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Os Evangelhos I (Barbaglio)

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BÍBLICA LOYOLA
Sob a responsabilidade da Faculdade de Teologia do CES, 
Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus 
Belo Horizonte — M G
1-8 : COMENTÁRIOS AO NOVO TESTAMENTO 
1-2 : Os Evangelhos 
3 : Os Atos dos Apóstolos
4-6 : As Cartas de Paulo
7 : As Cartas Católicas
8 : O Apocalipse
GIUSEPPE BARBAGLIO 
RINALDO FABRIS 
BRUNO MAGGIONI
Tradução e comentários
OS EVANGELHOS ( I )
Adições cLoyola
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Os Evangelhos, I / traduçao e comentários Giuseppe 
Barbaglio, Rinaldo Fabris, Bruno Maggioni ; tra­
dução Jaldemir Vitorio, Giovanni di Biasio ; su­
pervisão Johan Konings. — Sao Paulo : Loyola, 
1990- . — (Biblica Loyola ; 1)
Publicado v. 1.
ISBN 85-15-00078-4 (v. 1)
1. Biblia. N.T. Evangelhos - Comentários I. Bar­
baglio, Giuseppe. II. Fabris, Rinaldo. III. Maggioni, 
Bruno. IV. Serie.
90-0997 CDD-226.07
índices para catálogo sistemático:
1. Evangelhos : Comentários 226.07
Título original 
1 Vangeli
© Cittadella Editrice, Assis, 1978 
Revisão
Silvana Cobucci Leite 
Com aprovação eclesiástica
Edições Loyola
Rua 1822 n. 347 
04216 — São Paulo — SP 
Caixa Postal 42.335 
04299 — São Paulo — SP 
Tel.: (011) 914-1922
ISBN 8 5 - 1 5 - 0 0 0 7 7 - 6 
vol. 1 00078 -4
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1990
ÍNDICE DO PRIMEIRO VOLUME
Nota à tradução brasileira ....................................................................................... 7
Prefácio ........................................................................................................................ 8
Abreviaturas dos livros bíblicos ........................................................................ 9
Siglas .............................................................................................................................. 10
INTRODUÇÃO G ERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
por Rinaldo Fabris ............................................................................................ 11
O EVANGELHO DE MATEUS
Tradução e comentários de Giuseppe Barbaglio ......................................... 33
Introdução ................................................................................................................... 35
Texto e comentários ................................................................................................... 74
Notas:
Interpretação do Sermão da Montanha ................................................ 146
O indivíduo na comunidade cristã .................................................... 287
Matrimônio e divórcio na igreja de Mateus .......................................... 295
O EVANGELHO DE MARCOS
Tradução e comentários de Rinaldo Fabris ................................................. 421
Introdução ..................................................................................................................... 423
Texto e comentários ................................................................................................... 430
Notas:
Os irmãos de Jesus ................................................................................... 458
Demônio e endemoninhados no evangelho de Marcos ................. 477
Os milagres de Jesus no evangelho de Marcos ................................ 480
O “ segredo messiânico” e a cristologia no evangelho de Marcos 506
Discípulos e comunidade no evangelho de Marcos ............................ 541
Jesus diante de sua morte........................................................................ 544
O processo de Jesus: motivos da condenação à m o r te ................... 613
PREÁCIO À TRADUÇÃO BRASILEIRA
O presente volume vê a luz simultaneamente ao quarto volume da mesma 
coleção “Bíblica Loyola”, dedicado às cartas de São Paulo. Já que este foi 
encaminhado primeiro, é nele que se pode ler uma introdução mais extensa 
à tradução brasileira de toda a coleção. Sendo o presente volume, porém, o 
primeiro número da coleção, parece-nos conveniente saudar aqui o leitor e 
resumir em poucas palavras o intuito desta obra, conforme as palavras dos 
editores originais quando da primeira reimpressão da obra em italiano:
“A obra se destina a leitores que já possuem ou querem adquirir bastante 
informação sobre os estudos histórico-exegéticos atualmente publicados a res­
peito da formação dos quatro evangelhos e das características que apresentam, 
especialmente sob o ângulo histórico e literário.
“Tal preparo capacita o leitor para apreciar o comentário aos evangelhos 
que aqui oferecemos de modo adequado e a encontrar nele proveito quer do 
ponto de vista intelectual, quer espiritual.
“É sobretudo preciso ter presente que, obviamente, como em qualquer 
outra ciência, nem todos os resultados do estudo bíblico têm o mesmo valor. 
Ao lado de soluções solidamente adquiridas e aceitas por todos, existem outras 
que não possuem o mesmo grau de certeza, mas que são dignas de maior ou 
menor atenção e que continuam sendo discutidas entre os próprios peritos.
“Estas últimas hipóteses pareceram aos Autores do presente comentário 
dignas de sustentação, seja de menção como provável, possível ou simplesmente 
existente. Somente à luz de ulterior aprofundamento, e sempre com conside­
ração do magistério da Igreja no campo bíblico, poderão ser aceitas como 
seguras, ou rejeitadas.
“Por causa deste seu caráter, acreditamos que a presente obra possa con­
tribuir para fazer conhecer a um público mais amplo, mediante o fruto de 
anos de sério trabalho de pesquisa da parte dos Autores, o caminho percorrido 
pelos estudos bíblicos nestes últimos anos.”
A equipe brasileira se escusa por não ter adaptado a tradução ao 
público leitor. Não tivemos tempo, nem condições para consultar as edições 
brasileiras das obras citadas em rodapé, inclusive porque a cada dia aparecem 
traduções dos clássicos da exegese, de modo que tal adaptação sempre ficaria 
anacrônica. Conservamos as referências às versões italianas, confiando que, no 
caso de pesquisa avançada, o leitor consiga fazer aquilo para que nos fal­
tou o tempo.
J. KONINGS 
(Supervisor)
7
PREFÁCIO
Parece-nos oportuno chamar a atenção dos leitores para o método de 
leitura evangélica adotado nesta obra.
Nossos evangelhos refletem o resultado condensado de uma longa história 
de fiéis que, do ano 30 até por volta do fim do século I, viveram da pala­
vra de Jesus e da palavra que é Cristo.
Nesta história, podemos distinguir três níveis: o mais recente, o do evan­
gelista; o mais antigo, o de Jesus de Nazaré; e o intermediário, o nível da 
comunidade cristã primitiva. De fato, os primeiros cristãos não se limitaram 
a repetir mecanicamente a pregação do Mestre e a referir com detalhada exa­
tidão as lembranças de sua vida. Repletos da luz do Espírito e referindo-se 
constantemente à Ressurreição de Cristo, releram os ditos e fatos do Senhor 
com nova capacidade interpretativa. Os problemas que preocupavam as pri­
meiras comunidades cristãs levaram-nas a não mumificar Jesus no museu da 
realidade passada, mas a atualizar a mensagem e o significado de sua pessoa. 
Não foi diferente o modo de proceder dos evangelistas, confrontados com exi­
gências novas e bem concretas de suas Igrejas. Os evangelhos são fruto da 
viva fidelidade a Jesus de Nazaré da parte de comunidades cristãs que não 
vivem anacronicamente presas ao passado.
Ler os evangelhos quer dizer, portanto, trazer à- luz os três níveis de 
seu conteúdo. Este método não goza apenas de unânime reconhecimento na 
pesquisa dos estudiosos, mas é também acolhido pelo Concilio Vaticano II. 
Seja permitido reproduzir aqui uma frase sintética desta venerável Assembléia:
“ Os Apóstolos, após a ascensão do Senhor, transmitiram aos ouvintes 
aquilo que ele (Jesus) dissera e fizera, com
aquela mais plena compreensão 
de que gozavam, instruídos que foram pelos gloriosos acontecimentos de 
Cristo e esclarecidos pela luz do Espírito da verdade. Os autores sagrados 
escreveram os quatro Evangelhos, escolhendo certas coisas das muitas trans­
mitidas ou oralmente ou já por escrito, fazendo síntese de outras ou explanan­
do-as com vistas à situação das Igrejas, conservando enfim a forma de procla­
mação, sempre de maneira a referir-nos a respeito de Jesus com verdade e 
sinceridade” (Dei Verbum, n. 19).
Assis, fevereiro de 1978 OS AUTORES
8
ABREVIATURAS DOS LIVROS BÍBLICOS
(em ordem alfabética)
Utilizam os neste livro as abreviaturas adotadas pela Tradução Ecumênica 
da Bíblia (T E B ).
Ab Abdias Js Livro de Josué
Ag Ageu Jt Judite
Am Amós Jz Livro dos Juizes
Ap Apocalipse
At Atos dos Apóstolos Lc Lucas
Lm Lamentações
Br Baruc Lv Levítico
Cl Colossenses Mc Marcos
ICor 1? Corintios lM c 19 Macabeus
2Cor 2? Corintios 2Mc 29 Macabeus
lCr 19 Crônicas Ml Malaquias
2Cr 29 Crônicas Mq Miquéias
Ct Cântico dos Cânticos Mt Mateus
Dn Daniel Na Naum
Dt Deuteronômio Ne Neem ias
Nm Núm eros
Ecl Eclesiastes (Coélet)
Ef Epístola aos E fésios Os Oséias
Esd Esdras
Est Ester lPd 1? Pedro
Ex Êxodo 2Pd 2? Pedro
Ez Ezequiel Pr Provérbios
Fl Filipenses Rm Romanos
Fm Filemon lR s 19 Reis
2Rs 29 Reis
G1 Gálatas Rt Rute
Gn Gênesis
Sb Sabedoria
Hab Habacuc Sf Sofonias
Hb Hebreus SI Salm osISm 19 Samuel
2Sm 29 SamuelIs Isaías Sr Sir ácida (Eclesiástico)
Jd Judas Tb Tobias
J1 Joel Tg Tiago
Jn Jonas lT m 1? Timóteo
Jó Jó 2Tm 2? Tim óteo
Jo João lT s 1? Tessalonicenses
lJo 1? João 2Ts 2? Tessalonicenses
2Jo 2? João Tt Tito
3Jo 3 ^ João
Jr Jeremias Zc Zacarias
Transcrição de termos gregos (N. do Supervisor)
Procuramos a m aior proxim idade possível com o sistem a de grafia e acen­
tuação da língua portuguesa. Observe-se porém que g sem pre é pronunciado 
com o gu, ch com o kh (aprox.), y com o o u francês e ou com o o u português, 
ôm ega e eta são representados ô e ê.
9
SIGLAS
AssSeign = Assemblée du Seigneur
AT = Antigo Testam ento
BibOr §g Bibbia e Oriente
Bi e Bib = Biblica
BiViChr e BVC Bible et vie chrétienne
BiLeb = Bibel und Leben
BTBib = Bulletin de Théologie Biblique
BZ = Biblische Zeitschrift
CBQ = Catholic Biblical Quarterly
CC Civiltà Cattolica
Con = Concilium
DivTh = Divus Thomas
DBS e SDB = Dictionnaire de la Bible Supplément
EstBib — Estúdios Bíblicos
ETL = Ephem erides Theologicae Lovanienses
EvTh = Evangelische Theologie
GLNT - : Grande Lessico dei Nuovo Testam ento
Gr = Gregorianum
LumVie = Lumière et Vie
MaisD : La Maison-Dieu
MüTZ = Münchener theologische Zeitschrift
NRT = Nouvelle Revue Théologique
NT Novo Testamento
N TS(t) New Testam ent Studies
PAF — Parola per 1’assem blea festiva
Par Vi Parole di Vita
Prot Protestantism o
RB — Revue Biblique
R B ilt = Rivista Biblica Italiana
RecSR =: Recherches de Science Religieuse
RevTh = Revue Thom iste
RicBibRel = Ricerche Bibliche e Religiose
RHPR Revue d ’Histoire et de Philosophie Religieuse
RQUMRAN Rotoli di Qumran
RSPT = Revue de Sciences philosophiques et théologiques
RSR = Revue de Sciences Religieuses
RTL — Revue théologique de Louvain
RTM = Rivista di Teologia morale
RTP = Revue de Théologie et de Philosophie
SC = Scuola Cattolica
SE Jgj Sciences Ecclésiastiques
Se = Science et Esprit
SD = Sacra Doctrina
StPatav Studia Patavina
StTh = Studia Theologica
TOB = Traduction oecum énique de la Bible (Nouveau Testam ent)
TTZ = Trierer Theologische Zeitschrift
TWNT = Theologisches Worterbuch zum Neuen Testament
VD = Verbum Domini
ZNW = Zeitschrift für Neutestam entliche W issenschaft
ZTK = Zeitschrift für Theologie und Kirche
10
INTRODUÇÃO GERAL 
AOS EVANGELHOS SINÓTICOS*
por Rinaldo Fabris
A partir do momento em que “ a vida de Jesus” tornou-se um fato pú­
blico, com a execução do rabi de Nazaré, em uma Páscoa hebraica dos anos 
30 d.C., também a história de suas palavras e de seus gestos começou 
a ser um assunto público, sujeito às regras do controle social. Além disso, 
o ambiente e a tradição cultural judaica palestinense do século I, nos 
quais Jesus falou e agiu, não só lhe ofereceram os modelos de pensamento 
e ação e os instrumentos lingüísticos, mas condicionaram também a interpre­
tação e a transmissão de suas palavras e de seus gestos. Quando começou 
a imigração dos grupos cristãos para além dos confins da Palestina e da 
área cultural judeu-helenística, toda a mensagem e a obra de Jesus tiveram 
de sofrer uma tradução cultural, empreendida por cristãos de língua grega. 
Os três evangelhos sinóticos podem ser considerados o ponto de chegada 
dessa evolução histórica, na fronteira entre a primeira e a segunda geração 
cristã, em torno dos anos da catástrofe judaica (anos 66-70: guerra que se 
conclui com a destruição de Jerusalém).
A migração cultural não termina aqui, porque os três opúsculos, como
de resto toda a Bíblia, quando foram introduzidos na área cultural de lín­
gua latina, tiveram de adaptar-se a uma nova tradução que desembocou, 
através de uma longa gestação, na versão “ vulgata” ou versão “ difundida” e 
comum, aceita oficialmente pela Igreja ocidental. Na época do renascimento, 
com a redescoberta e valorização dos textos gregos originais, preparou-se o 
caminho para a nova virada dos evangelhos: a tradução nas línguas moder­
nas. Deste ponto, os opúsculos ou evangelhos sobre Jesus de Nazaré se inse­
rem no ritmo da evolução cultural moderna.
Agora surge espontaneamente uma série de interrogações: quem pode 
garantir a fidelidade e autenticidade do material evangélico? É possível ainda 
reconstruir o significado original dos gestos e das palavras de Jesus? Esse 
significado, admitindo-se que seja possível reencontrá-lo intato, tem ainda 
algo para dizer aos homens de hoje?
* L. MORALDI-S. LYONNET, In troduzione alia Bibbia, IV. I Vangeli, Tu­
rim, Marietti, 1960.
LÉON-DUFOUR-Ch. PERROT, In troduzione al NT. II. Vannuncio dei Vangelo, 
Roma. Borla, 1977.
A. WIKENHAUSER, Introduzione al N uovo Testam ento , Brescia, Paideia,
2 1966.
K. H. SCHELKLE, In troduzione al N uovo T estam ento , Brescia, 1967.
P. GRELOT, In troduzione alia Bibbia, Roma, EP, 4 1976, 448-480.
C. M. MARTINI, Introduzione ai Vangeli sinottici, in M essaggio delia sal-
vezza, Turim, E lle DI Cl, 1968, 3-145.
A. VOGTLE, II N uovo T estam ento nella recente esegesi cattolica, Turim, 1969.
S. ZEDDA, I Vangeli e la critica oggi, I-II, Treviso, Trevigiana, 1969-1970.
O. CULLMANN, II N uovo Testam ento, Bolonha, II Mulino, 1970.
VV.AA., In troduzione al Nuovo Testam ento , Brescia, M orcelliana, 2 1971.
C. P. D. MOULE, Le origini dei N uovo Testam ento, Brescia, Paideia, 1971.
B. CORSANI, In troduzione al N uovo Testam ento, I, Turim, Claudiana, 1972.
13
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
Assim como os evangelhos constituíram os textos normativos da comu­
nidade religiosa cristã, a sua leitura, em todo o caminho histórico através 
das diversas épocas e diferentes ambientes culturais, foi sempre controlada
pela própria comunidade cristã ou Igreja. Este controle seguiu as leis das
várias épocas e ambientes. Na época moderna, afirmou-se paulatinamente, em 
conexão com fenômenos análogos em outros setores, um duplo controle: um
religioso por parte da comunidade crente e um científico por parte das ins­
tituições culturais. Graças aos modernos e aperfeiçoados instrumentos de pes­
quisa histórica, filológica, textual, literária, lingüística etc., aumentou nota­
velmente a possibilidade de verificar e controlar a tradição cultural dos 
evangelhos.
Nesta rápida resenha introdutória serão apresentados os vários problemas 
e as soluções atualmente propostas em uma leitura moderna e crítica dos 
evangelhos sinóticos.
O evangelho e os evangelhos 1
Só pela metade do século II d.C., pelo ano
150, o termo “evangelho” 
foi usado para designar um liv ro .2 Nos documentos cristãos mais antigos, 
cartas de Paulo, este vocábulo indica a boa notícia, o anúncio público da 
salvação na pessoa de Jesus, o Cristo (Rm 1 ,1 .9 .16 ; ICor 15,1). Se em se­
guida aos quatro opúsculos surgidos em torno do evento de Cristo foi apli­
cada a palavra “ evangelho” deve-se ao fato de que nestes livros se reconhece 
aquela proclamação da boa notícia da salvação de Deus que se realizou nas 
palavras e obras, na morte e ressurreição de Jesus, o Cristo. O evangelho de 
Marcos, atualmente considerado o primeiro dos três evangelhos sinóticos, 
abre-se com esta inscrição programática: “ Evangelho de Jesus Cristo Filho 
de Deus” (1,1). Mas, na trama do livro, que recolhe palavras e ações de 
Jesus, o protagonista central do anúncio alegre ou boa notícia é o próprio 
Jesus, que proclama o “ Reino de Deus” (Mc 1,15). Portanto, o termo “evan­
gelho” , antes de designar um gênero escrito, serviu para definir a atividade 
e o conteúdo de um anúncio e pregação pública itinerante, primeiro da parte 
de Jesus, depois da parte da comunidade que a ele se refere. É precisa­
mente esta pré-história de tradição oral e comunitária que explica as caracte­
rísticas literárias dos opúsculos que trazem o nome de “ evangelho” .
Quem se aproxima pela primeira vez destes escritos tem uma impressão 
de fragmentariedade, desordem e lacunosidade atrás de uma aparente simpli­
cidade esquemática e essencial. De fato, em um livro que trata de Jesus de 
Nazaré e de sua atividade, diz-se pouco ou nada de seu ambiente socioló­
gico, da família, do seu aspecto físico. Se excluirmos os poucos e fragmentá­
rios dados sobre o nascimento e a infância, nenhuma informação precisa é 
dada a respeito de sua vida, suas experiências antes da atividade pública. 
Mas sobre esta as informações são muito genéricas e lacunosas. Não é pos­
1. R. DEVRESSE. II Vangelo e i vangeli , Milão, 1962; G. FRIEDRICH, 
Euanghelizom ai/Euanghelion. GLNT II, Brescia, Paideia, 1967, 1023-1106.
2. Justino, Apologia, I, 66,3.
14
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
sível reconstruir com os dados do evangelho uma cronologia e topografia 
precisa da atividade de fesus. Até mesmo o relato mais detalhado da prisão 
e da condenação à morte em Jerusalém descura muitos elementos indispen­
sáveis para reconstruir a seqüência e a concatenação dos fatos.
Em suma, os evangelhos não podem ser catalogados na ficha bibliográ­
fica sob o título “ biografia” ou vida de um fundador de religião. Outro tanto 
insatisfatórias são as tentativas de colocar estes escritos na série dos conhe­
cidos modelos de literatura religiosa: “ fioretti” , relatos histórico-religiosos, ma­
nuais para o culto, para a pregação e a catequese etc. Sob o aspecto for­
mal, os evangelhos podem ser aproximados de um ou outro modelo, mas não 
se deixam reduzir a um esquema preciso.3 Eles certamente se inserem no 
âmbito da literatura religiosa popular, mas fazem derivar sua marca original 
do acontecimento histórico de Jesus e da comunidade que dele se origina. Por 
isso o melhor modo para compreender o gênero literário “evangelho” , na 
sua especificidade, é seguir as etapas da sua gênese histórico-literária.
Como apareceram os evangelhos 4
Qualquer tentativa de reconstruir a pré-história dos evangelhos, mesmo 
a mais elaborada cientificamente, não dispõe de fontes ou informações secre­
tas, mas unicamente dos próprios textos evangélicos confrontados com todos 
os demais documentos cristãos que formam os escritos do NT e com todos os 
documentos que possam oferecer dados ou informações sobre o ambiente 
religioso e cultural do século I. Por isso, o ponto de partida são os dados de 
fato oferecidos pelos próprios evangelhos, dados que suscitam interrogativas e 
problemas aos quais a pesquisa histórico-literária procurará, com os próprios 
métodos e instrumentos, dar uma solução.
Um primeiro dado que chama a atenção do leitor do evangelho é a trama 
quebrada e fragmentária do tecido narrativo. O material evangélico dá a im­
pressão de ser um coágulo de pequenos blocos literários, formados por bre­
ves sentenças recolhidas sobre um tema, ou então por um episódio isolado 
ou, de qualquer modo, sem nexos precisos com o contexto.
Algumas destas pequenas unidades literárias, centradas sobre uma sen­
tença ou episódio de Jesus, são construídas segundo um esquema estereotipado:
3. R. BULTMANN, Geschichte der synoptischen Tradition, Gõttingen, ^ 1967, 
399-440, depois de ter procurado as analogias entre os evangelhos e certos opús­
culos da cham ada “literatura m enor” (K leinliteratur) , nos quais são reunidos 
episódios e discursos de personagens fam osos e populares, conclui: “Parece-me 
que quanto m ais são necessárias as analogias para com preender cada parte da 
tradição sinótica, tanto m enos elas servem para a com preensão do evangelho 
na sua globalidade”. As analogias existentes fazem ressaltar com m ais evidência 
a singularidade do evangelho. “Ele é um a criação original cristã.” Cf. tam bém
C. F. MOULE. Le origini dei NT, 22, “Não existem escritos verdadeiramente 
sem elhantes que o tenham precedido; trata-se do prim eiro exem plo que nos 
restou de um novo gênero literário”.
4. A. VÕGTLE, Form azione e struttura dei Vangeli in Discussione sulla 
Bibbia, Brescia, 1966, 79-123; L. CERFAUX, Gesü alie origini delia tradizione, Roma, 
EP, 1970; X. LÉON DUFOUR, I Vangeli e la storia di Gesü, Roma, EP, 3 1970; 
I. DE LA POTTERIE (org.), Da Gesü ai vangeli, Assis, Cittadella, 1971.
15
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
— existe aí uma fórmula de introdução: “ Naqueles d i a s . . . ” (Mc 8,1); 
“ naquele te m p o . . .” (Mt 11,25; 15,1); “ depois destas coisas” (Mt 14,22); 
referências genéricas ao lugar: “em casa, às margens do lago” etc. (Mc 2 ,1 .13);
— depois é apresentada a intervenção dos adversários de Jesus, geral­
mente escribas e fariseus, por meio de uma objeção ou pergunta ocasionada 
por um modo de agir de Jesus ou dos discípulos;
— neste ponto é citado o ensinamento de Jesus que se serve de uma 
contrapergunta ou de uma citação da escritura. Freqüentemente o ensina­
mento se conclui com uma sentença final;
— segue-se uma rapidíssima nota conclusiva.
Esta estrutura ou modelo literário se verifica na série relatos ou deba­
tes que se encontram na primeira parte do evangelho de Marcos (2,1-3,6)
ou na última semana (11,27-12,37). Eles têm seus paralelos nos outros dois 
evangelhos sinóticos, Mateus e Lucas.
Também nos relatos de episódios miraculosos pode-se facilmente indivi- 
duar um clichê ou modelo literário:
— um doente ou outros necessitados de ajuda se aproximam de Jesus;
freqüentemente, põe-se bem em evidência a desgraça ou a situação de difi­
culdade (doença, medo etc.);
— Jesus dirige a palavra ao doente, toca-o e atende o pedido;
— o sucesso da ação e palavra eficaz de Jesus é expressamente consta­
tado e uma nota conclusiva observa o estupor dos presentes.
Os elementos essenciais deste esquema narrativo encontram-se na série 
de milagres referidos por Marcos 4,35-5,43 e par. ou em outros episódios 
isolados (Mc 1,40-45 par.; 7,31-37; 8,22-26; 10,46-52).
Um segundo fato que se impõe a quem confronta entre si os primeiros três 
evangelhos é a sua semelhança de fundo no que diz respeito à trama ou argumen­
tação do acontecimento: breve resumo da atividade de João, o Batista; coleta de 
palavras e episódios de Jesus no território da Galiléia com algumas incursões nas 
regiões limítrofes; viagem lenta na direção da capital, Jerusalém, na Judéia, 
que oferece a ocasião para referir-se a outros ensinamentos e episódios de 
Jesus; por fim, a conclusão trágica em Jerusalém com a captura, a condenação 
sumária, morte na cruz, ao que seguem alguns fatos e experiências relacio­
nados com a ressurreição.
Esta concordância
de fundo dos três evangelhos sinóticos, em alguns ca­
sos, torna-se concordância literária e verbal, isto é: mesma sucessão de sen­
tenças e até identidade de vocabulário e expressões. Mas este paralelismo a 
três é relacionado com uma concordância a dois, própria de Mateus e Lucas: 
algumas coleções de sentenças ou alguns episódios são referidos, com uma 
notável simetria literária, apenas por estes dois evangelhos, e não por Marcos.
Por fim, todos os evangelhos sinóticos se distinguem entre si não só 
pela autonomia e singularidade do estilo, do vocabulário e da perspectiva 
teológica, mas também pelo material, as palavras e os episódios, mais am­
plos e distintos em Mateus e Lucas. Um exemplo típico desta singularidade 
e autonomia de cada evangelho é o relato da última ceia dc Jesus. Sobre o 
pano de fundo de uma concordância essencial, existe uma peculiaridade de 
estilo e de vocabulário a ponto de as palavras de Jesus sobre o cálice serem
16
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
diferentes nos três evangelhos. Assim também a oração ensinada por Jesus, 
o Pai-nosso, referida por Mateus 6,9-13 e Lucas 11,2-4, varia nas duas res­
pectivas edições evangélicas. O mesmo vale para a proclamação das bem-aven­
turanças (Mt 5,3-12; Lc 6,20-13). Como explicar estes dados de fato, esta 
situação literária singular do material referido pelos nossos evangelhos: a 
fragmentariedade da trama narrativa, a uniformidade dos pequenos blocos li­
terários, a concordância e as discordâncias dos três evangelhos, a sua auto­
nomia e convergência? Ante estas interrogações e problemas sugeridos pelos 
próprios evangelhos, a comunidade crente procurou sempre propor uma ex­
plicação coerente e satisfatória à medida que esta ajudava a compreen­
der melhor a mensagem de cada evangelho. Nos últimos séculos, as hipóteses 
e as soluções foram elaboradas de maneira sistemática, por exigência de um 
interesse renovado pelos problemas histórico-literários e por um conhecimento 
novo e aprofundado dos documentos religiosos contemporâneos aos evangelhos, 
judaicos e helenísticos.
H ipóteses e soluções atuais: 
história da tradição evangélica
(história das formas e da redação)5
Mesmo uma rápida apresentação das hipóteses e das soluções atualmente 
propostas deveria levar em conta sua evolução histórica ligada à iniciativa 
de um estudo ou círculo cultural; deveria fazer o balanço da sua atendibi- 
lidade científica, do acordo ou convergência dos consensos etc. Em tudo isto 
entram necessariamente critérios de juízo derivados de simpatias culturais, dos 
apriorismos e resistências pessoais ou de grupos que respaldam a verdade 
da informação ou comunicação. É preferível então escolher as hipóteses que 
utilizam as atuais convergências e apresentam uma linha precisa, que pode ser 
facilmente controlada.
1. O núcleo do evangelho. Os atuais evangelhos encontram-se no final 
de uma longa tradição cristã comunitária, que se origina das palavras e 
ações de Jesus. Um momento decisivo e qualificante é constituído pela expe­
riência de encontro com Jesus ressuscitado. A partir deste momento, o grupo 
de homens já reunido em torno de Jesus antes de sua morte começa a 
proclamar abertamente a formidável novidade: Jesus de Nazaré é o Cristo, 
ressuscitado por Deus; é o Senhor. O evangelho se forma ao redor deste 
núcleo de anúncio. Este é um testemunho de fé e um convite à conversão 
para reconhecer em Jesus de Nazaré o Senhor e o Salvador. Por ora, per­
manecem na sombra os detalhes da sua vida e da sua morte. Todos em Je­
rusalém sabem o que lhe aconteceu (Lc 24,18): ressuscitou verdadeiramente 
o homem que Deus credenciou por meio de milagres, prodígios e sinais 
(At 2,22), aquele que passou fazendo o bem e curando aqueles que estavam 
oprimidos pelo diabo, e que os seus adversários fizeram matar, levantando-o
5. H. ZIMMERMANN, Metodologia dei Nuovo Testamento. Esposizione dei 
m etodo storico-critico, Turim, Marietti, 1971; R. S. BARBOUR, Tradition-historical 
Criticism of the Gospel , Londres, SPCK, 1972.
17
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
num madeiro (At 10,38-39). Esta é a primeira forma de evangelho, o núcleo 
em cujo redor, nas etapas sucessivas, coagular-se-ão as coleções de sentenças 
e o tecido narrativo que desembocarão nos evangelhos escritos.
2. História das formas: situação vital da primeira com unidade.6 Foi a 
“história das formas” (ou crítica morfológica) que esclareceu os motivos e 
as intenções do ambiente interno e externo da comunidade que requereram 
esta elaboração. O contexto ou ambiente vital no qual foram retomadas e
elaboradas as palavras e os relatos sobre Jesus pode ser assim reconstruído. 
Perante o anúncio dos testemunhos de Jesus formaram-se dois grupos: os não- 
-crentes e os crentes. Missionários e apóstolos procuram convencer e aproxi­
mar da fé os primeiros; catequistas da comunidade procuram reforçar a fé 
dos segundos. Discussões e questões fazem recordar fatos e palavras de Jesus 
que, à luz da experiência pascal, adquirem um significado mais profundo e claro.
3. Pregação. Para suscitar a fé dos não-crentes em Jesus Messias, elen- 
cam-se as “obras do Messias” , os milagres. Entre os relatos referidos pelos tes­
temunhos faz-se uma escolha, toma-se um ou dois de cada espécie e se re­
sume os outros em formas gerais. À força de repetir estes fatos e por tê-los 
presentes no momento da discussão, os discípulos, missionários e catequistas 
compõem séries de milagres, construídas segundo o estilo oral e popular:
criação de fórmula de efeito, procura de palavras-chaves, preparação do mo­
mento final, eliminação dos personagens ou das circunstâncias secundárias, 
acréscimos de detalhes que dão mais relevo a um gesto ou a uma palavra, 
imagens e expressões tomadas por empréstimo da Bíblia para iluminar o con­
teúdo religioso do gesto de Jesus. Segundo as circunstâncias e as necessidades, 
um mesmo milagre será apresentado ora como manifestação do poder de 
Deus em Jesus, dirigida a cada homem para entrar em diálogo salvífico com 
ele, ora como ato que antecipa a salvação do Reino de Deus culminando na 
ressurreição de Jesus.
O anúncio de Jesus Cristo, da sua ressurreição, da sua pregação e ativi­
dade em favor do reino suscita discussões que requerem argumentos diversos
6. Os autores que deram origem ao m étodo centrado na história das form as 
literárias e pré-literárias dos evangelhos são:
R. L. SCHMIDT, Der Rahmen der Geschichte Jesu, Berlim, 1919 (reimpressão 
Darm stadt 1964); M. DIBELIUS, Die Formgeschichte des Evangeliums, Tubinga, 
1919, 5 1966; R. BULTMANN, Die Geschichte der synoptischen Tradition, Go- 
tinga, 1921. 7 1967; Id., Storia dei vangeli sinottici, Bolonha, Dehoniane, 1969; M. 
ALBERTZ, Die synoptischen Streitgesprãche. Ein Beitrag zur Formgeschichte des 
Urchristentums, Berlim, 1921; G. BERTRAM, Die Leidensgeschichte Jesu und der 
Christuskult. Eine formgeschichtliche Untersuchung, Gotinga, 1922.
Para o am biente de língua inglesa:
R. H. LIGHTFOOT, History and Interpretation in the Gospels, Londres,
1937,
Para uma apresentação crítica do m étodo, cf.:
P. BENOIT, Réflexions sur la “Form geschichtliche M ethode”, RB 53 (1964), 
481-512; cf. Esegesi e Teologia, Roma, EP, 11-61; E. FASCHER, Die Formges­
chichtliche Methode. Eine Darstellung und Kritik, Giessen, 1924; E. SCHICK, 
Formgeschichte und Synoptikerexegese, Munique, 1940; K. KOCH, Was ist Form­
geschichte?, Neukirchen, 1964.
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INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
e adaptados para cada ambiente. No ambiente judaico não se pode proceder 
a não ser por meio de citações bíblicas. A atividade e o ensinamento de Jesus 
de Nazaré respondem à antiga e sagrada tradição das Escrituras?
Ate mesmo Jesus tivera de afrontar dificuldades análogas em discussões 
e debates com os círculos cultos da Judéia. Assim as suas sentenças e res­
postas engastadas
em pequenos relatos, os seus ensinamentos reunidos, formam 
a série de controvérsias e ensinamentos exemplares do Mestre.
Além disso, o escândalo dos judeus diante da morte vergonhosa de Jesus 
constringe os discípulos da comunidade cristã a reler, à luz da nova expe­
riência de ressurreição e glorificação de Jesus, toda a Escritura. Através desta 
leitura cristã da Bíblia, os últimos acontecimentos de Jerusalém assumem um 
significado religioso coerente com o plano de Deus. O conjunto de citações 
e alusões bíblicas facilita a apresentação religiosa da história de Jesus e dá 
origem àquele tecido de citações explícitas ou implícitas das quais, no am­
biente helenístico, não resta senão a fórmula: “ Segundo as E s c r itu ra s .. .’’ 
(ICor 15,5b).
4 . Catequese. A apresentação e o aprofundamento da mensagem d e . 
Jesus para os crentes se insere em dois momentos da vida comunitária: a 
catequese e a liturgia. A instrução dos neófitos que aderiram à comunidade 
deve ser aperfeiçoada, a sua vida moral cristãmente orientada deve ser sus­
tentada. Surgem questões, interrogações acerca da vida cristã: como rezar? 
até que ponto se deve perdoar? que posição tomar a respeito das normas 
tradicionais judaicas: proibições alimentares, repouso sabático, o divórcio, ta­
xas ou impostos para o templo? como comportar-se diante dos bens ou ri­
quezas? diante das perseguições ou rupturas familiares devidas à conversão? 
Durante as reuniões comunitárias, nas quais os discípulos eram perseverantes 
(cf. At 2,42), são evocadas as sentenças de Jesus, o seu modo de agir, as 
suas respostas em situações análogas. Formam-se assim coleções de sentenças 
e coleções de parábolas com explicações e aplicações adaptadas às exigências 
da comunidade crente.
5. Liturgia. Além disso, os crentes, embora continuando no início a 
freqüentar o templo, reúnem-se para celebrar a “ ceia do Senhor’’ (ICor 11,17-22). 
Nestas assembléias litúrgicas revocam-se alguns episódios mais solenes da 
vida de lesus. Provavelmente no decurso destas reuniões litúrgicas forma­
ram-se os relatos da Paixão, da ceia, das aparições do Senhor, do seu batis­
mo, transfiguração, tentação, agonia, fundação e organização da vida comunitária.
6 . A tradição evangélica viva e fiel. Foram até agora evidenciadas as 
principais situações da primeira comunidade cristã e os motivos ou exigências 
que favorecem a maturação de uma coletânea dos ditos e das ações de Jesus, 
partindo do núcleo primitivo do anúncio pascal. Os protagonistas desta con­
servação e transmissão do material evangélico, fundados na convicção que 
Jesus não é um simples rabi prestigioso, mas o enviado definitivo de Deus, 
não se limitam a repetir de modo monótono as sentenças e os ensinamentos 
de Jesus, mas transmitem uma mensagem viva confirmando-a com o próprio 
testemunho. Por isso, os primeiros pregadores do Evangelho não hesitam em
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INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
adaptar os ensinamentos do Mestre segundo os ouvintes e os ambientes. De 
fato, o anúncio cristão dá origem à comunidade disseminada em toda a bacia 
mediterrânea, com situações culturais e sociais diferentes. Já a tradução em 
língua grega da mensagem primitiva pregada em aramaico comporta oscila­
ções do significado original. Além disso, a passagem a um novo ambiente cultu­
ral e social, como aquele das cidades greco-romanas, exige uma adaptação, uma 
mudança de acento desta ou daquela parábola ou sentença, uma releitura deste 
ou daquele relato. Quem pode garantir a fidelidade à tradição evangélica ori­
ginária? O caráter estereotipado e normativo da transmissão das sentenças 
e dos ensinamentos autorizados no ambiente palestinense (cf. ICor 11,23; 15,3), 
o controle recíproco entre as comunidades, a liderança reconhecida dos tes­
temunhos e enviados oficiais (apóstolos) são elementos que garantem a fide­
lidade da tradição contra possíveis desvios substanciais.
7. Cristalização das unidades literárias. Como se passou dos pequenos 
blocos narrativos e das coleções de sentenças e palavras, surgidos em am­
bientes e por motivos diversos, às unidades mais amplas e orgânicas como são os 
discursos, as coleções de episódios etc.? A necessidade de ter — seja para 
a pregação, seja para a instrução, a catequese e o culto — um material mais 
completo leva à constituição de reagrupamentos nos quais se entrelaçam 
palavras e fatos em torno de centros de interesse ou temas, lugares e regiões 
da atividade de Jesus: a cidade de Cafarnaum (Mc 1,21-39) ou a região do 
lago (cf. Mc 4,35-5,43); o tema do “ pão” (cf. Mc 6,30-86,26). O material, 
organizado em torno dessas unidades literárias, é inserido no quadro a his­
tória de Jesus, distribuída em quatro grandes etapas: 1. A preparação de 
João Batista nas margens do Jordão; 2. A atividade na Galiléia; 3. A subida 
ou a viagem a Jerusalém; 4. Os acontecimentos da morte e ressurreição (cf. 
At 10,34-43). Neste quadro elástico e fácil de recordar distribuem-se os re­
latos, as palavras, os grupos de sentenças já organizadas.
8. Da tradição oral à tradição escrita. História da redação.7 Por exigên­
cia de conservação e de transmissão, em algumas comunidades, começa-se a 
colocar por escrito parte do material tradicional, talvez as amplas coleções 
de sentenças, segundo uma certa ordem temática, entrelaçadas com uma rá-
7. Os autores que mais contribuíram para o estudo do trabalho redacional 
dos evangelistas são:
Para Marcos: W. MARXSEN, Der Evangelist Markus. Studien zur Redaktions- 
geschichte des Evangeliums, Gotinga, 1956; 2 1959.
Para Mateus: K. STENDAHL, The School of St. Matthew and Its Use of the 
Clã Testament, Uppsala, 1954; W. TRILLING, Das Wahre Israel. Studien zur 
Theologie des Matthãus-Evangeliums, Munique, 3 1964.
Para Lucas: H. CONZELMANN, Die Mitte der Zeit. Studien zur Theologie 
des Lukas, Tubinga, 1954, 5 1964; H. SCHÜRMANN Der Paschamahlbericht Lk 
22,7-14.15-18, Munique, 1953; Id., Der Einsetzunsbericht Lk 22,19-20, Münster, 1955; 
Id., Jesu Abschiedesrede Lk 22,21-38, Münster, 1957.
Para um a apresentação dos resultados da pesquisa atual:
I. RHODE, Die redaktionsgeschichtliche Methode. Einführung und Sichtung 
der Forschungstandes, Hamburgo, 1966; N. PERRIN, What is Redaction Criticism?, 
Londres, SPCK, 1970.
20
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
pida síntese dos episódios mais importantes da vida de Jesus. O prólogo de 
Lucas 1,1-4 recorda que “muitos procuraram compor um relato dos fatos” 
acontecidos nos anos 30 d.C. Baseando-se nestas tentativas de “evangelhos” 
escritos, que flanqueiam a tradição oral, surgem os evangelhos sinóticos atuais. 
Todavia, o primeiro evangelho escrito, o de Marcos, e os outros, não 
são fruto de uma evolução espontânea das primeiras tentativas embrionárias, 
nem fruto de um simples trabalho de compilação, mas resultam de um tra­
balho de composição por parte de verdadeiros autores.
O trabalho redacional dos evangelistas foi posto em relevo por uma sé­
rie de estudos que, em parte, corrigiram e aperfeiçoaram os resultados da
crítica morfológica. Depois da Segunda Guerra Mundial um grupo de pesqui­
sadores, examinando cada um dos evangelhos, evidenciou a perspectiva teo­
lógica de cada um dos autores. Os evangelistas não se distinguem apenas 
por características lexicais, estilísticas ou pelas suas capacidades literárias, mas 
pela sua sensibilidade espiritual, que sabe escutar, com fidelidade, a tradi­
ção evangélica comum, e também percebe os problemas e sugestões do ambiente 
cristão em que vivem.
Perguntando-nos por que o evangelista tenha utilizado uma certa pala­
vra, por que tenha acrescentado ou excluído uma certa expressão ou par­
ticular no relato de um milagre, como coliga um episódio com o precedente 
ou com aquele que segue etc., poderemos ter uma idéia das suas intenções,
da sua angulação cristológica e eclesial particular, do uso que
faz de suas
fontes particulares. Desse exame, os autores de cada um dos evangelhos aparecem 
como escritores cristãos comprometidos e não como cronistas neutrais, crentes 
no Jesus vivo, capazes de responder às urgências espirituais da comunidade 
para a qual escrevem.
Esse trabalho “ redacional” explica a marca singular e típica de cada evan­
gelho, mas não explica completamente as concordâncias e discordâncias indi­
cadas acima. Uma resposta a esse problema pode ser dada apenas pela inter­
pretação das relações dos evangelhos sinóticos entre si e com as suas fontes.
9. Relações entre os evangelhos sinóticos. Questão sinótica. 8 Os pri­
meiros três evangelhos são comumente chamados “ sinóticos” , porque a leitura 
dos três textos, dispostos em três colunas paralelas, pode ser como uma visão 
de conjunto.9 Esse fato sempre levantou o problema das relações recíprocas 
entre estes três evangelhos. A resposta ao problema não satisfaz apenas uma 
curiosidade literária ou histórica, mas permite compreender melhor o signifi­
cado do texto evangélico. O problema sinótico é um canteiro ainda aberto 
à medida que é continuamente atualizado em relação ao progresso das
8. Além dos estudos dedicados a tal questão nas introduções gerais, cf.: 
L. VAGANAY, Le problèm e synoptique, Tournai, Desclée, 1953; A. GABOURY, 
La structure des évangiles synoptiques, Leiden, Brill, 1970; P. BENOIT-M. E. 
BOISMARD, La Synopse des quatre Évangiles, I-II, Paris, Cerf, 1971-1972; 
S. SCHULZ, Q-Die Spruchquelle der Evangelisten, Zurique, TVZ, 1972; W. R. 
FARMER, The Synoptic Problem, Nova Iorque, Macmillan, 1964.
9. O termo “sinótico” deriva precisam ente da edição dos três textos evan­
gélicos paralelos no fim do século X V III, chamada synopsis, termo grego que 
significa "visão sim ultânea”.
21
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS STNÓTICOS
técnicas e métodos de pesquisa histórico-crítica aplicados à exegese. É pois 
perfeitamente compreensível o contínuo superpor-se de hipóteses e tentativas 
de interpretação do fato sinóticc.
Antes de indicar as atuais orientações é oportuno relembrar os dados e 
a situação da qual partem as várias hipóteses. Existem entre os três primeiros 
evangelhos concordâncias e diferenças em três níveis:
a) no material evangélico: com base em um cálculo aproximativo, po­
de-se estabelecer esta distribuição:
— versículos comuns aos três evangelhos (cerca de 330);
— versículos comuns a Mt-Lc (cerca de 230);
— versículos comuns a Mt-Mc (c. 178);
— versículos comuns a Lc-Mc (c. 100);
— versículos próprios de cada evangelho: Mc 53 (sobre um total de 661);
Mt 330 (sobre um total de 1068); Lc 500 (sobre um total de 1150).
b) Na distribuição das secções os três evangelhos seguem aproximada­
mente este esquema comum:
— preparação da atividade de Jesus (João Batista);
— atividade de Jesus na Galiléia;
— viagem a Jerusalém;
— atividade em Jerusalém, morte e ressurreição.
Mas, nesta moldura de fundo, Mateus distribui as secções da primeira 
parte até o c. 14 de modo autônomo; Lucas, na trama comum, insere dois 
blocos ou secções próprias (Lc 6,20-8,3; 9,51-18,14).
c) No uso de termos e expressões: em alguns casos existe um acordo
verbal entre os textos que relatam um mesmo episódio ou sentença de Jesus
(cf. Mt 9,6; Mc 2,10, Lc 5,24, acordo tríplice; Mt 3,7b-10; Lc 3,7b-9, acordo
duplo). Mas, no interior de uma concordância estrutural de fundo, podem-se
verificar notáveis diferenças de vocabulário ou de expressões.
Para explicar, de modo coerente, esta situação, foram propostas várias 
teorias ou hipóteses de interpretação. Na meada de hipóteses, com várias ra­
mificações e reinterpretações sucessivas, existe atualmente uma orientação co­
mum. Dois fatores estão na origem do acordo e discordância dos atuais evan­
gelhos: o influxo da tradição oral e escrita desenvolvida na primeira comuni­
dade (tradição pré-sinótica) e o trabalho redacional de cada um dos evange­
listas. Além disso convergem no fato de considerar que o atual evangelho 
de Marcos não depende do de Lucas e Mateus, e que os evangelhos de Ma­
teus e Lucas são independentes entre si.
As várias hipóteses dividem-se quando se trata de explicar a dependência 
de Mateus e Lucas de Marcos.
a) Hipótese das duas fontes (Mc e Q). O acordo de Mateus e Lucas 
entre si e com a estrutura de Marcos pode-se explicar com um esquema de 
relações que pode ser ilustrado no seguinte gráfico:
22
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
Com a letra Q (do vocábulo alemão Quelle “ fonte”) indica-se a forma 
pré-sinótica da tradição que recolhe, de modo particular, as sentenças de 
)esus, comuns a Mateus e Lucas. Na apresentação atual desta hipótese, as 
particularidades e a autonomia de Mt e Lc explicam-se com a utilização de 
material próprio e com o trabalho redacional dos evangelistas. Além disso, 
permanece aberta à discussão a determinação da fonte Q: é uma fonte escrita 
ou oral? Por fim, até a relação com Marcos é objeto de pesquisa: trata-se do 
evangelho de Marcos atual ou de uma outra edição.
b) Hipótese de mais documentos: os evangelistas teriam utilizado di­
versos blocos de material comum ou coleções de sentenças e episódios mais 
ou menos longos. Alguns autores propõem identificar dois documentos de 
base comuns aos três evangelhos ao lado de diversas tradições não homo­
gêneas. Estes dois documentos explicam a trama comum aos três evangelhos, 
salvo a atividade de Jesus na Galiléia, que dependeria das tradições ainda não 
amalgamadas.
Esses esquemas ou teorias hipotéticas revelam a sua utilidade e mérito 
apenas se permitem individuar, com maior verdade e imediatez, a intenção 
de cada um dos evangelistas e de captar assim o significado dos textos que 
transmitem a mensagem de Jesus.
C om o os textos dos evangelhos chegaram até nós
Escritos em língua grega, na segunda metade do século I d.C., os evan­
gelhos foram recopiados e difundidos rapidamente em concomitância com a 
expansão do movimento cristão. Mesmo que os textos originais autógrafos se 
tenham perdido, a multiplicidade dos testemunhos, relativamente muito vizi­
nhos do tempo de composição dos originais, permite reconstruir com um alto
grau de certeza crítica o texto autêntico. De fato, os primeiros e mais anti­
gos fragmentos de papiros dos textos evangélicos remontam à primeira me­
tade do século II 10 e ao século I I I . 11 Aos séculos IV e V remontam os
códices, isto é. os manuscritos sobre pergaminhos, que dão conta do texto
10. Papiro Ryland ( P?2 ) (M anchester), pertencente à Biblioteca de J. Ryland, 
publicado em 1935. É o m ais antigo fragm ento de papiro do NT, e contém o 
texto de Jo 18,31-38.
11. A este período remontam as m ais antigas folhas de papiro completas: 
os papiros de Chester Beatty P45 46 47 (D ublin), descobertos no Egito por A. Ches- 
ter Beatty e por ele adquiridos em 1930-31, contêm secções am plas dos evangelhos 
e de outros textos do NT; o papiro Bodm er XIV-XV (P7?), pertencente à biblioteca 
de Cologny-Suíça, escrito no fim do século II e início do III, contém dois trechos 
do evangelho de Lucas e de João. Os papiros ou os fragm entos de papiro do NT 
som am atualm ente cerca de 76.
23
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
contínuo dos evangelhos e dos outros escritos bíblicos, em escrita maiúscula. 12 
Além disso, do fim do século II até o V e VI surgem as traduções dos 
textos originais nas várias línguas das Igrejas orientais, siríaca, copta (dialeto 
do norte e sul do Egito), armênia, georgiana. Ao mesmo tempo, difundem-se 
as mais antigas versões latinas, além do ambiente “ europeu” também na região 
da África setentrional (Veíus Latina, século II-III).
Esse trabalho de transcrição e tradução do texto evangélico continua nos 
séculos sucessivos. Do século IX em diante, na transcrição dos códices, pas­
sa-se à escritura minúscula ou cursiva. As letras
são pequenas e unidas entre 
si por tracinhos que permitem escrever de maneira contínua sem levantar 
a pena da folha. Quando, nos séculos XV-XVI, sob o impulso da pesquisa 
humanística e com a possibilidade de multiplicar os textos, graças à imprensa, 
pensou-se em reconstruir um texto autêntico da Bíblia e daí também do 
evangelho, considerado criticamente, deparou-se com uma mole de códices: 
cerca de 250 em escrita maiúscula (uncial) e 2.646 em escrita minúscula ou 
cursiva. Naturalmente na reprodução do texto introduziram-se os inevitáveis 
erros de transcrição do amanuense distraído ou preocupado em tornar mais 
claro ou fluente um texto obscuro e duro ou de harmonizá-lo com um outro 
semelhante. Esses erros ou correções foram retomados pelos sucessivos copistas, 
pelo que se formaram séries ou cadeias de códices aparentados entre si pelas 
mesmas variantes textuais. Em outras palavras, surgem árvores genealógicas 
com famílias de manuscritos em uma mesma zona geográfica ou cultural.
As primeiras edições impressas do NT, a de Erasmo de Rotterdam (1516) 
e de Ximenes de Cisneros (1520), baseiam-se em códices gregos pouco antigos 
que estavam à disposição. No século seguinte começam as primeiras tentati­
vas de reconstrução crítica do texto do NT. As primeiras edições críticas 
que abrem caminhos para as modernas edições do texto neotestamentário e 
dos evangelhos aparecem no século X V III. 13 Os estudos e as pesquisas dos 
últimos 150 anos, se, de um lado, viram crescer o número das variantes com 
a descoberta de novos manuscritos, de outro puderam estabelecer, graças à
12. Os códices m ais im portantes em escrita m aiúscula são: o códice chamado 
“Vaticano”, porque conservado na B iblioteca Vaticana, transcrito no século IV; 
o código “S inaítico”, assim chamado porque foi descoberto no m osteiro de 
Sta. Catarina no Monte Sinai, pelo estudioso K. VON TISCHENDORF, em três 
viagens sucessivas entre 1844 e 1859 (atualm ente encontra-se no British Museum 
de Londres).
13. A primeira tentativa de reconstruir criticam ente o texto do NT é a de 
K. LACHMANN em 1831 em Berlim. Segue a de K. von Tischendorf, Novum 
Testam entum graece et latine. Eãitio octava critica m aior , em dois volumes, 
editada em Leipzig 1869-1872; reim pressa em 1965. Uma outra edição, fruto de 
um im portante trabalho de crítica textual, é a de dois estudiosos ingleses, B. F. 
WESTSCOTT e F. J. A. HORT (prim eira edição im pressa em 1881): The New 
Testament in original Greek, ed. de S. C. LEGG, Oxford, 1935 (Mc); 1940 (M t). 
Estas edições permanecem na base das atuais e m ais recentes edições, que se 
valem não apenas dos m étodos afiados de crítica textual, mas também das novas 
descobertas dos textos escritos sobre papiro.
Edições atuais: E. NESTLE-K. ALAND, N ovum Testam entum graece , Stuttgart, 
25 1963; A. MERK-C. M. MARTINI, Novum Testam entum graece et latine, Ro­
ma, 10 1964; K. ALAND, M. BLACK, C. M. MARTINI, B. M. METZGER, A. WIK- 
GREN, The Greek N ew Testament, Stuttgart, 2 1968.
24
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
aplicação rigorosa do método de crítica textual, um texto grego do NT que
pode ser considerado com um alto grau de probabilidade o mais próximo do
original. Pelo que diz respeito aos evangelhos, ao lado de numerosas varian­
tes que interessam por causa de particulares insignificantes, como inversão 
na ordem da palavra, acréscimo ou omissão de uma partícula etc., perma­
necem apenas algumas passagens onde a tradição continua controvertida.14
Os evangelhos e a “história de Jesus” 15
Depois de ter traçado as etapas da história dos evangelhos sinóticos, po­
demos tentar responder a pergunta inicial: é ainda possível reconstruir, através 
dos evangelhos, os gestos e palavras de Jesus no seu significado original? 
Em outras palavras: que crédito ou atendibilidade histórica possuem os evan­
gelhos? A resposta a este problema deve levar em conta os resultados atuais 
da crítica literária brevemente relembrados nas páginas precedentes.
Entre Jesus da Palestina dos anos 30 e os atuais textos evangélicos,
aparecidos pelos anos 70, coloca-se a história da tradição evangélica, que é 
a linha de transmissão do material evangélico no interior das primeiras co­
munidades cristãs. No percurso que vai de Jesus aos evangelhos existem duas 
etapas ou momentos decisivos: a passagem da atividade e ensinamento de 
Jesus ao testemunho e pregação sobre Jesus por parte dos discípulos e, de­
pois, a passagem da tradição oral comunitária à redação de cada um dos
evangelhos por parte dos autores. A cada uma destas viradas, pode-se propor 
a interrogação sobre o crédito histórico, deste modo: qual é a finalidade do 
anúncio ou pregação eclesial sobre Jesus? Qual é o objetivo dos redatores 
finais? Informar sobre o evento histórico de Jesus ou suscitar e sustentar a 
fé nele, o Cristo vivente? Atualmente existe acordo em reter que a finali­
dade principal dos evangelhos escritos e da tradição evangélica preceden­
te é anunciar Jesus como Cristo e Senhor. Em outros termos, os evange­
lhos são, antes de tudo, documentos de fé em Jesus Cristo ressuscitado. Mas,
14. Mc 1,1, a respeito do apelativo “Pilho de Deus”; a ordem do texto em 
Lc 22,19-20, palavras da ceia eucarística; Jo 5,3-4, a menção do anjo que move 
a água da piscina; Mc 16,9-20, final de Marcos; Lc 22,43-44, o anjo que conforta 
Jesus no Getsêmani.
15. J. JEREMIAS, II Gesü s tor ico , Brescia, Paideia, 1964; Id., Teologia dei 
Nuovo Testamento. I. La Predicazione di Gesü, Brescia, Paideia, 1972; J. R. GEI- 
SELMANN, II Gesü storico, Brescia, Paideia, 1964; H. SCHÜRMANN, La tradi- 
zione dei detti di Gesü, Brescia, Paideia, 1966; W. TRILLING, Jésus devant Vhis­
toire, Paris, 1968; G. BORNKAMM, Gesü di Nazareth. I risultati di 40 anni di 
ricerche sul Gesü delia storia, Turim, Claudiana, 1968; M. BOUTTIER, Du Christ 
de Vhistoire au Jésus des Évangiles, Paris, 1969; J. M. ROBINSON, Le K érygm e 
de VÉglise et le Jésus de Vhistoire, Genebra, 1960 (tr. do inglês: A N ew Quest of 
the historical Jesus, Londres, 1959; tr. it.: K erygm a e Gesü storico, Brescia, Paideia, 
1977; J. MICHL, Questioni su Gesü , Assis, CE, 1968; C. M. MARTINI, “La prim itiva 
predicazione apostolica e le sue caratteristiche”, CC 113 (1962), 246-55; I. DE LA 
PGTTERIE, Come im postare oggi il problem a dei Gesü storico, CC 120 (1969), 
447-63; M. LEHMANN, Synoptische Quellenanalyse und die Frage nach dem 
historischen Jesus , Berlim, De Gruyter, 1970; VV.AA., Der Historische Jesus und 
der Kerygm atische Christus, Berlim, 1960; 2 1962; P. GRECH, Développements 
récents dans la controverse sur le Jésus de 1’histoire, BTBib 1 (1971), 193-217.
25
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
com isso, não se exclui o interesse pela realidade histórica de Jesus, pelo que ele 
disse e fez, pelos acontecimentos em torno de sua morte. Mas este interesse é su­
bordinado à finalidade prioritária, ou seja, a de captar e sublinhar o signifi­
cado das palavras e dos gestos de Jesus. Os evangelhos não são relatórios 
do pensamento de Jesus, nem crônica neutra de sua atividade, mas documen­
tos de uma tradição viva e fiel, escritos por autores cristãos comprometidos.
Mas, se de um lado os evangelhos são documentos de fé, por outro eles 
querem ser documentos não de uma fé numa teoria sobre Deus, mas da 
fé em Jesus Cristo, isto é, numa pessoa histórica que foi vista, que falou e agiu 
concretamente em um espaço e em um tempo precisos. Isto é, são documen­
tos de fé no Jesus Cristo ressuscitado, mas vinculados à vida e à ação de 
lesus de Nazaré. Ora, o mesmo método de pesquisa histórico-crítica, que per­
mitiu reconstruir as etapas da tradição evangélica, oferece os instrumentos 
para efetuar uma verificação a respeito do valor histórico do material evan­
gélico. O método da “história das formas” , visando reconstruir os motivos
e 
as exigências do ambiente que conservou e transmitiu as pequenas unidades 
do evangelho (relatos de milagre, controvérsias, parábolas etc.), pode ser apli­
cado também ao período anterior à Páscoa, para reconstruir a situação vital 
da pequena comunidade dos discípulos reunida em torno de Jesus. Antes da 
morte e ressurreição de Jesus já existem as condições para que se desen­
volva a tendência a conservar e transmitir aquilo que Jesus foi ensinando e
fazendo na terra da Palestina. Nos atuais evangelhos, as sentenças de Jesus
estão recolhidas numa forma que recorda a técnica de ensino dos rabinos
da Palestina, 16 Além disso, alguns ensinamentos ou sentenças ressentem uma 
situação que se deu apenas antes da ressurreição. Assim algumas palavras 
sobre o trágico fim de Jesus são demasiado obscuras e alusivas para terem 
sido reconstruídas depois dos acontecimentos da Páscoa. O próprio ensina­
mento central do evangelho, o anúncio do reino de Deus por meio de pala­
vras e gestos de Jesus, caracteriza uma situação histórica que não é mais 
atual depois da ressurreição, quando o conteúdo do anúncio é “ Jesus Cristo 
ressuscitado” .
Um exame atento do material evangélico com esta perspectiva permite 
concluir que a tradição dos “ ditos” de Jesus foi iniciada em uma comuni­
dade reunida em torno de sua pessoa. Esta tradição encontra sua continuação 
natural na tradição que se desenvolve depois da Páscoa. Mas este desenvol­
vimento é levado adiante sob o controle e a responsabilidade das mesmas 
pessoas que viveram com Jesus, os “ doze” discípulos. De fato, a estrutura da 
primeira comunidade, que pode ser reconstruída baseando-se em documentos 
extra-evangélicos, é assinalada pela liderança dos doze (cf. At 1,15-26), pela de­
pendência controlada pelos testemunhos qualificados (cf. G1 2,1-10 e pela 
transmissão autorizada e tradicional (cf. ICor 15,3-8). Em suma, deve-se admi­
tir que a mensagem de Jesus foi conservada e transmitida em uma comunidade
16. H. RIESENFELD, The Gospel Traãition and its Beginnings. A S tuãy 
in the Limits of "Formgeschichte”, Londres, 1957; Id., The Gospel Traãition, 
Oxford, 1970; B. GERHARDSSON, M emory and Manuscript. Oral Traãition and 
Written Transmission in Rabbinic Judaism and Early Christianity , Londres, 2 1964.
26
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
solidamente estruturada e por meio de encarregados seguros, de tal modo que 
a continuidade e fidelidade com a fonte originária são suficientemente garantidas.
Enfim, é possível fazer uma ulterior verificação do material que foi re­
colhido nos evangelhos repercorrendo para trás o caminho dos evangelhos ao 
Jesus histórico, para encontrar a solidez histórica dos ditos e dos episódios 
evangélicos. Para este controle histórico dos evangelhos foram fixados alguns 
critérios gerais:
a) Critério dos testemunhos. Um dado evangélico pode ser considerado 
autêntico quando é atestado por diversas fontes e em particular pelos estra­
tos mais arcaicos da tradição.
b) Critério da descontinuidade. Um dado evangélico pode ser conside­
rado autêntico quando não pode ser explicado como produto nem do am­
biente judaico contemporâneo a Jesus, nem do ambiente cristão sucessivo 
(cf. o apelativo com o qual Jesus se dirige a Deus “ Abba” ; o anúncio do 
reino de Deus etc.).
c) Critério da continuidade. Um dado evangélico pode ser considerado 
autêntico quando se situa, de modo homogêneo, no ambiente vital de Jesus, 
em conformidade com a situação sociocultural de seu tempo e em harmo­
nia com a originalidade de sua pessoa e da sua mensagem (cf. as parábolas), 1_
Esses critérios para a verificação histórica dos evangelhos têm valor e 
força se são usados de maneira complementar e convergente. Um dado evan­
gélico que satisfaça os três critérios supramencionados tem garantia de grande 
atendibilidade histórica.
Mas, nem o ensinamento de Jesus, nem muito menos a sua pessoa, dei­
xam-se exaurir ou reduzir às dimensões de uma realidade histórica objetiva. 
De fato, Jesus, com os seus gestos e suas palavras, reivindica uma autoridade 
que interpela não tanto o filólogo, o historiador, o pesquisador ou o estudioso, 
mas o homem enquanto tal. Ele pretende decidir, de modo radical, o destino 
de cada homem. É legítima esta pretensão de Jesus?
A interpretação do evangelho 18
Dada a pretensão de Jesus de decidir sobre o destino de cada homem, 
o evangelho apresenta-se como um texto normativo e não só para os crentes. 
As palavras do evangelho dirigem-se a cada homem, até o homem de hoje, 
como proposta que provoca uma decisão e escolha pró ou contra. A serie­
dade e a urgência da proposta evangélica revestem-se da autoridade que, no 
âmbito religioso, têm a palavra e a vontade de Deus. Para exprimir esta auto­
17. Cf. D. G. A. CALVERT, An Exam ination of the Criteria for distinguishing 
the autentic Words of Jesus, NTS 18 (1972), 209-219; F. LAMBIASI, Vautenticità 
storica dei vangeli, Bolonha, Dehoniane, 1976.
18. R. LEPOINTE, Les trois ãimensions de VHerméneutique, Paris, 1967; 
Id., Panorama de 1’herm éneutique actuelle, BTBib 2 (1972), 107-156; R. MARLÉ, 
II problem a teologico deli’ermeneutica, Brescia, Queriniana, 1969.
27
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
ridade, o evangelho assume os sinais e símbolos característicos da linguagem 
religiosa contemporânea. Assim, na cena do batismo de Jesus se diz: “Apenas 
saído da água, viu os céus ab rirem -se ...” ; “ uma voz dos céus fez-se 
o u v i r . . . ” (Mc 1,10 par.). As mesmas expressões ocorrem na cena da trans­
figuração. Jesus diante do sinédrio afirma: “Vós vereis o Filho do homem 
sentar-se à direita do Poder e vir com as nuvens do céu” (Mc 14,62; cf. 
13,26 par.). Esta linguagem deixa transparecer uma concepção do mundo e 
da história que suscita a perplexidade do homem de hoje. R. Bultmann apro­
veita a situação de incômodo do homem moderno diante da linguagem evan­
gélica para colocar a interrogação de fundo: “ A pregação de Jesus sobre o 
reino de Deus ainda conserva um significado para o homem moderno?”
F. considera que o evangelho possa ainda comunicar ao homem de hoje algo 
de válido, desde que seja “ desmilologizado”, isto é, seja submetido a uma 
reinterpretação que permita enuclear, além e acima do revestimento mítico, 
a mensagem ainda atual. Ele parte de uma certa noção de mito: “ Pode-se 
dizer que os mitos dão à realidade transcendente uma objetividade imanente 
a este mundo. Eles atribuem uma objetividade mundana àquilo que é não- 
-mundano.” 19 Por outro lado, segundo Bultmann, os mitos não são uma fa- 
bulação vazia, mas “ exprimem a idéia que o homem não é o senhor do 
mundo e da própria vida, que o mundo no qual vive é cheio de enigmas 
e de mistérios, ou que a vida humana encerra uma série de enigmas e mis­
térios” . 20 Em síntese, a representação mítica do mundo exprime uma certa 
“compreensão” da existência humana, isto é, “ o mundo e a vida humana 
encontram seu fundamento e seus limites em uma potência situada no exte­
rior daquilo que não podemos prever e controlar” . 21 Porém, já no interior 
do NT, segundo R. Bultmann, iniciou-se um processo de desmitologização, 
isto é, de releitura em chave não-espaço-temporal das afirmações “ míticas” 
a respeito da intervenção de Deus na história de Jesus. Isto justifica o in­
tento moderno de “ desmitização” , que procura reinterpretar as formulações 
do evangelho utilizando os modos de pensar elaborados pelas análises da exis­
tência de M. Heidegger.
Mas, quem me assegura que essas categorias não são um novo mito, 
igualmente desviadoras da mensagem genuína do evangelho como as concep­
ções apocalípticas judaicas ou os mitos gnósticos? R. Bultmann responde que 
cada leitura do evangelho é uma interpretação feita baseando-se em alguns
19. R. BULTMANN, Jésus. Mythologie et démytologisation, Paris, ed. Du 
Seuil, 1968, 193; cí. Id., Nuovo Testam
ento e Mitologia. II manifesto áella demi- 
tizzazione, Brescia, Queriniana, 1970; G. MIEGGE, Vevangelo e il mito nel pen- 
siero di R. Bultmann, Milão, Comunità, 1956; R. MARLÉ, Bultmann e l’inter- 
pretazione dei NT, Brescia, Morcelliana, 1957; G. BORNKAMM, R. Bultmann. 
Problemática e discussione, Bolonha, Dehoniane, 1970; VV.AA., Capire Bultmann. 
Una testimonianza ecumenica, Turim, Borla, 1971; R. PESCH, Esegesi moderna. 
Che cosa resta dopo la demitologizzazione , Roma-Brescia, Herder-Morcelliana, 
1970; VV.AA., II problema delia demitizzazione, Roma, 1961; VV.AA., Dibattito 
sul mito, Roma, 1969 (tradução da obra alemã: K erygm a und Mythos, I-II, 
Hamburgo, 1965/67); VV.AA., Mito e fede, Roma, 1968.
20. R. BULTMANN, Jésus. Mythologie 193.
21. Ibid., 193.
28
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
pressupostos culturais ou “pré-compreensões” . Trata-se então de estabelecer as 
concepções e pressupostos que são “ justos e adequados” . Trata-se de estabe­
lecer qual é a afinidade viva, a relação justa com o conteúdo essencial do 
evangelho. Dado que cada pressuposto ou concepção depende de um certo 
modo de conceber a existência e o mundo, isto é, de uma certa filosofia, no 
fim trata-se de escolher o método filosófico que hoje oferece as perspectivas 
e as concepções mais apropriadas para compreender a existência humana. 
E esta “chance” hoje é dada pela “ filosofia da existência” . 22
Desses pressupostos teóricos nasce o método de interpretação “ desmiti- 
zante” ou existencialista de Bultmann. Os discípulos corrigiram as conclusões 
do mestre, porém prosseguiram na mesma linha tomando como critério de 
referência o segundo Heidegger, que vê na linguagem a revelação autêntica 
do ser. Neste caso é a própria palavra do evangelho, como palavra de amor 
e de vida, o acontecimento revelador que interpreta a existência do le ito r.25 
No ambiente cultural de língua inglesa a interpretação do evangelho está sob 
o influxo da análise da linguagem de L. Wittgenstein, que põe em discussão 
a própria possibilidade de falar de Deus. Donde a tentativa de ler o evan­
gelho em chave “ secular” . 24 Paralelamente a estas tentativas desenvolveram-se 
e estão ainda em fase de elaboração novos métodos de interpretação que se 
inspiram nas conclusões e nos métodos do estruturalismo, sobretudo nos am­
bientes de língua francesa, do simbolismo e da lingüística em geral.25 Por 
fim também o desenvolvimento das ciências humanas, da psicologia c da so­
ciologia, fez sentir seu influxo e incidência em algumas afirmações de te­
mas e perspectivas na atual leitura do evangelho. Basta pensar no renovado 
interesse pela dimensão social e mais especificamente “política” da mensa­
gem evangélica, em conexão com a nova concepção e consciência das respon­
sabilidades políticas dos cristãos.26
Diante de tal variedade de escolhas e de orientações, o leitor moderno 
do evangelho perdeu definitivamente a ingênua convicção de poder ler o 
texto evangélico em um estado de virgindade neutra. A pretensão de neutra­
lidade neste campo assemelha-se, freqüentemente, à declarada neutralidade ou 
imparcialidade no campo político que esconde, quase sempre, a inconsciente 
e inconfessada adesão preconceituosa a uma facção. É preferível reconhecer, 
honestamente, o próprio condicionamento, a própria escolha de campo e de 
método, em constante diálogo com as outras propostas de leitura. Somente
22. Id., L’interprétation moderne de la Bible et la philosophie de l ’existence, 
in Jésus. Mythologie, 213-223.
23. Os representantes m ais conhecidos desta “nova herm enêutica” são: G. 
EBELING, E.- FUCHS, para a Alemanha; J. M. ROBINSON, para a Inglaterra; 
cf. J. M. ROBINSON-E. FUCHS, La nuova ermeneutica, Brescia, Paideia, 1967.
24. P. VAN BUREN, II significato secolare dell’evangelo, Turim, Gribaudi, 
1969; cf. I. T. RAMSEY, II linguaggio religioso, Bolonha, II Mulino, 1970.
25. R. BARTHES et alii, Analyse structurale et exégèse biblique, Neuchátel, 
1970; E. GÜTTGEMANNS, Offene Fragen an die Formgeschichte des Evangeliums, 
Munique, 2 1970.
26. F. BELO, Lecture matérialiste de Vévangile de Marc, Paris, Cerf, 1974; 
Id., Una lettura politica dei Vangelo, Turim, Claudiana, 1975.
29
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
assim a leitura pessoal do evangelho estará de novo sujeita a um controle 
público da comunidade crente que o conserva não como um patrimônio para 
embalsamar, mas como uma luz para expor à vista de todos, para que perma­
neça como um dom para toda a humanidade.
Como ler o evangelho: proposta de um método
Diante de um relato ou de uma sentença do evangelho, podem-se colocar 
três interrogações:
— como aconteceram, de fato, as coisas? O que Jesus disse ou pensava 
realmente dizer?
— o que quer dizer este autor (Mc, Mt Lc) com esta composição?
— o que isto nos dize hoje?
São três perguntas legítimas e importantes. Trata-se de estabelecer uma 
ordem e uma sucessão de maneira a não fazer Jesus dizer o que é uma 
interpretação de Marcos ou de Mateus, ou um desejo nosso de atualização. 
Antes de tudo, o evangelho, isto é, quanto Jesus disse e fez, o acontecimento 
por meio do qual Deus se revela Salvador e Senhor da história, próximo e 
comprometido com os acontecimentos humanos, apresenta-se a nós como livro, 
escrito na segunda metade do século I d.C., em um determinado ambiente 
cultural. O primeiro nível de leitura é o que vale para qualquer livro: en­
tender o que o autor quer dizer, com a sua linguagem, com a sua concepção 
de mundo etc. Tudo isso deve ser inserido no seu preciso universo lingüístico. 
Em resumo, deve-se antes de tudo compreender o que pretendem dizer Marcos, 
Mateus e Lucas, os quais respondem às interrogações dos cristãos do seu tempo 
e da sua comunidade.
Neste ponto, pode-se perguntar: o que disse ou pretendia dizer Jesus? 
O que fez ou que coisa pretendia fazer? À medida que é possível recons­
truir uma realidade histórica transmitida no espaço de tempo de uma gera­
ção, 30/40 anos, também esta pergunta deve respeitar os critérios de lei- 
iura e dc interpretação histórica. Isso significa reconstruir, baseando-se nos 
documentos disponíveis, o ambiente cultural e social da Palestina da primeira 
metade do século l d.C., com seus interesses, os problemas sociorreligiosos, 
os modelos lingüísticos etc. Mas também, nesta reconstrução, uma pista auto­
rizada e privilegiada para chegar não só à realidade histórica de Jesus, mas 
à interpretação de sua pessoa e da sua mensagem, permanece sempre o texto 
evangélico escrito.
Por fim, uma terceira pergunta, que já no tempo de Marcos estava na 
origem do evangelho: o que nos diz hoje esta palavra ou fato do evange­
lho? Esta não é apenas uma pergunta legítima, mas indispensável para ler 
e entender. Uma leitura que não interprete o texto em relação à realidade 
atual e vivida é um absurdo. Mas, neste ponto, se exige um trabalho atento 
de calibragem para fazer coincidir o horizonte de Marcos e de Jesus com 
o horizonte atual, sem reduções ou deturpações. Não é só questão de tra­
dução em termos compreensíveis, mas de um confronto de experiências, de
30
INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS
valores vividos e de perspectivas.27 Apenas quem vive em perfeita sintonia 
com a linha de ação e a perspectiva de Cristo está em condições de fazer 
uma autêntica interpretação atual.
Todavia, baseando-nos em que critério podemos verificar uma sintonia 
com Jesus Cristo e Senhor? Não creio que exista um critério cultural externo, 
como uma corrente filosófica, embora seja legítimo e necessário recorrer aos 
instrumentos culturais que servem hoje para a comunicação entre os homens. 
O critério hermenêutico intrínseco à própria mensagem evangélica é aquele re­
cordado por João, o quarto evangelista, o mais atualizante e espiritual dos 
evangelistas, mas ao mesmo tempo o mais preciso ao
referir alguns particula­
res da vida de Jesus. “ Tenho ainda muitas coisas para dizer-vos, mas agora 
não podeis entendê-las. Quando pois ele vier, o Espírito de verdade, vos 
guiará em toda verdade” (Jo 16,12a: cf. 14,26). No interior da comunidade 
dos homens que foram envolvidos no destino de Jesus, as suas palavras 
e os seus gestos foram já interpretados e alimentaram uma experiência de fé 
c compromisso. Jesus, Senhor ressuscitado, continua a estar presente na co­
munidade cristã por meio do seu Espírito que não apenas introduz os crentes 
na plena verdade, mas faz penetrar a verdade no interior das consciências.
Na continuidade histórica dos cristãos de hoje com a primeira comuni­
dade recolhida ao redor de Jesus e dos testemunhos da sua ressurreição, o 
Espírito de Jesus interpreta de modo autêntico a sua palavra, aquela palavra 
que hoje ressoa de novo na comunidade. Em resumo, o critério de verificação 
na interpretação do evangelho é a vida de uma comunidade local concreta, 
em constante confronto e diálogo vital com a comunidade universal dos cris­
tãos, a Igreja, a qual, por meio da tradição viva, se liga à primitiva Igreja 
dos apóstolos,
27. H. G. GADAMER, Wahrheit und Methode. Grunázüge einer philosophischen 
Hermeneutik, Tübingen. - 1952; E. CORETH, Grundfragen der Hermeneutik. Ein 
philosophischer Beitrag, Friburgo, 1969.
31
O EVANGELHO DE MATEUS
tradução e com entários de 
Giuseppe Barbaglio
INTRODUÇÃO
Antes de tomar nas mãos um evangelho é indispensável saber respon­
der a certas questões prévias. Como se formou? É uma obra de fôlego, ou 
veio à luz através de um lento e complexo processo de gestação? Qual é 
a sua exata colocação em relação aos outros evangelhos? Sobre que alicerce 
literário se constrói e a que meios expressivos particulares se confia? E do 
ponto de vista do conteúdo, podem-se traçar as grandes linhas da mensagem 
de fé que o qualificam e constituem seu escopo? Percorrer o caminho do 
nascimento do escrito de Mateus, captar suas características literárias, deter­
minar suas perspectivas teológicas é o que se propõe esta visão panorâmica 
sobre o primeiro evangelho. Não a considere carente de utilidade, pois nin­
guém se aventura prudentemente por uma estrada desconhecida, sem ter an­
tes consultado um mapa rodoviário, que indique o percurso, as passagens 
estreitas, eventuais trechos em aclive e declive, a quilometragem, a presença 
de postos de serviço e outros particulares. Uma viagem longa e difícil, só se 
programada com cuidado, poderá ter garantia de êxito. 1
NO FLUXO DA TRADIÇÃO DA IG REJA PRIM ITIVA
Lido em relação aos evangelhos de Marcos e Lucas, o evangelho de 
Mateus nos confronta com algumas constatações de fato. A primeira: Mateus 
reproduz quase por completo o escrito de Marcos em uma versão paralela 
e substancialmente correspondente quanto à ordem de sucessão do relato, ao 
conteúdo e à expressão literária. Faltam apenas a cena dos parentes que 
querem seqüestrar Jesus julgando-o fora de si (3,20-21), a parábola da se­
mente que germina sozinha (4,26-29), duas curas: de um surdo-mudo (7,31-37) 
e do cego de Betsaida (8,22-26), o episódio do jovem que foge nu no Getsê­
mani (14,51-52), algumas palavras de Jesus (2,27; 9,29.49-50), uma anota­
ção sobre usos farisaicos (7,3-4) e o diálogo entre um mestre da lei de 
Cristo (12,32-34).
A segunda constatação é que o evangelho de Mateus parece sensivelmente 
mais rico que o de Marcos. Quase a metade do seu material não encontra em
1. Além das indicações bibliográficas dadas acim a na Introdução geral e 
nos com entários ao evangelho de Mateus m encionados m ais adiante, veja 
X. LEON-DUFOUR, L’évangile selon Matthieu, in: A. ROBERT-A. FEUILLET, 
Introduction à la Bible, II: Nouveau Testament, Tournai, Desclée, 1959, pp. 163-195;
B. RIGAUX, Témoignage de Vévangile ãe Matthieu, Bruges, Desclée de Brouwer, 
1967; H. GEIST, La prédication de Jésus dans l’évangile de Matthieu, in: Jésus 
dans les évangiles, Paris, Cerf, 1971, pp. 91-116; W. TRILLING, Matteo, Tevangelo 
ecclesiastico. Storia delia tradizione e teologia, in: J. SCHREINER, Forma ed 
esigenze dei Nuovo T estam ento , Bari, Paoline, 1973, pp. 301-322; G. TOURN, Intro- 
duzione a Matteo, in: Evangelo secondo M atteo , Verona, Mondadori, 1973, pp. 49-96.
35
MATEUS: INTRODUÇÃO
Mc nenhuma correspondência. O evangelho de Lucas, ao contrário, reporta-lhe 
uma boa parte, exatamente 235 versículos.2 Trata-se quase exclusivamente de 
palavras de Cristo: a pregação do Batista (3,7-12), as tentações de Jesus 
(4,2-11), parte do discurso da montanha (5,3-6.11-12.15.39-42.45-48;
6.9-13.19-21.22-23.25-33; 7 ,1-5 .7-11.16.21.24-27), a cura do servo do 
oficial romano de Cafarnaum (8,5-13), duras exigências para quem quer se­
guir Jesus (8,19-22), parte do discurso sobre a missão (9,37-10,15 e 10,26-34), 
um longo texto referente ao Batista (11,2-19), a invectiva contra as cidades 
à margem do lago (11,21-23), o canto de louvor ao Pai (11,25-27), a propó­
sito da atividade exorcista de Jesus (12,22-30.43-45), o pedido de um si­
nal (12,38-42), as parábolas do grão de mostarda e do fermento (13-31-33), 
boa parte do discurso contra os fariseus e os mestres da lei (23,4.23-25. 
29-36.37-39), alguns ditos do discurso sobre o fim do mundo (24,26-28.37-41. 
43-51) e a parábola dos talentos (25,14-30).
A terceira constatação refere-se ao fato de o evangelho de Mateus apre­
sentar um consistente patrimônio próprio, avaliável em cerca de 330 ver­
sículos.5 Dele fazem parte os textos de infância (cc. 1-2), o diálogo entre 
Jesus e o Batista (3,14-15), o comentário no início da missão de Jesus na 
Galiléia (4,13-16), diversos materiais do discurso da montanha (5,7-10.16-20. 
21-22.27-28.33-37; 6,1-8.16-18; 7 ,6 .15-16.22), a cura de dois cegos (9,27-41), 
poucos versículos do discurso sobre a missão (10,5-8), alguns trechos cujo 
protagonista é Pedro (14,28-31; 16-16-19; 17,24-27), o dito sobre o jugo leve 
de Cristo (11,28-30), um resumo (15,30-31), a palavra sobre os eunucos 
(19,10-12), oito novas parábolas: a cizânia com a respectiva explicação 
(13,24-30.36-43), o tesouro e a pérola (13,44-46), a rede jogada na água 
(13,47-50), o administrador impiedoso (18,23-35), os operários enviados à vi­
nha (20,1-16), os dois filhos (21-28-32), as dez moças (25,1-13). Além disso 
a conclusão do c. 13 (vv. 51-53), partes não-desprezíveis do discurso eclesial 
(18,10.15-22) e do discurso antifarisaico (23,1-12.15-22.27-36), a cena do 
juízo final (25,31-46), alguns particulares do relato da paixão (27,3-10.19. 
24-25.51-53.62-66), a aparição do ressuscitado às mulheres (28,9-10), a desas­
trada tentativa de desacreditar a ressurreição (28,11-15) e a missão universal 
dos apóstolos (28,16-20). Acrescente-se que, da dezena de citações bíblicas 
introduzidas por fórmulas estereotipadas próprias de Mateus, algumas ocorrem 
nos trechos já mencionados (1,22-23; 25-6; 2,15; 2,17-18; 2,23; 4,14-16;
27.9-10) e as outras em 8,17; 12,17-21; 13,14-15; 13,35; 21,4-5.
Estes são os dados incontrovertidos. Mas, como explicá-los? Aqui entramos 
no campo das hipóteses. Todavia, um vastíssimo consenso admite, pelo me­
nos como utilíssima hipótese de trabalho, a dependência de Mateus de três 
filões tradicionais: o evangelho de Marcos, uma fonte contendo quase exclu­
sivamente ditos de Jesus e indicada pela sigla Q (Quelle = fonte), e tradi­
ções várias à disposição do evangelista. De Marcos ele teria tomado o ma­
terial que tem em comum com o segundo evangelho. De Q proviriam aque­
les trechos que têm paralelo em Lucas. Do terceiro filão Mateus seria deve­
dor ua maior parte do seu patrimônio próprio. Particularmente discutida é a
2. Cf. B. RIGAUX, O .C ., p. 162.
3. Cf. B. RIGAUX, o.c., p. 167.
36
MATEUS: INTRODUÇÃO
fonte Q, cuja existência foi postulada como explicação da presença do ma­
terial comum a Mateus e

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