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NEAD Núcleo de Educação a Distância Disciplina de Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história NEAD Núcleo de Educação a Distância 2 Sumário (Unidade 1) APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA• CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA HERMENÊUTICO• Hermenêutica - Origem e Significado do Termo1. A Compreensão Natural e Espontânea - o Mito2. O Bom Senso ou a Razão Natural3. As Formas de Manifestação da Razão na História (Teoria do Espírito)4. A Linguagem enquanto Veículo de Compreensão5. A Hermenêutica e os Vários Significados da Vida Cotidiana6. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA HERMENÊUTICA• Hermenêutica Teológica Antiga1. Hermenêutica Teológica Contemporânea2. Hermenêutica Filosófica Antiga (Platão e Aristóteles)3. Hermenêutica Jurídica Romana Antiga4. Período de Transição - Glosadores e Comentadores5. A Hermenêutica na Modernidade - Lei da Boa Razão6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS• NEAD Núcleo de Educação a Distância 3 Apresentação da disciplina Esta disciplina tem por objetivo apresentar a hermenêutica como um fenômeno universal, presente em todos os instantes da vida, transpondo-o, de forma sis- tematizada, para uma aplicação no campo do Direito. Visa discutir sobre a inter- relação que deve existir entre o Direito e as demais ciências da sociedade, a fim de justificar a importância da ampla formação do jurista como requisito para um melhor exercício da atividade interpretativa. Assim, para que compreenda melhor o nosso estudo, faz-se importante conhe- cer quais objetivos foram definidos para esta unidade. Objetivo Analisar a evolução histórica do problema da interpretação jurídica, • descrevendo suas etapas e estabelecendo as diferenças entre os con- ceitos de interpretação e hermenêutica. NEAD Núcleo de Educação a Distância 4 TEMA: CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA HERMENÊUTICO Você sabe o que trata a hermenêutica jurídica? Antes de falarmos em hermenêutica jurídica, devemos falar da hermenêutica em si mesma. O que vem a ser hermenêu- tica? É uma atividade da nossa mente, buscando entender alguma coisa que lemos, ouvimos ou algum fato que ocorre. É natural do ser humano estar sempre à procura de um sen- tido para as coisas e fatos do mundo em que vive. Seja no dia a dia, seja na leitura de um texto jornalístico ou literário, seja numa tarefa de estudo ou de trabalho, todas as vezes em que algo nos parece confuso, nós procuramos imediata- mente esclarecer o seu significado, solucionar as dúvidas. Esse esforço para chegar à compreensão é o que chamamos de hermenêutica. Em resumo, a hermenêutica é a ciência que se preocupa com o fenômeno da compreensão humana. Iniciaremos, assim, o nosso estudo de hermenêutica jurídica, fazendo uma análise preliminar sobre a hermenêutica em geral, abordando desde o início deste processo na nossa vida pessoal, cotidiana, passando pelos diversos rumos que ela tomou na so- ciedade através dos tempos, bem como pelas demais áreas do conhecimento, nas quais ela tem atuação destacada, até nos apro- ximarmos, pouco a pouco, da integração dessas diversas áreas científicas com a área jurídica propriamente dita. Passemos ao sig- nificado da palavra hermenêutica. 1 HERMENÊUTICA - ORIGEM E SIGNIFICADO DO TERMO O termo hermenêutica provém do verbo grego hermeneuein, que tem o significado de anunciar, interpretar ou esclarecer. Refere- se também às atividades de tradução, na medida em que traduzir, Unidade 1: Origem e história NEAD Núcleo de Educação a Distância 5 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história também, é uma forma de interpretar. Não há certeza, mas só pro- babilidade, de que esta palavra derive do nome do deus Hermes, o mensageiro dos deuses na mitologia grega. Curiosidade Também entre os gregos, era muito famoso e prestigiado o Oráculo de Delfos, no templo do deus Apolo, aonde as pesso- as de diversas regiões da Europa e da Ásia iam em busca de saber as coisas do seu futuro e recebiam, através da pitonisa, uma mensagem dos deuses, a qual precisava ser interpretada pelos sacerdotes do templo. O termo “hermenêutica” referia- se, desde então, a uma dimensão religiosa: a compreensão e interpretação de uma palavra divina. Consulte na Internet e saiba mais sobre o Oráculo de Delfos. É por isso que a palavra “hermenêutica” foi primeiramente em- pregada no campo teológico, passando daí para a filosofia, e desta, para as demais ciências, inclusive para o Direito. Assim, a herme- nêutica se aplica no estudo dos textos bíblicos, dos escritos dos fi- lósofos antigos e modernos, das obras literárias em geral, dos tes- temunhos históricos, dos velhos e novos textos legislativos, etc., pois todos devem ser compreendidos corretamente e interpretados para uma melhor compreensão do seu sentido. Conforme se pode verificar, a hermenêutica está sempre liga- da à interpretação, pois se reporta à compreensão de algum significado nas diversas áreas da vida humana. Todavia, her- menêutica e interpretação não são palavras sinônimas. A hermenêutica é uma espécie de teoria geral da interpretação, • sendo por isso uma ciência interdisciplinar, já que se aplica a diversas áreas do conhecimento. A interpretação será assim a aplicação da teoria geral (herme-• nêutica) para a compreensão de um fato concreto, de um texto, de uma expressão linguística. NEAD Núcleo de Educação a Distância 6 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Também no que diz respeito ao Direito, a hermenêutica jurí- dica tem um sentido mais amplo e teórico, buscando a sistema- tização dos processos adequados para a captação do sentido e da extensão das expressões jurídicas, utilizando-se de bases filosófi- cas. Já a interpretação no Direito é a aplicação prática da herme- nêutica jurídica. Mediante a interpretação, aparece mais claramen- te um certo sentido oculto nas palavras da lei. Exemplo Por isso, como exemplo, podemos citar que o comportamento do intérprete não pode ser passivo, pois não se trata ape- nas de um esclarecimento linguístico de termos e expres- sões. “Assim, interpretar é exercer uma função mediadora, através da qual o intérprete compreende o sentido de um texto que se lhe apresenta como problemático. A conclusão do intérprete, nesse sentido, não é uma dedução silogística, mas uma decisão ou eleição entre diferentes possibilidades de interpretação” (ANDRADE, 1992, p.09). A hermenêutica e a interpretação, portanto, têm suas origens não no conhecimento científico, mas nas vivências e experiências naturais dos seres humanos, sejam eles letrados ou ignorantes. Daí o porquê de suas primeiras manifestações ocorrerem no cam- po religioso. Passamos a examinar uma das formas religiosas mais primitivas do ser humano: os mitos. 2 A COMPREENSÃO NATURAL E ESPONTÂNEA: O MITO As formas mais primitivas do esforço de compreensão do mun- do realizado pelos seres humanos são conhecidas como mitos. Mito quer dizer conto. As mais antigas explicações para os acontecimen- tos eram feitas em formas de fábulas, narrações, epopeias. Todos os povos sempre produziram seus contos, suas lendas, seus perso- nagens extraordinários. NEAD Núcleo de Educação a Distância 7 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Exemplo Na Grécia antiga ou nos sertões do Nordeste, encontramos esses personagens, tornando assim o mito uma presença constante e viva na mentalidade do povo simples, que povoa o seu mundo com ídolos benfazejos e malfazejos, criações fantásticas de sua imaginação exuberante. Perante a cultura formal, essas práticas e costumes são conhe- cidas como folclore. No entanto, na mente de quem as pratica, elas são experiências vitais concretas e cheias de significados, os quais são constantemente explicitados nas conversas e na maneira de explicar os acontecimentos do dia a dia. Esta é a mentalidadebási- ca do nosso povo mais simples, que busca sempre uma explicação religiosa para todos os fatos. Ninguém sabe ao certo quando começaram os mitos, a sua origem se perde na penumbra da pré-história, mas podemos fazê-la coincidir, ao menos virtualmente, com o acontecimen- to chave, que demarcou inexoravelmente o surgimento da espécie humana, um acontecimento de extraordinária impor- tância no longo caminho da evolução do homem, que foi o despertar da consciência, do pensamento reflexivo, da ca- pacidade de pensar racionalmente. Nos primórdios, o homem era aterrorizado e subjugado pelas forças da natureza. Aos poucos, o homem começa a compreender que o raio incendiário, a tormenta voraz, o mar tempestuoso ou o sol que escurece no meio do dia não são fenômenos aleatórios, mas têm alguma causa, obedecem a uma lei misteriosa, a alguma auto- ridade poderosa da qual depende a vida de tudo e de todos. Não sa- bendo determinar com clareza qual seria esta causa, o homem pas- sa a atribuí-la a deuses, a seres imaginários, ao destino, ao senhor da terra, ao espírito cósmico, não importa qual seja a denominação ou a personificação que estas forças passem a ter, elas funcionam como explicação e como origem para tudo o que ocorre. NEAD Núcleo de Educação a Distância 8 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Dessa forma, a explicação advinda do mito é, geralmente, ab- surda, irracional e até contraditória. Mas isto é o que menos importa. O que nos interessa aqui não é aquilo que está sendo afirmado, mas o fato de que, por trás desta afirmação, há um esforço de correlacionar um efeito a uma causa, de descobrir um nexo entre as coisas e a sua origem mais profunda. Por outras palavras, ao construir seus mitos, o ser humano está ao mesmo tempo produzindo uma interpretação prática dos fenô- menos cósmicos, com base em uma compreensão natural, presente em todas as pessoas racionais, independentemente de estudos ou de formação escolar, capacidade essa também chamada de senso comum ou bom senso, que não são outra coisa senão um exercício elementar da razão natural. 3 O BOM SENSO OU A RAZÃO NATURAL Com a evolução dos seres humanos e o desenvolvimento da vida social, a compreensão mitológica foi substituída por uma for- ma natural de manifestação da razão, que se chama de senso co- mum ou bom senso. De acordo com o pensador francês René Des- cartes (séc XVII), todos os seres humanos têm uma razão natural que se evidencia pela capacidade de saber distinguir o verdadeiro do falso, o bem do mal, isto é o que se denomina o bom senso ou a razão, e é naturalmente igual em todos os homens. Comentário A diversidade das opiniões não provém do fato de uns serem mais racionais do que outros, mas tão somente pelo fato de cada um conduzir o pensamento por diferentes caminhos. Pois não basta ter o espírito bom: o essencial é aplicá-lo bem. Dito de outro modo, a razão ou o bom senso é a característica básica que nos torna homens e nos distingue dos animais, quer NEAD Núcleo de Educação a Distância 9 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história dizer, é o uso espontâneo da racionalidade presente em cada um que torna o ser humano essencialmente diferente de todos os demais seres existentes. Ainda de acordo com Descartes, para uma maior eficiência na utilização deste recurso, que é natural em todas as pessoas, é ne- cessário organizar os procedimentos mentais, através da formação de um método que seja capaz de proporcionar meios para au- mentar gradativamente o conhecimento e levá-lo, aos poucos, ao mais alto grau que as limitações de cada um permita alcançar. O uso de um método não dá garantia absoluta de certeza, pois esta- mos sempre sujeitos a nos equivocar. No entanto, a sua utilização dá maior segurança e reduz as possibilidades de fracasso. O bom senso é a fonte de todos os métodos. O método é, assim, um caminho a ser seguido pelo estu- dioso com o intuito de encontrar a verdade no seu conheci- mento. No que concerne ao Direito, o método é o caminho que o jurista deve percorrer com o objetivo de chegar à solução mais justa e adequada para os casos concretos que lhe são apresentados. Assim, partindo de sua própria experiência intelectual, Descar- tes ensina um método que cada indivíduo deveria seguir para bem conduzir a sua razão, aplicável a todos os ramos do conhecimento, o qual ele expõe no seu livro Discurso sobre o Método (2001), e que poderia ser resumido nas regras seguintes: nunca aceitar uma coisa como verdadeira, sem antes investigar • a sua origem e os seus fundamentos; dividir as dificuldades em parcelas cada vez menores, de modo • que através da solução destas se consiga, aos poucos, a solução total do problema; conduzir o pensamento do mais simples para o mais complexo, • aumentando gradativamente os conteúdos e a sua abrangência; NEAD Núcleo de Educação a Distância 10 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história aprofundar ao máximo cada questão examinada, de modo a re-• duzir ao mínimo as possibilidades de erro. Essas regras propostas por Descartes, pela sua simplicidade, podem ser adotadas em todas as circunstâncias de dúvidas, da mesma forma que a sua obra “Discurso sobre o Método” deve ser uma leitura obrigatória para todos os estudantes de metodologia, não exatamente pelas regras propostas, mas pelo avanço que o livro representou na ocasião do seu lançamento em 1639. Com isso, Descartes demonstrou de que modo a racionalidade espontânea ou a razão natural evolui para se transformar na racio- nalidade científica. Para ele, quando o conhecimento espontâneo, produzido pela razão natural, é orientado sob a regência de um método qualquer, que organiza seus procedimentos e controla seus resultados, transforma-se em conhecimento científico. Descartes ainda entendia que a razão era igual em todos os seres humanos e se manifestava sempre da mesma maneira em qualquer época ou circunstância, o que foi criticado por outros pen- sadores, que entendiam a razão como um processo evolutivo atre- lado ao próprio desenvolvimento da sociedade através do tempo, o que se chama de história. Passemos, então, a analisar a evolução racional do homem dentro da história. 4 AS FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DA RAZÃO NA HISTÓRIA (Teoria do Espírito) Desde que o homem inventou a escrita, começou a escrever a história do seu tempo. Os egípcios, os babilônios, os sumérios, os hindus, os hebreus deixaram os legados escritos mais antigos que conhecemos. No mundo ocidental, esta prática começou com os gregos. Mas cada povo escreveu isso ao seu modo. O fato de escrever a própria história foi realizado de maneiras diferenciadas, de acordo com os padrões culturais de cada povo. NEAD Núcleo de Educação a Distância 11 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Exemplo A concepção grega da história, por exemplo, era influenciada pela visão que eles tinham da natureza, ou seja, o movimen- to cíclico de repetição dos fatos a cada período de tempo de- terminado, assim como se repetem as estações do ano. Eles acreditavam na eternidade da matéria e tudo ocorria dentro de uma grande e permanente reciclagem. De outro lado, os hebreus, que eram contemporâneos dos gregos mas habitavam outra região do mundo e tinham outra cultura, desenvolveram também outra concepção de história, porque não acreditavam na matéria eterna, mas tinham a ideia da criação do mundo por um ser superior. Os hebreus acreditavam que foi Jahwé o criador do mundo, conforme a narração conhecida através dos relatos bíblicos, e isso lhes dava uma outra visão dos fatos, os quais não se repetiam simplesmente (como pensavam os gregos), mas tiveram um princípio e se encaminhavam para um futuro promissor, gra- ças a uma aliança com Jahwé. Assim, os relatosbíblicos estão comprometidos com a tra- jetória do povo de Israel, voltada para o cumprimento desta aliança e da promessa de um Salvador. Dizemos, então, que os hebreus tinham uma consciência histórica, enquanto os gre- gos não a tinham. Para os hebreus, a história tinha um sentido em si mesma; para os gregos, a história era uma mera sucessão de acontecimentos no tempo. O primeiro pensador a chamar a atenção para o fato de que a his- tória tem um sentido implícito foi Santo Agostinho (séc. IV), na sua obra A Cidade de Deus. No entanto, foi Hegel (séc XIX) quem uniu as duas tradições grega e hebraica de compreensão da história, trans- portando isso para a filosofia através do seu conceito do espírito. Hegel instaurou um fator na história concreta da humanidade com o qual e dentro do qual tudo se encaminhava para um fim, que podia ser alcançado através da racionalidade. Ele chama esta NEAD Núcleo de Educação a Distância 12 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história “racionalidade” de espírito, tomando como referência a palavra grega noûs (mente, espírito). O espírito absoluto na história era o logos (razão histórica) que tornava possível a compreensão dela e sua marcha para um telos (finalidade). Mas não se trata de uma lógica pura, abstrata, matemática, trata-se de uma lógica diferente, densa em significados, que per- passa a história humana e comanda o homem, o qual através dela vê desfeita a antiga opacidade dos acontecimentos, possibilitando a compreensão do encadeamento dos fatos e, até certo ponto, a previsão deles. Esta nova razão filosofante avança na história para uma auto-reflexão absolutamente transparente. Resumo Em resumo, portanto, temos três formas de manifestação do espírito, enquanto razão histórica: 1. Espírito Subjetivo, na medida em que as pessoas são dotadas dessa capacidade de perceber o sentido subjacen- te nos fatos, nos objetos produzidos e nas outras pessoas e relacioná-lo com o telos, ou seja, com a direção em que a humanidade se desenvolve. ... Os gregos usavam a palavra logos como sinônimo de razão, palavra e noûs como sinônimo de enten- dimento, pensamen- to. Embora possam ser gramaticalmente equivalentes, a se- gunda tem alcance mais abrangente, indo além da pura razão. Daí o porquê dos estudiosos cos- tumam traduzir por “espírito”. Na sua obra Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel ex- plica esta sua teoria do espírito ou da razão histórica, se- gundo a qual há três níveis de compreensão racional da his- tória, ou três manifestações do espírito, isto é, esta razão histórica pode ser compreendida diretamente em si mesmo, em seu processo abstrato (logos = espírito absoluto) ou enquanto se manifesta em forma subjetiva (logos = pen- samentos e reflexões das pessoas) e em forma objeti- va (logos = obras e produções humanas) como espírito materializado. Este espírito objetivo é tudo aquilo que com- põe a história humana visível na cultura. NEAD Núcleo de Educação a Distância 13 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história ... 2. Espírito Objetivo, na medida em que a racionalidade humana como que se transfere para as obras que os seres humanos vêm produzindo ao longo dos tempos, tornando possível integrar a humanidade presente com as pessoas do passado, encontrando assim os elos que tornam a cadeia dos fatos historicamente compreensível 3. Espírito Absoluto, na medida em que o conjunto desses fatos evolui para um contexto mais amplo da racionalidade, que transcende a própria história e confere sentido às ações singulares dos homens, elevando-as ao patamar da raciona- lidade geral, no qual se integram e se consolidam em objetos e instituições que formam o patrimônio cultural de cada povo e da humanidade como um todo. Ao enfatizar a importância da história, Hegel chama a atenção também para a importância da cultura, porque esta é o resultado das ações humanas ao longo do tempo. Assim, numa perspectiva cultura- lista, todas as ciências que estudam os fenômenos sociais trabalham com objetos culturais, inclusive o Direito. Com efeito, a norma jurídica é também um objeto cultural, na medida em que ela está sempre re- ferenciada a circunstâncias concretas e a valores sociais, e o processo hermenêutico apresenta um condicionamento histórico e cultural. Ora, o principal veículo da cultura é o elemento linguístico, já que é através da linguagem que o homem expressa os conteúdos dos seus pensamentos. Este fato é claramente perceptível no Direito, uma vez que os textos jurídicos estão redigidos em linguagem comum ou natural, exatamente porque para cumprirem sua função social de- vem ser melhor compreendidos por todas as pessoas. Contudo, isso traz uma desvantagem por causa da ambiguidade e da polissemia da linguagem natural, criando-se assim uma situação problemática que reclama uma solução hermenêutica. A compreensão de expressões linguísticas, dentro e fora do Direito, só se dá através da interpretação, o que transforma a linguagem num elemento primordial da convivência humana, capaz de unir o abstrato NEAD Núcleo de Educação a Distância 14 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história das expressões linguísticas ao concreto dos fatos sociais. A linguagem é reconhecida, assim, como o elemento central e necessário das rela- ções sociais, pois é através da comunicação entre as pessoas que os diversos sentidos implícitos nas expressões se tornam claros. Nesse sentido, nota-se que a linguagem é o componente cen- tral e indispensável em todo processo de interpretação, cujos fundamentos são encontrados numa teoria filosófica da lin- guagem. Conforme veremos adiante no próximo tópico com as reflexões de Heidegger. 5 A LINGUAGEM ENQUANTO VEÍCULO DA COMPREENSÃO Heidegger é um pensador alemão do século XX. Na sua obra A Caminho da Linguagem (2003), ele destaca o papel fundamental que tem a linguagem para a vida humana em todos os seus aspectos, dos mais simples aos mais complexos, pois a linguagem não é apenas uma habilidade humana, ela traduz a própria essência do homem. Reflexão O homem é o ser que fala. Falamos quando acordados e em sonho. Falamos continuamente. Falamos mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando ouvimos e lemos. Falamos igualmente quando não ouvimos e não lemos e, ao invés, realizamos um trabalho ou ficamos à toa. Fala- mos sempre de um jeito ou de outro. Falamos porque falar nos é natural. Falar não provém de uma vontade especial. Costuma-se dizer que por natureza o homem é o ser vivo do- tado de linguagem. Essa definição não diz apenas que, den- tre muitas outras faculdades, o homem também possui a de falar. Nela se diz que a linguagem é o que faculta o homem a ser o ser vivo que ele é enquanto homem. Enquanto aquele que fala, o homem é homem. NEAD Núcleo de Educação a Distância 15 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história A linguagem pertence, assim, à vizinhança mais próxima do humano, pois é através da linguagem que o ser humano se re- conhece como pessoa e reconhece os outros. Não é, portanto, de admirar que, tão logo o homem faça uma ideia do mundo que se encontra ao seu redor, ele encontre imediatamente também a linguagem. É assim que o homem cria a linguagem e constante- mente a transforma com seu uso dinâmico e inovador, fato que a torna um organismo vivo, tanto quanto o seu próprio autor. O uso da linguagem está ligado diretamente e essencialmente à consci- ência que o homem tem do seu mundo. Importante O pensamento, linguisticamente estruturado, busca elaborar uma representação universal da linguagem, através da formação de conceitos universais. O universal, o que vale para toda e qualquer coisa, chama-se essência, termo criado por Aristóteles (em grego = ousia). Desde então, prevalecea opinião de que o traço fundamental do pensamento é representar, de maneira universal, o que possui validade universal. Assim, é possível estudar cientificamente a própria linguagem, como é o caso do que se faz ao elaborar teorias acerca da linguagem. Fazer uma colocação sobre a linguagem não significa tanto con- duzir a linguagem em si, mas conduzir a nós mesmos para o lugar de seu modo de ser, de sua essência. Apreender a linguagem é compreender a cultura de um povo, pois ela é muito mais que um mero código de comunicação. No bojo linguístico se aninha a pró- pria “alma” do povo que a utiliza, de modo que adquirir a compe- tência de falar em outra língua, além da sua própria, é acrescer à sua personalidade valores e modos de pensar pertencentes a outra cultura, a outro universo existencial histórico e compreensivo. Desse modo, a linguagem é o fator que aglutina as pessoas e torna possível a sociedade humana. Grupos humanos que falam a mesma linguagem constituem uma comunidade e ... NEAD Núcleo de Educação a Distância 16 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história ... nela constroem a sua vida, produzem objetos e se reprodu- zem geneticamente num ambiente de conteúdos e valores que compõem um conjunto de vivências e significados asso- ciados ao dia a dia de uma coletividade, criando um ambiente propício para o desenvolvimento do nosso corpo e da nossa mente, ou seja, o nosso ambiente vital ordinário, aquele com o qual nos identificamos e dentro do qual nos sentimos à von- tade. Ao conjunto de todos esses elementos físicos, culturais e valorativos dentro do qual todos nós somos criados e que constitui a base concreta do nosso pensamento e das nossas ações, é o que chamamos de vida cotidiana. 6 A HERMENÊUTICA E OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DA VIDA COTIDIANA Na vida pessoal de cada um de nós, as primeiras formas de compreensão do nosso mundo são produzidas no local de nos- sa vida. O cotidiano ou a vida cotidiana se refere a um conjunto de atividades exercidas no espaço vital das pessoas, onde se desenvolvem as diferentes práticas sociais e suas respectivas socialidades através dos tempos. Nos dizeres de Agnes Heller (1985), pensadora marxista húngara, é o ponto de encontro do meu ser humano-individual (consciência individual) com o ser humano-genérico (consciência coletiva). É o contexto no qual exercitamos a nossa compreensão no nível espontâneo e imediato, através do relacionamento com os que nos são mais próximos. Por isso, a vida cotidiana é a vida do homem inteiro, não se podendo dissociar o cotidiano pessoal da história da sociedade, pois os fatos históricos nascem no cotidiano e remetem à ideia de repetição. Contudo, esse espaço não é só de repetição e reprodução, mas também de produção de novos significados, no qual Agnes Heller (1985) descobre quatro importantes caracterís- ticas da vida cotidiana. NEAD Núcleo de Educação a Distância 17 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história A primeira e mais importante, segundo Heller (1985): [...] é a espontaneidade, não querendo dizer com isto que todas as atividades do cotidiano o sejam no mesmo nível, mas que existe uma tendência marcante do cotidiano para a espontaneidade (p.30). Ela é absolutamente indispensável nas atividades rotineiras, pois se nos dispuséssemos a refletir sobre o conteúdo de verdade de cada uma das atividades que realizamos cotidianamente, não sobraria tempo para realizá-las. Pode-se afirmar que a espontaneidade das atividades rotineiras é condição de possibilidade das outras ações de maior responsabilidade, na medida em que libera o indivíduo para refletir sobre estas. A segunda característica da vida cotidiana é a probabilidade, baseada na confiança em relação às outras pessoas. Do mesmo modo que ocorre com a espontaneidade, o indivíduo não pode- rá calcular com precisão os rumos e as consequências das suas ações, devendo confiar-se nas ações das outras pessoas. Isto co- loca sempre em evidência a possibilidade do fracasso e por isso as atividades da vida cotidiana têm sempre o tempero do risco. Não se trata de um risco assumido irresponsavelmente, mas um risco imprescindível e necessário para a vida. Do mesmo modo, não se trata de uma probabilidade calculada cientificamente. Exemplo Se uma pessoa necessitasse calcular matematicamente a rela- ção tempo/velocidade de um veículo em movimento cada vez que precisasse atravessar a rua, não conseguiria sair do lugar. Trata-se, pois, de uma probabilidade intuitiva e natural, que existe em todas as pessoas, mesmo nas iletradas. A terceira característica da vida cotidiana é o economicismo. Podemos afirmar que este é o motor das ações humanas, pois toda NEAD Núcleo de Educação a Distância 18 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história categoria da ação e do pensamento manifesta-se e funciona exclu- sivamente enquanto é imprescindível para a simples continuação da cotidianidade. Ações supérfluas serão automaticamente cance- ladas e esquecidas, num processo contínuo de aperfeiçoamento das rotinas do dia a dia. O conjunto dessas três características, que se implicam mu- tuamente, permite-nos falar de uma unidade imediata entre pensamento e ação na cotidianidade, uma unidade pragmática na qual existe a total identificação entre o “correto” e o “verda- deiro”. É isto que forma o plano ético das relações sociais. A quarta característica do cotidiano é o uso de precedentes. O precedente é fortíssimo indicador de ação na esfera da cotidiani- dade. A repetição de ações adotadas por outras pessoas em situa- ções semelhantes é muito adotada como critério para a ação pes- soal. Não há nada demais nisso, fato que está associado à ideia da economicidade acima exposta. O uso de ações exitosas de outras pessoas é sempre um indicador que dá segurança à pessoa, numa primeira experiência em determinado assunto. Essas atitudes só se tornam impeditivas e improdutivas quando a pessoa se deixa dominar tanto por elas, de modo que não consegue mais captar o sentido do novo e do irrepetível próprios de cada situação. O conjunto dessas atividades práticas do cotidiano forma aqui- lo que comumente se chama de cultura popular, ambiente no qual vivem todas as pessoas de uma determinada comunidade e que influencia de modo mais marcante essas pessoas quanto menor for o seu nível de instrução. Do ponto de vista das ciências sociais, essas ações formam a substância da história, na medida em que a história é o processo de explicitação da essência huma- na dentro da irreversibilidade dos acontecimentos sociais. Portanto, o cotidiano é a nossa história viva, na medida em que sintetiza a própria estrutura da sociedade em que vivemos e dentro da qual nos tornamos o que somos en- ... NEAD Núcleo de Educação a Distância 19 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história ... quanto pessoas. Nunca podemos esquecer que essas culturas populares constituem as bases para a nossa visão do mundo no decorrer de toda a existência, herdada da comunidade na qual fomos criados e educados, pois é dela que assimilamos os conteúdos e os valores permanentes nas nossas vidas. Dentro dessa visão culturalista, o Direito se apresenta na vida cotidiana das pessoas nos conceitos espontâneos de justo e injusto, de legal e ilegal, de proibido e permitido, de obrigatório e facultati- vo, independentemente de alguém ter lido ou estudado sobre isso. Eles brotam naturalmente na mente das pessoas, a partir de suas relações cotidianas, com base nos costumes sociais e nas práticas aceitas ou reprovadas dentro da comunidade. Com base nessas vi- vências cotidianas, todas as pessoas sabem distinguir claramente o que é o “meu direito” e o “direito do outro”, mesmo quando agem concretamente infringindo essa distinção. A vidacotidiana produz nas pessoas uma espécie de nor- ma jurídica genérica implícita, pela qual estas avaliam as próprias ações e as ações alheias e são capazes de expres- sar vereditos imediatos e rigorosos, como se vê em certos fatos que despertam o clamor popular e o sentimento de revolta perante ocorrências violentas de grande repercus- são. Percebe-se nesses casos uma espécie de hermenêuti- ca espontânea, totalmente levada pela emotividade e pelo imediatismo, demonstrando assim a presença de um tipo de direito vivo, pré-científico, na vida cotidiana. NEAD Núcleo de Educação a Distância 20 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história TEMA: DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA HERMENÊUTICA Nesse segundo momento da unidade I, abordaremos a história da hermenêutica, a partir de três vertentes do seu desenvolvimento: na teologia, • na filosofia e • no direito.• Demonstraremos que existe uma vinculação entre estes três ramos da hermenêutica desde a antiguidade, de modo que eles se influenciaram reciprocamente nos diversos períodos históricos. Considerando que, em todas as sociedades, as normas jurídicas foram constituídas a partir de normas religiosas primitivas, a ativida- de interpretativa tinha, nos seus primórdios, características religiosas e era realizada por sacerdotes, como parte de sua tarefa específica. Foram os romanos os primeiros a fazerem aproveitamento da hermenêutica filosófica grega, através da atividade dos jurispru- dentes. A partir de então, o desenvolvimento da hermenêutica ju- rídica esteve atrelado à evolução da hermenêutica filosófica, inclu- sive na formação da hermenêutica jurídica contemporânea, que sofreu fortes influências dos filósofos alemães. 1 HERMENÊUTICA TEOLÓGICA ANTIGA Conforme já apresentamos, não só a palavra “hermenêutica” provém do âmbito religioso (teológico), mas também o proble- ma objetivo da hermenêutica começou com as questões da in- terpretação da lei judaica (a Torah). A questão da correta inter- pretação da lei religiosa escrita sempre foi motivo de estudos e discussões entre os rabinos desde a antiguidade judaica. NEAD Núcleo de Educação a Distância 21 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Assim, sabemos pelos Evangelhos da existência dos “escri- bas”, de sua importância e influência, da mesma forma como das várias escolas e correntes da exegese no antigo judaísmo (fariseus, saduceus, zelotes, etc.). Os Evangelhos relatam de- bates e discussões de Jesus Cristo com os intérpretes da lei ju- daica, como, por exemplo, o caso da moeda do tributo a César, o caso de comer sem lavar as mãos, o caso do trabalho no dia de sábado, dentre outros. Na início da teologia cristã, na fase da exegese patrística (as- sim chamado o período dos Padres da Igreja entre os séculos II e III) surgiu na realidade plenamente o problema hermenêutico entre os Padres Gregos, através da oposição entre a escola de Antioquia, que se atinha ao sentido histórico literal da narração bíblica, e a escola de Alexandria, que procurava atingir um “sen- tido espiritual” mais elevado, e uma exposição simbólico-alegó- rica. Esta dualidade de tendências continuou entre os Padres La- tinos, com São Jerônimo de um lado e Santo Ambrósio do outro, ao passo que Santo Agostinho procura aliar esses dois modos de interpretar. A compreensão patrística da Escritura repercute, sob várias formas, na teologia da Idade Média. A partir do começo da era moderna, o problema se agrava. A Reforma Protestante rejeita as interpretações dos padres medievais e apregoa a exigência de uma volta à pura palavra da Escritura. Conforme Lutero, a Bíblia não deve ser exposta e interpretada segundo o ensinamento tradicional dos Padres da Igreja, mas apenas compreendida por si mesma, pois ela é sui ipsius interpres, ou seja, intérprete de si mesma. Esta nova maneira de interpretar é conhecida como o princípio da scriptura sola (a escritura sozinha) e representa um novo princípio hermenêutico, contra o qual a Igreja Católica se pronunciou expressamente no Concílio de Trento, afirmando que cabe somente à Igreja a interpretação da Escritura. Enquanto isso, a tendência inaugurada por Lutero passa por sucessivos desdobramentos, fazendo surgirem diferentes denominações religiosas. Escolas de Antioquia e de Alexandria - Duas escolas de te- ologia da antiguida- de, uma localizada em Antioquia (Síria) e a outra em Alexan- dria (Egito), onde se iniciaram os estudos bíblicos antigos e que exerceram im- portante influência sobre a interpreta- ção da Bíblia. Movimento religioso surgido no século XVI e liderado por Martinho Lutero com o objetivo de refor- mar a Igreja Católi- ca, o que originou o Protestantismo. Concílio convoca- do pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiásti- ca, no contexto da reação da Igreja Ca- tólica à divisão en- tão vivida na Europa quanto à apreciação da Reforma Protes- tante, razão pela qual é denominado como Concílio da Contra-Reforma. NEAD Núcleo de Educação a Distância 22 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Dessa forma, enquanto a Igreja Católica permanece fiel ao modelo interpretativo dos padres medievais, entre os protes- tantes o problema toma-se mais grave com o advento do pen- samento iluminista, que penetra lentamente no pensamento dos teólogos protestantes. John Locke e os livres pensadores ingleses do início do século XVIII mostram-se claramente tendenciosos a reduzir o cristianismo ao plano de uma religião da razão natural e, portanto, excluir todo caráter de sobrenatural e de mistério. De acordo com isso, a Sagrada Escritura deve ser entendida ape- nas no sentido de uma pura religião racional, excluindo-se tudo o que ultrapassa essa ideia. Cria-se então o princípio hermenêutico da racionalidade, aceitando apenas o que se aprende e esclarece racionalmente, com a eliminação dos conteúdos sobrenaturais da Bíblia. 2 HERMENÊUTICA TEOLÓGICA CONTEMPORÂNEA Exemplo Seguindo os passos do pensamento iluminista, que provocou uma verdadeira reviravolta na hermenêutica bíblica, abriu-se definitivamente o espaço para uma interpretação crítica da Bíblia. Um significativo exemplo disso foi o livro “Vida de Jesus”, de David Strauss (1835), no qual é apresentada uma nova versão dos ensinamentos de Cristo à luz da pura razão, fazendo uma distinção entre o Jesus histórico e o Jesus da fé. A radicalidade de sua posição (Strauss achava que quase tudo o que está nas Escrituras pertence ao mito e deve ser cientificamente superado) desencadeia uma violenta discussão entre os teólogos, conduzindo à introdução do que foi denominado de método histórico-crítico no campo da exegese bíblica. NEAD Núcleo de Educação a Distância 23 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Importante Segundo este método, a interpretação da Bíblia devia ser contextualizada, abrangendo não apenas o que estava escrito, mas ainda as influências sociais, históricas e culturais a que estavam submetidos os autores dos textos sagrados. Passou-se a entender a Bíblia não como um livro “ditado” por Deus, como se fosse um texto psicografado, mas como sendo uma mensagem divina escrita em linguagem humana. Aliás, isso se relaciona com a descoberta de documentos antigos até então desconhecidos e com a irrupção de toda a pesquisa histó- rica, histórico-cultural e histórico-religiosa do século XIX, pela qual se ficou conhecendo sempre melhor a história do Antigo Oriente, suas línguas e suas culturas, sua literatura e formas literárias, suas religiões, seus mitos religiosos e formas de expressão (gêneros lite- rários). Assim, se começam a compreender os livros da Bíblia em seu ambiente, na história de seu surgimento e em sua peculiaridade, de acordo com umavisão mais moderada, embora alguns seguidores mais radicais da “teologia liberal” do protestantismo, em nome do cientificismo, insistissem em investigar de um modo puramente his- tórico e crítico os livros da Sagrada Escritura, excluindo tudo quanto não fosse apreensível ou aprovado por esse método científico, rejei- tando todos os milagres e fatos sobrenaturais ali descritos. Contra esse radicalismo, ergue-se o protesto do “movimento hermenêutico”, que surge da oposição contra o predomínio exclu- sivo da escola histórico-crítica, a saber, da ideia de que nessa con- sideração e investigação da Escritura não há dúvida de que se fez algum trabalho valioso, esclarecendo-se muita coisa pelo contexto histórico, mas que não se alcança, e muito menos se entende, o que é precisamente próprio, ou seja, o “sentido” da Escritura, aqui- lo que foi pensado e expresso. Além da pesquisa histórica, impõe-se a tarefa de uma com- preensão mais profunda, à qual unicamente se abrirá o ver- dadeiro sentido da palavra de Deus. NEAD Núcleo de Educação a Distância 24 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Assim, o movimento hermenêutico conseguiu aproximar os es- tudos bíblicos nas teologias católica e protestante, fato que foi ob- servado com maior clareza a partir de 1943, quando o Papa Pio XII (Encíclica Divino Afflante Spiritu) permitiu os métodos científicos de investigação e interpretação da Escritura e ainda na Constitui- ção Dei Verbum do Concílio Vaticano II (1965), a qual exige que se veja e que se compreenda os estudos científicos da Escritura em íntima união com a tradição, porque a única revelação de Deus nos é transmitida na Escritura e na tradição. Acentua-se igualmente o caráter humano e divino da Escritura. Enquanto ela é palavra humana pronunciada e transmitida atra- vés da história, deve ser investigada histórico-criticamente com os meios da ciência moderna, quanto à origem histórica de cada um dos livros e quanto à maneira de pensar e de falar aí vigente. Ape- sar disso, ela constitui um todo em que se manifesta a mensagem salvadora de Deus, mensagem transmitida na fé da Igreja e que continua a operar e se interpreta na vida e na doutrina da Igreja, devendo, por isso, ser entendida a partir desse contexto total e vivamente histórico. Dentro dessa linha de entendimento, surgiu na América La- tina uma nova “leitura” dos textos bíblicos, abertos para a realidade típica dos países do terceiro mundo, que veio a cha- mar-se Teologia da Libertação e representa uma tentativa de interpretar a Escritura a partir da vivência das pessoas dos países subdesenvolvidos, mostrando a mensagem cristã comprometida com os autênticos movimentos de superação da pobreza e da libertação do domínio econômico dos países mais poderosos. Essas reflexões entraram em choque com as escolas da exegese bíblica da Europa, gerando conflitos internos dentro do cristianismo, com momentos de tensão e incerteza que ainda não foram de todo superados. O Concílio Vatica- no II ocorreu entre 1961 a 1965 convo- cado pelo Papa João XXIII e concluído pelo Papa Paulo VI. Divino Afflante Spiri- tu (Ao soprar do Di- vino Espírito) - Carta doutrinária do Papa Pio XII tratando dos estudos da Bíblia, escrita em 1943. NEAD Núcleo de Educação a Distância 25 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história 3 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA ANTIGA (PLATÃO E ARISTÓTELES) Na filosofia grega antiga, a hermenêutica era vista primordial- mente sob um caráter linguístico, voltada para a transmissão de uma mensagem. Trata-se de anunciar, esclarecer, traduzir algo que não está claro. Portanto, não se trata ainda de uma ciência herme- nêutica, mas de uma simples técnica. Os filósofos gregos enten- deram a hermenêutica apenas no âmbito da palavra, do discurso, portanto, no plano puramente literal. Para Platão (séc. IV a.C.), a hermenêutica é uma técnica de compreensão que fica em segundo plano, já que as palavras nunca poderão nos dar um conhecimento verdadeiro sobre o mundo, uma vez que somente a ideia (pensamento) pode alcançar a verdade, entender e conhecer o real. Do mesmo modo que o artesão copia a obra de um artista, o intérprete faz uma imitação da ideia atra- vés da palavra. Não produzindo saber, por ser mera repetição, a hermenêutica em Platão nunca poderia ajudar o homem a alcançar aquilo que ele coloca como meta de sua vida, o conhecimento do bem. No seu diálogo Crátilos, Platão expõe a origem e a utilização das palavras como mera convenção social, sem estarem relaciona- das com as realidades verdadeiras, que são as ideias. Por isso, segundo Platão, a hermenêutica não estaria relacio- nada ao processo do conhecimento das coisas, mas apenas ao processo de comunicação entre as pessoas. Aristóteles, discípulo de Platão, desenvolveu um pensamento diferente do mestre, mas também relacionado com o processo co- municativo. Na sua obra “Peri Hermenéias” (acerca da interpreta- ção), ele exibe um estudo sobre os conceitos e proposições, que apresentam uma característica de verdade. Uma proposição será verdadeira se corresponder com os fatos da realidade, ou seja, quando a comunicação descreve exatamente aquilo que ocorre no mundo, para que, com isso, outra pessoa também possa reproduzir na sua mente o que foi descrito por alguém. NEAD Núcleo de Educação a Distância 26 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Portanto, Aristóteles faz uma relação entre os conceitos e a rea- lidade (mundo), pois ele entende que o processo do conhecimento se faz através de abstrações mentais daquilo que é adquirido por meio da experiência sensível (órgãos corporais). Porém, a herme- nêutica de Aristóteles não investiga a verdade ou falsidade do juí- zo, apenas a adequabilidade entre a linguagem e o pensamento. Neste sentido, de acordo com Aristóteles, a hermenêutica será uma parte da lógica, tendo um papel acentuadamente explicativo de esclarecimento de conceitos, não da aquisição de novos conhecimentos. Essas teorias filosóficas gregas, embora não vinculadas ao Di- reito, tiveram influência marcante sobre os jurisconsultos romanos a partir da República (sobretudo Cícero), os quais eram estudiosos e admiradores de Platão e de Aristóteles, estando portanto presen- tes nos primeiros tempos da formação do Direito Romano, através dos seus jurisprudentes. Na próxima unidade, estudaremos o desenvolvimento da her- menêutica filosófica moderna e contemporânea, bem como a sua aplicação ao Direito. 4 HERMENÊUTICA JURÍDICA ROMANA ANTIGA Os jurisconsultos romanos, apoiados nas ideias dos pensadores gregos, evoluíram o conceito de hermenêutica para a interpretatio (interpretação), através do trabalho dos “juris prudentes”. Com estes, a hermenêutica formal dos gregos transformou-se pela aplicação prá- tica em verdadeira criação do Direito. A interpretatio adentra o real e seu significado axiológico no momento da aplicação, pois se trata não apenas de entender um texto teórico, mas sobretudo aplicá-lo na prá- tica, isto é, não apenas entender o texto da lei, mas compreender o seu significado nos efeitos práticos produzidos na vida das pessoas. NEAD Núcleo de Educação a Distância 27 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Importante Alguns estudiosos consideram a interpretatio romana como categoria básica da hermenêutica jurídica que se desenvol- veu depois na idade média, tendo estabelecido também mé- todos de interpretação, tais como o método analógico, que busca explicitar o que está implícito na norma, o método gramatical, que busca a conexão das partes da lei, o méto- do lógico conjugado com o método histórico, que vincula a lei atual com as leis anteriores, com o método teleológico, que persegue a finalidade da lei, bem como o método siste- mático, referente à extensãodos conceitos ao seu máximo alcance, sempre buscando o mais correto sentido da lei. Dessa forma, a interpretatio romana buscava desvendar o sen- tido e o alcance da norma, através da análise de três elementos fundamentais, para sua melhor compreensão: a) a • ratio legis, isto é, o motivo ou causa determinante da nor- ma, aquilo que se pretendeu atingir com a sua aprovação; b) a • mens legis, isto é, o pensamento da lei, a intenção, o signi- ficado social do seu conteúdo, por que e para que ela foi feita; c) a • occasio legis, isto é, o momento histórico do seu aparecimento, as condições concretas que determinaram o seu surgimento. A junção desses três elementos corresponde à interpreta- ção mais correta do conteúdo da norma. Acompanhe alguns exemplos de juristas romanos famosos. De acordo com o jurista Ulpiano, “a expressão ex legibus [de acordo com as leis] assim deve ser entendida: tanto de acordo com o espírito das leis, quanto pelas suas palavras”1. Esta citação re- 1 Expressão na língua original: Verbum ex legibus sic accipiendum est: tam ex legum sententia, quam ex verbis. (Digesto 50, 16, 6, 1) NEAD Núcleo de Educação a Distância 28 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história presenta a preocupação dos romanos com a interpretação verbal, também chamada de gramatical ou filológica, a qual, porém, não pode ser tomada isoladamente, privilegiando-se o espírito da lei, ou seja, a intenção do legislador. É do jurista Celso a formulação jurídica que sintetiza a impor- tância dada à interpretação analógica. Diz ele: “Preferencialmente e mais poderosa do que a palavra é a intenção de quem fala”2. Seguindo esse mesmo entendimento, afirma o jurisconsulto Sálvio Juliano, considerado um dos maiores de todos os tempos: “Naque- las coisas em que o direito se constituir contra a razão, não pode- mos seguir a regra jurídica”3. Também foi preocupação dos romanos a interpretação sistemá- tica. Neste aspecto, é significativa a afirmação de Celso: “É contra o direito civil responder ou julgar de acordo com uma pequena parte retirada da lei, a não ser que toda a lei seja considerada”4. A síntese de tudo isso encontra-se no conceito de aequitas (equida- de), como elemento norteador e ao mesmo tempo integrador da interpretação, seguindo o entendimento de Aristóteles. O mesmo Celso é o autor da formulação que melhor representa o conceito do direito romano clássico: “jus est ars boni et aequi” (o direito é a arte do bem e da equidade). A produção jurídica da Roma antiga chegou até nós através do trabalho dos juristas do século VI d.C., encarregados pelo impera- dor Justiniano de compilar e atualizar todos os escritos dos juris- consultos clássicos, os já citados e outros, num total de 39, tendo como resultado o famoso Código de Justiniano (também conhecido como Corpus Juris Civilis). Para Aristóteles, a equidade é o direito mais justo, a espé- cie mais perfeita da justiça, a expressão do justo natural, em relação ao caso con- creto, ou melhor, é a justiça concreta. 2 Expressão na língua original: Prior et potentior est, quam vox, mens dicentis. (Digesto, 33, 10, 7, 2) 3 Expressão na língua original: In his quae contra rationem jurisconstituta sunt, non possumus sequi regulam iuris. (Digesto, 1, 3, 15) 4 Expressão na língua original: Incivile est, nisi tota lege perspecta, uma aliqua particula eius proposita judicare vel respondere. (Digesto 50,17,1) NEAD Núcleo de Educação a Distância 29 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Curiosidade Para se ter uma ideia da vastidão deste trabalho, observe- se que a obra se compunha originalmente de três partes, as quais posteriormente foram reunidas num grande compên- dio. Eram as Institutas ou Instituições (4 livros com 98 títu- los), o Digesto (50 livros com 408 títulos e 150 mil verbetes) e o Codex (12 livros com 775 títulos e 4.700 constituições imperiais). A quarta parte foi acrescentada no século XVI, formada com as leis baixadas pelo próprio Justiniano (as Novellas), em número de 168. Mesmo após a queda do império romano, as leis romanas conti- nuaram a ser utilizadas no território europeu, nas terras dos bárba- ros, os quais mesclaram a legislação romana às suas próprias e aos costumes dos povos locais, dando origem assim às Leis Romanas Bárbaras, que vigoraram na Europa nas regiões dominadas por eles. Destas, a mais importante foi a Lex Romana Visighotorum, também chamada de Breviário de Alarico, por ter sido composta por ordem deste imperador dos visigodos. Enquanto isso, na Itália, surgiram os primeiros estudiosos técnicos do direito romano: os glosadores. 5 PERÍODO DE TRANSIÇÃO - GLOSADORES E COMENTADORES Por influência dos bárbaros, o Código de Justiniano espalhou- se por todo o território europeu, dispersando-se em bibliotecas de diversas cidades, as quais se localizavam em mosteiros religiosos. Foi assim que surgiram, no século X, os glosadores medievais, com um novo método de estudar o Direito baseado no Código de Justiniano (denominado depois de Corpus Juris Civilis - CJC), que eles ajudaram a organizar, ocorrendo assim a redescoberta do Direito Romano. Os glosadores eram monges que encontraram casualmente en- tre os alfarrábios da biblioteca do seu mosteiro, em Bolonha (Bo- NEAD Núcleo de Educação a Distância 30 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história logna, Itália), exemplares do Digesto de Justiniano e passaram a estudá-lo, observando que aqueles ensinamentos podiam ainda ser adotados com proveito, dada a sua bem cuidada elaboração. O tra- balho desse monges consistiu em reinterpretar o Direito Romano para a sociedade medieval, estudo que repercutiu favoravelmente em toda a Europa, surgindo daí a primeira escola de Direito depois de Roma, chamada Escola de Bolonha, que influiu na formação dos juristas europeus das diversas nações. Nessa época, não havia um estudo jurídico de modo autônomo, mas estava subordinado aos estudos da retórica e da dialética, de acordo com o currículo das Universidades Medievais. O traba- lho dos glosadores mostrou a necessidade do estudo do direito de forma separada dos demais assuntos, surgindo daí o Direito como matéria acadêmica. O primeiro glosador foi Irnério (Werner), que iniciou o estudo jurídico autônomo e fez estudos completos sobre o Corpus Juris Civilis. Outro importante glosador foi Acúrsio, res- ponsável pela obra denominada Glosa Ordinária, a maior do pensa- mento jurídico da época, que serviu como texto de estudo jurídico para sucessivas gerações de juristas. Importante As glosas eram, portanto, interpretações explicativas feitas sobre os textos do Código de Justiniano. Inicialmente, fo- ram um trabalho de exegese literal dos vários textos do CJC, representado por comentários situados às margens e entre as linhas dos manuscritos, destinados a esclarecer ou tornar compreensível alguma passagem mais duvidosa ou obscura, por se tratar de textos antigos. Posteriormente, passaram a abranger títulos inteiros, dada a sua extensão e complexida- de. Este trabalho destinava-se a auxiliar os estudiosos e os magistrados na aplicação do direito aos casos concretos. Tudo isso era feito com grande respeito ao texto, com o au- xílio da gramática e da lógica, pois o conteúdo da obra tinha um caráter quase sagrado, limitando-se a resolver suas dificuldades e atualizá-lo para aquela época, sem alteração do texto original. As Universidades haviam surgido na Europa, a par- tir do século X, e o seu currículo era composto de duas partes: o trivium (gramática, retóri- ca e dialética) e o quadrivium (música, geometria, aritmé- tica, astronomia). Nesta época, não havia uma matéria chamada “direito”, que estava embuti- da no trivium (como parte da retórica e dialética). Com o trabalho dosglosa- dores, percebeu-se a necessidade de um estudo à parte do CJC, tornando-se o “direito” uma ma- téria autônoma de estudo, separada do trivium. NEAD Núcleo de Educação a Distância 31 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Nessa época, são compilados também e ampliados os conhecidos brocardos jurídicos, os quais representam formas interpretativas didáticas das leis e dos costumes tradicionais. Os glosadores de Bolonha constituíram uma escola de grande signi- ficação histórica para a evolução do Direito, considerada pelos historia- dores como a mais célebre depois dos próprios jurisconsultos romanos. É fácil notar também a sua importância para a hermenêutica, dada a sua preocupação de adequar o CJC aos casos concretos da sua época. Assim, as glosas nada mais eram do que um novo significado dado as antigas regras jurídicas romanas. O seu método con- sistia no seguinte: para cada ponto ou problema particular, eles classificavam as passagens jurídicas em dois planos. No primeiro plano, buscavam compreender o sentido antigo da norma (de iure) e no segundo plano, tentavam estabelecer uma relação deste com o novo sentido da norma no seu tem- po (de aequitate), conseguindo assim resolver as antinomias encontradas entre as leis antigas e os novos problemas. Com este método e com uma interpretação literal mais agu- da, os bolonheses conseguiram sistematizar toda a matéria e es- tabelecer com segurança os princípios fundamentais e as ideias diretrizes do Direito Romano, assim como extrair as suas conse- quências lógicas, perfazendo uma análise de profundidade, capaz de eliminar as dúvidas e incertezas. Com o passar do tempo, as glosas foram se tornando repe- titivas e não mais conseguiram acompanhar a evolução social. Assim, a partir do século XIII, surgiu uma nova forma evolutiva da Ciência do Direito, chamada escola dos Pós-glosadores ou Comentadores, que pretendia dar maior amplitude à interpreta- ção. Com Acúrsio se encerra o período da interpretação literal do CJC e com Cino de Pistóia começa a nova interpretação, que iria perdurar na Itália até o século XVIII. NEAD Núcleo de Educação a Distância 32 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história Importante O ponto culminante desta escola deu-se com os comentado- res Bártolo de Sassoferrato e Baldo de Ubaldis, que são con- siderados os fundadores da ciência jurídica moderna. Par- tindo do trabalho dos glosadores, eles ampliaram o alcance de suas interpretações, o que faziam levando em conside- ração também outras fontes, tais como o Direito Canônico, o direito dos bárbaros, os costumes e direitos próprios dos diferentes povos e comunidades. Desta maneira, os comen- tadores encaram a matéria jurídica de modo diferente dos glosadores, que a viam apenas exegeticamente. Acentua- ram a necessidade de examinar os textos do Direito Roma- no, no seu conjunto, e deles retirar princípios gerais, a fim de os aplicar aos problemas concretos do seu tempo. Os comentadores utilizaram em suas obras o método escolásti- co, predominando o procedimento lógico dedutivo criado por Aris- tóteles, método anteriormente já aplicado com sucesso na filosofia e na teologia. Porém, chegaram a exagerar em suas análises, com divisões e subdivisões, classificações e subclassificações, que re- sultaram num desenvolvimento complicado e prolixo, cheias de su- tilezas estéreis e excessivamente formais, contribuindo para o sur- gimento de uma massa disforme de interpretações, que foi abolida pela Lei da Boa Razão, em Portugal, conforme se verá adiante. 6 A HERMENÊUTICA NA MODERNIDADE - LEI DA BOA RAZÃO O grande mérito dos glosadores e comentadores foi que, in- terpretando e aplicando o Código de Justiniano, associando-o aos costumes e leis locais, aos poucos criaram uma base jurídica co- mum (ius commune), que foi utilizada pelos juristas das nações europeias entre os séculos XVI e XVIII, para a elaboração de suas leis. Com o início da formação das nações modernas, a partir das grandes navegações, surgiu a necessidade de atribuir um cará- ter oficial ao novo Direito, assumido pelos governos nascentes, os NEAD Núcleo de Educação a Distância 33 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história quais compuseram diversas Ordenações a partir das normas dis- persas que já eram conhecidas, uma mistura de direito romano, leis romanas bárbaras e normas dos conquistadores muçulmanos. Era necessário, porém, dar um novo rumo à jurisprudência, porque a massa dos comentários se tornou um verdadeiro dilúvio de interpretações e opiniões, gerando inevitáveis discrepâncias com as leis e tornando o direito um labirinto de ideias, uma verdadeira árvore do bem e do mal, movimentada segundo os interesses de cada um. Impunha-se urgentemente uma organização metodológica. Importante Em Portugal, este esforço de organização legislativa culminou com a edição das Ordenações Afonsinas, que depois foram substituídas pelas Ordenações Manuelinas e posteriormente, pelas Filipinas. Visto que, porém, as regras e comentários dos antigos glosadores e comentadores continuavam sendo utili- zados em Portugal, foi necessário um ato de autoridade para aboli-las e isto se deu pela chamada “Lei da Boa Razão” (Lei de 18.08.1769), baixada pelo Marquês de Pombal, que proibiu a utilização das glosas e comentários em juízo, seja pelos advogados, seja pelos magistrados, obrigando a todos ao uso da legislação pátria, sob pena de pesadas sanções. Isso não desmerece, no entanto, o trabalho interpretativo e criativo dos glosadores e comentadores, muito embora isso tenha contribuído para uma interpretação excessivamente formalista do direito, que ficou conhecida como mecânica ro- manista, de grande influência em Portugal e no Brasil. Esta hermenêutica de caráter medieval, baseada na escolástica foi também recusada e escarnecida pelo humanistas e iluminis- tas que, na sua postura anti-metafísica e anti-religiosa, rejeitaram tudo o que fora produzido nos séculos anteriores. O iluminismo instala um novo modo de conhecer a realidade através da razão natural, utilizando-se do método crítico, com o auxílio da filologia e da história, combatendo toda autoridade que não seja baseada na razão e na experiência, tudo que impede o homem de pensar por si O Professor Salva- tore Riccobono co- menta no seu livro Roma Madre de las Leyes de 1975, que Lutero chamava a essas glosas e co- mentários plenos de contradições, a “Bí- blia do Diabo”. NEAD Núcleo de Educação a Distância 34 Hermenêutica Jurídica Unidade I - Origem e história mesmo. Seus instrumentos são a razão autônoma, o conhecimen- to, a ciência, a educação e teve um caráter pedagógico, através do projeto enciclopedista, uma tentativa de popularização do saber, com o intuito de libertar o homem da ignorância e da superstição. O iluminismo foi um movimento cultural geral, que abrangeu a filosofia, as artes, a literatura, as ciências, a política e também o direito, pois todos se encontravam sob o domínio da religião. Este movimento de cunho racionalista crítico, contudo, não trouxe contribuição significativa para a hermenêutica, sendo re- conhecido aos glosadores e comentadores o mérito de serem considerados os verdadeiros intérpretes da obra de Justiniano e fundadores do direito comum europeu, fonte mais próxima dos direitos modernos, que permaneceram vigentes até a Revolução Francesa, quando teve início a hermenêutica contemporânea. Chegamos ao final da primeira unidade do nosso estudo. Tra- taremos sobre o tema das escolas da hermenêutica jurídi- ca contemporânea a partir da Unidade IV. Mas lembre-se de complementar seus estudos nas web-aulas e nas participa- ções do fórum. Até a próxima unidade! NEAD Núcleo de Educação a Distância 35 Referências Bibliográficas ANDRADE,Christiano José de. O Problema dos Métodos na Interpretação Jurídica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992. CAMARGO, Margarida. Hermenêutica e Argumentação. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. CORETH, Emerich. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: Ed. EPU/EDUSP, 1973. DESCARTES, René. Discurso sobre o Método. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2001. FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2004. HEIDEGGER, Martin. A caminho da Linguagem. Petrópolis - RJ: Ed. Vozes, 2003. MACHADO, Antônio Carlos. Fundamentos Sociológicos de uma Ética Materialista: Com base em “O cotidiano e a história”, de Agnes Heller. Trabalho apresentado no Curso de Mestrado de Sociologia da UFC - Fortaleza - 1989. RICCOBONO, Salvatore. Roma Madre de las Leyes. Buenos Aires: Ed. DePalma, 1975. SALGADO, Ricardo H. Carvalho. Hermenêutica Filosófica e Aplicação do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. STEIN, E.. História e Ideologia. RS: Ed. Movimento, 1972. NEAD Núcleo de Educação a Distância 36 Créditos UNIVERSIDADE DE FORTALEZA Núcleo de Educação a Distância Coordenação Geral Carlos Alberto Batista Supervisão Administrativa Graziella Batista de Moura Supervisão de Desenvolvimento Liadina Camargo Lima Produção de Conteúdo Didático Antônio Carlos Machado Projeto Instrucional Andrea Chagas Alves de Almeida Roteiro de Áudio e Vídeo Andrea Chagas Alves de Almeida Produção de Áudio e Vídeo Sávio Félix Mota Régis da Silva Pereira Identidade Visual Viviane Claudia Paiva Ramos Programação Filipe Pinto Cajazeiras Diagramação de Material Didático Sávio Félix Mota Revisão Gramatical Elane Silva Pereira NEAD Núcleo de Educação a Distância 37 Anotações
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