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Judiciário e contemporaneidade. 
 
José Geraldo de Sousa Junior 
Vice-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília 
 
Assim como a sociedade, também as instituições passam por uma crise de fundamentos na 
transição entre a modernidade e o que vem sendo chamado de pós-modernidade. O direito e 
o sistema judiciário sofrem, numa tal conjuntura, das mesmas incertezas e já não servem de 
referência os paradigmas que os constituíram. 
Da contraposição entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigente e a 
normatividade emergente das relações sociais e da distinção entre a norma abstrata e fria 
das regras que regem os comportamentos e as normas concretas aplicadas pelos juízes, tem-
se acentuado a necessidade de se compreender novas condições sociais e novas condições 
teóricas, aptas a reorientar o conhecimento do direito e a atuação daqueles que o operam. 
Entre os elementos que determinam essas novas condições sociais e teóricas destacam-se a 
emergência dos novos movimentos sociais e dos novos sujeitos de direito neles 
constituídos, a configuração de novos conflitos e a designação de um efetivo pluralismo 
jurídico gerando formas inéditas de sociabilidades. 
Enquanto dimensão epistemológica, essa crise articula elementos de representação social 
acerca dos problemas que a determinam; de conhecimento do Direito e suas formas sociais 
de produção; de autopercepção no imaginário dos juristas acerca do significado exemplar 
das práticas sociais e profissionais que organizam a sua ação. E por que nesse processo se 
demarca uma distância entre o conhecimento do Direito e a realidade social, política e 
moral que o produz, abre-se uma perspectiva de crítica para poder-se edificar pontes através 
das quais transitem os elementos novos de apreensão e de compreensão do Direito, por 
meio de um trabalho consciente, apto a afastar o jurista das pré-noções ideológicas que 
moldaram uma concepção jurídica de mundo insuficiente para dar conta da complexidade e 
das mutações das realidades sociais, políticas e morais numa conjuntura de transição 
paradigmática. 
Pode dizer-se, assim, que tanto no plano do conhecimento do Direito, quanto no plano de 
formação do jurista, verifica-se uma espécie de recusa ao que se poderia chamar de mal-
estar da cultura jurídica, transformada em caleidoscópio de ilusões e de crenças e que 
acabaram por levar a um estiolamento dos modelos e paradigmas de racionalidades 
jurídicas fundadas sobre certezas e sobre a pseudo-segurança adquiridas ao preço do 
imobilismo científico e da eliminação do espírito crítico na formação intelectual do jurista e 
do operador do Direito. 
Por isso, recomendava Roberto Lyra Filho a necessidade, tanto no ensino quanto na 
pesquisa e na prática, de atenção a que eles visam a uma definição de posicionamento: ‘‘O 
simples recorte do objeto de estudo pressupõe, queira ou não o cientista, um tipo de 
ontologia furtiva. Assim é que, por exemplo, quem parte com a persuasão de que o Direito 
é um sistema de normas estatais, destinadas a garantir a paz social ou a reforçar o interesse 
e a conveniência da classe dominante, nunca vai reconhecer, no trabalho de campo, um 
Direito praeter, supra ou contra legen e muito menos descobrir um verdadeiro e próprio 
Direito dos espoliados e oprimidos. Isto porque, de plano, já deu por ‘não-jurídico’ o que 
Ehrlich e outros após ele, denominaram o ‘direito social’ (Lyra Filho, Roberto, ‘‘O Direito 
que se Ensina Errado’’, Editora Obreira, Brasília, 1980; ‘‘Pesquisa em que Direito?’’, 
Edições Nair, Brasília 1984. Esse mesmo autor pôde, assim, falar em ‘‘Direito Achado na 
Rua’’, apreendendo-o, tal como aparece em seus ‘‘O Que é Direito’’, Editora Brasiliense, 
São Paulo, 1ªedição, 1982; ‘‘Desordem e Processo: um Posfácio Explicativo’’, em Lyra, 
Doreodó Araujo, ‘‘Desordem e Processo. Estudos sobre o Direito em Homenagem a 
Roberto Lyra Filho’’, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986, ‘‘não como ordem 
estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em 
movimento’’, onde o Direito se constitui como enunciação da ‘‘legítima organização social 
da liberdade’’. 
Grande parte dessa crise repercute cotidianamente no sistema judiciário e na magistratura, a 
ponto de se configurar, por falta de compreensão de seus verdadeiros fundamentos, 
enquanto apenas alternativas funcionais sejam discutidas, a inusitada situação a que faz 
referência o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, segundo o qual ‘‘o 
Judiciário faz da lei uma promessa vazia’’, para aludir a uma espécie de perda de confiança 
no papel das instituições judiciárias e na capacidade de mediação dos conflitos a cargo da 
magistratura. Ao fim e ao cabo, uma crise decorrente do esgotamento do paradigma da 
cultura legalista de sua formação e da relevância de seu papel e de sua função social. 
Dessas questões trata o livro de Bistra Stefanova Apostolova, ‘‘Poder Judiciário: do 
Moderno ao Contemporâneo’’ (Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998, 25 págs). 
Ela situa a crise do sistema judicial dentro da crise da modernidade, analisando sociológica 
e filosoficamente os pressupostos da cultura jurídica que constitui o pensar e o agir dos 
juízes. Recorrendo a Nietzsche e a Weber, Bistra resgata do pensamento desses autores 
projeções para a constituição de modelos não-modernos de organização da vida em 
sociedade e de estruturação de personalidades, requisito para o advento de novas 
subjetividades em condições de demarcar um novo perfil da instituição judiciária e de 
impulsionar a transformação do imaginário e do protagonismo dos juízes. 
A autora parte da idéia do ‘‘não-esgotamento das energias utópicas’’, identificando 
experiências e esforços organizados de magistrados que buscam saídas para a crise em que 
mergulha o sistema judiciário. Ela extrai da análise dessas experiências condições sociais e 
condições teóricas que orientam para uma busca de renovação da função social da 
magistratura e da construção de um perfil ‘‘pós-moderno’’, consciente da crise e do seu 
sentido de superação: ‘‘Questionar os imperativos da cultura jurídica liberal, que se 
constitui como fator impeditivo de sua transformação em mediadores qualificados das 
novas formas de conflituosidade’’. 
O livro de Bistra Stefanova Apostolova foge, claramente, do lugar-comum que tem sido o 
espaço do debate sobre a crise do Judiciário e da magistratura. É certo que o trabalho 
focaliza o tema da função social dos Juízes no Estado Moderno e no Estado 
Contemporâneo, porém, sem perder de vista que a revitalização do Poder Judiciário 
pressupõe compreendê-lo como ‘‘agente político ativo na construção de uma nova ordem 
legal adequada aos tempos pós-modernos, nos quais o Direito e a Justiça são objeto de 
permanente luta, discussão e contextualização’’. 
Trata-se, em suma, de uma ‘‘chamada à cidadania’’, apelando ao exercício de um poder 
criativo dos juízes. Esta ‘‘chamada à cidadania’’ tem relação direta com a exigência de 
reeleitura da experiência democrática para o aprendizado de novas formas de convivência e 
de sociabilidade. A perspectiva democrática referida à Justiça não se coloca de forma 
diferente. Ela é também uma experiência de recriação permanente e de renovação das 
instituições que resulta na determinação de novos espaços públicos e condições para o 
debate, negociação e formação de novos consensos. Castoriadis afirma que uma sociedade 
justa não é a que estabeleceu leis justas definitivamente, mas a que assegura condições para 
que a questão da Justiça esteja sempre aberta ao debate. Em seu livro, Bistra Stefanova 
Apostolova fala da praxis de juízes em defesa do ‘‘não-esgotamento das energias 
utópicas’’. Uma praxis com a qual o jurista pode ainda fundar as bases de uma nova cultura 
e de uma nova função social, mais humanista, multidisciplinar, menoscolonizada, 
pluralista, apta a realizar as promessas do direito, de outro modo, uma promessa vazia. 
 
(artigo retirado da página http://www.solar.com.br/~amatra/josegeraldo_1.html )

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