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Os caminhos da globalização : alienação e emancipação Edmundo Lima de Arruda Junior Na Verdade, até o Banco Mundial classificou recentemente a situação do Cone Sul da América latina como ameaçadora e caótica, pois esta região tem o mais alto nível de desigualdade do mundo. E a razão para esta desigualdade mais alta é, em parte, a política dos EUA. Em 1994, os EUA já estavam projetando uma nova ordem mundial .(1) (Noam Chomsky) Sumário. I. Introdução II. Definindo o sentido de alguns termos ambíguos II.1. Mundialização II.2. globalizações em curso II.2.1. A globalização neoliberal II.2.1.a. A globalização neoliberal: ocidentalização do mundo ou neotribalismo? II.2.2.A globalização neo-keynesiana II.2.3. A globalização da cidadania mundial III. Concluindo: Dez teses intempestivas sobre os caminhos da globalização. ____________________________________________________________________ * Professor titular de sociologia jurídica da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, autor de mais de dez livros, entre os quais: Direito Moderno e Mudança Social. Belo Horizonte: Del Rey, 1997: Direito e Século XXI. Rio de Janeiro: Luam, 1997: Max Weber: Direito e Modernidade (org). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996; Gramsci: Estado, Direito e Sociedade (org), Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1995. I. Introdução. É possível falar em globalização (2) num sentido único, unilateral, unívoco? Na verdade podemos começar uma problematização falando em globalizações, ou processos de globalização , pois desta maneira evitaremos cair na armadilha da identificação arbitrária que é tomar a globalização neoliberal como opção exclusiva para o curso de dinamização da acumulação do capital. Tal procedimento quiça nos ajude a vislumbrar a superação tanto da barbárie do « novo liberalismo », como da própria ordem de mercado capitalista, afinal, porque não sonharmos também como uma globalização da democracia, uma mundialização da cidadania? Uma rápida reflexão sobre as conjunturas neoliberalizantes e seus efeitos sociais perversos revela o quanto essa forma de globalização constitui a principal inimiga da democracia. Um referencial cada vez mais confirmatório da luta por direitos humanos é a luta por modernidade. Neste breve artigo retomamos alguns os argumentos contra o neoliberalismo já presentes n’outros artigos(3), e esboçamos algumas notas intempestivas sobre os caminhos da globalização, ponto inicial para pensarmos, os que ainda se consideram de esquerda, alternativas à barbárie neoliberal global, e não seria devaneio nesses tempos de internet, a idéia mundialização da cidadania total? II. Definindo o sentido de alguns termos ambíguos. Há um casamento jamais visto entre universidade e classe política do statu quo. Jamais ciência e senso comum estiveram tão próximos. Refiro-me ao frenesi teórico e prático pelos discursos apocalípticos antimodernos. Tudo terminou, tudo deve ser reinventado. Surgem os gênios teóricos e políticos. No podium olímpico do « homo academicus »> e nos currais eleitorais das elites revezam-se os adeptos da teoria do caos, da teoria dos fractais, ou os adptos das teorias da morte (e do luto insuperável) da razão, dos « grandes relatos », da modernidade, da ciência, dos partidos e sindicatos, das vanguardas, etc. Outra palavra de ordem do final do século é globalização. Pois bem, quando ouvimos falar em globalização ela aparece como sinônima de modernização, de desenvolvimento e progresso da humanidade. Observando a sintonia entre elites arcaicas que sempre estiveram ao lado do autoritarismo (por exemplo, Antônio Carlos Magalhães) e o governo moderno de Fernando Henrique Cardoso (O Fernando neoliberal II), e observando também o empenho da mídia mundial ( « global » no caso brasileiro) em forçar essa identidade, podemos depreender o quão ela é enganosa. A modernidade capitalista estaria liberada do maior obstáculo à democracia, os socialismos reais, hoje quase todos extintos. O mundo tornou-se globalmente capitalista, o que é uma verdade, mas o que se esconde por detrás de tantas palavras ambíguas? Por exemplo, que o capitalismo não resolveu o problema social para oitenta por cento do planeta, que há uma progressão geométrica da miséria e uma acumulação sem precedentes na história do Capital. Na verdade, o que nos é vendido como prova de modernidade dá os claros sinais de uma barbárie, a barbárie neoliberal, que a título de guarda identidades com a filosofia pós-moderna, traz como resultado nítidos sinais de reforço e mesmo retorno à pré-modernidade. II.1. Mundialização. Ninguém melhor do João Luiz Duboc Pinaud (4) para demonstrar que a novidade da «globalização » expressa um movimento muito antigo. Ao menos se por globalização concebemos a tendência dos homens a ultrapassar seus domínios territoriais estabelecendo novos canais de interlocução humana. Nesse sentido preciso o homem global coincide exatamente como o nascimento do cosmopolita, pois « o termo cosmopolitismo é um termo cunhado na Grécia Antiga (séc. IV a, C.) para homenagear as transformações que Alexandre Magno impunha com suas conquistas » ... « Fato é que a palavra « cosmolita »(cidadão do mundo) significou a superação do «Polítes », homem da Cidade-Estado ». A dinamização das relações sociais de produção capitalistas pressupõe uma revolução cultural sem precedentes. Não é por menos que a Revolução Francesa, uma revolução originariamente burguesa « universalizou » a Razão Jurídica do homem moderno, pressuposto da universalização do mercado. Desde os grandes descobrimentos e com a ampliação do mercantilismo o mundo começa a encurtar suas distâncias, exigência basilar para o estabelecimento de circulação de riquezas e mercadorias. A mundialização é imanente ao percurso do homem na história da conquista da natureza, mas somente com a dominância da sociedade industrial de mercado capitalista passa a ganhar os contornos por nós conhecidos nos dias atuais: a da mundialização crescente da barbárie, da inclusão de alguns no banquete da modernidade com a programada exclusão da imensa maioria da população da terra dos benefícios do desenvolvimento econômico. Sob o ponto de vista das lutas populares o que se reivindica é a mundialização da cidadania, a globalização da democracia como valor universal. O sentido da globalização sonhada pelos trabalhadores diz respeito à emancipação e não à alienação de seres humanos. Enquanto a direita quer mais uma vez universalizar o seu sentido de globalização, a barbárie neoliberal, nós queremos a universalização de maiores graus de liberdade e igualdade. Queremos a democracia, formalizada em constituições compromissórias, marcadas « pela força normativa irradiante dos princípios constitucionais, mormente pelos princípios estruturantes da República, dentre os quais os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da erradicação da pobreza, da redução das desigualdades sociais e o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária »(5) II.2. Globalizações em curso. A Academia colonizada e a política conservadora tendem a impregnar a globalização como mão de via única: a globalização neoliberal. Será que a acumulação do Capital proposta pela nova barbárie é a única possível? Ou, de forma mais concreta, será que não existem outras formas de acumulação já em curso no planeta? Indo além, será que a « nova ordem mundial » (neoliberal e do Capital, em termos genéricos) não coloca também, ao lado da possibilidade de «universalização da barbárie », a possibilidade de universalizar o seu negativo, a « universalização da democracia »? II.2.1. A globalização neoliberal. A globalização neoliberal já nasce reacionária, pois sua gênese explicita uma reação progressiva face aos efeitosda luta de classes desde a década de quarenta. Melhor explicando, temos que ao findar da segunda grande guerrra prevalecia na ordem econômica mundial as políticas do New Deal norte-americano e do Estado Social tendente à afirmação do seu aprimoramente, o Wellfare State (Estado do Bem Estar Social). A tese da presença do estado nas questões sociais (saúde, pervidência, ensino, trabalho) rompia com o liberalismo econômico clássico, contra o qual se insurgira Keynes. Tal tese responde também às lutas operárias travadas desde o final do século XIX, e também soa como uma resposta da direita esclarecida aos vaticínios de Marx sobre a inexorabilidade da revolução face ao insuperável conflito decorrente da contradição fundante da ordem social capitalista: a socialização na produção de riquezas e a apropriação privada das mesmas por parte de um grupo seleto de proprietários dos meios de produção. O que preocupava aquele que é considerado como o fundador do neoliberalismo, F. Hayek, era exatamente o avanço das lutas políticas sindicais, e os compromissos do Estado Social com as classes trabalhadoras. Em 1943, quando Hayek escreve O Caminho da Servidão, já estão presentes as idéias reativas a quaisquer óbices à liberdade, concebida sempre em interação e como condição do mercado-livre. Essa reação contra o avanço da luta de classes, expressado por significativas vitórias jurídicas é uma reação política, alçada aos planos teórico e filosófico desde o célebre encontro de Mont Pelèrin (Suiça), com a participação de Milton Friedman, o grande divulgador/vulgarizador das teses de Hayek, e Karl Popper, o filósofo analítico oriundo do Círculo de Viena (matriz do pensamento neopositivista). O compromisso Capital/Trabalho estava em questão. O advento do Império Soviético, da política da guerra fria (détente) dividia o mundo em dois blocos, e o espectro das revoluções socialistas era um fato previsível, como de fato a história veio confirmar nas duas décadas subsequentes. Não sabemos se o neoliberalismo será de fato uma superestrutura ideológica e política do modo de produção capitalista, conforme a inteligente hipótese de Göran Therborn (6) , mas de qualquer maneira tem sido assim que a mídia globalizada apresenta o neoliberalismo, como revolucionário agente da modernidade, olimpicamente vitorioso e irreversível. O intervencionismo estatal guarda a marca das políticas dos Estado-Nação nos quais os conflitos de classe tenderam a um grau aceitável de institucionalização. Como a luta de classes não pode ser contida em formas jurídicas estanques, e como a inscrição constante de princípios jurídicos universalizantes nas leis estatais acaba por se constituir como um obstáculo à racionalidade instrumental do Poder Executivo neoliberal, este se revolta contra o Poder Judiciário, ou ao menos contra os elos de eticidade residentes no mesmo, contrários à dilapidação das instituições jurídico-políticas em curso pelo estado-mínimo, um estado máximo do Capital. A idéia de privatização presente nas políticas neoliberalizantes refere-se ao objetivo primeiro: a redução do déficit fiscal. Para tal tenta-se aplicar, embora nem sempre no rítmo almejado, o receituário do Consenso de Washington. Os cortes incidem sobre os gastos sociais (educação, saúde, previdência), seguidos da compulsiva venda do patrimônio público (empresas estatais), a preços desvalorizados, tendo como exemplo maior o caso da Vale do Rio Doce. O neoliberalismo deu com os burros n’água na sua experiência piloto, o Chile, como também fracassou no México e na Argentina, tendo dificuldades de implementação mais acelerada, em razão da existência de partidos políticos e centrais sindicais de esquerda articuladas. Na Europa a Suécia e a Aústria fogem do manual neoliberal, e apresentam uma performance de políticas sociais mais equilibradas que os outros países, nos quais aumenta a marginalização com as medidas de desmonte lento e gradual do Wellfare State. II.2.1.a. A globalização neoliberal: Ocidentalização do mundo ou neotribalismo? A retórica neoliberal é eufórica no que diz respeito à racionalização a que se atribui: a ocidentalização irreversível do mundo. Tudo parece muito óbvio. Anúncios da Benetton, Forum, MacDonalds e tantos outros outdoors parecem condenar as culturas locais (culinárias, indumentárias, etc) à lata do lixo. Milhares de chineses amontoam-se em cinco quilometros de fila para comer um Bic Mac, e a pergunta que fazemos é a seguinte: esses chineses continuaram virgens? A ocidentalização do mundo é uma falácia porque ela ocorre somente para uma minoria incluída no projeto de consumo, e residualmente para os que (uma vez por mês ou por ano) consomem produtos citados acima. Na verdade. a « distribuição regressiva de riquezas »(7) é consequência das globalização neoliberal e traz uma radicalização e universalização da barbárie. Reagindo contra a uniformização de padrões culturais, negando a homogenização/banalização cultural que se segue à globalização do « novo liberalismo », renascem de forma acirrada conflitos religiosos (entre católicos e protestantes, na Irlanda, entre palestinos e israelenses, no Oriente Médio, entre tchechênios e russos, entre sérvios, bósnios e croatas, na Iugoslávia, somente para citar alguns dos mais de cinquenta conflitos bélicos em curso nos quatro cantos do mundo. O processo de globalização neoliberal, ao investir contra a ordem democrática, atentando contra o estado de direito constitucional, e ao implementar um modelo de organização política altamente concentradora de renda, acirra a luta de classes. Mas esse processo não tem sido realizado como planejado (mercado ideal como mercado real) para o caso brasileiro(8). Assim, ao dissolver as bases do Estado-Nação e atiçar pós-modernamente à descrença na cidadania, e a não promover a inclusão da maioria da população no contrato de modernização capitalista, acaba por cavar a sua própria sepultura a médio prazo. Daí resultar como mais interessante, ainda que não modelar, a outra possibilidade de modernização capitalista já em curso, como veremos. Edmundo Lima de Arruda Junior Edmundo Lima de Arruda Junior