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BÍBLICA LOYOLA Sob a responsabilidade da Faculdade de Teologia do CES, Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus Belo Horizonte — M G 1-8 : COMENTÁRIOS AO NOVO TESTAMENTO 1-2 : Os Evangelhos 3 : Os Atos dos Apóstolos 4-6 : As Cartas de Paulo 7 : As Cartas Católicas 8 : O Apocalipse GIUSEPPE BARBAGLIO RINALDO FABRIS BRUNO MAGGIONI Tradução e comentários OS EVANGELHOS ( I ) Adições cLoyola Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Os Evangelhos, I / traduçao e comentários Giuseppe Barbaglio, Rinaldo Fabris, Bruno Maggioni ; tra dução Jaldemir Vitorio, Giovanni di Biasio ; su pervisão Johan Konings. — Sao Paulo : Loyola, 1990- . — (Biblica Loyola ; 1) Publicado v. 1. ISBN 85-15-00078-4 (v. 1) 1. Biblia. N.T. Evangelhos - Comentários I. Bar baglio, Giuseppe. II. Fabris, Rinaldo. III. Maggioni, Bruno. IV. Serie. 90-0997 CDD-226.07 índices para catálogo sistemático: 1. Evangelhos : Comentários 226.07 Título original 1 Vangeli © Cittadella Editrice, Assis, 1978 Revisão Silvana Cobucci Leite Com aprovação eclesiástica Edições Loyola Rua 1822 n. 347 04216 — São Paulo — SP Caixa Postal 42.335 04299 — São Paulo — SP Tel.: (011) 914-1922 ISBN 8 5 - 1 5 - 0 0 0 7 7 - 6 vol. 1 00078 -4 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1990 ÍNDICE DO PRIMEIRO VOLUME Nota à tradução brasileira ....................................................................................... 7 Prefácio ........................................................................................................................ 8 Abreviaturas dos livros bíblicos ........................................................................ 9 Siglas .............................................................................................................................. 10 INTRODUÇÃO G ERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS por Rinaldo Fabris ............................................................................................ 11 O EVANGELHO DE MATEUS Tradução e comentários de Giuseppe Barbaglio ......................................... 33 Introdução ................................................................................................................... 35 Texto e comentários ................................................................................................... 74 Notas: Interpretação do Sermão da Montanha ................................................ 146 O indivíduo na comunidade cristã .................................................... 287 Matrimônio e divórcio na igreja de Mateus .......................................... 295 O EVANGELHO DE MARCOS Tradução e comentários de Rinaldo Fabris ................................................. 421 Introdução ..................................................................................................................... 423 Texto e comentários ................................................................................................... 430 Notas: Os irmãos de Jesus ................................................................................... 458 Demônio e endemoninhados no evangelho de Marcos ................. 477 Os milagres de Jesus no evangelho de Marcos ................................ 480 O “ segredo messiânico” e a cristologia no evangelho de Marcos 506 Discípulos e comunidade no evangelho de Marcos ............................ 541 Jesus diante de sua morte........................................................................ 544 O processo de Jesus: motivos da condenação à m o r te ................... 613 PREÁCIO À TRADUÇÃO BRASILEIRA O presente volume vê a luz simultaneamente ao quarto volume da mesma coleção “Bíblica Loyola”, dedicado às cartas de São Paulo. Já que este foi encaminhado primeiro, é nele que se pode ler uma introdução mais extensa à tradução brasileira de toda a coleção. Sendo o presente volume, porém, o primeiro número da coleção, parece-nos conveniente saudar aqui o leitor e resumir em poucas palavras o intuito desta obra, conforme as palavras dos editores originais quando da primeira reimpressão da obra em italiano: “A obra se destina a leitores que já possuem ou querem adquirir bastante informação sobre os estudos histórico-exegéticos atualmente publicados a res peito da formação dos quatro evangelhos e das características que apresentam, especialmente sob o ângulo histórico e literário. “Tal preparo capacita o leitor para apreciar o comentário aos evangelhos que aqui oferecemos de modo adequado e a encontrar nele proveito quer do ponto de vista intelectual, quer espiritual. “É sobretudo preciso ter presente que, obviamente, como em qualquer outra ciência, nem todos os resultados do estudo bíblico têm o mesmo valor. Ao lado de soluções solidamente adquiridas e aceitas por todos, existem outras que não possuem o mesmo grau de certeza, mas que são dignas de maior ou menor atenção e que continuam sendo discutidas entre os próprios peritos. “Estas últimas hipóteses pareceram aos Autores do presente comentário dignas de sustentação, seja de menção como provável, possível ou simplesmente existente. Somente à luz de ulterior aprofundamento, e sempre com conside ração do magistério da Igreja no campo bíblico, poderão ser aceitas como seguras, ou rejeitadas. “Por causa deste seu caráter, acreditamos que a presente obra possa con tribuir para fazer conhecer a um público mais amplo, mediante o fruto de anos de sério trabalho de pesquisa da parte dos Autores, o caminho percorrido pelos estudos bíblicos nestes últimos anos.” A equipe brasileira se escusa por não ter adaptado a tradução ao público leitor. Não tivemos tempo, nem condições para consultar as edições brasileiras das obras citadas em rodapé, inclusive porque a cada dia aparecem traduções dos clássicos da exegese, de modo que tal adaptação sempre ficaria anacrônica. Conservamos as referências às versões italianas, confiando que, no caso de pesquisa avançada, o leitor consiga fazer aquilo para que nos fal tou o tempo. J. KONINGS (Supervisor) 7 PREFÁCIO Parece-nos oportuno chamar a atenção dos leitores para o método de leitura evangélica adotado nesta obra. Nossos evangelhos refletem o resultado condensado de uma longa história de fiéis que, do ano 30 até por volta do fim do século I, viveram da pala vra de Jesus e da palavra que é Cristo. Nesta história, podemos distinguir três níveis: o mais recente, o do evan gelista; o mais antigo, o de Jesus de Nazaré; e o intermediário, o nível da comunidade cristã primitiva. De fato, os primeiros cristãos não se limitaram a repetir mecanicamente a pregação do Mestre e a referir com detalhada exa tidão as lembranças de sua vida. Repletos da luz do Espírito e referindo-se constantemente à Ressurreição de Cristo, releram os ditos e fatos do Senhor com nova capacidade interpretativa. Os problemas que preocupavam as pri meiras comunidades cristãs levaram-nas a não mumificar Jesus no museu da realidade passada, mas a atualizar a mensagem e o significado de sua pessoa. Não foi diferente o modo de proceder dos evangelistas, confrontados com exi gências novas e bem concretas de suas Igrejas. Os evangelhos são fruto da viva fidelidade a Jesus de Nazaré da parte de comunidades cristãs que não vivem anacronicamente presas ao passado. Ler os evangelhos quer dizer, portanto, trazer à- luz os três níveis de seu conteúdo. Este método não goza apenas de unânime reconhecimento na pesquisa dos estudiosos, mas é também acolhido pelo Concilio Vaticano II. Seja permitido reproduzir aqui uma frase sintética desta venerável Assembléia: “ Os Apóstolos, após a ascensão do Senhor, transmitiram aos ouvintes aquilo que ele (Jesus) dissera e fizera, com aquela mais plena compreensão de que gozavam, instruídos que foram pelos gloriosos acontecimentos de Cristo e esclarecidos pela luz do Espírito da verdade. Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos, escolhendo certas coisas das muitas trans mitidas ou oralmente ou já por escrito, fazendo síntese de outras ou explanan do-as com vistas à situação das Igrejas, conservando enfim a forma de procla mação, sempre de maneira a referir-nos a respeito de Jesus com verdade e sinceridade” (Dei Verbum, n. 19). Assis, fevereiro de 1978 OS AUTORES 8 ABREVIATURAS DOS LIVROS BÍBLICOS (em ordem alfabética) Utilizam os neste livro as abreviaturas adotadas pela Tradução Ecumênica da Bíblia (T E B ). Ab Abdias Js Livro de Josué Ag Ageu Jt Judite Am Amós Jz Livro dos Juizes Ap Apocalipse At Atos dos Apóstolos Lc Lucas Lm Lamentações Br Baruc Lv Levítico Cl Colossenses Mc Marcos ICor 1? Corintios lM c 19 Macabeus 2Cor 2? Corintios 2Mc 29 Macabeus lCr 19 Crônicas Ml Malaquias 2Cr 29 Crônicas Mq Miquéias Ct Cântico dos Cânticos Mt Mateus Dn Daniel Na Naum Dt Deuteronômio Ne Neem ias Nm Núm eros Ecl Eclesiastes (Coélet) Ef Epístola aos E fésios Os Oséias Esd Esdras Est Ester lPd 1? Pedro Ex Êxodo 2Pd 2? Pedro Ez Ezequiel Pr Provérbios Fl Filipenses Rm Romanos Fm Filemon lR s 19 Reis 2Rs 29 Reis G1 Gálatas Rt Rute Gn Gênesis Sb Sabedoria Hab Habacuc Sf Sofonias Hb Hebreus SI Salm osISm 19 Samuel 2Sm 29 SamuelIs Isaías Sr Sir ácida (Eclesiástico) Jd Judas Tb Tobias J1 Joel Tg Tiago Jn Jonas lT m 1? Timóteo Jó Jó 2Tm 2? Tim óteo Jo João lT s 1? Tessalonicenses lJo 1? João 2Ts 2? Tessalonicenses 2Jo 2? João Tt Tito 3Jo 3 ^ João Jr Jeremias Zc Zacarias Transcrição de termos gregos (N. do Supervisor) Procuramos a m aior proxim idade possível com o sistem a de grafia e acen tuação da língua portuguesa. Observe-se porém que g sem pre é pronunciado com o gu, ch com o kh (aprox.), y com o o u francês e ou com o o u português, ôm ega e eta são representados ô e ê. 9 SIGLAS AssSeign = Assemblée du Seigneur AT = Antigo Testam ento BibOr §g Bibbia e Oriente Bi e Bib = Biblica BiViChr e BVC Bible et vie chrétienne BiLeb = Bibel und Leben BTBib = Bulletin de Théologie Biblique BZ = Biblische Zeitschrift CBQ = Catholic Biblical Quarterly CC Civiltà Cattolica Con = Concilium DivTh = Divus Thomas DBS e SDB = Dictionnaire de la Bible Supplément EstBib — Estúdios Bíblicos ETL = Ephem erides Theologicae Lovanienses EvTh = Evangelische Theologie GLNT - : Grande Lessico dei Nuovo Testam ento Gr = Gregorianum LumVie = Lumière et Vie MaisD : La Maison-Dieu MüTZ = Münchener theologische Zeitschrift NRT = Nouvelle Revue Théologique NT Novo Testamento N TS(t) New Testam ent Studies PAF — Parola per 1’assem blea festiva Par Vi Parole di Vita Prot Protestantism o RB — Revue Biblique R B ilt = Rivista Biblica Italiana RecSR =: Recherches de Science Religieuse RevTh = Revue Thom iste RicBibRel = Ricerche Bibliche e Religiose RHPR Revue d ’Histoire et de Philosophie Religieuse RQUMRAN Rotoli di Qumran RSPT = Revue de Sciences philosophiques et théologiques RSR = Revue de Sciences Religieuses RTL — Revue théologique de Louvain RTM = Rivista di Teologia morale RTP = Revue de Théologie et de Philosophie SC = Scuola Cattolica SE Jgj Sciences Ecclésiastiques Se = Science et Esprit SD = Sacra Doctrina StPatav Studia Patavina StTh = Studia Theologica TOB = Traduction oecum énique de la Bible (Nouveau Testam ent) TTZ = Trierer Theologische Zeitschrift TWNT = Theologisches Worterbuch zum Neuen Testament VD = Verbum Domini ZNW = Zeitschrift für Neutestam entliche W issenschaft ZTK = Zeitschrift für Theologie und Kirche 10 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS* por Rinaldo Fabris A partir do momento em que “ a vida de Jesus” tornou-se um fato pú blico, com a execução do rabi de Nazaré, em uma Páscoa hebraica dos anos 30 d.C., também a história de suas palavras e de seus gestos começou a ser um assunto público, sujeito às regras do controle social. Além disso, o ambiente e a tradição cultural judaica palestinense do século I, nos quais Jesus falou e agiu, não só lhe ofereceram os modelos de pensamento e ação e os instrumentos lingüísticos, mas condicionaram também a interpre tação e a transmissão de suas palavras e de seus gestos. Quando começou a imigração dos grupos cristãos para além dos confins da Palestina e da área cultural judeu-helenística, toda a mensagem e a obra de Jesus tiveram de sofrer uma tradução cultural, empreendida por cristãos de língua grega. Os três evangelhos sinóticos podem ser considerados o ponto de chegada dessa evolução histórica, na fronteira entre a primeira e a segunda geração cristã, em torno dos anos da catástrofe judaica (anos 66-70: guerra que se conclui com a destruição de Jerusalém). A migração cultural não termina aqui, porque os três opúsculos, como de resto toda a Bíblia, quando foram introduzidos na área cultural de lín gua latina, tiveram de adaptar-se a uma nova tradução que desembocou, através de uma longa gestação, na versão “ vulgata” ou versão “ difundida” e comum, aceita oficialmente pela Igreja ocidental. Na época do renascimento, com a redescoberta e valorização dos textos gregos originais, preparou-se o caminho para a nova virada dos evangelhos: a tradução nas línguas moder nas. Deste ponto, os opúsculos ou evangelhos sobre Jesus de Nazaré se inse rem no ritmo da evolução cultural moderna. Agora surge espontaneamente uma série de interrogações: quem pode garantir a fidelidade e autenticidade do material evangélico? É possível ainda reconstruir o significado original dos gestos e das palavras de Jesus? Esse significado, admitindo-se que seja possível reencontrá-lo intato, tem ainda algo para dizer aos homens de hoje? * L. MORALDI-S. LYONNET, In troduzione alia Bibbia, IV. I Vangeli, Tu rim, Marietti, 1960. LÉON-DUFOUR-Ch. PERROT, In troduzione al NT. II. Vannuncio dei Vangelo, Roma. Borla, 1977. A. WIKENHAUSER, Introduzione al N uovo Testam ento , Brescia, Paideia, 2 1966. K. H. SCHELKLE, In troduzione al N uovo T estam ento , Brescia, 1967. P. GRELOT, In troduzione alia Bibbia, Roma, EP, 4 1976, 448-480. C. M. MARTINI, Introduzione ai Vangeli sinottici, in M essaggio delia sal- vezza, Turim, E lle DI Cl, 1968, 3-145. A. VOGTLE, II N uovo T estam ento nella recente esegesi cattolica, Turim, 1969. S. ZEDDA, I Vangeli e la critica oggi, I-II, Treviso, Trevigiana, 1969-1970. O. CULLMANN, II N uovo Testam ento, Bolonha, II Mulino, 1970. VV.AA., In troduzione al Nuovo Testam ento , Brescia, M orcelliana, 2 1971. C. P. D. MOULE, Le origini dei N uovo Testam ento, Brescia, Paideia, 1971. B. CORSANI, In troduzione al N uovo Testam ento, I, Turim, Claudiana, 1972. 13 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS Assim como os evangelhos constituíram os textos normativos da comu nidade religiosa cristã, a sua leitura, em todo o caminho histórico através das diversas épocas e diferentes ambientes culturais, foi sempre controlada pela própria comunidade cristã ou Igreja. Este controle seguiu as leis das várias épocas e ambientes. Na época moderna, afirmou-se paulatinamente, em conexão com fenômenos análogos em outros setores, um duplo controle: um religioso por parte da comunidade crente e um científico por parte das ins tituições culturais. Graças aos modernos e aperfeiçoados instrumentos de pes quisa histórica, filológica, textual, literária, lingüística etc., aumentou nota velmente a possibilidade de verificar e controlar a tradição cultural dos evangelhos. Nesta rápida resenha introdutória serão apresentados os vários problemas e as soluções atualmente propostas em uma leitura moderna e crítica dos evangelhos sinóticos. O evangelho e os evangelhos 1 Só pela metade do século II d.C., pelo ano 150, o termo “evangelho” foi usado para designar um liv ro .2 Nos documentos cristãos mais antigos, cartas de Paulo, este vocábulo indica a boa notícia, o anúncio público da salvação na pessoa de Jesus, o Cristo (Rm 1 ,1 .9 .16 ; ICor 15,1). Se em se guida aos quatro opúsculos surgidos em torno do evento de Cristo foi apli cada a palavra “ evangelho” deve-se ao fato de que nestes livros se reconhece aquela proclamação da boa notícia da salvação de Deus que se realizou nas palavras e obras, na morte e ressurreição de Jesus, o Cristo. O evangelho de Marcos, atualmente considerado o primeiro dos três evangelhos sinóticos, abre-se com esta inscrição programática: “ Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus” (1,1). Mas, na trama do livro, que recolhe palavras e ações de Jesus, o protagonista central do anúncio alegre ou boa notícia é o próprio Jesus, que proclama o “ Reino de Deus” (Mc 1,15). Portanto, o termo “evan gelho” , antes de designar um gênero escrito, serviu para definir a atividade e o conteúdo de um anúncio e pregação pública itinerante, primeiro da parte de Jesus, depois da parte da comunidade que a ele se refere. É precisa mente esta pré-história de tradição oral e comunitária que explica as caracte rísticas literárias dos opúsculos que trazem o nome de “ evangelho” . Quem se aproxima pela primeira vez destes escritos tem uma impressão de fragmentariedade, desordem e lacunosidade atrás de uma aparente simpli cidade esquemática e essencial. De fato, em um livro que trata de Jesus de Nazaré e de sua atividade, diz-se pouco ou nada de seu ambiente socioló gico, da família, do seu aspecto físico. Se excluirmos os poucos e fragmentá rios dados sobre o nascimento e a infância, nenhuma informação precisa é dada a respeito de sua vida, suas experiências antes da atividade pública. Mas sobre esta as informações são muito genéricas e lacunosas. Não é pos 1. R. DEVRESSE. II Vangelo e i vangeli , Milão, 1962; G. FRIEDRICH, Euanghelizom ai/Euanghelion. GLNT II, Brescia, Paideia, 1967, 1023-1106. 2. Justino, Apologia, I, 66,3. 14 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS sível reconstruir com os dados do evangelho uma cronologia e topografia precisa da atividade de fesus. Até mesmo o relato mais detalhado da prisão e da condenação à morte em Jerusalém descura muitos elementos indispen sáveis para reconstruir a seqüência e a concatenação dos fatos. Em suma, os evangelhos não podem ser catalogados na ficha bibliográ fica sob o título “ biografia” ou vida de um fundador de religião. Outro tanto insatisfatórias são as tentativas de colocar estes escritos na série dos conhe cidos modelos de literatura religiosa: “ fioretti” , relatos histórico-religiosos, ma nuais para o culto, para a pregação e a catequese etc. Sob o aspecto for mal, os evangelhos podem ser aproximados de um ou outro modelo, mas não se deixam reduzir a um esquema preciso.3 Eles certamente se inserem no âmbito da literatura religiosa popular, mas fazem derivar sua marca original do acontecimento histórico de Jesus e da comunidade que dele se origina. Por isso o melhor modo para compreender o gênero literário “evangelho” , na sua especificidade, é seguir as etapas da sua gênese histórico-literária. Como apareceram os evangelhos 4 Qualquer tentativa de reconstruir a pré-história dos evangelhos, mesmo a mais elaborada cientificamente, não dispõe de fontes ou informações secre tas, mas unicamente dos próprios textos evangélicos confrontados com todos os demais documentos cristãos que formam os escritos do NT e com todos os documentos que possam oferecer dados ou informações sobre o ambiente religioso e cultural do século I. Por isso, o ponto de partida são os dados de fato oferecidos pelos próprios evangelhos, dados que suscitam interrogativas e problemas aos quais a pesquisa histórico-literária procurará, com os próprios métodos e instrumentos, dar uma solução. Um primeiro dado que chama a atenção do leitor do evangelho é a trama quebrada e fragmentária do tecido narrativo. O material evangélico dá a im pressão de ser um coágulo de pequenos blocos literários, formados por bre ves sentenças recolhidas sobre um tema, ou então por um episódio isolado ou, de qualquer modo, sem nexos precisos com o contexto. Algumas destas pequenas unidades literárias, centradas sobre uma sen tença ou episódio de Jesus, são construídas segundo um esquema estereotipado: 3. R. BULTMANN, Geschichte der synoptischen Tradition, Gõttingen, ^ 1967, 399-440, depois de ter procurado as analogias entre os evangelhos e certos opús culos da cham ada “literatura m enor” (K leinliteratur) , nos quais são reunidos episódios e discursos de personagens fam osos e populares, conclui: “Parece-me que quanto m ais são necessárias as analogias para com preender cada parte da tradição sinótica, tanto m enos elas servem para a com preensão do evangelho na sua globalidade”. As analogias existentes fazem ressaltar com m ais evidência a singularidade do evangelho. “Ele é um a criação original cristã.” Cf. tam bém C. F. MOULE. Le origini dei NT, 22, “Não existem escritos verdadeiramente sem elhantes que o tenham precedido; trata-se do prim eiro exem plo que nos restou de um novo gênero literário”. 4. A. VÕGTLE, Form azione e struttura dei Vangeli in Discussione sulla Bibbia, Brescia, 1966, 79-123; L. CERFAUX, Gesü alie origini delia tradizione, Roma, EP, 1970; X. LÉON DUFOUR, I Vangeli e la storia di Gesü, Roma, EP, 3 1970; I. DE LA POTTERIE (org.), Da Gesü ai vangeli, Assis, Cittadella, 1971. 15 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS — existe aí uma fórmula de introdução: “ Naqueles d i a s . . . ” (Mc 8,1); “ naquele te m p o . . .” (Mt 11,25; 15,1); “ depois destas coisas” (Mt 14,22); referências genéricas ao lugar: “em casa, às margens do lago” etc. (Mc 2 ,1 .13); — depois é apresentada a intervenção dos adversários de Jesus, geral mente escribas e fariseus, por meio de uma objeção ou pergunta ocasionada por um modo de agir de Jesus ou dos discípulos; — neste ponto é citado o ensinamento de Jesus que se serve de uma contrapergunta ou de uma citação da escritura. Freqüentemente o ensina mento se conclui com uma sentença final; — segue-se uma rapidíssima nota conclusiva. Esta estrutura ou modelo literário se verifica na série relatos ou deba tes que se encontram na primeira parte do evangelho de Marcos (2,1-3,6) ou na última semana (11,27-12,37). Eles têm seus paralelos nos outros dois evangelhos sinóticos, Mateus e Lucas. Também nos relatos de episódios miraculosos pode-se facilmente indivi- duar um clichê ou modelo literário: — um doente ou outros necessitados de ajuda se aproximam de Jesus; freqüentemente, põe-se bem em evidência a desgraça ou a situação de difi culdade (doença, medo etc.); — Jesus dirige a palavra ao doente, toca-o e atende o pedido; — o sucesso da ação e palavra eficaz de Jesus é expressamente consta tado e uma nota conclusiva observa o estupor dos presentes. Os elementos essenciais deste esquema narrativo encontram-se na série de milagres referidos por Marcos 4,35-5,43 e par. ou em outros episódios isolados (Mc 1,40-45 par.; 7,31-37; 8,22-26; 10,46-52). Um segundo fato que se impõe a quem confronta entre si os primeiros três evangelhos é a sua semelhança de fundo no que diz respeito à trama ou argumen tação do acontecimento: breve resumo da atividade de João, o Batista; coleta de palavras e episódios de Jesus no território da Galiléia com algumas incursões nas regiões limítrofes; viagem lenta na direção da capital, Jerusalém, na Judéia, que oferece a ocasião para referir-se a outros ensinamentos e episódios de Jesus; por fim, a conclusão trágica em Jerusalém com a captura, a condenação sumária, morte na cruz, ao que seguem alguns fatos e experiências relacio nados com a ressurreição. Esta concordância de fundo dos três evangelhos sinóticos, em alguns ca sos, torna-se concordância literária e verbal, isto é: mesma sucessão de sen tenças e até identidade de vocabulário e expressões. Mas este paralelismo a três é relacionado com uma concordância a dois, própria de Mateus e Lucas: algumas coleções de sentenças ou alguns episódios são referidos, com uma notável simetria literária, apenas por estes dois evangelhos, e não por Marcos. Por fim, todos os evangelhos sinóticos se distinguem entre si não só pela autonomia e singularidade do estilo, do vocabulário e da perspectiva teológica, mas também pelo material, as palavras e os episódios, mais am plos e distintos em Mateus e Lucas. Um exemplo típico desta singularidade e autonomia de cada evangelho é o relato da última ceia dc Jesus. Sobre o pano de fundo de uma concordância essencial, existe uma peculiaridade de estilo e de vocabulário a ponto de as palavras de Jesus sobre o cálice serem 16 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS diferentes nos três evangelhos. Assim também a oração ensinada por Jesus, o Pai-nosso, referida por Mateus 6,9-13 e Lucas 11,2-4, varia nas duas res pectivas edições evangélicas. O mesmo vale para a proclamação das bem-aven turanças (Mt 5,3-12; Lc 6,20-13). Como explicar estes dados de fato, esta situação literária singular do material referido pelos nossos evangelhos: a fragmentariedade da trama narrativa, a uniformidade dos pequenos blocos li terários, a concordância e as discordâncias dos três evangelhos, a sua auto nomia e convergência? Ante estas interrogações e problemas sugeridos pelos próprios evangelhos, a comunidade crente procurou sempre propor uma ex plicação coerente e satisfatória à medida que esta ajudava a compreen der melhor a mensagem de cada evangelho. Nos últimos séculos, as hipóteses e as soluções foram elaboradas de maneira sistemática, por exigência de um interesse renovado pelos problemas histórico-literários e por um conhecimento novo e aprofundado dos documentos religiosos contemporâneos aos evangelhos, judaicos e helenísticos. H ipóteses e soluções atuais: história da tradição evangélica (história das formas e da redação)5 Mesmo uma rápida apresentação das hipóteses e das soluções atualmente propostas deveria levar em conta sua evolução histórica ligada à iniciativa de um estudo ou círculo cultural; deveria fazer o balanço da sua atendibi- lidade científica, do acordo ou convergência dos consensos etc. Em tudo isto entram necessariamente critérios de juízo derivados de simpatias culturais, dos apriorismos e resistências pessoais ou de grupos que respaldam a verdade da informação ou comunicação. É preferível então escolher as hipóteses que utilizam as atuais convergências e apresentam uma linha precisa, que pode ser facilmente controlada. 1. O núcleo do evangelho. Os atuais evangelhos encontram-se no final de uma longa tradição cristã comunitária, que se origina das palavras e ações de Jesus. Um momento decisivo e qualificante é constituído pela expe riência de encontro com Jesus ressuscitado. A partir deste momento, o grupo de homens já reunido em torno de Jesus antes de sua morte começa a proclamar abertamente a formidável novidade: Jesus de Nazaré é o Cristo, ressuscitado por Deus; é o Senhor. O evangelho se forma ao redor deste núcleo de anúncio. Este é um testemunho de fé e um convite à conversão para reconhecer em Jesus de Nazaré o Senhor e o Salvador. Por ora, per manecem na sombra os detalhes da sua vida e da sua morte. Todos em Je rusalém sabem o que lhe aconteceu (Lc 24,18): ressuscitou verdadeiramente o homem que Deus credenciou por meio de milagres, prodígios e sinais (At 2,22), aquele que passou fazendo o bem e curando aqueles que estavam oprimidos pelo diabo, e que os seus adversários fizeram matar, levantando-o 5. H. ZIMMERMANN, Metodologia dei Nuovo Testamento. Esposizione dei m etodo storico-critico, Turim, Marietti, 1971; R. S. BARBOUR, Tradition-historical Criticism of the Gospel , Londres, SPCK, 1972. 17 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS num madeiro (At 10,38-39). Esta é a primeira forma de evangelho, o núcleo em cujo redor, nas etapas sucessivas, coagular-se-ão as coleções de sentenças e o tecido narrativo que desembocarão nos evangelhos escritos. 2. História das formas: situação vital da primeira com unidade.6 Foi a “história das formas” (ou crítica morfológica) que esclareceu os motivos e as intenções do ambiente interno e externo da comunidade que requereram esta elaboração. O contexto ou ambiente vital no qual foram retomadas e elaboradas as palavras e os relatos sobre Jesus pode ser assim reconstruído. Perante o anúncio dos testemunhos de Jesus formaram-se dois grupos: os não- -crentes e os crentes. Missionários e apóstolos procuram convencer e aproxi mar da fé os primeiros; catequistas da comunidade procuram reforçar a fé dos segundos. Discussões e questões fazem recordar fatos e palavras de Jesus que, à luz da experiência pascal, adquirem um significado mais profundo e claro. 3. Pregação. Para suscitar a fé dos não-crentes em Jesus Messias, elen- cam-se as “obras do Messias” , os milagres. Entre os relatos referidos pelos tes temunhos faz-se uma escolha, toma-se um ou dois de cada espécie e se re sume os outros em formas gerais. À força de repetir estes fatos e por tê-los presentes no momento da discussão, os discípulos, missionários e catequistas compõem séries de milagres, construídas segundo o estilo oral e popular: criação de fórmula de efeito, procura de palavras-chaves, preparação do mo mento final, eliminação dos personagens ou das circunstâncias secundárias, acréscimos de detalhes que dão mais relevo a um gesto ou a uma palavra, imagens e expressões tomadas por empréstimo da Bíblia para iluminar o con teúdo religioso do gesto de Jesus. Segundo as circunstâncias e as necessidades, um mesmo milagre será apresentado ora como manifestação do poder de Deus em Jesus, dirigida a cada homem para entrar em diálogo salvífico com ele, ora como ato que antecipa a salvação do Reino de Deus culminando na ressurreição de Jesus. O anúncio de Jesus Cristo, da sua ressurreição, da sua pregação e ativi dade em favor do reino suscita discussões que requerem argumentos diversos 6. Os autores que deram origem ao m étodo centrado na história das form as literárias e pré-literárias dos evangelhos são: R. L. SCHMIDT, Der Rahmen der Geschichte Jesu, Berlim, 1919 (reimpressão Darm stadt 1964); M. DIBELIUS, Die Formgeschichte des Evangeliums, Tubinga, 1919, 5 1966; R. BULTMANN, Die Geschichte der synoptischen Tradition, Go- tinga, 1921. 7 1967; Id., Storia dei vangeli sinottici, Bolonha, Dehoniane, 1969; M. ALBERTZ, Die synoptischen Streitgesprãche. Ein Beitrag zur Formgeschichte des Urchristentums, Berlim, 1921; G. BERTRAM, Die Leidensgeschichte Jesu und der Christuskult. Eine formgeschichtliche Untersuchung, Gotinga, 1922. Para o am biente de língua inglesa: R. H. LIGHTFOOT, History and Interpretation in the Gospels, Londres, 1937, Para uma apresentação crítica do m étodo, cf.: P. BENOIT, Réflexions sur la “Form geschichtliche M ethode”, RB 53 (1964), 481-512; cf. Esegesi e Teologia, Roma, EP, 11-61; E. FASCHER, Die Formges chichtliche Methode. Eine Darstellung und Kritik, Giessen, 1924; E. SCHICK, Formgeschichte und Synoptikerexegese, Munique, 1940; K. KOCH, Was ist Form geschichte?, Neukirchen, 1964. 18 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS e adaptados para cada ambiente. No ambiente judaico não se pode proceder a não ser por meio de citações bíblicas. A atividade e o ensinamento de Jesus de Nazaré respondem à antiga e sagrada tradição das Escrituras? Ate mesmo Jesus tivera de afrontar dificuldades análogas em discussões e debates com os círculos cultos da Judéia. Assim as suas sentenças e res postas engastadas em pequenos relatos, os seus ensinamentos reunidos, formam a série de controvérsias e ensinamentos exemplares do Mestre. Além disso, o escândalo dos judeus diante da morte vergonhosa de Jesus constringe os discípulos da comunidade cristã a reler, à luz da nova expe riência de ressurreição e glorificação de Jesus, toda a Escritura. Através desta leitura cristã da Bíblia, os últimos acontecimentos de Jerusalém assumem um significado religioso coerente com o plano de Deus. O conjunto de citações e alusões bíblicas facilita a apresentação religiosa da história de Jesus e dá origem àquele tecido de citações explícitas ou implícitas das quais, no am biente helenístico, não resta senão a fórmula: “ Segundo as E s c r itu ra s .. .’’ (ICor 15,5b). 4 . Catequese. A apresentação e o aprofundamento da mensagem d e . Jesus para os crentes se insere em dois momentos da vida comunitária: a catequese e a liturgia. A instrução dos neófitos que aderiram à comunidade deve ser aperfeiçoada, a sua vida moral cristãmente orientada deve ser sus tentada. Surgem questões, interrogações acerca da vida cristã: como rezar? até que ponto se deve perdoar? que posição tomar a respeito das normas tradicionais judaicas: proibições alimentares, repouso sabático, o divórcio, ta xas ou impostos para o templo? como comportar-se diante dos bens ou ri quezas? diante das perseguições ou rupturas familiares devidas à conversão? Durante as reuniões comunitárias, nas quais os discípulos eram perseverantes (cf. At 2,42), são evocadas as sentenças de Jesus, o seu modo de agir, as suas respostas em situações análogas. Formam-se assim coleções de sentenças e coleções de parábolas com explicações e aplicações adaptadas às exigências da comunidade crente. 5. Liturgia. Além disso, os crentes, embora continuando no início a freqüentar o templo, reúnem-se para celebrar a “ ceia do Senhor’’ (ICor 11,17-22). Nestas assembléias litúrgicas revocam-se alguns episódios mais solenes da vida de lesus. Provavelmente no decurso destas reuniões litúrgicas forma ram-se os relatos da Paixão, da ceia, das aparições do Senhor, do seu batis mo, transfiguração, tentação, agonia, fundação e organização da vida comunitária. 6 . A tradição evangélica viva e fiel. Foram até agora evidenciadas as principais situações da primeira comunidade cristã e os motivos ou exigências que favorecem a maturação de uma coletânea dos ditos e das ações de Jesus, partindo do núcleo primitivo do anúncio pascal. Os protagonistas desta con servação e transmissão do material evangélico, fundados na convicção que Jesus não é um simples rabi prestigioso, mas o enviado definitivo de Deus, não se limitam a repetir de modo monótono as sentenças e os ensinamentos de Jesus, mas transmitem uma mensagem viva confirmando-a com o próprio testemunho. Por isso, os primeiros pregadores do Evangelho não hesitam em 19 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS adaptar os ensinamentos do Mestre segundo os ouvintes e os ambientes. De fato, o anúncio cristão dá origem à comunidade disseminada em toda a bacia mediterrânea, com situações culturais e sociais diferentes. Já a tradução em língua grega da mensagem primitiva pregada em aramaico comporta oscila ções do significado original. Além disso, a passagem a um novo ambiente cultu ral e social, como aquele das cidades greco-romanas, exige uma adaptação, uma mudança de acento desta ou daquela parábola ou sentença, uma releitura deste ou daquele relato. Quem pode garantir a fidelidade à tradição evangélica ori ginária? O caráter estereotipado e normativo da transmissão das sentenças e dos ensinamentos autorizados no ambiente palestinense (cf. ICor 11,23; 15,3), o controle recíproco entre as comunidades, a liderança reconhecida dos tes temunhos e enviados oficiais (apóstolos) são elementos que garantem a fide lidade da tradição contra possíveis desvios substanciais. 7. Cristalização das unidades literárias. Como se passou dos pequenos blocos narrativos e das coleções de sentenças e palavras, surgidos em am bientes e por motivos diversos, às unidades mais amplas e orgânicas como são os discursos, as coleções de episódios etc.? A necessidade de ter — seja para a pregação, seja para a instrução, a catequese e o culto — um material mais completo leva à constituição de reagrupamentos nos quais se entrelaçam palavras e fatos em torno de centros de interesse ou temas, lugares e regiões da atividade de Jesus: a cidade de Cafarnaum (Mc 1,21-39) ou a região do lago (cf. Mc 4,35-5,43); o tema do “ pão” (cf. Mc 6,30-86,26). O material, organizado em torno dessas unidades literárias, é inserido no quadro a his tória de Jesus, distribuída em quatro grandes etapas: 1. A preparação de João Batista nas margens do Jordão; 2. A atividade na Galiléia; 3. A subida ou a viagem a Jerusalém; 4. Os acontecimentos da morte e ressurreição (cf. At 10,34-43). Neste quadro elástico e fácil de recordar distribuem-se os re latos, as palavras, os grupos de sentenças já organizadas. 8. Da tradição oral à tradição escrita. História da redação.7 Por exigên cia de conservação e de transmissão, em algumas comunidades, começa-se a colocar por escrito parte do material tradicional, talvez as amplas coleções de sentenças, segundo uma certa ordem temática, entrelaçadas com uma rá- 7. Os autores que mais contribuíram para o estudo do trabalho redacional dos evangelistas são: Para Marcos: W. MARXSEN, Der Evangelist Markus. Studien zur Redaktions- geschichte des Evangeliums, Gotinga, 1956; 2 1959. Para Mateus: K. STENDAHL, The School of St. Matthew and Its Use of the Clã Testament, Uppsala, 1954; W. TRILLING, Das Wahre Israel. Studien zur Theologie des Matthãus-Evangeliums, Munique, 3 1964. Para Lucas: H. CONZELMANN, Die Mitte der Zeit. Studien zur Theologie des Lukas, Tubinga, 1954, 5 1964; H. SCHÜRMANN Der Paschamahlbericht Lk 22,7-14.15-18, Munique, 1953; Id., Der Einsetzunsbericht Lk 22,19-20, Münster, 1955; Id., Jesu Abschiedesrede Lk 22,21-38, Münster, 1957. Para um a apresentação dos resultados da pesquisa atual: I. RHODE, Die redaktionsgeschichtliche Methode. Einführung und Sichtung der Forschungstandes, Hamburgo, 1966; N. PERRIN, What is Redaction Criticism?, Londres, SPCK, 1970. 20 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS pida síntese dos episódios mais importantes da vida de Jesus. O prólogo de Lucas 1,1-4 recorda que “muitos procuraram compor um relato dos fatos” acontecidos nos anos 30 d.C. Baseando-se nestas tentativas de “evangelhos” escritos, que flanqueiam a tradição oral, surgem os evangelhos sinóticos atuais. Todavia, o primeiro evangelho escrito, o de Marcos, e os outros, não são fruto de uma evolução espontânea das primeiras tentativas embrionárias, nem fruto de um simples trabalho de compilação, mas resultam de um tra balho de composição por parte de verdadeiros autores. O trabalho redacional dos evangelistas foi posto em relevo por uma sé rie de estudos que, em parte, corrigiram e aperfeiçoaram os resultados da crítica morfológica. Depois da Segunda Guerra Mundial um grupo de pesqui sadores, examinando cada um dos evangelhos, evidenciou a perspectiva teo lógica de cada um dos autores. Os evangelistas não se distinguem apenas por características lexicais, estilísticas ou pelas suas capacidades literárias, mas pela sua sensibilidade espiritual, que sabe escutar, com fidelidade, a tradi ção evangélica comum, e também percebe os problemas e sugestões do ambiente cristão em que vivem. Perguntando-nos por que o evangelista tenha utilizado uma certa pala vra, por que tenha acrescentado ou excluído uma certa expressão ou par ticular no relato de um milagre, como coliga um episódio com o precedente ou com aquele que segue etc., poderemos ter uma idéia das suas intenções, da sua angulação cristológica e eclesial particular, do uso que faz de suas fontes particulares. Desse exame, os autores de cada um dos evangelhos aparecem como escritores cristãos comprometidos e não como cronistas neutrais, crentes no Jesus vivo, capazes de responder às urgências espirituais da comunidade para a qual escrevem. Esse trabalho “ redacional” explica a marca singular e típica de cada evan gelho, mas não explica completamente as concordâncias e discordâncias indi cadas acima. Uma resposta a esse problema pode ser dada apenas pela inter pretação das relações dos evangelhos sinóticos entre si e com as suas fontes. 9. Relações entre os evangelhos sinóticos. Questão sinótica. 8 Os pri meiros três evangelhos são comumente chamados “ sinóticos” , porque a leitura dos três textos, dispostos em três colunas paralelas, pode ser como uma visão de conjunto.9 Esse fato sempre levantou o problema das relações recíprocas entre estes três evangelhos. A resposta ao problema não satisfaz apenas uma curiosidade literária ou histórica, mas permite compreender melhor o signifi cado do texto evangélico. O problema sinótico é um canteiro ainda aberto à medida que é continuamente atualizado em relação ao progresso das 8. Além dos estudos dedicados a tal questão nas introduções gerais, cf.: L. VAGANAY, Le problèm e synoptique, Tournai, Desclée, 1953; A. GABOURY, La structure des évangiles synoptiques, Leiden, Brill, 1970; P. BENOIT-M. E. BOISMARD, La Synopse des quatre Évangiles, I-II, Paris, Cerf, 1971-1972; S. SCHULZ, Q-Die Spruchquelle der Evangelisten, Zurique, TVZ, 1972; W. R. FARMER, The Synoptic Problem, Nova Iorque, Macmillan, 1964. 9. O termo “sinótico” deriva precisam ente da edição dos três textos evan gélicos paralelos no fim do século X V III, chamada synopsis, termo grego que significa "visão sim ultânea”. 21 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS STNÓTICOS técnicas e métodos de pesquisa histórico-crítica aplicados à exegese. É pois perfeitamente compreensível o contínuo superpor-se de hipóteses e tentativas de interpretação do fato sinóticc. Antes de indicar as atuais orientações é oportuno relembrar os dados e a situação da qual partem as várias hipóteses. Existem entre os três primeiros evangelhos concordâncias e diferenças em três níveis: a) no material evangélico: com base em um cálculo aproximativo, po de-se estabelecer esta distribuição: — versículos comuns aos três evangelhos (cerca de 330); — versículos comuns a Mt-Lc (cerca de 230); — versículos comuns a Mt-Mc (c. 178); — versículos comuns a Lc-Mc (c. 100); — versículos próprios de cada evangelho: Mc 53 (sobre um total de 661); Mt 330 (sobre um total de 1068); Lc 500 (sobre um total de 1150). b) Na distribuição das secções os três evangelhos seguem aproximada mente este esquema comum: — preparação da atividade de Jesus (João Batista); — atividade de Jesus na Galiléia; — viagem a Jerusalém; — atividade em Jerusalém, morte e ressurreição. Mas, nesta moldura de fundo, Mateus distribui as secções da primeira parte até o c. 14 de modo autônomo; Lucas, na trama comum, insere dois blocos ou secções próprias (Lc 6,20-8,3; 9,51-18,14). c) No uso de termos e expressões: em alguns casos existe um acordo verbal entre os textos que relatam um mesmo episódio ou sentença de Jesus (cf. Mt 9,6; Mc 2,10, Lc 5,24, acordo tríplice; Mt 3,7b-10; Lc 3,7b-9, acordo duplo). Mas, no interior de uma concordância estrutural de fundo, podem-se verificar notáveis diferenças de vocabulário ou de expressões. Para explicar, de modo coerente, esta situação, foram propostas várias teorias ou hipóteses de interpretação. Na meada de hipóteses, com várias ra mificações e reinterpretações sucessivas, existe atualmente uma orientação co mum. Dois fatores estão na origem do acordo e discordância dos atuais evan gelhos: o influxo da tradição oral e escrita desenvolvida na primeira comuni dade (tradição pré-sinótica) e o trabalho redacional de cada um dos evange listas. Além disso convergem no fato de considerar que o atual evangelho de Marcos não depende do de Lucas e Mateus, e que os evangelhos de Ma teus e Lucas são independentes entre si. As várias hipóteses dividem-se quando se trata de explicar a dependência de Mateus e Lucas de Marcos. a) Hipótese das duas fontes (Mc e Q). O acordo de Mateus e Lucas entre si e com a estrutura de Marcos pode-se explicar com um esquema de relações que pode ser ilustrado no seguinte gráfico: 22 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS Com a letra Q (do vocábulo alemão Quelle “ fonte”) indica-se a forma pré-sinótica da tradição que recolhe, de modo particular, as sentenças de )esus, comuns a Mateus e Lucas. Na apresentação atual desta hipótese, as particularidades e a autonomia de Mt e Lc explicam-se com a utilização de material próprio e com o trabalho redacional dos evangelistas. Além disso, permanece aberta à discussão a determinação da fonte Q: é uma fonte escrita ou oral? Por fim, até a relação com Marcos é objeto de pesquisa: trata-se do evangelho de Marcos atual ou de uma outra edição. b) Hipótese de mais documentos: os evangelistas teriam utilizado di versos blocos de material comum ou coleções de sentenças e episódios mais ou menos longos. Alguns autores propõem identificar dois documentos de base comuns aos três evangelhos ao lado de diversas tradições não homo gêneas. Estes dois documentos explicam a trama comum aos três evangelhos, salvo a atividade de Jesus na Galiléia, que dependeria das tradições ainda não amalgamadas. Esses esquemas ou teorias hipotéticas revelam a sua utilidade e mérito apenas se permitem individuar, com maior verdade e imediatez, a intenção de cada um dos evangelistas e de captar assim o significado dos textos que transmitem a mensagem de Jesus. C om o os textos dos evangelhos chegaram até nós Escritos em língua grega, na segunda metade do século I d.C., os evan gelhos foram recopiados e difundidos rapidamente em concomitância com a expansão do movimento cristão. Mesmo que os textos originais autógrafos se tenham perdido, a multiplicidade dos testemunhos, relativamente muito vizi nhos do tempo de composição dos originais, permite reconstruir com um alto grau de certeza crítica o texto autêntico. De fato, os primeiros e mais anti gos fragmentos de papiros dos textos evangélicos remontam à primeira me tade do século II 10 e ao século I I I . 11 Aos séculos IV e V remontam os códices, isto é. os manuscritos sobre pergaminhos, que dão conta do texto 10. Papiro Ryland ( P?2 ) (M anchester), pertencente à Biblioteca de J. Ryland, publicado em 1935. É o m ais antigo fragm ento de papiro do NT, e contém o texto de Jo 18,31-38. 11. A este período remontam as m ais antigas folhas de papiro completas: os papiros de Chester Beatty P45 46 47 (D ublin), descobertos no Egito por A. Ches- ter Beatty e por ele adquiridos em 1930-31, contêm secções am plas dos evangelhos e de outros textos do NT; o papiro Bodm er XIV-XV (P7?), pertencente à biblioteca de Cologny-Suíça, escrito no fim do século II e início do III, contém dois trechos do evangelho de Lucas e de João. Os papiros ou os fragm entos de papiro do NT som am atualm ente cerca de 76. 23 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS contínuo dos evangelhos e dos outros escritos bíblicos, em escrita maiúscula. 12 Além disso, do fim do século II até o V e VI surgem as traduções dos textos originais nas várias línguas das Igrejas orientais, siríaca, copta (dialeto do norte e sul do Egito), armênia, georgiana. Ao mesmo tempo, difundem-se as mais antigas versões latinas, além do ambiente “ europeu” também na região da África setentrional (Veíus Latina, século II-III). Esse trabalho de transcrição e tradução do texto evangélico continua nos séculos sucessivos. Do século IX em diante, na transcrição dos códices, pas sa-se à escritura minúscula ou cursiva. As letras são pequenas e unidas entre si por tracinhos que permitem escrever de maneira contínua sem levantar a pena da folha. Quando, nos séculos XV-XVI, sob o impulso da pesquisa humanística e com a possibilidade de multiplicar os textos, graças à imprensa, pensou-se em reconstruir um texto autêntico da Bíblia e daí também do evangelho, considerado criticamente, deparou-se com uma mole de códices: cerca de 250 em escrita maiúscula (uncial) e 2.646 em escrita minúscula ou cursiva. Naturalmente na reprodução do texto introduziram-se os inevitáveis erros de transcrição do amanuense distraído ou preocupado em tornar mais claro ou fluente um texto obscuro e duro ou de harmonizá-lo com um outro semelhante. Esses erros ou correções foram retomados pelos sucessivos copistas, pelo que se formaram séries ou cadeias de códices aparentados entre si pelas mesmas variantes textuais. Em outras palavras, surgem árvores genealógicas com famílias de manuscritos em uma mesma zona geográfica ou cultural. As primeiras edições impressas do NT, a de Erasmo de Rotterdam (1516) e de Ximenes de Cisneros (1520), baseiam-se em códices gregos pouco antigos que estavam à disposição. No século seguinte começam as primeiras tentati vas de reconstrução crítica do texto do NT. As primeiras edições críticas que abrem caminhos para as modernas edições do texto neotestamentário e dos evangelhos aparecem no século X V III. 13 Os estudos e as pesquisas dos últimos 150 anos, se, de um lado, viram crescer o número das variantes com a descoberta de novos manuscritos, de outro puderam estabelecer, graças à 12. Os códices m ais im portantes em escrita m aiúscula são: o códice chamado “Vaticano”, porque conservado na B iblioteca Vaticana, transcrito no século IV; o código “S inaítico”, assim chamado porque foi descoberto no m osteiro de Sta. Catarina no Monte Sinai, pelo estudioso K. VON TISCHENDORF, em três viagens sucessivas entre 1844 e 1859 (atualm ente encontra-se no British Museum de Londres). 13. A primeira tentativa de reconstruir criticam ente o texto do NT é a de K. LACHMANN em 1831 em Berlim. Segue a de K. von Tischendorf, Novum Testam entum graece et latine. Eãitio octava critica m aior , em dois volumes, editada em Leipzig 1869-1872; reim pressa em 1965. Uma outra edição, fruto de um im portante trabalho de crítica textual, é a de dois estudiosos ingleses, B. F. WESTSCOTT e F. J. A. HORT (prim eira edição im pressa em 1881): The New Testament in original Greek, ed. de S. C. LEGG, Oxford, 1935 (Mc); 1940 (M t). Estas edições permanecem na base das atuais e m ais recentes edições, que se valem não apenas dos m étodos afiados de crítica textual, mas também das novas descobertas dos textos escritos sobre papiro. Edições atuais: E. NESTLE-K. ALAND, N ovum Testam entum graece , Stuttgart, 25 1963; A. MERK-C. M. MARTINI, Novum Testam entum graece et latine, Ro ma, 10 1964; K. ALAND, M. BLACK, C. M. MARTINI, B. M. METZGER, A. WIK- GREN, The Greek N ew Testament, Stuttgart, 2 1968. 24 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS aplicação rigorosa do método de crítica textual, um texto grego do NT que pode ser considerado com um alto grau de probabilidade o mais próximo do original. Pelo que diz respeito aos evangelhos, ao lado de numerosas varian tes que interessam por causa de particulares insignificantes, como inversão na ordem da palavra, acréscimo ou omissão de uma partícula etc., perma necem apenas algumas passagens onde a tradição continua controvertida.14 Os evangelhos e a “história de Jesus” 15 Depois de ter traçado as etapas da história dos evangelhos sinóticos, po demos tentar responder a pergunta inicial: é ainda possível reconstruir, através dos evangelhos, os gestos e palavras de Jesus no seu significado original? Em outras palavras: que crédito ou atendibilidade histórica possuem os evan gelhos? A resposta a este problema deve levar em conta os resultados atuais da crítica literária brevemente relembrados nas páginas precedentes. Entre Jesus da Palestina dos anos 30 e os atuais textos evangélicos, aparecidos pelos anos 70, coloca-se a história da tradição evangélica, que é a linha de transmissão do material evangélico no interior das primeiras co munidades cristãs. No percurso que vai de Jesus aos evangelhos existem duas etapas ou momentos decisivos: a passagem da atividade e ensinamento de Jesus ao testemunho e pregação sobre Jesus por parte dos discípulos e, de pois, a passagem da tradição oral comunitária à redação de cada um dos evangelhos por parte dos autores. A cada uma destas viradas, pode-se propor a interrogação sobre o crédito histórico, deste modo: qual é a finalidade do anúncio ou pregação eclesial sobre Jesus? Qual é o objetivo dos redatores finais? Informar sobre o evento histórico de Jesus ou suscitar e sustentar a fé nele, o Cristo vivente? Atualmente existe acordo em reter que a finali dade principal dos evangelhos escritos e da tradição evangélica preceden te é anunciar Jesus como Cristo e Senhor. Em outros termos, os evange lhos são, antes de tudo, documentos de fé em Jesus Cristo ressuscitado. Mas, 14. Mc 1,1, a respeito do apelativo “Pilho de Deus”; a ordem do texto em Lc 22,19-20, palavras da ceia eucarística; Jo 5,3-4, a menção do anjo que move a água da piscina; Mc 16,9-20, final de Marcos; Lc 22,43-44, o anjo que conforta Jesus no Getsêmani. 15. J. JEREMIAS, II Gesü s tor ico , Brescia, Paideia, 1964; Id., Teologia dei Nuovo Testamento. I. La Predicazione di Gesü, Brescia, Paideia, 1972; J. R. GEI- SELMANN, II Gesü storico, Brescia, Paideia, 1964; H. SCHÜRMANN, La tradi- zione dei detti di Gesü, Brescia, Paideia, 1966; W. TRILLING, Jésus devant Vhis toire, Paris, 1968; G. BORNKAMM, Gesü di Nazareth. I risultati di 40 anni di ricerche sul Gesü delia storia, Turim, Claudiana, 1968; M. BOUTTIER, Du Christ de Vhistoire au Jésus des Évangiles, Paris, 1969; J. M. ROBINSON, Le K érygm e de VÉglise et le Jésus de Vhistoire, Genebra, 1960 (tr. do inglês: A N ew Quest of the historical Jesus, Londres, 1959; tr. it.: K erygm a e Gesü storico, Brescia, Paideia, 1977; J. MICHL, Questioni su Gesü , Assis, CE, 1968; C. M. MARTINI, “La prim itiva predicazione apostolica e le sue caratteristiche”, CC 113 (1962), 246-55; I. DE LA PGTTERIE, Come im postare oggi il problem a dei Gesü storico, CC 120 (1969), 447-63; M. LEHMANN, Synoptische Quellenanalyse und die Frage nach dem historischen Jesus , Berlim, De Gruyter, 1970; VV.AA., Der Historische Jesus und der Kerygm atische Christus, Berlim, 1960; 2 1962; P. GRECH, Développements récents dans la controverse sur le Jésus de 1’histoire, BTBib 1 (1971), 193-217. 25 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS com isso, não se exclui o interesse pela realidade histórica de Jesus, pelo que ele disse e fez, pelos acontecimentos em torno de sua morte. Mas este interesse é su bordinado à finalidade prioritária, ou seja, a de captar e sublinhar o signifi cado das palavras e dos gestos de Jesus. Os evangelhos não são relatórios do pensamento de Jesus, nem crônica neutra de sua atividade, mas documen tos de uma tradição viva e fiel, escritos por autores cristãos comprometidos. Mas, se de um lado os evangelhos são documentos de fé, por outro eles querem ser documentos não de uma fé numa teoria sobre Deus, mas da fé em Jesus Cristo, isto é, numa pessoa histórica que foi vista, que falou e agiu concretamente em um espaço e em um tempo precisos. Isto é, são documen tos de fé no Jesus Cristo ressuscitado, mas vinculados à vida e à ação de lesus de Nazaré. Ora, o mesmo método de pesquisa histórico-crítica, que per mitiu reconstruir as etapas da tradição evangélica, oferece os instrumentos para efetuar uma verificação a respeito do valor histórico do material evan gélico. O método da “história das formas” , visando reconstruir os motivos e as exigências do ambiente que conservou e transmitiu as pequenas unidades do evangelho (relatos de milagre, controvérsias, parábolas etc.), pode ser apli cado também ao período anterior à Páscoa, para reconstruir a situação vital da pequena comunidade dos discípulos reunida em torno de Jesus. Antes da morte e ressurreição de Jesus já existem as condições para que se desen volva a tendência a conservar e transmitir aquilo que Jesus foi ensinando e fazendo na terra da Palestina. Nos atuais evangelhos, as sentenças de Jesus estão recolhidas numa forma que recorda a técnica de ensino dos rabinos da Palestina, 16 Além disso, alguns ensinamentos ou sentenças ressentem uma situação que se deu apenas antes da ressurreição. Assim algumas palavras sobre o trágico fim de Jesus são demasiado obscuras e alusivas para terem sido reconstruídas depois dos acontecimentos da Páscoa. O próprio ensina mento central do evangelho, o anúncio do reino de Deus por meio de pala vras e gestos de Jesus, caracteriza uma situação histórica que não é mais atual depois da ressurreição, quando o conteúdo do anúncio é “ Jesus Cristo ressuscitado” . Um exame atento do material evangélico com esta perspectiva permite concluir que a tradição dos “ ditos” de Jesus foi iniciada em uma comuni dade reunida em torno de sua pessoa. Esta tradição encontra sua continuação natural na tradição que se desenvolve depois da Páscoa. Mas este desenvol vimento é levado adiante sob o controle e a responsabilidade das mesmas pessoas que viveram com Jesus, os “ doze” discípulos. De fato, a estrutura da primeira comunidade, que pode ser reconstruída baseando-se em documentos extra-evangélicos, é assinalada pela liderança dos doze (cf. At 1,15-26), pela de pendência controlada pelos testemunhos qualificados (cf. G1 2,1-10 e pela transmissão autorizada e tradicional (cf. ICor 15,3-8). Em suma, deve-se admi tir que a mensagem de Jesus foi conservada e transmitida em uma comunidade 16. H. RIESENFELD, The Gospel Traãition and its Beginnings. A S tuãy in the Limits of "Formgeschichte”, Londres, 1957; Id., The Gospel Traãition, Oxford, 1970; B. GERHARDSSON, M emory and Manuscript. Oral Traãition and Written Transmission in Rabbinic Judaism and Early Christianity , Londres, 2 1964. 26 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS solidamente estruturada e por meio de encarregados seguros, de tal modo que a continuidade e fidelidade com a fonte originária são suficientemente garantidas. Enfim, é possível fazer uma ulterior verificação do material que foi re colhido nos evangelhos repercorrendo para trás o caminho dos evangelhos ao Jesus histórico, para encontrar a solidez histórica dos ditos e dos episódios evangélicos. Para este controle histórico dos evangelhos foram fixados alguns critérios gerais: a) Critério dos testemunhos. Um dado evangélico pode ser considerado autêntico quando é atestado por diversas fontes e em particular pelos estra tos mais arcaicos da tradição. b) Critério da descontinuidade. Um dado evangélico pode ser conside rado autêntico quando não pode ser explicado como produto nem do am biente judaico contemporâneo a Jesus, nem do ambiente cristão sucessivo (cf. o apelativo com o qual Jesus se dirige a Deus “ Abba” ; o anúncio do reino de Deus etc.). c) Critério da continuidade. Um dado evangélico pode ser considerado autêntico quando se situa, de modo homogêneo, no ambiente vital de Jesus, em conformidade com a situação sociocultural de seu tempo e em harmo nia com a originalidade de sua pessoa e da sua mensagem (cf. as parábolas), 1_ Esses critérios para a verificação histórica dos evangelhos têm valor e força se são usados de maneira complementar e convergente. Um dado evan gélico que satisfaça os três critérios supramencionados tem garantia de grande atendibilidade histórica. Mas, nem o ensinamento de Jesus, nem muito menos a sua pessoa, dei xam-se exaurir ou reduzir às dimensões de uma realidade histórica objetiva. De fato, Jesus, com os seus gestos e suas palavras, reivindica uma autoridade que interpela não tanto o filólogo, o historiador, o pesquisador ou o estudioso, mas o homem enquanto tal. Ele pretende decidir, de modo radical, o destino de cada homem. É legítima esta pretensão de Jesus? A interpretação do evangelho 18 Dada a pretensão de Jesus de decidir sobre o destino de cada homem, o evangelho apresenta-se como um texto normativo e não só para os crentes. As palavras do evangelho dirigem-se a cada homem, até o homem de hoje, como proposta que provoca uma decisão e escolha pró ou contra. A serie dade e a urgência da proposta evangélica revestem-se da autoridade que, no âmbito religioso, têm a palavra e a vontade de Deus. Para exprimir esta auto 17. Cf. D. G. A. CALVERT, An Exam ination of the Criteria for distinguishing the autentic Words of Jesus, NTS 18 (1972), 209-219; F. LAMBIASI, Vautenticità storica dei vangeli, Bolonha, Dehoniane, 1976. 18. R. LEPOINTE, Les trois ãimensions de VHerméneutique, Paris, 1967; Id., Panorama de 1’herm éneutique actuelle, BTBib 2 (1972), 107-156; R. MARLÉ, II problem a teologico deli’ermeneutica, Brescia, Queriniana, 1969. 27 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS ridade, o evangelho assume os sinais e símbolos característicos da linguagem religiosa contemporânea. Assim, na cena do batismo de Jesus se diz: “Apenas saído da água, viu os céus ab rirem -se ...” ; “ uma voz dos céus fez-se o u v i r . . . ” (Mc 1,10 par.). As mesmas expressões ocorrem na cena da trans figuração. Jesus diante do sinédrio afirma: “Vós vereis o Filho do homem sentar-se à direita do Poder e vir com as nuvens do céu” (Mc 14,62; cf. 13,26 par.). Esta linguagem deixa transparecer uma concepção do mundo e da história que suscita a perplexidade do homem de hoje. R. Bultmann apro veita a situação de incômodo do homem moderno diante da linguagem evan gélica para colocar a interrogação de fundo: “ A pregação de Jesus sobre o reino de Deus ainda conserva um significado para o homem moderno?” F. considera que o evangelho possa ainda comunicar ao homem de hoje algo de válido, desde que seja “ desmilologizado”, isto é, seja submetido a uma reinterpretação que permita enuclear, além e acima do revestimento mítico, a mensagem ainda atual. Ele parte de uma certa noção de mito: “ Pode-se dizer que os mitos dão à realidade transcendente uma objetividade imanente a este mundo. Eles atribuem uma objetividade mundana àquilo que é não- -mundano.” 19 Por outro lado, segundo Bultmann, os mitos não são uma fa- bulação vazia, mas “ exprimem a idéia que o homem não é o senhor do mundo e da própria vida, que o mundo no qual vive é cheio de enigmas e de mistérios, ou que a vida humana encerra uma série de enigmas e mis térios” . 20 Em síntese, a representação mítica do mundo exprime uma certa “compreensão” da existência humana, isto é, “ o mundo e a vida humana encontram seu fundamento e seus limites em uma potência situada no exte rior daquilo que não podemos prever e controlar” . 21 Porém, já no interior do NT, segundo R. Bultmann, iniciou-se um processo de desmitologização, isto é, de releitura em chave não-espaço-temporal das afirmações “ míticas” a respeito da intervenção de Deus na história de Jesus. Isto justifica o in tento moderno de “ desmitização” , que procura reinterpretar as formulações do evangelho utilizando os modos de pensar elaborados pelas análises da exis tência de M. Heidegger. Mas, quem me assegura que essas categorias não são um novo mito, igualmente desviadoras da mensagem genuína do evangelho como as concep ções apocalípticas judaicas ou os mitos gnósticos? R. Bultmann responde que cada leitura do evangelho é uma interpretação feita baseando-se em alguns 19. R. BULTMANN, Jésus. Mythologie et démytologisation, Paris, ed. Du Seuil, 1968, 193; cí. Id., Nuovo Testam ento e Mitologia. II manifesto áella demi- tizzazione, Brescia, Queriniana, 1970; G. MIEGGE, Vevangelo e il mito nel pen- siero di R. Bultmann, Milão, Comunità, 1956; R. MARLÉ, Bultmann e l’inter- pretazione dei NT, Brescia, Morcelliana, 1957; G. BORNKAMM, R. Bultmann. Problemática e discussione, Bolonha, Dehoniane, 1970; VV.AA., Capire Bultmann. Una testimonianza ecumenica, Turim, Borla, 1971; R. PESCH, Esegesi moderna. Che cosa resta dopo la demitologizzazione , Roma-Brescia, Herder-Morcelliana, 1970; VV.AA., II problema delia demitizzazione, Roma, 1961; VV.AA., Dibattito sul mito, Roma, 1969 (tradução da obra alemã: K erygm a und Mythos, I-II, Hamburgo, 1965/67); VV.AA., Mito e fede, Roma, 1968. 20. R. BULTMANN, Jésus. Mythologie 193. 21. Ibid., 193. 28 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS pressupostos culturais ou “pré-compreensões” . Trata-se então de estabelecer as concepções e pressupostos que são “ justos e adequados” . Trata-se de estabe lecer qual é a afinidade viva, a relação justa com o conteúdo essencial do evangelho. Dado que cada pressuposto ou concepção depende de um certo modo de conceber a existência e o mundo, isto é, de uma certa filosofia, no fim trata-se de escolher o método filosófico que hoje oferece as perspectivas e as concepções mais apropriadas para compreender a existência humana. E esta “chance” hoje é dada pela “ filosofia da existência” . 22 Desses pressupostos teóricos nasce o método de interpretação “ desmiti- zante” ou existencialista de Bultmann. Os discípulos corrigiram as conclusões do mestre, porém prosseguiram na mesma linha tomando como critério de referência o segundo Heidegger, que vê na linguagem a revelação autêntica do ser. Neste caso é a própria palavra do evangelho, como palavra de amor e de vida, o acontecimento revelador que interpreta a existência do le ito r.25 No ambiente cultural de língua inglesa a interpretação do evangelho está sob o influxo da análise da linguagem de L. Wittgenstein, que põe em discussão a própria possibilidade de falar de Deus. Donde a tentativa de ler o evan gelho em chave “ secular” . 24 Paralelamente a estas tentativas desenvolveram-se e estão ainda em fase de elaboração novos métodos de interpretação que se inspiram nas conclusões e nos métodos do estruturalismo, sobretudo nos am bientes de língua francesa, do simbolismo e da lingüística em geral.25 Por fim também o desenvolvimento das ciências humanas, da psicologia c da so ciologia, fez sentir seu influxo e incidência em algumas afirmações de te mas e perspectivas na atual leitura do evangelho. Basta pensar no renovado interesse pela dimensão social e mais especificamente “política” da mensa gem evangélica, em conexão com a nova concepção e consciência das respon sabilidades políticas dos cristãos.26 Diante de tal variedade de escolhas e de orientações, o leitor moderno do evangelho perdeu definitivamente a ingênua convicção de poder ler o texto evangélico em um estado de virgindade neutra. A pretensão de neutra lidade neste campo assemelha-se, freqüentemente, à declarada neutralidade ou imparcialidade no campo político que esconde, quase sempre, a inconsciente e inconfessada adesão preconceituosa a uma facção. É preferível reconhecer, honestamente, o próprio condicionamento, a própria escolha de campo e de método, em constante diálogo com as outras propostas de leitura. Somente 22. Id., L’interprétation moderne de la Bible et la philosophie de l ’existence, in Jésus. Mythologie, 213-223. 23. Os representantes m ais conhecidos desta “nova herm enêutica” são: G. EBELING, E.- FUCHS, para a Alemanha; J. M. ROBINSON, para a Inglaterra; cf. J. M. ROBINSON-E. FUCHS, La nuova ermeneutica, Brescia, Paideia, 1967. 24. P. VAN BUREN, II significato secolare dell’evangelo, Turim, Gribaudi, 1969; cf. I. T. RAMSEY, II linguaggio religioso, Bolonha, II Mulino, 1970. 25. R. BARTHES et alii, Analyse structurale et exégèse biblique, Neuchátel, 1970; E. GÜTTGEMANNS, Offene Fragen an die Formgeschichte des Evangeliums, Munique, 2 1970. 26. F. BELO, Lecture matérialiste de Vévangile de Marc, Paris, Cerf, 1974; Id., Una lettura politica dei Vangelo, Turim, Claudiana, 1975. 29 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS assim a leitura pessoal do evangelho estará de novo sujeita a um controle público da comunidade crente que o conserva não como um patrimônio para embalsamar, mas como uma luz para expor à vista de todos, para que perma neça como um dom para toda a humanidade. Como ler o evangelho: proposta de um método Diante de um relato ou de uma sentença do evangelho, podem-se colocar três interrogações: — como aconteceram, de fato, as coisas? O que Jesus disse ou pensava realmente dizer? — o que quer dizer este autor (Mc, Mt Lc) com esta composição? — o que isto nos dize hoje? São três perguntas legítimas e importantes. Trata-se de estabelecer uma ordem e uma sucessão de maneira a não fazer Jesus dizer o que é uma interpretação de Marcos ou de Mateus, ou um desejo nosso de atualização. Antes de tudo, o evangelho, isto é, quanto Jesus disse e fez, o acontecimento por meio do qual Deus se revela Salvador e Senhor da história, próximo e comprometido com os acontecimentos humanos, apresenta-se a nós como livro, escrito na segunda metade do século I d.C., em um determinado ambiente cultural. O primeiro nível de leitura é o que vale para qualquer livro: en tender o que o autor quer dizer, com a sua linguagem, com a sua concepção de mundo etc. Tudo isso deve ser inserido no seu preciso universo lingüístico. Em resumo, deve-se antes de tudo compreender o que pretendem dizer Marcos, Mateus e Lucas, os quais respondem às interrogações dos cristãos do seu tempo e da sua comunidade. Neste ponto, pode-se perguntar: o que disse ou pretendia dizer Jesus? O que fez ou que coisa pretendia fazer? À medida que é possível recons truir uma realidade histórica transmitida no espaço de tempo de uma gera ção, 30/40 anos, também esta pergunta deve respeitar os critérios de lei- iura e dc interpretação histórica. Isso significa reconstruir, baseando-se nos documentos disponíveis, o ambiente cultural e social da Palestina da primeira metade do século l d.C., com seus interesses, os problemas sociorreligiosos, os modelos lingüísticos etc. Mas também, nesta reconstrução, uma pista auto rizada e privilegiada para chegar não só à realidade histórica de Jesus, mas à interpretação de sua pessoa e da sua mensagem, permanece sempre o texto evangélico escrito. Por fim, uma terceira pergunta, que já no tempo de Marcos estava na origem do evangelho: o que nos diz hoje esta palavra ou fato do evange lho? Esta não é apenas uma pergunta legítima, mas indispensável para ler e entender. Uma leitura que não interprete o texto em relação à realidade atual e vivida é um absurdo. Mas, neste ponto, se exige um trabalho atento de calibragem para fazer coincidir o horizonte de Marcos e de Jesus com o horizonte atual, sem reduções ou deturpações. Não é só questão de tra dução em termos compreensíveis, mas de um confronto de experiências, de 30 INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS SINÓTICOS valores vividos e de perspectivas.27 Apenas quem vive em perfeita sintonia com a linha de ação e a perspectiva de Cristo está em condições de fazer uma autêntica interpretação atual. Todavia, baseando-nos em que critério podemos verificar uma sintonia com Jesus Cristo e Senhor? Não creio que exista um critério cultural externo, como uma corrente filosófica, embora seja legítimo e necessário recorrer aos instrumentos culturais que servem hoje para a comunicação entre os homens. O critério hermenêutico intrínseco à própria mensagem evangélica é aquele re cordado por João, o quarto evangelista, o mais atualizante e espiritual dos evangelistas, mas ao mesmo tempo o mais preciso ao referir alguns particula res da vida de Jesus. “ Tenho ainda muitas coisas para dizer-vos, mas agora não podeis entendê-las. Quando pois ele vier, o Espírito de verdade, vos guiará em toda verdade” (Jo 16,12a: cf. 14,26). No interior da comunidade dos homens que foram envolvidos no destino de Jesus, as suas palavras e os seus gestos foram já interpretados e alimentaram uma experiência de fé c compromisso. Jesus, Senhor ressuscitado, continua a estar presente na co munidade cristã por meio do seu Espírito que não apenas introduz os crentes na plena verdade, mas faz penetrar a verdade no interior das consciências. Na continuidade histórica dos cristãos de hoje com a primeira comuni dade recolhida ao redor de Jesus e dos testemunhos da sua ressurreição, o Espírito de Jesus interpreta de modo autêntico a sua palavra, aquela palavra que hoje ressoa de novo na comunidade. Em resumo, o critério de verificação na interpretação do evangelho é a vida de uma comunidade local concreta, em constante confronto e diálogo vital com a comunidade universal dos cris tãos, a Igreja, a qual, por meio da tradição viva, se liga à primitiva Igreja dos apóstolos, 27. H. G. GADAMER, Wahrheit und Methode. Grunázüge einer philosophischen Hermeneutik, Tübingen. - 1952; E. CORETH, Grundfragen der Hermeneutik. Ein philosophischer Beitrag, Friburgo, 1969. 31 O EVANGELHO DE MATEUS tradução e com entários de Giuseppe Barbaglio INTRODUÇÃO Antes de tomar nas mãos um evangelho é indispensável saber respon der a certas questões prévias. Como se formou? É uma obra de fôlego, ou veio à luz através de um lento e complexo processo de gestação? Qual é a sua exata colocação em relação aos outros evangelhos? Sobre que alicerce literário se constrói e a que meios expressivos particulares se confia? E do ponto de vista do conteúdo, podem-se traçar as grandes linhas da mensagem de fé que o qualificam e constituem seu escopo? Percorrer o caminho do nascimento do escrito de Mateus, captar suas características literárias, deter minar suas perspectivas teológicas é o que se propõe esta visão panorâmica sobre o primeiro evangelho. Não a considere carente de utilidade, pois nin guém se aventura prudentemente por uma estrada desconhecida, sem ter an tes consultado um mapa rodoviário, que indique o percurso, as passagens estreitas, eventuais trechos em aclive e declive, a quilometragem, a presença de postos de serviço e outros particulares. Uma viagem longa e difícil, só se programada com cuidado, poderá ter garantia de êxito. 1 NO FLUXO DA TRADIÇÃO DA IG REJA PRIM ITIVA Lido em relação aos evangelhos de Marcos e Lucas, o evangelho de Mateus nos confronta com algumas constatações de fato. A primeira: Mateus reproduz quase por completo o escrito de Marcos em uma versão paralela e substancialmente correspondente quanto à ordem de sucessão do relato, ao conteúdo e à expressão literária. Faltam apenas a cena dos parentes que querem seqüestrar Jesus julgando-o fora de si (3,20-21), a parábola da se mente que germina sozinha (4,26-29), duas curas: de um surdo-mudo (7,31-37) e do cego de Betsaida (8,22-26), o episódio do jovem que foge nu no Getsê mani (14,51-52), algumas palavras de Jesus (2,27; 9,29.49-50), uma anota ção sobre usos farisaicos (7,3-4) e o diálogo entre um mestre da lei de Cristo (12,32-34). A segunda constatação é que o evangelho de Mateus parece sensivelmente mais rico que o de Marcos. Quase a metade do seu material não encontra em 1. Além das indicações bibliográficas dadas acim a na Introdução geral e nos com entários ao evangelho de Mateus m encionados m ais adiante, veja X. LEON-DUFOUR, L’évangile selon Matthieu, in: A. ROBERT-A. FEUILLET, Introduction à la Bible, II: Nouveau Testament, Tournai, Desclée, 1959, pp. 163-195; B. RIGAUX, Témoignage de Vévangile ãe Matthieu, Bruges, Desclée de Brouwer, 1967; H. GEIST, La prédication de Jésus dans l’évangile de Matthieu, in: Jésus dans les évangiles, Paris, Cerf, 1971, pp. 91-116; W. TRILLING, Matteo, Tevangelo ecclesiastico. Storia delia tradizione e teologia, in: J. SCHREINER, Forma ed esigenze dei Nuovo T estam ento , Bari, Paoline, 1973, pp. 301-322; G. TOURN, Intro- duzione a Matteo, in: Evangelo secondo M atteo , Verona, Mondadori, 1973, pp. 49-96. 35 MATEUS: INTRODUÇÃO Mc nenhuma correspondência. O evangelho de Lucas, ao contrário, reporta-lhe uma boa parte, exatamente 235 versículos.2 Trata-se quase exclusivamente de palavras de Cristo: a pregação do Batista (3,7-12), as tentações de Jesus (4,2-11), parte do discurso da montanha (5,3-6.11-12.15.39-42.45-48; 6.9-13.19-21.22-23.25-33; 7 ,1-5 .7-11.16.21.24-27), a cura do servo do oficial romano de Cafarnaum (8,5-13), duras exigências para quem quer se guir Jesus (8,19-22), parte do discurso sobre a missão (9,37-10,15 e 10,26-34), um longo texto referente ao Batista (11,2-19), a invectiva contra as cidades à margem do lago (11,21-23), o canto de louvor ao Pai (11,25-27), a propó sito da atividade exorcista de Jesus (12,22-30.43-45), o pedido de um si nal (12,38-42), as parábolas do grão de mostarda e do fermento (13-31-33), boa parte do discurso contra os fariseus e os mestres da lei (23,4.23-25. 29-36.37-39), alguns ditos do discurso sobre o fim do mundo (24,26-28.37-41. 43-51) e a parábola dos talentos (25,14-30). A terceira constatação refere-se ao fato de o evangelho de Mateus apre sentar um consistente patrimônio próprio, avaliável em cerca de 330 ver sículos.5 Dele fazem parte os textos de infância (cc. 1-2), o diálogo entre Jesus e o Batista (3,14-15), o comentário no início da missão de Jesus na Galiléia (4,13-16), diversos materiais do discurso da montanha (5,7-10.16-20. 21-22.27-28.33-37; 6,1-8.16-18; 7 ,6 .15-16.22), a cura de dois cegos (9,27-41), poucos versículos do discurso sobre a missão (10,5-8), alguns trechos cujo protagonista é Pedro (14,28-31; 16-16-19; 17,24-27), o dito sobre o jugo leve de Cristo (11,28-30), um resumo (15,30-31), a palavra sobre os eunucos (19,10-12), oito novas parábolas: a cizânia com a respectiva explicação (13,24-30.36-43), o tesouro e a pérola (13,44-46), a rede jogada na água (13,47-50), o administrador impiedoso (18,23-35), os operários enviados à vi nha (20,1-16), os dois filhos (21-28-32), as dez moças (25,1-13). Além disso a conclusão do c. 13 (vv. 51-53), partes não-desprezíveis do discurso eclesial (18,10.15-22) e do discurso antifarisaico (23,1-12.15-22.27-36), a cena do juízo final (25,31-46), alguns particulares do relato da paixão (27,3-10.19. 24-25.51-53.62-66), a aparição do ressuscitado às mulheres (28,9-10), a desas trada tentativa de desacreditar a ressurreição (28,11-15) e a missão universal dos apóstolos (28,16-20). Acrescente-se que, da dezena de citações bíblicas introduzidas por fórmulas estereotipadas próprias de Mateus, algumas ocorrem nos trechos já mencionados (1,22-23; 25-6; 2,15; 2,17-18; 2,23; 4,14-16; 27.9-10) e as outras em 8,17; 12,17-21; 13,14-15; 13,35; 21,4-5. Estes são os dados incontrovertidos. Mas, como explicá-los? Aqui entramos no campo das hipóteses. Todavia, um vastíssimo consenso admite, pelo me nos como utilíssima hipótese de trabalho, a dependência de Mateus de três filões tradicionais: o evangelho de Marcos, uma fonte contendo quase exclu sivamente ditos de Jesus e indicada pela sigla Q (Quelle = fonte), e tradi ções várias à disposição do evangelista. De Marcos ele teria tomado o ma terial que tem em comum com o segundo evangelho. De Q proviriam aque les trechos que têm paralelo em Lucas. Do terceiro filão Mateus seria deve dor ua maior parte do seu patrimônio próprio. Particularmente discutida é a 2. Cf. B. RIGAUX, O .C ., p. 162. 3. Cf. B. RIGAUX, o.c., p. 167. 36 MATEUS: INTRODUÇÃO fonte Q, cuja existência foi postulada como explicação da presença do ma terial comum a Mateus e
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