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A civilizacao partida - Maria Rita Kehl

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CIVILIZAÇÃO PARTIDA
Maria Rita Kehl
Em 1969, quando o mundo estava longe de supor que os Estados 
Unidos perderiam a guerra do Vietnã, a escritora Susan Sontag visitou Ha- 
nói com um grupo de intelectuais de esquerda norte-americanos a con­
vite do governo. Registrou a visita em um longo ensaio chamado “Via­
gem a Hanói”, espécie de diário de viagem no qual ela analisa com muita 
sensibilidade o impacto que o encontro com aquela sociedade tão dife­
rente da sua lhe causou. Uma das reflexões mais importantes de Sontag 
é a previsão que ela faz, de que os vietcongues ganhariam a guerra ape­
sar da óbvia inferioridade militar e tecnológica em relação ao inimigo.
A vantagem vietcongue, puramente psicológica, estaria em sua con­
vicção inabalável nos ideais revolucionários pelos quais lutariam até o 
fim, em oposição à frouxa convicção dos soldados norte-americanos em 
sua “causa”. Mas Susan Sontag, embora valorizasse a coragem e a deter­
minação do povo do Vietnã, não se mostrava encantada com seu fana­
tismo. Sem deixar de sublinhar a ambigüidade da afirmação, a um só 
tempo etnocêntrica e autocrítica, Sontag comenta que ela faz parte de 
uma sociedade que duvida de si mesma; o preço da enorme abertura 
que esse sentimento propicia em relação a tudo o que é novo e dife­
rente é a falta de convicções seguras sobre o bem e o mal, o belo e o 
feio, o certo e o errado.
No final da década de 1980, Octavio Paz também se referiu aos 
Estados Unidos como um caso raro de sociedade imperialista que pare­
cia demonstrar um certo gosto em se admitir em crise com seus pró­
prios valores e com seu poder. O fato de muitos norte-americanos rejei­
tarem ou criticarem o ideário imperialista de seu país fazia com que se 
sentissem mais sensíveis e também mais avançados, escreveu Paz. É 
verdade que ele se referia aos Estados Unidos do final da era Reagan,
101
.is,sim como Susiin Sonlag eslava se referindo .los Eslados Unidos da 
década de 1960, uma sociedade muito dilerenle da que conhecemos 
hoje, depois do atentado de 11 de setembro de 2001. Mas quero tomar 
aqui a proposta de Sontag, de que duvidar de si mesma seja uma das 
princ ipais características das civilizações modernas.
O termo civilização surgiu com o advento da modernidade, para 
designar as sociedades européias em relação aos povos do recém-des- 
coberto “Novo Mundo”. Penso que podemos fazer coincidir, grosso 
modo, “modernidade” e “civilização”; não porque as sociedades pré- 
modernas ou antimodernas sejam bárbaras, mas simplesmente porque 
o conceito de civilização foi criado para marcar uma diferença em rela­
ção a elas. Ora, se o civilizado é aquele que constrói sua identidade por 
oposição ao Outro, seu semelhante na diferença — o oriental, o indí­
gena, o bárbaro —, podemos dizer que ele nasce marcado pela dife­
rença. Ou seja: nasce dividido.
O longo período a que chamamos modernidade, que se originou 
por volta do século xvi e ainda não se esgotou, produziu duas atitudes 
predominantes diante da dúvida advinda da existência desse Outro, que 
define sua identidade mas não sua unicidade. Uma delas é a intolerân­
cia, fundamentada pelas correntes de pensamento que tentam produzir 
convicções e certezas com base em um significante absoluto, capaz de 
ocupar o lugar deixado vazio por Deus. Esse significante inquestionável 
pode ser a razão, a ciência ou — atualmente — o mercado. O sujeito do 
conhecimento que emerge desses modos de pensar está (precariamen­
te, como veremos) centrado na razão e na soberania do eu.
A segunda atitude a que me refiro seria (em oposição à primeira) 
a da curiosidade, da hospitalidade e da tolerância com o diferente. Mas 
essa abertura cobra o preço da dúvida e do conflito intersubjetivo, re­
presentado como conflito entre o eu e o outro. Tolerar o estranho não 
significa apenas permitir que ele exista em algum lugar, longe de nós. 
Não significa apenas suportar que ele ocupe a periferia de um mundo 
no qual nós, modernos civilizados, supomos ocupar o centro. Abrigar 
e tolerar o estranho é permitir que ele nos desestabilize permanente­
mente, deslocando nossas certezas, borrando as fronteiras de nossa su­
posta identidade, oferecendo traços identificatórios que frustram o ou­
tro projeto moderno, de unicidade e individualidade. Tolerar o estranho 
é tolerar também a incerteza que ele traz. Este é o grande valor ético 
trazido pela modernidade, valor que permite que nos orgulhemos de 
ser “civilizados”: a capacidade de suportar a dúvida, a divisão, a falta 
de certeza, que cede lugar ao Outro e permite a convivência com a 
diversidade.
102
I Ima das características da experiência do sujeito moderno é a falta
• Ir unidos limites identitários; a “morte de Deus” anunciada por Nietzs- 
«lie destruiu as possibilidades de os homens se filiarem a uma versão 
unívoca da verdade, e definir o ser e o destino com base nela. Por isso 
mesmo a experiência moderna, desde a Renascença, é uma experiên-
• ia com a variedade — de informações, contatos humanos, opiniões 
etc. Os piores cenários da modernidade consistem nas tentativas de 
iceosturar as brechas existentes nas múltiplas versões da verdade e
• onstruir um discurso único, uma identidade fixa para os sujeitos, uma 
nova fé. O melhor cenário apresenta-se quando as sociedades moder­
nas reagem à experiência dessa “falta de verdade” admitindo que a pro­
miscuidade e a permissividade em relação à convivência com o estran­
geiro, em todos os sentidos da palavra, são a grande fonte de riqueza 
humana das culturas que desejam se identificar como civilizadas.
() SUJEITO SOLAR E O INCONSCIENTE
Quero começar aproveitando uma pergunta da platéia sobre o in­
consciente. Foi uma pergunta meio fora de hora porque ainda nem co­
mecei a conferência, de modo que ainda não construí, junto com a pla- 
léia, argumentos que me permitam respondê-la. Mas ela me evoca um 
poema de Ungaretti que pode me ajudar a introduzir o tema da noite.
Com minha fome de lobo 
amaino
meu corpo de ovelhinha.
Sou como 
o mísero barco 
e como oceano libidinoso.
Esta é uma imagem muito bonita para representar a relação entre o 
nosso eu e o inconsciente: um mísero barco em um oceano libidinoso. 
É evidente que o barquinho tem poucas chances de conduzir seu desti­
no diante das forças poderosíssimas do oceano, mas digamos que talvez 
ele tenha mais chances se souber aproveitar os ventos e as correntes 
marítimas do que se reagir contra eles. Ou seja: o eu que tenta contro­
lar o rumo de nossas vidas é muito menor do que o “oceano libidino­
so” que o ultrapassa. Seu sucesso depende da possibilidade de fazer 
uma certa aliança com o inconsciente para não ser engolido por ele.
O século xx foi o século da psicanálise. Isso equivale a dizer que
103
lul t> século do inconsciente. O século cm cjuc as loiças c representa 
Voes inc<mseienles deixaram o silencio e a obscuridade* a que foram 
relegadas no início da era moderna, e voltaram a ganhar um estatuto 
de discurso significa ti vo, cujas representações enigmáticas possuem 
uma relaçào com a verdade do sujeito. Notem que digo: “voltaram a 
ganhar um estatuto de discurso significativo”, indicando que, em socie­
dades organizadas em moldes diferentes da racionalidade moderna, as 
produções do inconsciente teriam um outro lugar, reconhecido como 
lugar de produção de verdade; pensem no caso dos adivinhos na Anti­
guidade, ou dos xamãs nas sociedades indígenas, por exemplo. Ou dos 
pais e mães-de-santo do candomblé. Mas não vou me estender sobre 
isso agora.
A afirmação sobre o banimento e o retomo do inconsciente já nos 
coloca diante de um problema: o inconsciente teria então um estatuto 
específico na modernidade? “Onde” estava o inconsciente nas culturas 
pré-modernas? Só os modernos são “sujeitos do inconsciente”? Não 
creio que possamos ir tão longe no espaço desta conferência. Mas é 
possível supor quea modernidade, ao proporcionar o advento de um 
sujeito centrado na razão individual, um sujeito soberano em relação a 
suas certezas e suas representações, não tutelado por Deus e suas ins­
tituições terrenas, estabeleceu uma configuração subjetiva muito parti­
cular no que diz respeito à relação entre o eu (identificado com a razão 
o a consciência) e o inconsciente. Meu interesse, como o de muitos psi­
canalistas hoje em dia e também historiadores e filósofos, é entender 
como, do sujeito solar, racional e autocentrado que a modernidade 
constituiu, surgiu o sujeito do poema de Ungaretti, que percebe seu eu 
como um mísero barquinho entregue às correntes e às tempestades do 
oceano libidinoso que ele não controla.
Como psicanalista, não consigo dissociar a proposta deste curso, 
que é pensar as relações entre civilização e barbárie nos nossos dias, 
desta outra polaridade, entre o eu moderno e o inconsciente. Não há 
nenhuma correspondência biunívoca entre essas duas polarizações. 
Não se trata de identificar o eu com a civilização, por exemplo, e o 
inconsciente com a barbárie. O que quero propor é que a relação entre 
civilização e barbárie pode ser pensada em correspondência com esta 
outra relação, entre o eu e o inconsciente. No mínimo, podemos supor 
uma analogia entre a abertura das civilizações modernas para o estran­
geiro e a abertura do sujeito para a existência de seu inconsciente. Ou, 
na vertente oposta e complementar: uma relação entre a tentativa de 
fundar uma subjetividade com base na soberania da razão e os proje­
tos de controle de todas as forças sociais por um Estado totalitário.
104
() UTino civilizarão pode ser ;iplicacio a diversas Ibnnas de orga­
nização soeial em diversas épocas, dos egípcios aos maias, dos gregos 
aos guarani. Nào sendo antropóloga nem historiadora, vou tomar esses 
lermos, civilização e barbárie, no sentido mais próximo ao senso 
comum. A relação que pretendo desenvolver entre civilização e barbá­
rie tem como foco a modernidade — que contém, em si mesma, ele­
mentos civilizados e bárbaros — e como pano de fundo o sujeito 
moderno, que é o sujeito da psicanálise.
Embora o termo civilização tenha se difundido para caracterizar o 
que diferencia as sociedades ocidentais modernas de todas as outras, 
seria muita pretensão identificar a modernidade, o Ocidente moderno, 
com a civilização. A modernidade contém tanto “civilização” como “bar­
bárie”. Contém os sistemas de pensamento da certeza absoluta, que 
produzem fanatismo, intolerância e não comportam a alteridade, e os 
sistemas de pensamento que não buscam a totalização e suportam a 
falta de uma verdade absoluta: este é o pensamento que se abre para 
;i alteridade. A modernidade contém os dois sistemas de pensamento, 
da dúvida e da certeza, que vou qualificar como a civilização e a bar­
bárie, já que são as certezas absolutas que justificam a intolerância e a 
violência em relação ao diferente. O nazismo, experiência-limite do 
enlouquecimento da racionalidade moderna, já nos ensinou que, se 
existe um mal absoluto, ele está justamente do lado daqueles que se 
acreditam, sem sombra de dúvida, autorizados a agir em nome de um 
bem absoluto. Este é o eixo bárbaro da modernidade.
Vou qualificar então de “tradição da dúvida” a tradição moderna 
que considero civilizada: aberta para o diferente, criativa e pouco auto­
ritária. E de “tradição da certeza” a corrente moderna que busca as gran­
des totalizações políticas e científicas, a abolição da diversidade, a im­
posição autoritária de um pensamento único e conseqüentemente a 
intolerância com o estranho. No início da modernidade, podemos pen­
sar o florescimento das artes e das ciências na Renascença como carac­
terísticos de um período “civilizado”; na mesma época, consideramos 
“bárbaras” as práticas punitivas dos tribunais católicos da Inquisição, ou 
a destruição das culturas indígenas da América pelos colonizadores.
A ciência moderna, por exemplo, é civilizadora quando libera o 
homem de preconceitos obscurantistas e fornece parâmetros para nos 
libertar do jugo da natureza. Mas sua face bárbara se revela quando 
produz armas de destruição em massa e se afirma como potência sobre­
humana, acima da lei, servindo aos interesses do capital sem reconhe­
cer nenhum limite ético. Grosso modo, identificamos as democracias 
modernas como civilizadas e os grandes sistemas políticos totalitários
105
do século \x nazismo c stalinismo — como c asos de harharic ocor­
ridos cm plena modernidade. Mas esses sistemas barbaros” foram pos­
sibilitados pela expansào da mesma racionalidade moderna que, em 
outra vertente, contribuiu para nos tornar mais capazes de negociar 
nossas diferenças religiosas e políticas, ou seja: mais civilizados.
A relação entre as contradições do sujeito e a dialética entre civili­
zação e barbárie pode ser pensada nos seguintes termos: quanto mais 
< > sujeito se pretende solar e soberano, mais ele rejeita as evidências do 
inconsciente; mas quanto mais pretende ignorar o inconsciente, mais é 
assaltado e dominado pela obscuridade desse “outro” que também é 
ele. “Eu é um outro”, escreveu Rimbaud. O que esse “outro” tem a ver 
com as condições modernas?
A Renascença é considerada por muitos historiadores como a incu­
badora da modernidade porque foi o período em que o Outro se apre­
sentou, sob muitas faces, ao europeu que se imaginava no centro do 
mundo. O ciclo dos descobrimentos trouxe a notícia da existência das 
estranhas civilizações das Américas, da África e do Oriente. A Reforma da 
Igreja questionou o monopólio da verdade por parte das autoridades 
eclesiásticas e consolidou o individualismo cristão, segundo o qual cada 
um era responsável pelas condutas que atestassem sua fé. A livre circu­
lação da palavra escrita possibilitada pela invenção da imprensa trouxe o 
desenvolvimento do hábito de leituras silenciosas, que contribuiu para 
reforçar o individualismo e democratizar as possibilidades de reflexão 
solitária diante de uma diversidade de textos impressos com saberes e 
opiniões que a Igreja católica já não conseguia mais guardar e controlar.
O início do mercantilismo promoveu o contato entre aldeias e bur­
gos isolados, intensificou a circulação e a diversificação das mercado­
rias e aos poucos unificou o sistema de trocas através da moeda, valor 
abstrato cuja posse tornava, de certa forma, todos os homens iguais.
O homem transformou-se em objeto do pensamento filosófico; 
deslocado de seu lugar no centro do sistema solar pela revolução 
copernicana, foi forçado a observar sua existência de um outro ponto 
de vista, a distância, e a indagar-se sobre quem ele é. O conceito de 
homem universal do humanismo renascentista, a idéia de que nossa 
“humanidade” é a condição compartilhada por todos os seres humanos, 
data desse período.
Entre todas essas transformações, quero ressaltar a importância 
central da Reforma da Igreja na formação do sujeito moderno. A pala­
vra das autoridades da Igreja, que foi critério de verdade durante quin-
106
/.r séculos, (oi recusada por um cristão. "Sao só opiniões", disse Lulero 
.10 defender suas leses de Leipzig, em 1519. Nào devemos confiar cega- 
mente nelas, pois os padres e bispos nâo têm nenhum acesso privile­
giado à palavra de Deus. Chamado diante das autoridades eclesiásticas, 
l.ulero recusou-se a retratar-se, porque não considerava confiável uma 
retratação contra sua própria consciência. Para ele, cada fiel, examinan­
do honestamente sua consciência, deveria julgar o certo e o errado, o 
verdadeiro e o falso, pois não existe uma verdade definitiva que possa 
orientar a fé de um cristão. Não existe uma palavra acima da palavra 
dos textos sagrados para esclarecer os mistérios contidos neles. Não 
existe “o Outro do Outro”, como diria Lacan.
O individualismo cristão proposto por Lutero foi o broto do indi­
vidualismocontemporâneo. Todos os esforços dos teólogos e pensado­
res da Contra-Reforma não foram suficientes para impedir as conse- 
qüências da crise aberta pelas propostas de Lutero, que hoje determinam 
nossa subjetividade: se somos individuais, e é nossa consciência que 
deve decidir o bom e o verdadeiro, nosso desamparo intelectual fica 
evidente; nada nos fornece uma garantia final quanto à verdade e aos 
caminhos da salvação. Estamos no mundo sem uma bula confiável para 
dirigir nossos destinos. A subjetividade característica do individualismo 
moderno começou a se diferenciar ali.
Observem que Lutero não propôs idéias heréticas em 1519; não 
colocou em dúvida a existência de Deus nem a verdade dos textos sa­
grados, mas apenas questionou o lugar da Igreja católica como deten­
tora da verdade divina e dos caminhos para alcançar a salvação. A 
crise que se abriu a partir da Reforma foi uma crise sobre os critérios 
da fé, que equivaleu a uma crise intelectual e existencial para os cris­
tãos do século xvi. As palavras das autoridades da Igreja foram, duran­
te séculos, critério confiável de verdade — e Lutero as recusava, pro­
pondo que a consciência individual é que deveria se responsabilizar 
pelo caminho de um cristão. A questão da escolha ficou colocada, a 
partir de então, de uma forma diferente da que está em santo Agosti­
nho, por exemplo. Nâo se tratava apenas de escolher entre os cami­
nhos do bem e o do pecado, contidos nas Escrituras e revelados aos 
tutores das consciências cristãs; era preciso tentar discernir, individual­
mente, o sentido dos trechos obscuros dos textos sagrados para poder 
diferenciar o bem e o mal. Com isso, inauguraram-se o desamparo in­
telectual do sujeito moderno e a crise da verdade em que estamos 
mergulhados até hoje.
Essa crise coincidiu e colaborou com uma retomada do ceticismo 
da Antiguidade na Europa da Renascença. Hoje, estamos mais familia-
107
rizados com o ceticismo acadêmico do pensamento de Mniao, represen­
tado no famoso mito da caverna, que recusa ao homem a possibilidade 
de encarar a verdade face a face; dada a insuficiência da razão e dos 
sentidos, estamos condenados a nos orientar pelas sombras projetadas 
na parede da caverna. A outra escola cética da Antiguidade foi inspira­
da no filósofo Pirro de Elis e se chamou ceticismo pirrônico: mais nega­
tivo do que o “só sei que nada sei” socrático, Pirro de Elis propunha 
que se duvidasse de tudo a fim de não correr o risco de julgar qualquer 
coisa com base em falsos valores.
O ceticismo acadêmico foi retomado por santo Agostinho, que 
defendia a regra da fé em oposição à pretensão de conhecer a verdade 
pela via intelectual. No século xvi, o ceticismo acadêmico retornou sob 
a forma do fideísmo, trazendo uma outra esperança para os cristãos que 
buscavam respostas para a crise intelectual provocada pela Reforma. Se 
nada podemos saber a partir de nossos sentidos e de nossa razão, o 
melhor a fazer é esperar, despojados de preconceitos, que Deus nos 
revele a verdade. A existência de Deus, sua bondade e a verdade das 
Escrituras não foram postas em dúvida pelos fideístas céticos. O que 
propunham era que os cristãos suspendessem o julgamento e a fé na 
razão para estar com a consciência livre de preconceitos intelectuais e 
o coração aberto para a possibilidade da revelação. No final da Renas­
cença, os fideístas propunham que os cristãos renunciassem às preten­
sões intelectuais propostas pelos reformadores e mantivessem somente 
a fé em Deus. O grande humanista Erasmo de Roterdã foi um cristão 
extremamente crítico diante das pretensões intelectuais dos filósofos de 
sua época. Recusava a pretensão de conhecer a verdade pela razão. Era 
preciso abrir o coração, humildemente, para a possibilidade de receber 
a verdade revelada.
Lutero foi um racionalista, mas não um cético. Suas teses de Leip- 
zig desencadearam uma crise cética, mas ele apostou na busca da ver­
dade por meio da razão. Seu pensamento inaugurou um novo tipo de 
sofrimento para o homem ocidental, responsabilizado por alcançar, sozi­
nho e pela limpidez de sua mente, a verdade e o caminho da salvação.
Mas o ceticismo promoveu uma abertura para a melhor corrente da 
modernidade, que é a corrente da dúvida, da incerteza e da tolerância. 
Nesse sentido, o ceticismo é moderno e, a meu ver, civilizador. Eis um 
exemplo: ainda no século xvi, um filósofo de nome Servetus apoiou-se 
no racionalismo luterano para duvidar do dogma da Santíssima Trinda­
de, afirmando que sua inteligência não era capaz de se convencer da 
validade desse dogma. Sabemos que este é um dogma central para a 
Igreja católica, e Servetus afirmava que sua razão não conseguia se con-
108
vencer de que Irês snvs, ;iincl;i que divinos, pudessem ao mesmo 
lempo ser um só. Pela heresia, Calvino e seus seguidores condenaram- 
no à fogueira. Depois de sua morte, teve um único defensor: Sebastião 
Castelius da Basiléia, que discutiu a condenação de Servetus em um 
livro contra o dogmatismo, De arte dubitandi (A arte da dúvida). Nesse 
livro, Castelius argumentou que, se as Escrituras têm trechos obscuros, 
c impossível estabelecer uma única verdade a partir delas. Sendo assim, 
ninguém pode estar tão certo da verdade, especialmente em questões 
religiosas, ao ponto de justificar a condenação à morte de alguém que 
pense diferente.
Castelius tentou responder à crise cética buscando estabelecer 
uma base mínima e segura sobre a qual se pudesse fundar a clareza 
do pensamento. Entre tantas coisas duvidosas que o ambiente da Re­
nascença trazia ao cristão, Castelius propôs alguns pontos indubitá­
veis: a existência de Deus, Sua bondade e a verdade das Escrituras, 
mesmo que a interpretação delas não fosse evidente para os cristãos. 
Mas Castelius já teve que incorporar à sua argumentação a inovação 
luterana. Em vez da obediência cega à versão da Igreja sobre a pala­
vra de Deus contida nas Escrituras, ele escreveu que é melhor acredi­
tar nelas porque são “plausíveis”. Já existe certa pretensão racionalis- 
ta em sua argumentação.
O argumento da plausibilidade contido na proposta de Castelius 
não era forte o suficiente para responder às questões: qual o critério da 
fé? Como diferenciar o critério da fé verdadeira da fé nas coisas falsas? 
A Reforma foi eficiente em abalar a autoridade da Igreja como garanti- 
dora das coisas da fé. Nunca mais, no Ocidente, o prestígio e a força 
moral da Igreja católica conseguiram obturar a incerteza que se abriu 
com a Reforma. Mas muitos pensadores tentaram, se não fechar nova­
mente a caixa de Pandora aberta por Lutero, pelo menos evitar que as 
pessoas percebessem que ela havia sido aberta. De qualquer maneira, 
com a divisão da Igreja, nunca mais no Ocidente uma instituição teve 
o poder de garantir uma verdade única para orientar todas as mentes 
na mesma direção.
Diante da crise da verdade, alguns céticos propunham o método 
de levar a dúvida até o limite em busca de uma certeza confiável. Apos­
tavam na capacidade da mente de alcançar a verdade pelo método, 
desde que se partisse de uma base indubitável. Tratava-se de uma gran­
de responsabilidade para o sujeito moderno, e apontava para um pro­
jeto de sujeito capaz de chegar à verdade pela razão — projeto que a 
psicanálise viria a abalar, três séculos depois. Observem a relação que 
se estabeleceu entre a crise da verdade teológica e o surgimento de
109
uma proposta de sujeito centrado na ra/ao e no pensamento, capa/ de 
estabelecer a verdade racionalmente. Só que a lé rac ional dos homens 
da Renascença ainda nào era estritamente individual; apostava na pos­
sibilidade de produzir uma verdade coletiva, estabelecida pelo senso 
comum. Estamos nos referindo a um período que representou a passa­
gem da vida em comunidade para a vida em sociedade ou, no dizer de 
Norbert Elias, do homem coletivo ao homem individual.
Comoera possível estabelecer uma espécie de verdade comparti­
lhada por todos, um senso comum confiável, em uma cultura que, em 
primeiro lugar, estava se tornando individualista; em segundo lugar, 
começava a ser atravessada pela diferença, pela alteridade, pela diver­
sidade de línguas, pela notícia dos povos recém-descobertos, pelas tro­
cas de mercadorias, que movimentavam a vida das cidades européias, 
fragmentando as opiniões e os saberes? A verdade é uma ilusão com­
partilhada — os efeitos dessa verdade sustentam o laço social e tam­
bém os sujeitos. Mesmo o individualismo cristão dos séculos xvi e xvii 
não prescindia da base do senso comum. Mas o senso comum compar­
tilhado já não era suficiente para livrar os sujeitos da solidão da respon­
sabilidade individual. Quando a sociedade se torna mais múltipla e 
complexa, as ilusões compartilhadas se multiplicam, a questão da esco­
lha individual se torna mais dramática — em que acreditar?
O que ameaça a estabilidade do conhecimento é a diversidade. Um 
exemplo disso é a reação dos teólogos diante da novidade trazida pelos 
descobridores: a existência das culturas indígenas das Américas. Diante 
da existência dessas sociedades recém-descobertas, tão diferentes do 
Ocidente cristão, abriram-se duas correntes de pensamento. Uma delas, 
minoritária, aceitava duvidar das certezas estabelecidas. Se os índios das 
Américas são tão diferentes dos europeus e são seres humanos, portan­
to, filhos de Deus, é preciso questionar se existe um único modo de 
viver que seja bom e verdadeiro. A outra atitude, cujas conseqüências 
conhecemos, foi a de teólogos e governantes que, motivados pelo dog­
matismo religioso e por interesses mercantis, justificaram a destruição 
das culturas indígenas, argumentando que esses seres estranhos não 
tinham uma alma como a dos cristãos. Essa corrente, eu vou chamar de 
bárbara; a primeira, de civilizada.
A corrente civilizada do pensamento ocidental, que acolhe a incer­
teza e a dúvida, produziu dois tipos predominantes de sujeito do co­
nhecimento, que vou exemplificar a partir de dois filósofos inaugurais 
da modernidade.
110
(> l l / . ( ) S ( ) / ' ( ) DA DUVIDA li O ri/.OSOH) DA CHRlli/A
"Cada homem leva em si a forma inteira da condição humana”, es- 
< leveu Michel de Montaigne para justificar sua empreitada filosófica. 
Assim sendo, propunha que seu modesto saber poderia interessar a 
lodos os seus semelhantes. Considerando-se como um homem comum, 
que não teria nenhuma grande revelação divina e nenhum grande feito 
militar para contar — não sendo sábio, santo ou rei —, esse proprietá- 
i i< > de terras na região de Bordeaux, na França, escreveu a obra filosó- 
fica mais intrigante de sua época. O objeto de investigação de seus 
Ensaios não era a busca do Bom, do Belo e do Verdadeiro. Montaigne 
dedicou-se a descrever e investigar seu próprio eu.
Foi o mais importante representante do que estou chamando de 
"corrente da dúvida” na modernidade. Herdeiro da melhor tradição hu­
manista, Montaigne mantinha vivo interesse por todos os assuntos, dos 
mais elevados aos mais corriqueiros, da vida humana. Foi grande conhe­
cedor das culturas da Antiguidade, mas a notícia da existência dos povos 
do Novo Mundo também despertou nele um grande interesse. Mantinha 
cm relação às civilizações das Américas uma autêntica curiosidade. Cató­
lico, viveu a maior parte de sua vida durante a longa guerra entre cris- 
láos e protestantes que abalou a França, e costumava conversar com 
igual interesse com adeptos da Reforma e da Contra-Reforma.
Sua obra não pretende propor uma nova certeza; tanto que escre­
veu inaugurando o título de Ensaios. Como escreve Marcelo Coelho, 
c impossível sintetizar o pensamento de Montaigne. Típico homem 
culto da Renascença, queria incorporar ao seu pensamento toda a di­
versidade de informações e de pontos de vista que estavam abalando 
seu mundo, no século xvi. Homem aberto para o outro, manteve tam­
bém em suspenso as conclusões de seu pensamento. Pode ser consi­
derado um cético, em parte em função da abertura de seu pensamen­
to, em parte por sua afinidade pelo ceticismo da Antiguidade, que ele 
conheceu lendo as obras de Sexto Empírico. Sua atitude cética não 
defendia a impossibilidade de saber qualquer coisa — o que justifica­
ria uma liberdade moral sem limites —, mas a suspensão do julgamen­
to: diante de questões duvidosas, é melhor colocar os dogmas e as 
certezas em dúvida.
Nas vigas da biblioteca de mais de mil livros, onde poderia estar 
contido um imenso saber, mandou escrever frases retiradas do pensa­
mento de filósofos céticos, a começar do célebre que sais je?. Montaig­
ne não considerava sua erudição como garantia de saber; lia para ter 
companhia, para “conversar” com os autores, mas desprezava o saber
111
livresco. No verso da medalha com seu nome e o hrasao da família, 
fez gravar a outra máxima extraída da obra do célico Sexto Empírico: 
“Suspendo”, sob o desenho de uma balança, indicando a suspensão 
do julgamento.
Nos Ensaios, Montaigne criticou a pretensão intelectual dos filóso­
fos e dos eruditos, assim como o sentimento de superioridade do ho­
mem em relação aos outros seres da criação. Escreveu sobre nossa ig­
norância e nossa insignificância, nossas semelhanças com os animais, 
nossa fragilidade. Como um humanista do final da Renascença, mante­
ve a convicção de que só podemos conhecer alguma coisa a partir de 
nossa própria condição, ao mesmo tempo que se dedicou a mostrar 
como nós, que nos consideramos o “centro da criação”, somos insigni­
ficantes. Nesse ponto, Michel de Montaigne não está muito distante do 
Elogio da loucura de Erasmo de Roterdã.
Não foi um herético: era um humanista católico. Mas nunca recor­
reu a argumentos de fé ou aos dogmas para resolver as incertezas que 
seu pensamento levantou. “Filosofar é aprender a morrer”, escreveu (li­
vro i, xx), sugerindo — sem afirmá-lo diretamente — que a fé não daria 
conta do caminho solitário de cada homem em direção à morte, daí a 
necessidade de um “aprendizado” pela via da reflexão. Sua atitude em 
relação à sua própria fé cristã provocou reações críticas, porque ele 
escreveu: “Somos cristãos como somos alemães ou perigodianos” — 
por hábito, por herança, por tradição.
Ao ter conhecimento do modo de vida dos índios do Brasil, que 
obedeciam a tradições muito diferentes das dos europeus, observou 
que a diversidade humana talvez tenha algo a nos ensinar. Afinal, aque­
las criaturas de um continente distante passavam suas vidas em admi­
rável simplicidade, “sem fé, sem lei nem rei” (como se pensava à época 
dos descobrimentos), mas viviam muito bem, e nada nos autoriza a 
recusar que fossem tão humanos como nós.
Mas o grande objeto da escrita de Montaigne é seu próprio eu; co­
mo aponta Erich Auerbach, Montaigne não se considerava especialista 
em nenhum assunto a não ser em si mesmo. Pode ser considerado, 
como escreve Luiz Costa Lima, como o pensador que consagra o indi­
víduo moderno. “Isto não é minha doutrina; é meu estudo; e não é lição 
de outrem, é a minha” (livro n, vi). Mas a observação constante e hones­
ta dos movimentos de seu eu — um eu mutante, fluido, que não se 
estabiliza, que ele não consegue fixar em uma essência clara — não era 
para ele um deleite narcisista, como supôs Pascal no século seguinte, 
ao criticar “le sot projet qu’il a de se peindre”. A estrutura dos Ensaios 
parece corresponder a um projeto epistemológico que busca se aproxi-
112
mar (Ir tim;i verdade (juc- nao e fixa, mas circundada pola escrila, ao 
longo cli- uma vida. O propósito de desc rever todos os movimentos de 
seu eu mutável e incerto encerrava uma crítica às pretensões dos filó­
sofos racionalistas. Como pensam que podem conhecer a verdade por 
meio da razão se nào conhecem nem mesmo a si próprios? Além disso, 
lodo saber é limitado pela inconstância e fluidezde seu objeto: tentar 
conhecer o verdadeiro ser das coisas seria como tentar pegar água em 
uma peneira. Com base nessa constatação, Montaigne exerce um pen­
samento aberto e antidogmático. “O homem é um tema maravilhosa- 
mente vão, diverso e ondulante. É infundado fundar nele um julgamen­
to constante e uniforme” (livro i, i). “Não temos nenhuma comunicação 
com o ser”, escreveu mais adiante (livro n, xii).
A própria organização dos três volumes de sua obra afirma essa ati- 
I iide: Montaigne deixa seu pensamento navegar ao sabor de suas pre­
ferências e curiosidades momentâneas, sem perseguir nenhum fio con­
dutor a não ser o gosto de experimentar-se por escrito. Sua filosofia 
confunde-se com o registro minucioso e apurado desse eu que se ob­
serva em permanente transformação, tomado não como critério de ela­
boração de uma verdade absoluta, estável e universal, mas da verdade 
da experiência plasmada pela escrita.
Assim, Montaigne pretendeu ser honesto em relação a seus impul­
sos e suas emoções, observar os movimentos de seu eu atravessado 
pelas oscilações do mundo, pelas influências das leituras, pelas varia­
ções da fisiologia, pelas conversas com os outros. A experiência de si é 
meio de acesso a alguma verdade — mas não uma verdade que possa 
valer universalmente. Dela também não se pode extrair nenhuma mo­
ral, como bem ilustra o título de um de seus Ensaios: “Que o gosto dos 
bens e dos males depende em boa parte da opinião que temos deles” 
(livro i, xiv).
Montaigne começou a escrever os Ensaios em 1571, com 38 anos, 
para superar o luto pela morte de seu amigo Étienne de La Boétie, ocor­
rida em 1563. La Boétie foi seu grande amigo e interlocutor, com quem 
viveu uma intensa relação no melhor sentido da ética aristotélica da 
amizade, segundo a qual a mais bela amizade seria a de duas pessoas 
que se juntam para, no diálogo, entender a verdade. A escrita dos En­
saios foi uma forma de encerrar o longo luto pela perda do amigo; 
Montaigne começou a escrever em busca de outros amigos/leitores 
para continuar, na retomada do diálogo interrompido, a busca da ver­
dade. Seu propósito era estabelecer a verdade no diálogo, na horizon­
talidade das conversas francas entre iguais, e não na submissão à pala­
vra dos grandes sábios ou das autoridades da Igreja.
113
Monlaigne foi um homem que viveu no peitudo de passagem de 
um eu individual ao eu eolelivo. Seu interesse pela experiência de si 
não deve ser confundido com o que hoje conhec emos como individua­
lismo; ele jamais se colocou como um centro isolado de pensamento. 
Mas afirmou: sou um homem, e trago em mim toda a condição huma­
na; por isso posso escrever sobre todos os assuntos sem ser autoridade 
em nenhum deles, e minha experiência mais corriqueira pode interes­
sar a qualquer de meus semelhantes. Este é um modo de conceber a si 
mesmo muito diferente do individualismo contemporâneo, em que ca­
da sujeito tenta se acreditar separado, diferenciado e original em rela­
ção a seus semelhantes. Para Montaigne, nossa humanidade só se afir­
ma como condição compartilhada: ser um homem é ter muita coisa em 
comum com todos os outros homens.
Seu método conduz à possibilidade de obter não uma verdade uni­
versal mas algumas experiências compartilhadas, confiáveis, mediante 
um processo de construção dialógica, a partir do qual é impossível esta­
belecer um dogma, justamente porque o diálogo livre e aberto sempre 
dá margem a novas perguntas. Não existe verdade de um homem só. 
“A palavra pertence metade àquele que fala, e metade àquele que escu­
ta”, escreveu no último de seus Ensaios, um dos mais conhecidos, “Da 
experiência” (livro m, xxm). O sentido da palavra só se completa em 
quem a escuta, por isso não existe verdade de um só. Eu só sei do que 
disse quando o outro me escuta e me devolve sua palavra, ou minha 
palavra feita palavra dele. Michel de Montaigne foi “civilizador” no me­
lhor sentido do termo, pois trouxe o melhor da herança aristotélica para 
o seu pensamento. Um homem que acreditou no diálogo como méto­
do de construção da verdade. Foi um precursor do indivíduo solar, cen­
trado em si mesmo, ao mesmo tempo que prestou testemunho da im­
possibilidade da solaridade, pois para ele o sujeito só se sustenta e se 
completa, só sabe o que diz, no diálogo com o outro. A psicanálise 
apoiaria esse pensamento.
O pensamento de Michel de Montaigne já anuncia as três formas 
de crise intelectual que viriam a perturbar o século seguinte. A crise teo­
lógica em relação à regra da fé, aberta por Martinho Lutero, aprofun- 
dou-se com o pensamento de Montaigne. O máximo que ele propunha 
era que é preferível aceitar a regra católica, já que é a mais próxima de 
nós, mas não temos como nos assegurar de que seja a melhor. “Esco­
lher” ser um católico, ou sê-lo por tradição, já denuncia que a verdade 
da Igreja não é inquestionável.
114
Aprofundou também mn;i crise humnníslica, ao admitir a diversi­
dade das culturas sem estabelecer entre elas uma hierarquia de valor. 
(iom isso, instaurou o relativismo cultural e moral, que ao mesmo tem­
po enriqueceu e abalou o humanismo da Renascença.
Por fim, colocou o dedo na crise do conhecimento científico: como 
IX >sso conhecer o verdadeiro ser das coisas? As coisas não possuem uma 
essência fixa. Além do mais, nós também estamos sujeitos a nos iludir: 
nossos desejos nos enganam, nossos sentidos são imperfeitos. Tudo 
isso impede de confiar na capacidade humana de estabelecer qualquer 
ciência segura.
Manteve essa atitude inclusive em relação ao seu eu; atravessado 
pelas transformações do século, afirmou que seu eu também lhe esca­
pava. Hoje sou um, amanhã sou outro, pois não posso evitar ser modi- 
licado pelas mais diversas influências. A escrita contínua de seu livro, 
de 1571 ao final de sua vida, em 1592, foi o recurso que Montaigne 
inventou para constituir um eu: “Não fiz o meu livro mais do que ele 
me fez”, escreveu no ensaio final. Interessado em abrigar em seu pen­
samento a diversidade de informações contidas em seu tempo, não 
poderia esperar que seu eu fosse estável.
Os Ensaios de Michel de Montaigne foram, de acordo com Richard 
Popkins, uma “incubadora do pensamento moderno”; sua atitude de 
dúvida e abertura — dos contornos do eu e do campo da verdade — 
teve enorme influência no século xvii. Se existe em Montaigne uma 
ética para a modernidade, ela se baseia em dois pontos: a afirmação 
da dúvida, não como dúvida cínica — se nada posso saber, não reco­
nheço verdade alguma e me autorizo a fazer o que me convém —, e 
sim como ponto de partida para a investigação de si mesmo e para o 
diálogo com o outro. E a ética da alteridade, que defende uma abertu­
ra, tanto no campo do eu, que só se completa com o outro, como dian­
te do desconhecido, mesmo ao preço da perda das mais confortáveis 
convicções.
Penso que hoje somos mais tributários de Montaigne do que de 
Descartes. Vivemos em um ambiente descentralizado, fugaz, centrífugo, 
que nos aproxima cada vez mais da necessidade de uma “epistemolo- 
gia” como a de Montaigne. Mas não o reconhecemos, porque Michel de 
Montaigne não produziu uma filosofia passível de se transformar em 
doutrina. O pensamento de Montaigne não produziu doutrina — por­
tanto, não produziu poder. Permaneceu como se fosse uma corrente 
fraca do pensamento ocidental. Ou como uma corrente subterrânea, 
que nos acompanha — como o desejo inconsciente — sem que a razão 
se aperceba dela.
115
O EU COMO CERTEZA PRIMORDIAL
Montaigne não é considerado o filósofo inaugural da modernida­
de. Este é, oficialmente, Descartes — que por sinal foi leitor dos En­
saios. E possível reconhecer, nos trechos introdutórios do Discurso do 
método, o mesmo ambiente epistemológico que alimentou o pensa­
mento de Montaigne. René Descartes não viveu alheio à multiplicidade 
de informações e ao relativismo cultural desua época; tendo estudado 
por dez anos entre os jesuítas, de 1601 a I6l6, alistou-se em 1619 nos 
exércitos de Maurício de Nassau, a fim de conhecer o mundo e os 
povos distantes e com isso ir além da experiência dos livros. Dessas via­
gens, concluiu que “todos aqueles que têm sentimentos totalmente con­
trários aos nossos nem por isso são bárbaros nem selvagens, mas mui­
tos se utilizam, tanto ou mais do que nós, da razão”. Percebeu também 
que as crenças e a moral dos homens variam de acordo com os costu­
mes de seu país. Um homem, “caso seja criado desde sua infância entre 
os franceses ou entre os alemães, torna-se diferente daquele que seria 
se sempre vivesse entre os chineses ou entre os canibais”.
Assim como Montaigne, Descartes também percebeu a dificuldade 
de encontrar um ponto de vista seguro, já que nossas convicções são 
fruto do costume e do exemplo dos outros, e a pluralidade de vozes ao 
nosso redor não nos ajuda em nada. Em seu método, a reflexão indivi­
dual se afirma como um recurso para a busca da verdade. Assim, “eu 
não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser 
preferidas às dos outros, e me senti constrangido a empreender por mim 
mesmo minha orientação”. Só que René Descartes pretendeu, desde 
muito-jovem, oferecer uma resposta para a crise da verdade que se agra­
vou com o advento dos filósofos empiristas no século xvu. Seu objetivo 
foi reconstituir a regra da fé e a partir dela fundamentar uma certeza filo­
sófica baseada no método, segundo o modelo seguro da lógica e da 
matemática. Tal método consistia em tentar solapar a resistência da dúvi­
da cética, demonstrando que ela levaria o pensamento ao absurdo e à 
miséria de um mundo sem Deus. Em seguida, a partir de um critério mí­
nimo de verdade, Descartes iniciou a restauração de uma certeza ade­
quada à visão cristã do mundo, que já estava abalada no século xvu.
A modernidade em Descartes está no fato de que seu pensamento 
levou em conta o abalo produzido pela Reforma da Igreja. Ele seguiu 
a proposta luterana de basear a verdade na razão. Também não se con­
tentou em responder com afirmações dogmáticas os questionamentos 
dos filósofos empiristas. Mas refutou a idéia dos céticos, dos empiristas 
e das práticas científicas, de que a verdade só se estabelece por proba-
116
bllidade. Eara ele, a probabilidado era insatisfatória. Quis nos deixar no­
va mente seguros sobre o critério da fé.
Como matemático e lógico brilhante, Descartes foi mais longe do 
< |tic os outros filósofos que tentaram combater o ceticismo. Estes con- 
li apunham ao ceticismo os dogmas da Igreja — versões estabelecidas 
pelas autoridades eclesiásticas sobre as Escrituras — e com isso acusa­
vam os céticos de heresia. Descartes resolveu levar a dúvida cética às 
ultimas conseqüências. Como cristão, partiu da afirmação da existência 
de Deus, irrefutável para sua época, e da idéia de que sem Deus não 
se alcançam a verdade e o bem. Deus é a referência última, o “Outro 
do Outro”, pois sem Deus estaríamos na miséria total.
O método cartesiano consiste em cavar cada vez mais fundo na 
direção da dúvida, até que ela se torne absurda ou intolerável. Para 
isso, começa admitindo os argumentos céticos a fim de ir com eles até 
as últimas conseqüências. O primeiro passo, portanto, é concordar com 
os céticos: nada nos garante que aquilo que percebemos seja verdadei­
ro, ou que a razão tenha acesso à verdade. Nossos desejos podem nos 
iludir, nossos sentidos podem nos enganar. Assim sendo, nossa incerte­
za pode ir ainda mais longe: podemos duvidar até da existência do 
mundo; as coisas que percebemos como certas podem fazer parte de 
um sonho, de uma grande ilusão. O terceiro passo dá mais uma volta 
no parafuso: se tudo é tão incerto, por que não admitir a existência de 
um gênio maligno que se divirta conosco, distorcendo propositalmente 
nossa percepção e todas as informações que recebemos, de modo a 
alterar o critério de confiabilidade dos sentidos e impossibilitar um jul­
gamento correto sobre elas?
Observem que Descartes já foi um pensador moderno; ele não se 
satisfez em tentar restabelecer a confiança em uma verdade revelada. 
Também não foi dogmático; quis seguir a convicção dos reformadores, 
de que é possível localizar os fundamentos da verdade na mente; se 
não fosse assim, poderia ter recorrido ao tradicionalismo de outros teó­
logos da Contra-Reforma. O quarto passo de seu Discurso do método 
para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências, 
publicado em 1637, foi o que o levou a estabelecer a famosa certeza do 
cogito. Já que estamos tão inseguros diante da hipótese do gênio malig­
no, vamos tentar, para fundamentar o pensamento lógico, estabelecer 
pelo menos uma premissa que não seja falseável a fim de, a partir dela, 
obter alguma verdade através do método. Admitamos que tudo o que 
penetre na nossa mente sejam verdades distorcidas, o que nos permiti­
ria ir ainda mais fundo na dúvida cética, propondo que tudo o que per­
cebemos seja erro e ilusão. Ainda assim, existe um eu que pensa e se
117
ilude. Sc* c*u penso, c‘ii exislo. Knquanlo c*n estivei pensando, a existên­
cia de meu eu pensante é uma verdade inelutável. H sobre essa base 
mínima de certeza que Descartes recomeça o trabalho de construção de 
uma verdade lógica.
No final da cadeia de dúvidas, que pode se estender indefinida­
mente, ele encontrou uma única certeza que pode servir como ponto 
de partida seguro para o pensamento. Valendo-se unicamente da lógi­
ca, sem buscar nenhuma certeza transcendental, o método cartesiano 
conduziu a uma certeza mínima, que ao mesmo tempo conforta o sujei­
to moderno e pesa sobre ele: a única certeza lógica em que podemos 
confiar é a existência do eu. O eu que pensa, existe; no final da cadeia 
de dúvidas sempre vamos encontrar um eu que duvida. Mas essa cer­
teza não era suficiente para Descartes; ele precisava ir além. Se o cogi­
to foi a etapa de seu método que mais se popularizou nos séculos 
seguintes, é porque contribuiu com as teorias do conhecimento ade­
quadas à sociedade laica e individualista à qual pertencemos. Hoje, 
para o homem comum, a herança cartesiana resume-se ao cogito, à con­
fiança na existência e na soberania do eu.
Descartes, com o método da dúvida, chegou à verdade do cogito, 
como um pequeno pedaço de terra firme onde podia pisar com segu­
rança para prosseguir em sua busca da verdade. Essa terra firme é o 
próprio eu que pensa e que duvida. Trata-se de um ponto de partida 
muito pesado para nós, ocidentais modernos: localizar o primeiro fun­
damento da verdade no eu.
Descartes não era um sofista; não estava procurando uma verdade 
lógica baseada em uma premissa inventada, mas uma verdade que fun­
damentasse a reconstrução de uma regra segura para o conhecimento. 
Essa construção começa com o cogito, ergo sum, mas não termina aí. A 
continuação do cogito é: se essa coisa que eu percebo de maneira tão 
clara e distinta é verdadeira — a existência de meu eu —, então, posso 
confiar que tudo o que percebo de maneira clara e distinta seja igual­
mente verdadeiro. Posso confiar na capacidade de percepção clara e 
distinta que Deus me deu.
Mas, para ser fiel ao método, Descartes vai um pouco mais longe 
e propõe um quinto nível de dúvida: e se Deus for um gênio engana­
dor? E se ele dotar o homem de uma capacidade de falsa percepção? 
Então estaríamos isolados de toda possibilidade de conhecer o mundo. 
O cogito só nos garante a verdade de nossa existência, mas não nos 
assegura nada sobre a existência do mundo. Se o método cartesiano só 
nos conduzisse até a certeza estabelecida pelo cogito, estaríamos aban­
donados em uma existência vazia de qualquer certeza, apoiados ape-
118
r
n.is nn nosso eu inflado, perdidos em um mundo que nem sabemos se 
rxisle ou se é um delírio solitário.
Contra isso, Descartes afirmaque não podemos aceitar a imperfei­
ção de Deus. Se a existência de Deus não era refutada no século xvn 
nem pelos céticos, o quinto passo do método cartesiano era infalível. A 
bondade de Deus também não estava em dúvida. Deus é igual à idéia 
que fazemos dele, e essa é uma idéia de perfeição. Se Deus fosse enga­
nador, nossa concepção da percepção de Deus estaria errada, e não 
poderíamos nem saber se Ele existe. Descartes não foi tão longe por­
que nem a cultura de seu tempo nem os céticos aos quais ele preten­
deu responder foram tão longe. Deus, que tudo pode, tem o poder de 
enganar. Mas o desejo de enganar denota imperfeição e maldade, deno­
ta malícia e fraqueza. Se Deus é bom, o desejo de enganar é incompa­
tível com nossa idéia de Deus. Partindo da idéia da perfeição divina, 
que é a idéia que Descartes, como homem de seu tempo, não poderia 
refutar, o quinto nível da dúvida não se sustenta.
A partir daí ele encontrou o caminho para reconstruir a regra da 
fé, com a ressalva de que a perfeição de Deus não é revelada ao ho­
mem mas pensada por sua razão, percebida pelo homem. Se Deus não 
quis nos enganar e nos dotou da capacidade de perceber claramente 
algumas coisas — e isso, sei a partir da percepção clara e distinta de 
que existo —, posso confiar nessa percepção para, a partir das idéias 
claras e distintas, estabelecer a regra da fé. Assim, o cogito volta a ser 
um critério de verdade firme sobre o qual se pode fundar a relação 
entre o eu, a mente que percebe e julga a clareza e distinção de suas 
idéias, e a verdade.
Embora estivesse tentando resolver a crise cética com argumen­
tos modernos, considero Descartes menos moderno do que Montaig- 
ne, porque sua argumentação depende necessariamente da existência 
de Deus. O curioso é que o pensamento de Montaigne estava próxi­
mo do ceticismo fideísta, mas, para ele, a fé como possibilidade de 
acesso à verdade é uma aposta, não uma garantia. A fé, para Montaig­
ne, não se impõe a partir das evidências da existência de Deus, mas 
está articulada à tradição na qual o sujeito se insere — ser cristão 
como se é alemão ou perigodiano... A estrutura fragmentada dos En­
saios revela a falta de um centro organizador de seu pensamento; em 
Descartes, este centro é Deus. Não que Montaigne fosse herético, ou 
recusasse a existência de Deus. Sua argumentação jamais se ergue 
contra as razões da fé, mas parece que passa ao largo delas. A ênfa­
se de Michel de Montaigne no relato meticuloso e livre de sua expe­
riência é tão importante que faz sombra a seu fideísmo. O que Mon-
119
laigne constrói nos Ensaios é o projeto de um eu <|ue e no mesmo 
(empo centro de referência da experiência sensível e lestemunho da 
impossibilidade de estabelecer uma verdade, porque é instável, frag­
mentado e centrípeto.
O método cartesiano de construção de um critério de certeza sal­
vou os séculos seguintes da dúvida cética, mas deixou o sujeito moder­
no ainda mais desamparado. A modalidade moderna do desamparo 
consiste nisto: o homem está condenado a decidir sozinho a respeito 
da verdade. Desamparo, vontade de amparo e desejo de servidão coe­
xistem no sujeito moderno — o desejo de servidão advém do medo que 
sentimos em relação a nossa liberdade, inaugurada por Lutero, e a 
nossa responsabilidade individual, afirmada por Descartes.
A modernidade é então uma época que seguiu desenvolvendo es­
tas duas vertentes: de um lado estão as dúvidas e as incertezas que fun­
dam nossa liberdade e nosso desamparo — se nenhuma verdade é 
absoluta e tenho que escolher a partir da razão, saio fora da tutela das 
igrejas e das autoridades filosóficas; do outro lado estão as reconstru­
ções de grandes sistemas totalitários, de pensamento e também de 
poder, aos quais os sujeitos aderem espontaneamente (à maneira da 
servidão voluntária apontada por La Boétie), para tentar amparar-se e 
livrar-se da solidão da responsabilidade individual. Os modos de alie­
nação modernos, de pensamento ou de crenças e adesões a sistemas, 
ou de “comportamento” (como os que são promovidos pela publicida­
de), são tentativas do sujeito moderno de amparar-se novamente. A res­
ponsabilidade individual e a parceria entre liberdade e alienação são 
vetores subjetivos próprios da modernidade desde Descartes.
Ele conseguiu, de qualquer maneira, remendar a brecha provoca­
da pela crise cética pelo menos por mais dois séculos, até o advento 
dos filósofos iluministas no final do século xvui. Não conseguiu sepul­
tar o ceticismo, mas conseguiu estabelecer um forte argumento para 
aqueles que buscam certezas. Um argumento que contribuiu para insu­
flar o eu, e conseqüentemente aumentar a culpabilidade, do sujeito 
ocidental.
A VERDADE QUE ESCAPA AO EU
E o inconsciente, onde entra nisso tudo? Vamos dar um salto até o 
século xix para mostrar como o desenvolvimento do eu inflacionado da 
modernidade, que se inaugurou com Descartes, conduziu ao advento 
do sujeito neurótico da psicanálise. O neurótico é um sujeito que sofre
120
(Ir uma culpa permanente: uma culpa inconsciente, escreveu Freud. Ao 
contrário do cristão, que sabe quais pecados tem que confessar, o neu- 
i (>t ico moderno sofre de um sentimento de culpa por um crime, ou um 
pecado, que sua consciência desconhece. Para manter a soberania do 
cu, o sujeito moderno tem que afastar de sua mente todos os pensa­
mentos contraditórios, todos os impulsos perturbadores que poderiam 
turvar a hegemonia da razão que se pretende capaz de decidir com cla­
reza e nitidez sobre a verdade. O que ocorre é o oposto: quanto mais 
o homem da razão soberana se aparta de si mesmo, quanto mais ele 
tenta ser coerente com sua consciência e banir a desrazão, mais o 
inconsciente adquire poder sobre seus atos e suas representações. Se o 
sujeito solar da modernidade é, no dizer de Luiz Costa Lima, aquele 
que, além de produzir suas próprias representações, se pretende pro­
prietário delas — um sujeito pleno, capaz de representar a si mesmo e 
ao real, que ele alcança com o poder da razão —, esse sujeito é fratu­
rado a partir daquilo que, nele mesmo, escapa ao controle racional.
Freud veio mostrar que o centro do eu não está na razão, está no 
inconsciente. A sede pulsante do eu acaba por decidir nosso destino, e 
mesmo nossos pensamentos, muito mais do que a razão. Freud veio 
dissociar o eu da razão, e dizer que nossas certezas sobre a verdade do 
inundo são alteradas, em primeiro lugar, pelo princípio do prazer e, em 
segundo lugar, porque o recalque das representações do desejo incons­
ciente leva também ao recalque das representações que, por associa­
ção, poderiam reconduzir a ele. O neurótico é um sujeito que fecha o 
acesso às suas próprias percepções, tentando excluir de seu campo de 
receptividade as informações contraditórias e as perturbações do mun­
do. Para satisfazer os impulsos recalcados vale-se dos sintomas e das 
fantasias. Ao fazer isso, em obediência às exigências de totalização do 
superego, perde o controle sobre aquilo que mais o afeta: o desejo in­
consciente.
Lacan expressou brilhantemente essa “subversão do sujeito” ao 
inverter o cogito cartesiano: eu sou onde não penso, e penso onde não 
sou. Ele virou de cabeça para baixo o sujeito cartesiano. Esse “eu” que 
pensa não coincide com o sujeito do desejo inconsciente; o lugar da 
verdade inconsciente não é o lugar do pensamento.
A psicanálise é um dos pensamentos fortes da modernidade, sem­
pre mal recebido porque veio dar notícia do fracasso das pretensões 
do sujeito cartesiano. Ao mesmo tempo, a psicanálise propõe para 
esse sujeito que fracassa em suas pretensões de soberania e lucidez 
uma abertura para o outro: tanto o outro do processo analítico, o ana­
lista na transferência, como o outro do inconsciente. A abertura para
121
o oulro que habita em nós é uma condição para a tolerância, pois uma 
das bases da intolerância é omecanismo defensivo de projetar sobre 
o outro — meu semelhante na diferença — tudo aquilo que eu rejei­
to em mim mesmo. Se não quero admitir o “mal” e a contradição em 
mim mesmo, vou projetá-los no outro, e eliminar no outro aquilo de 
que não quero saber, em mim. E, quanto mais próximo for o próximo, 
mais ele serve de suporte para esse mecanismo de defesa — foi o que 
Freud percebeu ao articular a intolerância ao “narcisismo das peque­
nas diferenças”.
Uma vez revelada, na modernidade, a fratura do sujeito solar — a 
evidência do sujeito do inconsciente —, todas as tentativas de negá-la 
e restaurar a totalidade (do sujeito? da verdade? do mundo?) foram, e 
continuam sendo, brutais.
O maniqueísmo que se agrava nos dias atuais, e que pode se pola­
rizar em uma falsa divisão inconciliável — Leste/Oeste, ou islamis- 
mo/cristianismo etc. — me faz pensar se as sociedades que ainda dife­
rem do Ocidente moderno dito “civilizado”, que não se incluem nos 
moldes da cultura globalizada, não estão sendo transformadas no “eixo 
do mal” porque são justamente as culturas que podem colocar em xe­
que o nosso paradigma capitalístico e anunciar a sobrevivência das for­
mações comunitárias pré-modernas das quais nos apartamos — e cuja 
memória recalcamos — em função dos imperativos da acumulação do 
capital.
É importante pensar que o conflito Ocidente versus islã hoje talvez 
não seja um conflito entre bárbaros e civilizados, mas entre as modali­
dades de barbárie produzidas por ambos os sistemas, em que cada um 
tenta eliminar no outro os elementos que podem perturbar suas certe­
zas de estar do lado do Bem e da Verdade, únicos e inquestionáveis.
No final da década de 1960, Susan Sontag profetizou que as sóli­
das convicções dos vieteongues os levariam a ganhar a guerra. Mas ela 
se orgulhava de pertencer a um país progressista e multifacetado, inca­
paz de oferecer a mesma visão segura do bem e do mal que orientou 
o espírito revolucionário no Vietnã. Hoje, quem tem convicções aparen­
temente inabaláveis é uma larga parcela da civilização ocidental. Se a 
melhor tradição que a modernidade produziu foi a tradição da dúvida 
e da incerteza, que nos permitiu conviver com a diferença e extrair 
disso um potencial criativo; se é isso que estou chamando de civiliza­
ção, então a restauração das convicções absolutas que podem ajudar os 
Estados Unidos a vencer uma guerra seria sinal de uma nova barbárie.
Ao tentar convencer o resto do mundo da necessidade de bombar­
dear o Iraque, ao tentar identificar o ditador Saddam Husseim como o
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ni.il absoluto” e justificar uma intervenção bélica em nome do “bem”, 
m presidente norte americano George W. Bush vem misturando argu- 
menlos políticos com apelos religiosos em seus discursos, o que é um 
perigoso desrespeito à condição laica dos Estados modernos. Os cida- 
d.ios norte-americanos podem ser majoritariamente religiosos, mas o 
podei do Estado não se assenta sobre a vontade divina. Esta é uma con­
quista moderna da qual não deveríamos abrir mão, ao preço de obscu- 
ireei as decisões políticas, sobre as quais a sociedade democrática de­
veria poder opinar livremente.
|á a questão proposta por Susan Sontag não deve ser colocada, do 
IMinto de vista civilizado, sobre quem há de vencer a guerra. A melhor 
tradição da modernidade não é aquela que mobiliza nas populações 
sua determinação guerreira, e sim aquela que aposta no diálogo, nas 
negoc iações e na tolerância mútua como recursos para que as guerras 
se tornem desnecessárias.
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