motor is ta desobedece à norma, não parando seu automóvel e ul t rapassando o s inal , há uma vio lação do comando e ao mesmo tempo outro t ipo de “ser” : um fato sancionado pela norma jur íd ica. A vio lação é, portanto, também um fato; é um acontecimento no mundo do ser. O sis tema jur íd ico, é verdade, regra, também, a conduta negat iva ou não querida: ao infrator o Direi to prescreve a sanção. No caso do s inal vermelho, é uma multa imposta ao transgressor. Não que o Direi to queira pr imordia lmente apl icar a mul ta, mas a sanção faz parte da estrutura da norma para que esta seja cumprida, e não para que seja v io lada. Olhando-se esse modesto exemplo de norma jur íd ica, que, representada por um semáforo, pretende disc ip l inar o t rânsi to, pode-se levan- tar muitas di f iculdades para o invest igador do Direi to: a) O sinal vermelhoestava funcionando no momento da ul trapas- sagem? b) E se est ivesse quebrado? c) O motor is ta pode escusar-se de pagar a multa alegando que não v iu o s inal? d) Pode apresentar a mesma just i f icat iva, a legando que mora na- quela rua e nem percebeu o s inal , pois fora instalado naquele d ia? e) Pode o motor is ta alegar que ul trapassou o s inal , porque se aproximaram do seu carro dois suje i tos mal encarados e pressent iu que ia ser assal tado? f) E se o motor ista for menor de idade, vale a multa? g) Se não existe norma administrat iva est ipulando que naquela esquina devia ter s inal , e os funcionár ios o instalaram por engano, vale a multa? h) Pode a mul ta ser lavrada por indicação de um cidadão comum a um guarda de trânsito que não assist iu à ocorrência? i ) Valerá a multa se ela fo i lavrada por um guarda que f ica escondido atrás de uma árvore com um talão na mão, para anotar quem ult ra- passar o s inal , ao invés de se mostrar ostensivamente? j) Estará adequado o valor da multa? Será justo seu montante? k) O valor deve var iar dependendo da qual idade do infrator : se é pr imár io ou reincidente? l ) Vale o argumento de que ninguém respei ta aquele s inal , porque está mal colocado naquela esquina? Enf im, com esse pequeníssimo exemplo que parte da le i , vê-se quão intr incados podem ser os fatos e os argumentos com os quais o c ient is ta do Direi to tem de l idar. Mul t ip l icando-se esse caso por um universo enorme de outras normas juríd icas e fatos, e, indo além, colocando-se valores e o própr io ser humano como elemento de invest igação, percebe-se o grau de complexidade que envolve o estudo do Direi to. E fr ise-se que neste exemplo o problema está vol tado especi f ica- mente para uma questão prát ica. Contudo, tendo em vista as pecul iar idades do objeto da c iência do Direi to, percebe-se que ela não tem de dar conta apenas das normas juríd icas e sua apl icação ou não, mas também tem de l idar com fatos sociais, aspectos sociológicos, econômicos, cul turais e até c l imát icos, com di ferenças regionais e terr i tor iais , bem como com valores ét icos e morais. Deve, a inda, invest igar as causas de elaboração das normas jur ídicas, em especial as le is , bem como sua adequação ao meio social . Todas essas normas e valores devem respeitar o homem em sua dignidade de ser humano, no meio social e na natureza em que v ive. A Ciência do direi to em sua acepção mais ampla é uma c iência ét ica por excelência. 4. O OBJETO DA CIÊNCIA DO DIREITO. QUE É O DIREITO? Sob o aspecto et imológico é possível l igar o termo “direi to” , den- tre outros, a reto (do vocábulo em lat im rectum), a mandar, ordenar (do lat im, l igado na or igem a jussum), ou ao termo “ indicar” (do vocábulo grego diké) . Observando o Dire i to à luz da real idade dos estudos jur íd icos contemporâneos, pode-se v is lumbrar que o termo “direi to” compor ta pelo menos as seguintes concepções: a da ciência, correspondente ao conjunto de regras própr ias ut i l izadas pela Ciência do Dire i to; a de norma jur íd ica, como a Const i tuição e as demais le is e decretos, portar ias etc. ; a de poder ou prerrogat iva, quando se diz que alguém tem a faculdade, o poder de exercer um direi to; a de fato socia l , quando se ver i f ica a existência de regras, ex istentes no meio socia l ; e a de Just iça, que surge quando se percebe que certa s i tuação é direi ta porque é justa. A palavra “direi to” é, assim, t ida por uns como análoga, ou seja, seus sent idos guardam certa re lação entre s i ; mas é apontada por outros como vaga e ambígua, v is to que suas s igni f icações não são sempre c laras, ou geram dúvida legí t ima e insolúvel ou, até mesmo, apresenta-se de forma paradoxal e contradi tór ia. Assim é que, por exemplo, o termo “dire i to” , na frase “o trabalha- dor tem dire i to assegurado ao salár io” , guarda certa aproximação, cer ta analogia, com o refer ido termo na expressão “não é de direi to punir um inocente” . Na pr imeira assert iva a palavra “dire i to” refere-se à previsão legal estabelecida (a Consol idação das Leis do Trabalho - CLT - que garante o salár io do trabalhador) . Na segunda, aquela palavra refere-se à just iça - ou in just iça - de uma decisão judic ia l . De pronto percebe-se apenas nos dois s imples exemplos que os própr ios usos da palavra "direi to" apontam um para o outro: d irei to aponta para just iça e esta para aquele. E é por isso que se diz que os termos são análogos. Contudo, há outros usos que se apresentam, como se disse, vagos, ambíguos, contradi tór ios. Com efei to, d ire i to é um ideal sonhado por cer ta sociedade e s i - multaneamente um golpe que enterra esse ideal. É símbolo da ordem social e s imultaneamente a bandeira da agi tação (estudant i l , dos trabalhadores em greve etc.) . O Direi to garante a pr ivacidade e a int imidade e, também, ao mesmo tempo, a publ ic idade e a quebra da int imidade. Só por esses exemplos percebe-se o grau de di f iculdade que é o manejar do conceito “dire i to” . Talvez por isso a chamada Ciência do Direi to tenha acabado por pr iv i legiar um dos sent idos, dentre os vár ios possíveis. Como, via de regra, as c iências em geral não têm muita d i f iculdade na descoberta e f ixação de seus objetos - por exemplo, a medic ina não tem dúvida de que deve estudar o corpo humano - , a Ciência do Direi to pretende o mesmo. Dessa forma, optou por estudar um dos sent idos possíveis do termo “dire i to” : o de norma jur íd ica e, especialmente, o de norma jur ídica escr i ta. Mas não parece ter s ido uma escolha muito fel iz - ainda que se possa entendê-Ia - , uma vez que as di f iculdades de f ixação de sentido que o termo “direi to” revela ao invest igador, antes de serem um obstáculo, apontam para uma r iqueza de s igni f icações que merecem estudo aprofundado. Contudo, ao invés de buscar superar o obstáculo, penetrando em sua complexidade fecunda, o cient is ta do Direi to deu uma vol ta ao largo do problema e levou consigo o sentido mais fác i l de ser abordado. Com isso, o que era de humano a impregnar o Dire i to acabou congelando-se no conceito da norma jur íd ica escr i ta e perdendo-se no tra- balho anal í t ico do invest igador. É preciso resgatar a magnif icênc ia da dignidade humana, que é o fundamento úl t imo que dá sustentação ao Direi to, através da abertura das mentes que se dedicam ao estudo do Dire i to, o que passa necessar iamente, por uma aval iação s incera dos métodos da Ciência do Dire i to, dos inst i tutos jur ídicos existentes, das condições sociais reais nas quais o Dire i to está inc luído, sobre as quais e le inf lu i e das quais recebe inf luênc ia.