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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS DOUTORADO EM LETRAS NEOLATINAS PERSPECTIVA DE UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA: PARA ALÉM DO INTERCULTURAL E DO SABER-FAZER ANDRÉIA MATIAS AZEVEDO Rio de Janeiro 2015 PERSPECTIVA DE UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA: PARA ALÉM DO INTERCULTURAL E DO SABER-FAZER ANDRÉIA MATIAS AZEVEDO Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos — Opção Língua Francesa). Orientadora: Profa. Doutora Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de Janeiro 2015 AZEVEDO, Andréia Matias Azevedo Perspectiva de uma mediação cultural crítica: para além do intercultural e do saber-fazer/Andréia Matias Azevedo _ Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2015 Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2015. 1. Francês 2. Análise do Discurso. 3 Estudos Linguísticos I. Pietroluongo, Márcia Atálla II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Letras Neolatinas. III. Título PERSPECTIVA DE UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA: PARA ALÉM DO INTERCULTURAL E DO SABER-FAZER Andréia Matias Azevedo Orientadora: Professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Neolatinos _ Opção: Língua Francesa. Examinado por: Presidente: Profa. Dra Márcia Atálla Pietroluongo _ Orientadora Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ Prof. Dr. Luiz Carlos Balga Rodrigues Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ Profa. Dra. Maria Paula Frota Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro _ PUC Prof. Dr. Pedro Armando Magalhães Universidade do Estado do Rio de Janeiro _ UERJ Prof.Dr.Renato Venâncio Sousa Universidade do Estado do Rio de Janeiro _ UERJ Profa. DraTeresa Dias Carneiro _ Suplente Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ Profa.Dra. Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold _ Suplente Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ DEDICATÓRIA Dedico esta tese a meu marido e companheiro, André Amaral. A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos. Marcel Proust AGRADECIMENTOS À professora Dra. Márcia Atálla Pietroluongo, minha orientadora, que vem me acompanhando desde o mestrado, agradeço a confiança em minhas propostas de investigação e a liberdade de estudar assuntos pelos quais tenho interesse. Muito obrigada. À professora Dra. Ângela Correa, que já conhecia da graduação e do mestrado, mas com quem tive o prazer de conviver um pouco mais no doutorado, agradeço as aulas vivas, capazes de relacionar a teoria com a vida. Aos professores Dr. Luiz Carlos Balga Rodrigues e Dra. Maria Paula Frota, que participaram de minha qualificação, agradeço a leitura atenta e as orientações feitas, permitindo não apenas continuar minha pesquisa, mas enriquecê-la, e vislumbrar novos caminhos. Às minhas amigas Rosane Mavignier Guedes, Mônica Sardinha, Gladys Coutinho, Débora de Castro Barros, Vânia Silva, agradeço a paciência de escutar minhas aflições e inquietações durante três anos, além de me trazerem sugestões para alcançar meus objetivos. Aos meus amigos professores da Aliança Francesa, agradeço o carinho de responder ao questionário que faria parte do corpus desta pesquisa, mas os rumos tomados inviabilizaram sua exploração nessa etapa do percurso. A todos os demais que colaboraram neste trabalho. Aos meus irmãos, Vagner e Adriana, e à minha mãe, Maria de Fátima, que estão sempre torcendo por mim, agradeço a compreensão de minhas ausências presenciais e o conforto contínuo de que tudo dará certo. Ao meu marido, André Amaral, que me incentivou e compartilhou deste meu projeto dia a dia, não apenas como espectador, mas também me ajudando de maneira ativa em todas as minhas atividades diárias, agradeço o companheirismo e a paciência. À minha avó, Luiza Cordeiro, agradeço a alegria, a firmeza e a sabedoria de viver. Suas gargalhadas sempre vão ecoar em minha vida… Ao meu pai agradeço o fato de ter me mostrado a importância de dar doçura à vida e de não perder a serenidade e o equilíbrio. RESUMO A presente pesquisa objetiva refletir sobre a mediação cultural no ensino de francês língua estrangeira (FLE) no Brasil e propor critérios para uma abordagem cultural crítica, transcendendo os interesses do mercado de trabalho e das relações diplomáticas. Importa dizer que este estudo não desconsidera a atuação do professor de língua estrangeira (LE) como mediador intercultural, capaz de agir na promoção da interação entre línguas e culturas distintas; todavia, contesta a ideia de que esse papel se sobrepõe ao de mediador cultural crítico, cujo princípio filosófico consiste sobretudo em despertar nos alunos o interesse pelo questionamento e pela reflexão, a fim de que eles não apenas se adaptem ao mundo como ele é, mas também tenham condições de transformá-lo e de reagir contra os discursos alienantes, dogmáticos e niilistas. Para essa abordagem, a postura relativista só se estabelece quando o indivíduo se põe a pensar, de maneira consciente, sobre sua existência e a recriá-la, sem reduzir o Outro ao Mesmo (LEVINAS, 2014). Acredita-se que determinadas orientações pedagógicas, embora se declarem relativistas em prol da interação, do saber-fazer, podem estar favorecendo uma formação do sujeito ainda de natureza “civilizadora”, reprodutora e antiética. Para avaliar tais hipóteses, serão analisados o tratamento dado ao componente cultural no ensino-aprendizado de FLE e as ideologias subjacentes à formação do professor no curso da história, com base, notadamente, nos estudos de Denys Cuche (1996), Newton Duarte (2000) e Glaudêncio Frigotto (2011). Além disso, à luz das reflexões filosóficas de Cipriano Carlos Luckesi, Max Weber, István Mészáros, Hannah Arendt, entre outros, esta pesquisa vai analisar os atos redentores, reprodutores e críticos no ensino- aprendizado de FLE, notadamente sob a perspectiva da materialidade histórica. Palavras-chave: Mediadores culturais. Formação do professor de LE. Abordagem cultural crítica. ABSTRACT This research aims to reflect on the cultural mediation in the French foreign language education (FLE) in Brazil and propose criteria for a critical cultural approach, transcending the interests of the labour market and diplomatic relations. It must be said that this study does not disregard the role of the foreign language teacher (LE) as intercultural mediator, able toact in promoting interaction between languages and different cultures. However, that shares the idea that this role overlaps with the critical cultural mediator (whose philosophical principle is primarily to arouse students’ interest in questioning and reflection), so that they not only adapt to the world as it is, but also are able to transform it and to react against the alienating, dogmatic and nihilistic speeches, dogmatic. Taking into account this aproach, the relativist position is only established when the individual begins to think consciously about its existence and recreate it without reducing the Other to the Same (LEVINAS, 2014). It is believed that certain pedagogical guidelines, while declaring themselves in favor of relativistic interaction, know-how, may be favoring formation of the subject even of nature “civilizing” reproductive and unethical. To evaluate these hypotheses, we will analyze the treatment of the cultural component in the teaching-learning FLE and ideologies underlying the formation of the teacher in the course of history, based, in particular, the studies of Denys Cuche (1996), Newton Duarte (2000) and Glaudêncio Frigotto (2011). In addition, in the light of the philosophical reflections of Cipriano Carlos Luckesi, Max Weber, István Mészáros, Hannah Arendt, among others, this research will analyze the redemptive acts, players and critics in the teaching-learning FLE, especially from the perspective of historical materiality. Keywords: Cultural mediators. LE teacher training. Cultural critical approach. RÉSUMÉ Cette recherche vise à réfléchir sur la médiation culturelle dans l’enseignement du Français Langue Étrangère (FLE) au Brésil et à proposer des critères pour une approche culturelle critique, transcendant les intérêts du marché du travail et des relations diplomatiques. Il convient de signaler que cette étude n’ignore pas le champs d’action des enseignants de LE en tant que médiateurs interculturels, capables d’agir en favorisant l’interaction entre les langues et les cultures diferentes. Toutefois, on s’oppose à l’idée que ce rôle se superpose à celui de médiateur culturel critique, dont le principe philosophique consiste surtout à éveiller chez les apprenants l’intérêt pour le questionnement et pour la réflexion, de sorte que, non seulement, ils s’adaptent au monde tel qu’il est, mais aussi, qu’ils soient capables de le transformer et de réagir contre les discours aliénants, dogmatiques et nihilistes. D’après cette approche, la position relativiste ne s’établit que lorsque l’individu se tient à penser sciemment à propos de son existence et de se reinventer sans réduire l’Autre au Même (Levinas, 2014). Il est présumé que certaines orientations pédagogiques, tout en se déclarant relativistes, en faveur de l’interaction, du savoir-faire, proposent encore au sujet une formation de nature “civilisatrice”, reproductrice et non éthique. Pour évaluer ces hypothèses, on va analyser le traitement de la composante culturelle dans le FLE et les idéologies sous-jacentes à la formation de l’enseignant au cours de l’histoire de l’enseignement-apprentissage, sur la base, notamment, des études de Denys Cuche (1996), Newton Duarte (2000) et Glaudêncio Frigotto (2011). En outre, à la lumière des réflexions philosophiques de Cipriano Carlos Luckesi, Marx Weber, István Mészáros et Hannah Arendt, entre autres, cette recherche permettra d’analyser les actes rédempteurs, reproducteurs et critiques dans l’enseignement-apprentissage de FLE notamment dans la perspective du matérialisme historique. Mots-clés: Médiateurs culturelles. Formation de l’enseignant de LE. Approche culturelle. SUMÁRIO INTRODUÇÃO: O CENÁRIO DA MEDIAÇÃO NO ÂMBITO DO ENSINO 12 1 A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA E O DESEJO DO OUTRO 22 1.1 A REPRESENTAÇÃO DO COLONIZADOR E DO COLONIZADO 29 1.2 A CULTURA FRANCESA NO BRASIL E A RELAÇÃO FRANCO-BRASILEIRA 33 1.3 SURGIMENTO DO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA 38 1.3.1 A criação do Ministério da Educação e a Reforma Francisco de Campos 40 1.3.2 A Reforma Capanema 42 1.3.3 As diretrizes do ensino de língua estrangeira de 1961 a 1970 44 1.3.4 Diretrizes de 1996 e as atuais orientações no ensino de língua estrangeira 47 1.4 O RELATIVISMO CULTURAL NOS PCNS E NO CECR 49 1.5 A EDUCAÇÃO DO FUTURO SOB AS IDEOLOGIAS E DIRETRIZES MORINIANAS 56 2 INVESTIGAÇÃO DAS AÇÕES E DOS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO MODERNA E PÓS-MODERNA À PROCURA DO DEVIR 63 2.1 AS IDEOLOGIAS IMPLÍCITAS EM TORNO DO MULTI/PLURI/INTER/TRANSDISCIPLINAR 71 2.2 EDUCAÇÃO COMO REDENÇÃO, REPRODUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO: OS TIPOS DE AÇÕES MEDIADAS 80 2.2.1 A educação redentora de Emile Durkheim 85 2.2.2 O poder ideológico e segregativo da instituição escolar 87 2.2.3 Propostas e brechas de uma educação para o devir 96 3 PROCEDIMENTOS PARA UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA EM FLE: ENTRE A PROMESSA DA HARMONIA E DO ESPANTO 112 3.1 A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA NA ABORDAGEM INTERCULTURALISTA NO CONTEXTO DE ENSINO-APRENDIZADO 117 3.1.1 O método Écho e o tratamento do componente cultural 122 3.2.2 Atividades interculturalistas de Christiane Tagliante analisadas sob diversos prismas 138 3.3 MEDIAÇÃO CRÍTICA DO COMPONENTE CULTURAL 155 3.3.1 Tratamento do componente cultural na perspectiva de uma mediação cultural crítica 160 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 173 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 183 ANEXOS 198 12 INTRODUÇÃO: O CENÁRIO DA MEDIAÇÃO NO ÂMBITO DO ENSINO Mediação como lugar e ocasião de transição de um mundo a outro, em que se organizam intervalos, silêncios propedêuticos, modelos provisórios; lugar de passagem, no qual estabelecemos outro olhar para os objetos e as pessoas; lugar e instrumento de separação, de afastamento, em que nos esforçamos para nos libertarmos das críticas enganosas e no qual vão emergir novos conhecimentos. (LÉVY, 2003, p. 14)1 Ao ser enunciado o termo “mediação”, a imagem que se tem é, em geral, a de um espaço de passagem, de interseção entre dois contextos distintos que o sujeito precisa percorrer para adquirir novos saberes. Nesse cenário, é comum imaginar igualmente a presença de um mediador, de um terceiro indivíduo, agindo como intermediário no acesso ao desconhecido. Todavia, sabe-se que o ato de mediar não é neutro e que os indivíduos tendem a enxergar o Outro por sua ótica pessoal, cultural, de acordo com seu papel social. Com relação à atuação dos mediadores no organismo social, convém dizer que há os que procuram manter a ordem da sociedade vigente por meio de ideologias reprodutoras e conservadoras, e outros que reagem contra as ações dominadoras. Isso significa que as interações nem sempre se estabelecem de modo harmonioso. Ainda que determinada cultura predomine sobre outra, há sempre forças de poder que procuram desequilibrar determinada hegemonia. Contra as visões dogmáticas, o presente estudo verificou a necessidade de refletir sobre as ações mediadoras praticadas pelos professores de francês língua estrangeira (FLE) ao transmitirem informações culturais. Compreendem-se como mediadores culturais os sujeitos capazes de relativizar as diferenças sociais e culturais e 1 Os excertos das obras citadas em francês na bibliografia, sem tradução publicada no Brasil, foram traduzidos por mim. 13 de refletirde forma contínua sobre suas concepções de mundo, do Outro e de si mesmos. Entretanto, essa mentalidade reivindica uma formação do ensino de línguas que contemple saberes linguísticos, pragmáticos, discursivos, didáticos e pedagógicos, mas também conhecimento proveniente das ciências sociais, da psicologia, da antropologia, entre outros campos. No que diz respeito ao ensino-aprendizado de língua estrangeira no Brasil, não se pode deixar de analisar também que a constituição da identidade brasileira foi marcada pela ação colonizadora de Portugal, que objetivava enriquecer com a descoberta de tais terras e não tinha interesse em fazer da colônia uma nação próspera. Além disso, os índios e os negros que para aqui vieram foram submetidos às culturas do colonizador. Com relação aos colonos que vieram para o Brasil na busca de obter uma vida melhor, muitos foram explorados pelos proprietários dos cafezais e se decepcionaram com a falta de apoio do governo brasileiro (CUCHE, 1996). Sobre o aspecto de aculturação, convém ressaltar igualmente que, embora a França não tenha colonizado o Brasil, até meados do século XX viver, falar, comer, vestir-se como os franceses eram comportamentos que as elites portuguesas admiravam e que acabaram por incorporar na cultura brasileira. As famílias abastadas buscavam repetir tais costumes, pois simbolizavam poder, elegância e civilidade. Posteriormente, a partir de 1950, com o crescimento econômico dos Estados Unidos, muitos brasileiros passaram a cobiçar a cultura americana. Entretanto, a imagem da nação francesa como o símbolo de “excelência cultural” ainda continua viva na memória de muitos. Retomando a relação cultural franco-brasileira, cabe ressaltar ainda que a perda da hegemonia político-econômica da França no cenário mundial conduziu o Estado a convocar agentes culturais capazes de manter seu prestígio. É oportuno salientar que o 14 aspecto cultural tem forte peso no funcionamento da sociedade francesa. Na obra Cultura e Estado: a política cultural na França 1955-2005 (2012), Teixeira Coelho relata que o orçamento reservado à cultura já foi maior que o do Ministério das Relações Exteriores. Além disso, menciona que a nação francesa foi a primeira a criar, em 1959, o Ministério da Cultura. Sobre o ensino de FLE, Maddalena de Carlo (1998) retrata que a concepção da França como modelo de civilização pode ser observada de forma nítida em métodos como o Mauger bleu, no qual o próprio autor declara que o livro visa ao ensino do francês, mas também ao da civilização francesa. Os manuais de FLE demonstram ainda um interesse em divulgar sua cultura; porém, com o fim do período colonial, a concepção de cultura universalista perdeu espaço para as ideias relativistas. Embora o ensino-aprendizado de um idioma tangencie questões delicadas, não se pode negligenciar que esse universo permite ao sujeito refletir sobre sua cultura por meio de outra e, por sua vez, reavaliar suas certezas e convicções, saindo de certo narcisismo. De acordo com Marisa Grigoletto (2006), as identidades se formam na alteridade, no jogo entre o Outro e o Eu. No atual contexto de globalização e informatização, Marisa Grigoletto (2006) destaca que a identidade se mostra ainda mais fragmentada; porém, enfatiza que essa fragmentação não representa nenhum caos. Apoiada nas teorias pós-colonialistas de Homi Bhabha (2013), um teórico que pensa o pós-colonialismo e os sujeitos colonial e pós-colonial, ela defende a importância de o ser humano saber lidar com e gerenciar as diferenças culturais, pois concebe o conflito como essencial na construção da identidade dos sujeitos. Em contrapartida, condena as ações que visem a aniquilar o conflito. Acrescenta, ainda, que a concepção de assimilação ou substituição identitária do período colonial já não se mostra mais coerente na atualidade. 15 Na obra Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (1967), Albert Memmi demonstra que a relação entre colonizado e colonizador se constituiu pela desigualdade. Este se concebia como superior e tinha orgulho de sua origem, de sua cultura, enquanto o colonizado se sentia inferior e buscava muitas vezes imitar o colonizador para que pudesse se tornar “civilizado”. Em outras palavras, havia interesse em apagar as diferenças. O autor enfatiza que tal atitude do colonizado apenas reforçou durante séculos a posição de poder do colonizador e levou o colonizado a uma crise identitária. Porém, ao se dar conta de que seu projeto de assimilação fracassou, o colonizado passa a revalorizar sua origem, sua cultura e começa a colocar em questão a colonização e a lutar contra o colonizador. Isso gera, posteriormente, outro sentimento extremista: o xenofobismo. Em era de pós-colonialismo, de globalização e de informação, os atuais pensadores da modernidade pregam, entretanto, a diversidade cultural e demonstram condenar as atitudes de intolerância em seus discursos. Gilvan Müller de Oliveira (2010, p. 12) faz esta declaração sobre as atuais políticas linguísticas: “não se postula mais, como política de Estado, que a população de um país permaneça ou se torne monolíngue”. Sobre o conceito de língua, importa ressaltar, ainda, que ela é vista como entidade social, e não mais como simples instrumento de comunicação e de promoção de um sentimento nacionalista, objetivando instaurar a centralização e a unificação do Estado-nação. Danielle Lévy (2003) destaca que a língua francesa, imposta nas colônias da África do Norte no lugar do árabe, é utilizada atualmente como um idioma mediador para magrebinos que vivem em países romanos. Além disso, muitos não a reconhecem 16 mais como uma ameaça identitária, mas como um idioma que favorece o aprendizado de outras línguas latinas. É óbvio que as ações de poder não desapareceram; entretanto, elas se estabelecem atualmente de maneira diferente. Na visão de Albert Memmi (1967), as antigas colônias são hoje nações soberanas, que também promovem a segregação racial. Com o fim da colonização, as economias mais desenvolvidas passaram muitas vezes a dissimular seu etnocentrismo. Em suma, proferem discursos democráticos e defendem a diversidade cultural e identitária como estratégia para que o Outro não se oponha à sua cultura. Com o intuito de defender que o aspecto cultural no ensino de FLE seja tratado de forma crítica e de buscar uma proposta de ensino-aprendizado em que o aluno possa ressignificar a si mesmo e o mundo, esta pesquisa vai definir, no primeiro capítulo, o conceito de cultura, de civilização e abordar a constituição da cultura e da identidade brasileiras, destacando, sobretudo, a relação França-Brasil no contexto social e educacional ao longo da história. Em face de tal propósito, será necessário discorrer sobre as propostas didáticas e pedagógicas e as “políticas linguísticas” realizadas ao longo da história, mas também será fundamental recorrer a outros campos, como a antropologia, em função da complexidade da temática investigada. Quanto aos pensadores de base, vão ser abordadas as teorias de Albert Memmi (1967), Homi K. Bhabha (2013), Denys Cuche (1996), Maria José R. F. Coracini (2003), Contardo Calligaris (1996), Valnir Chagas (1979), José Carlos P. de Almeida Filho (2008), Vilson J. Leffa (1988) e Claude Germain (1993). No segundo capítulo, o interesse será verificar se as ações didáticas, pedagógicas, sociais e políticas concernentes ao ensino-aprendizado de línguas estrangeiras no âmbito da pesquisa e no atual contexto social visariam à formação de 17 sujeitos críticos. Inicialmente, vai seranalisado se ainda há a predominância no ensino- aprendizado de línguas estrangeiras das ações de natureza pragmática ou se essa tendência vem, de fato, se modificando com as novas orientações e reflexões didatológicas e com a defesa da multi/pluri/inter/transdisciplinaridade para a apreensão do conhecimento de forma mais complexa e menos fragmentada. Para tratar de tais questões, vale comentar que foram selecionados os artigos e as obras de José Carlos de Almeida Filho (2008), Newton Duarte (2000), Luis Paulo Moita Lopes (1996) e Glaudêncio Frigotto (2011). Como segundo tópico desse capítulo, a presente pesquisa vai procurar analisar as ações de caráter redentor, reprodutor, transformador, sobretudo no âmbito das pesquisas científicas e nas instituições escolares e acadêmicas, objetivando desmascarar os discursos que se declaram transformadores e críticos, mas que agem também com vistas à alienação dos sujeitos e, por conseguinte, comprometem o devir humano. Em face disso, será feito um estudo sobre as teorias de Cipriano Luckesi, Karl Marx, Emile Durkheim, Max Weber, Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron, Antonio Gramsci e István Mészáros. No terceiro capítulo, o presente estudo propõe critérios para que o professor de LE, em específico de FLE, aja como um mediador cultural crítico. Para tanto, serão analisadas, inicialmente, as teorias e práticas pedagógicas, interculturalistas e tradutórias que abordam a questão cultural, favorecendo a autonomia, a liberdade do sujeito e contestando as ações de caráter reprodutor e alienador. No campo da educação, serão apresentadas as teorias de Lev Semenovich Vygotsky, Reuven Feuerstein, Silvana Serrani e Maddalena de Carlo. No que diz respeito à tradução, serão esboçadas as estratégias tradutórias de Lawrence Venuti, Antoine Berman e Friedrich Schleirmacher relacionadas com o ato de domesticar e de estrangeirizar. 18 Para finalizar, é importante destacar que meu interesse pela mediação cultural no ensino de FLE surgiu ao longo do mestrado, cujo tema de pesquisa foi A imagem da língua materna e da tradução no ensino de francês língua estrangeira (AZEVEDO, 2010), visando a analisar o modo como os professores de FLE concebiam o uso da língua materna e do ato tradutório nesse espaço, dado o fato de as novas orientações didáticas e pedagógicas e de estudiosos sobre o ensino de FLE passarem a reconhecer e a incluir a mediação/a tradução entre as atividades linguageiras (CONSEIL DE L’EUROPE, 2000; LAVAULT, 1998). Na pesquisa de mestrado, verifiquei que, apesar da defesa do plurilinguismo nas novas orientações didáticas e pedagógicas, a ação pedagógica dos professores de FLE no espaço da Aliança Francesa do município do Rio de Janeiro continuava a manter sobretudo uma postura monolinguística. Quanto aos motivos dessas diretrizes, identifiquei o desconhecimento da teoria interpretativa no campo do ensino de LE, na qual o ato de traduzir se faz em função do sentido, e não mais de forma literal (LAVAULT, 1998; LADMIRAL, 1979). Constatei também que existem ainda muitas representações e crenças sobre o ensino-aprendizado de LEs proferidas não apenas pelo senso comum, mas também por educadores e professores de LE. A título de exemplo, a concepção da língua materna (LM) é vista como um fator nocivo nas aulas de língua, ainda que muitos teóricos já tenham declarado que o confronto de sistemas linguísticos e culturais distintos é benéfico, pois permite que o sujeito reavalie suas ideologias, ative e desenvolva sua capacidade cognitiva. Sobre o poder das representações no contexto de ensino- aprendizado, vale dizer que tal fenômeno apontou também para a necessidade de analisar as atuais teorias voltadas para professores de LE (MOITA LOPES, 1996; CASTELLOTTI, 2001; DABÈNE, 1994; LAVAULT, 1998). 19 No que diz respeito às atuais orientações de ensino — a abordagem comunicativa (AC), a perspectiva acional (PA) e o Quadro Europeu Comum de Referência (CECR) —, observei que a defesa da diversidade linguística e cultural se mostrava, sobretudo, de maneira diplomática. Não há, de fato, uma proposta capaz de relacionar prática e teoria. Muitos professores demonstram ainda ter dificuldades para lidar com os aspectos culturais e as teorias interculturalistas em suas aulas (SERRANI, 2005). Em face disso, indaguei-me como poderia tratar dos clichês e dos estereótipos nesses espaços sem mediar “pré-conceitos” e como o professor de LE poderia versar sobre o Outro e sobre si mesmo de modo menos superficial, de forma mais densa e consistente. Quanto à proposta interculturalista, ela demanda que o professor atue como mediador intercultural, como um agente da diplomacia das línguas e das culturas alvo e fonte. Convém dizer que sua filosofia parece coadunar com os interesses políticos, econômicos e sociais do atual contexto de globalização. Não se refutam, aqui, as orientações interculturalistas no processo de ensino- aprendizado de FLE; todavia, este estudo propõe que a abordagem cultural esteja centrada sobretudo em uma mediação de natureza crítica e vá além dos interesses do mercado e da diplomacia. Nessa perspectiva, visa a restituir ao professor o papel de intelectual crítico, capaz de despertar nos alunos o interesse pelo pensamento filosófico, e, por conseguinte, de requestionar o espaço que a ação, o saber-fazer, contempla em nossa sociedade. De acordo com Jacques Demorgon (2005), há dois fenômenos interculturalistas: o voluntário, que acontece de modo espontâneo, factual e que passou a se acentuar com os movimentos de imigração e de globalização; e o voluntarista, que surgiu como uma forma de ação, visando a resolver ou a amenizar os conflitos culturais. Para o autor, o 20 segundo caso tem muitas vezes pretensões idealistas, dada a complexidade do universo cultural. Para José Yuste Frías (2013), o reconhecimento do multiculturalismo, da diversidade cultural e as ações em torno do interculturalismo demonstram uma inquietação política, social e identitária de poder delimitar e demarcar os encontros e as trocas culturais. O autor acrescenta ainda que tanto o multiculturalismo quanto o interculturalismo tratam as identidades culturais de modo homogêneo e procuram territorializá-las, como se o fenômeno de mestiçagem dentro e fora de uma cultura não existisse. É oportuno destacar que Yuste Frías e muitos teóricos das ciências sociais concebem a mestiçagem como um fenômeno que se estabelece na confrontação e no diálogo das diferenças raciais e identitárias. Portanto, não têm a ideia corrente no senso comum de mestiço constituído da simples fusão de culturas distintas, como se os elementos que as compusessem desaparecessem e dessem origem a uma entidade única, tal como acontecesse com os filhos cujos pais têm biótipos físicos diferentes. Sobre o intercultural, Yuste Frías compartilha desta concepção de Jacques Demorgon: O intercultural é […] apenas uma espécie de negociação ajustada entre pessoas ou grupos de culturas diferentes, mantida enquanto tal apesar dos encontros, trocas, cooperações. Se eles estão juntos é somente a serviço de um objetivo externo, como os bons resultados de uma empresa.2 (YUSTE FRIAS, 2014, p. 104 apud DEMORGON, 2005, p. 186) 2 No original: “L’interculturel n’est […] qu’une sorte de négociation ajustée entre des personnes ou des groupes de culture différente maintenue telle au-delà des rencontres, échanges, coopérations. S’ils sont ensemble c’est seulement au service d’un objectif extérieur, par exemple les bons résultats d’uneentreprise.” 21 Como tradutor, Frias (2014 apud DEMORGON, 2005, p. 103) diz que “não se traduz para buscar sua identidade, mas para perdê-la ao encontrar outra”.3 Nessa perspectiva, o autor reivindica a “trans”culturalidade, um movimento para além do cultural. Em outras palavras, propõe para quem atua como mediador cultural transcender a territorialização, as fronteiras fixadas sobre a formação identitária, que visam a enquadrar os sujeitos. O presente estudo acredita também que muitos professores e autores de métodos didáticos de LE, com o propósito de promover a interação cultural, podem omitir a abordagem de determinadas questões culturais em sala de aula na tentativa de evitar atitudes de rejeição de sua cultura ou da cultura do Outro. Trata-se de uma formação educativa que demonstra privilegiar a ordem do organismo social, condicionando, assim, os sujeitos a aceitarem as desigualdades sociais e as injustiças. 3 No original: “…on ne traduit pas pour rechercher son identité mais pour la perdre tout en retrouvant une autre…”. 22 1 A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA E O DESEJO DO OUTRO Os relatos sobre o Brasil não deixam de citar sua exuberante e mítica beleza. Quanto aos brasileiros, a simpatia e a alegria são, em geral, elencadas como as fortes qualidades desse povo. No caso da França, são mencionados como referência os monumentos, as construções históricas etc. No que diz respeito aos franceses, eles são admirados por seu pensamento cartesiano e sua postura crítica, o que subtende a existência de uma formação de caráter cultural. Os estereótipos sobre o Brasil, ainda que pareçam positivos, destacam, em geral, sua natureza, remetendo, assim, à ideia do paraíso exótico e do “bom selvagem” rousseauniano (MACHADO, 2007; CORACINI, 2003). Segundo Denys Cuche (1996), os iluministas franceses concebiam a formação cultural como fundamental na transformação do selvagem em civilizado e culto. O autor chama a atenção para o fato de que os franceses compreendiam os termos “civilização” e “cultura” quase como sinônimos. Ambos representavam o abandono de atitudes instintivas e a adoção de comportamentos educados.4 Estabeleceram que o cultural estava atrelado ao indivíduo, à sua “boa maneira” de comer, falar, vestir-se e agir, e o conceito de civilizado referia-se à nação, às suas aquisições materiais. Todavia, em meados do século XVIII, o projeto nacionalista alemão tentou atribuir ao termo “cultura” o sentido de particularização, conferindo à civilização a ideia de universalidade. Cuche conta que Johann Gottfried Herder, em 1774, publicou um texto intitulado Em nome do gênio nacional de cada povo, no qual se opõe às ações 4 O termo “cultura” tem origem latina e designava cuidado dispensado ao campo ou ao gado. No final do século XIII, ganha o sentido de uma parcela da terra cuidada (CUCHE, 1996, p. 19). 23 imperialistas francesas e defende a construção da própria cultura alemã. Para Cuche, Herder foi o precursor do conceito relativista. No século XIX, o cientificismo e as transformações da sociedade capitalista favoreceram o advento de duas disciplinas voltadas para o estudo da sociedade: a sociologia, que se pôs a entender e a investigar a nova estrutura social e seu funcionamento, e a etnologia, que buscou explicações para a diversidade humana por meio de uma análise descritiva do aspecto cultural, e não mais de forma normativa, como vinha sendo tratada. Cuche enfatiza que a concepção de cultura de Taylor (1832-1917) demonstra que ela se constitui pela coletividade na sociedade. Dessa forma, rompe com a concepção de cultura como um fenômeno biológico, inato, adquirida hereditariamente. Como método de análise, ele fazia a comparação de culturas mais e menos “civilizadas” com o intuito de traçar a coexistência de costumes ancestrais e de traços culturais recentes. Taylor desejava provar que a cultura mais “avançada” já tinha sido uma cultura “primitiva”; portanto, acreditava que todos os sujeitos eram capazes de vencer o “barbarismo” e se tornar mais “civilizados”. Uma concepção que revela uma visão etnocêntrica e universalista de cultura, uma vez que não consegue enxergar outra possibilidade de cultura que não seja a sua. Posteriormente, o etnógrafo alemão Franz Boas (1858-1942) verificou que cada povo tinha uma cultura particular, própria, em razão de sua história, de suas necessidades. Ele se opunha, portanto, à visão cultural universalista e defendia a valorização das diferenças culturais. Concebia a etnologia como uma ciência de observação direta. Segundo ele, o pesquisador deveria vivenciar a cultura a ser estudada e registrar todos os detalhes observados. Com o intuito de desenvolver sua pesquisa, 24 viveu durante um ano no Ártico, onde não apenas se engajou em compreender os costumes e hábitos dos esquimós, mas também aprendeu o idioma local. Com relação a Boas, Cuche declara: Cada cultura é dotada de um “estilo” particular que se exprime através da língua, das crenças, dos costumes, também da arte, mas não apenas desta maneira. Este estilo, este “espírito” próprio a cada cultura influi sobre o comportamento dos indivíduos. Boas pensava que a tarefa do etnólogo era também elucidar o vínculo que liga o indivíduo à sua cultura. (CUCHE, 1996, p. 45) Para o antropólogo inglês Bronislaw Malinowski (1884-1942), a investigação das culturas deveria ser feita de forma sincrônica e se ater a estudar de forma sistêmica as instituições econômicas, políticas, jurídicas, educativas etc. Em sua concepção: “Em toda cultura, cada costume, cada objeto, cada ideia e cada crença exercem uma certa função vital, têm uma certa tarefa a realizar, representam uma parte insubstituível da totalidade orgânica” (MALINOWSKI, 1944 apud CUCHE, 1996, p. 71). Com tais pressupostos, foi o fundador da teoria funcionalista, segundo a qual as culturas se constituem em função das necessidades da sociedade. Como método de pesquisa, propôs que o pesquisador convivesse com a comunidade, aprendesse o idioma local e confrontasse os dados pesquisados com o relato de quem pertencesse àquela cultura. O indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como função satisfazer à sua maneira essas necessidades fundamentais. Cada uma realiza isso elaborando instituições (econômicas, políticas, jurídicas, educativas…), fornecendo respostas coletivas organizadas, que constituem, cada uma a seu modo, soluções originais que permitem atender a essas necessidades. (LAPLANTINE, 2012. p. 81) Malinowski contestou a corrente evolucionista por seu caráter etnocêntrico, bem como a tendência difusionista por se debruçar em depreender os empréstimos 25 transmitidos de uma cultura a outra. Considerava que os excessos interpretativos de alguns difusionistas atomizavam a realidade cultural. Quanto às críticas à sua teoria, alguns pensadores questionavam sua concepção otimista da sociedade ao tentar mostrar que seu funcionamento não apresentava patologias (CUCHE, 1996; LAPLATINE, 2012). Convém dizer ainda que Malinowski se centrou em estudar o ser humano, propondo a articulação do social, do psicológico e do biológico, a fim de compreendê-lo melhor. Já Durkheim asseverava que os fatos sociais só poderiam ser explicados por outros fatos sociais. Ele pretendia, com esse enfoque, dar à sociologia maior autonomia na constituição de seu objeto de estudo. Porém, Marcel Mauss (1872-1950)contestou as ideias durkheimianas ao afirmar que a sociologia precisa da antropologia para poder se constituir. Apregoava que a compreensão do social deveria ser analisada em sua totalidade, e não de forma fragmentada. No que diz respeito aos estudos da antropologia francesa, é oportuno salientar que apenas a partir da década de 1930, com Marcel Graule, a França vai propor uma investigação etnográfica de campo, o que pode revelar certa resistência francesa em aceitar a diversidade, a diferença. A favor do relativismo, Claude Lévi-Strauss (1908-2009) estabeleceu que as diferenças culturais eram fundamentais para a constituição de uma cultura. Dessa forma, condenou a ideia de raça pura defendida por Adolph Hittler, bem como a definição de povos civilizados e selvagens apoiada no paradigma europeu. Nas tribos indígenas brasileiras, observou que a relação dos índios com a natureza era bem menos predatória do que nas sociedades que se denominavam civilizadas. Quanto à concepção de cultura como sistema simbólico, ela será desenvolvida, sobretudo, nos Estados Unidos por Clifford Geertz (1926-2006). Para esse antropólogo, 26 todos os homens nascem aptos a viver, a se socializar em qualquer cultura; todavia, sinaliza que o contexto tende a restringir tais condições naturais. O mérito de Geertz foi mostrar que os símbolos e significados culturais não estavam simplesmente na mente das pessoas, mas eram compartilhados entre os membros de determinada cultura. Com efeito, propõe o surgimento da antropologia interpretativa e refuta a coleta de dados feita pelos antropólogos estruturalistas com base no argumento de que tal método não dava conta da complexidade cultural (LARAIA, 1986). No que diz respeito a Ruth Benedict (1887-1920), discípula de Boas, ela defendia a teoria de que a visão do indivíduo sobre a realidade era atravessada pelos costumes adquiridos no meio social. Isso implica dizer que a leitura da realidade não está isenta de preconceitos. A autora acrescentava ainda que os costumes adquiridos nos ambientes familiar e social serviam para moldar a conduta dos sujeitos. É oportuno esclarecer que a abordagem de Benedict pertence à antropologia cultural, que investiga os comportamentos particulares e distintivos dos membros de determinado grupo; portanto, diverge da corrente antropológica social, cujo objeto de análise se detém nas relações sociais estabelecidas entre os grupos. Sobre o sentimento etnocêntrico, Roque Laraia (1986, p. 72) escreve que: O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocêntrica, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais. Laraia acrescenta que a dicotomia entre “nós e o Outro” favorece o aparecimento de outros sentimentos, como o nacionalismo e, de modo mais extremo, o xenofobismo. Muitos ainda enxergam o estrangeiro como o estranho que veio perturbar a ordem social. Dessa forma, a referência passa a ser o grupo, e não mais a humanidade. 27 No que diz respeito ao etnocentrismo, o autor conta ainda o caso de africanos levados para outros continentes que se suicidaram em razão da forte apatia e angústia que sentiram ao se confrontarem com povos, línguas e culturas distintos. Tendo vivido no período da Segunda Guerra Mundial e sofrido com suas mazelas econômicas, sociais, morais e éticas, o filósofo Emmanuel Levinas (2014) refletiu sobre a supervalorização do indivíduo e o apagamento do Outro na racionalidade filosófica ocidental sob a égide do pensamento universal “penso, logo existo”, e defendia que essa centralização do sujeito reduzia o Outro ao Mesmo, propondo uma forma de pseudoalteridade e de pseudototalidade. Na concepção filosófica de Levinas, conhecer o Outro deve ser um desejo, sem a pretensão de assimilá-lo ou de domesticá-lo. Isso significa dizer que essa aspiração precisa transcender o pensamento ontológico, que transformou o Outro em algo que precisa se apreendido, dominado, para que o sujeito alcance seus objetivos, sacie seus prazeres mundanos. Enfatiza ainda que “A verdadeira vida está ausente.” Mas nós estamos no mundo. A metafísica surge e mantém-se nesse álibi. Está voltada para o “outro lado”, para o “doutro modo”, para o “outro”. Sob a forma mais geral, que revestiu na história do pensamento, ela aparece, de fato, como um movimento que parte de um mundo que nos é familiar — sejam quais forem as terras ainda desconhecidas —, de uma “nossa casa” que habitamos, para um fora-de-si estrangeiro, para um além. (LEVINAS, 2014, p. 19) Levinas adverte que a alteridade, de fato, se constrói quando a integridade do Outro é preservada. Para tanto, propõe uma razão calcada na ética filosófica, que tem como principal objetivo entender a essência humana a partir desse Outro, não como forma de completá-lo, mas de lhe abrir ainda mais o “apetite” pelo que é estrangeiro (2014, p. 20). 28 Na tentativa de fazer uma breve análise das concepções de cultura ao longo da história, o presente capítulo depreendeu que a imagem de cultura como parâmetro e modelo passou a ser contestada com o advento da formação do Estado-nação (CUCHE, 1996). Todavia, ainda se observam nos dias atuais concepções etnocêntricas e preconceituosas sobre o Outro, que se fazem presentes tanto nas relações sociais quanto no pensamento filosófico ocidental. Quem age como mediador cultural sabe que as relações entre povos distintos, apesar de se mostrarem mais “civilizadas”, não deixam de expressar certo incômodo com o estrangeiro. Com base nas leituras realizadas, o presente estudo reconhece ainda que a cultura age sobre o indivíduo e molda sua identidade; porém, enxerga que a intervenção e a criatividade humana são fundamentais para revitalizá-la. Quanto ao modo de transmissão de uma cultura, com base na teoria interpretativa de Clifford Geertz, ela se estabelece na e pelas relações sociais por meio de signos. A humanização do homem depende, sobretudo, de mediadores que se disponham a apresentar às novas gerações os conhecimentos já construídos. No que diz respeito à formação sistematizada, ela deve ser capaz não apenas de proporcionar a seus discentes a articulação entre os saberes antigos e os novos, mas também de impulsioná- los para que sejam capazes de agir sobre sua realidade e a das gerações futuras e de refletir sobre o mundo, de forma mais crítica, reavaliando as atitudes etnocêntricas que os impedem de atuar sobre sua identidade e cultura (ARENDT, 1972). Na modernidade, houve todo um movimento em defesa da relativização e do reconhecimento das diferenças. Os discursos que ditavam determinadas culturas como bárbaras e civilizadas passaram a ser condenados; todavia, a territorialização dos sujeitos, de acordo com suas nacionalidades, profissões e classes sociais, fez com que eles se centrassem sobretudo nas diferenças. No ensino de línguas, a abordagem do 29 Outro parece seguir o mesmo princípio ideológico. O professor e os livros didáticos acabam, muitas vezes, por classificar o ser humano de acordo com os estereótipos produzidos no senso comum. Com relação à abordagem cultural crítica proposta nesta pesquisa, acredita-se que o sentimento de alteridade entre os sujeitos só se estabelece quando eles são capazes de ultrapassar os limites culturais que lhes são impostos, indo até o Outro. Cabe ressaltar ainda que o encontro com esse estrangeiro não é tranquilo, pois instaura inicialmente no sujeito questionamentos e reflexõessobre suas referências culturais e identitárias. 1.1 A REPRESENTAÇÃO DO COLONIZADOR E DO COLONIZADO Segundo Albert Memmi (1967), a imagem produzida do colonizador é a de quem visava ao progresso social e econômico; em contrapartida, a do colonizado representava a debilidade, a perversidade e o ócio; portanto, precisava da proteção do colonizador para defendê-lo de si mesmo. O sentimento de inferioridade e de impotência deste contribuiu para que ele se submetesse cada vez mais à cultura do colonizador, o que de acordo com o autor contribuiu para sua desumanização. Este trecho vem reforçar a concepção sobre o colonizador e o colonizado: Os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que tenham as forças físicas para cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza servos. […] Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil e aos costumes pacíficos. E será sempre justo e conforme o direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao império de príncipes e de nações mais cultas e humanas, de modo que, graças à virtude destas e à prudência de suas leis, eles abandonem a barbárie e 30 se conformem a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse império, pode-se impô-lo pelo meio das armas, e essa guerra será justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que não têm essas virtudes. (LAPLANTINE, 2012, p. 39) Com o fim do colonialismo, a escravidão se tornou crime; todavia, após três séculos de colonização, observa-se ainda o discurso de “complexo de inferioridade” de quem foi “colonizado”. A título de exemplo, determinados brasileiros ainda culpabilizam o ócio e a preguiça como heranças indígenas que comprometem o desenvolvimento econômico, político e social do Brasil e desconsideram as péssimas condições de trabalho, a falta de qualidade de vida, a desigualdade social e a corrupção como os fatores que colocam o país em tal posição (CALLIGARIS, 1996). Com relação ao complexo de inferioridade do povo do Brasil, o psicanalista italiano Contardo Calligaris (1996) relata ter se surpreendido com o número expressivo de brasileiros que lhe proferiram sem pudor o enunciado “Este país não presta”, quando ele anunciava que pretendia viver no país. Em sua concepção, esse tipo de enunciação só seria pertinente se seu enunciador fosse um estrangeiro. Acrescenta que um europeu poderia criticar o governo, a situação econômica de seu país, mas não sua terra. É pertinente elucidar que a fala de Calligaris não apenas serve para perceber a visão do brasileiro sobre sua nação e cultura, mas também a do autor sobre o modo como vê o brasileiro, o Brasil e sua cultura. Quanto ao complexo de inferioridade do brasileiro, para Calligaris, a explicação de tal fenômeno está relacionada com o passado, a constituição histórica do país. Menciona que os discursos dos brasileiros se assemelham aos do colono explorado e do colonizador explorador. Diz: “O colonizador veio então gozar a América, por isso deve esgotá-la, mas sabe que não era a América que queria fazer gozar” (1996, p. 19). A respeito dos colonos, comenta que a maioria se constituía em imigrantes que vieram na 31 busca de uma nova língua e de um novo “pai”. Todavia, ao chegar aqui, não tiveram a acolhida esperada. Na verdade, foram tratados como escravos brancos. Ao tentar analisar o sistema de imigração, Calligaris elucida que o governo dos Estados Unidos agiu contra a importação de escravos brancos. Os colonos que foram para a fronteira norte-americana receberam terras para trabalhar, o que talvez tenha favorecido o surgimento de um sentimento de gratidão pela acolhida recebida. Calligaris acrescenta que o comportamento do colonizador em relação aos brasileiros pode ser depreendido na forma de tratamento atribuído às empregadas domésticas. Além dos baixos salários e dos diversos casos de assédio sexual que essas profissionais sofreram ao longo da história, ele se surpreendeu com o fato de as crianças terem o consentimento dos pais de ordenar e de comandar os funcionários. Em sua concepção, isso lhe remete à busca do colonizador de permitir a seus descendentes o mesmo prazer e gozo que lhe foi dado. No artigo “A celebração do Outro na constituição da identidade” (2003), com base na psicanálise lacaniana e nas teorias do discurso, Maria José R. F. Coracini assevera que as imagens dos estrangeiros sobre os brasileiros e dos brasileiros sobre si mesmos provêm de uma memória histórica. Com o intuito de confirmá-las, a autora se valeu de textos publicados na imprensa escrita. Com relação aos enunciados dos estrangeiros sobre os brasileiros, Coracini depreendeu tais estereótipos: “O brasileiro é desorganizado e indisciplinado”; “O brasileiro é desonesto, caloteiro e explora os estrangeiros”; “Os brasileiros confiam no ‘seu jeitinho’”; “Os brasileiros fogem da responsabilidade”; “O Brasil é um país dependente”. Nas falas a seguir, a autora procurou retratar o modo como os brasileiros se identificam: “Tudo o que é estrangeiro [americano e europeu] é melhor”; “O brasileiro só tem a aprender com o estrangeiro [sobretudo com o americano]”; “É bom 32 ser brasileiro, mas seria melhor ser estrangeiro”; “Os Estados Unidos e os americanos são bons e solidários”. Assim como Bhabha (2013), Coracini enxerga que a identidade subjetiva, social e nacional se tece por meio das narrativas, dos discursos pedagógicos que são transmitidos aos sujeitos como se fossem verdades inquestionáveis. Os autores compartilham da concepção de que a identidade vai se construindo nessa relação conflituosa entre o eu e o Outro. No artigo “Sujeito entre lugares: o lugar do brasileiro e a produção de conhecimento” (2006), Deusa Maria de Souza-Pinheiro Passos, apoiada nas reflexões de Mignolo (2000), Melman (2000) e Bhabha (2013) sobre a noção de colonialismo e pós- colonialismo, versa sobre o “complexo de inferioridade” brasileiro concernente ao saber científico. Com o intuito de confirmar a preocupação dos pesquisadores em legitimar suas investigações ao saber “de fora”, Passos cita esta enunciação de Orlandi sobre a produção científica brasileira: Intelectualmente, continuamos terra virgem. Nossas ideias são nomeadas sem nós. Nas relações de sentidos, na reflexibilidade entre textos, são nossos textos que têm de encontrar filiações em cientistas de outras línguas, de preferência em inglês. (PASSOS, 2006 apud ORLANDI, 2003) Orlandi acrescenta ainda que essa atitude contribui para que a produção intelectual brasileira se realize condicionada, dependente do dizer do Outro. Quanto a seu efeito, tem-se uma atuação que coloca o brasileiro como não sujeito da ciência, do conhecimento. Assim como Calligaris (1996), Passos faz também referências aos estudos psicanalíticos, apropriando-se da metáfora paterna na abordagem da identidade 33 brasileira e destacando o fato de Portugal ter procedido como um pai, que nomeou o Brasil, seu povo e tudo que existe nesta terra. Todavia, enfatiza que esse poder não é absoluto. No Brasil, a França já exerceu o papel de mestre; no atual contexto histórico, a mídia e o poder econômico têm instituído os Estados Unidos nessa função. No que tange à produção do conhecimento, o Brasil vem se caracterizando no pós-colonialismo por buscar seu futuro além-mar. Com base em Bhabha (2013), Passos conclui sinalizando que há uma cobrança do intelectual brasileiro em saber o que se produz e em aplicar as teorias produzidas no Primeiro Mundo. Quanto à relevânciada abordagem do complexo de inferioridade do brasileiro disseminado tanto no senso comum quanto no campo da pesquisa, essas três leituras reforçaram a importância de investigar o modo como a mediação cultural se processa no ensino de FLE no Brasil ao longo da história, bem como o questionamento quanto à posição do professor e do pesquisador brasileiro nesse contexto com o intuito de verificar se ambos têm atuado como o intelectual que produz conhecimento ou apenas têm absorvido as orientações externas, atribuindo-lhes ainda o papel de mestre. 1.2 A CULTURA FRANCESA NO BRASIL E A RELAÇÃO FRANCO- BRASILEIRA O encontro da cultura francesa com a brasileira trouxe, provavelmente, para os brasileiros e franceses um novo olhar sobre o mundo. No Brasil, a cultura francesa está materializada, a saber, em nossa arquitetura, na língua portuguesa, na literatura e nas 34 ideologias democráticas. No território brasileiro, a presença da cultura francesa representou para muitos a possibilidade de salvar o país do “barbarismo”, tendo em vista as imagens, as representações do colonizador e do colonizado que foram transmitidas e reforçadas ao longo da história. Todavia, cabe dizer também que um número expressivo de artistas e intelectuais franceses também sofreu influência da cultura brasileira e levou para a França uma visão do Brasil com base em suas experiências, colocando em questão as concepções do civilizado e do bárbaro, entre outras. Com base nas informações da revista História Viva, em uma edição especial nomeada A herança francesa, de 2005, constata-se que a relação franco-brasileira se iniciou em 1504, com a instalação do capitão Binot Gonneville durante seis meses na atual Santa Catarina. Posteriormente, em 1555, apesar de Nicolas Durand de Villegaignon ter sido expulso por Mem de Sá, sua vinda para fundar a colônia França Antártica no Rio de Janeiro contribuiu para a produção dos relatos História das singularidades da França Antártica (1555), de André Thévet, e História de uma viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry (1972). Sobre a obra de Léry, convém destacar que a nudez indígena não é concebida como pecado, como uma ofensa a Deus. Ao contrário, o índio passa a ser visto como o bom selvagem. Tal concepção vai se fazer presente entre outros pensadores franceses, como Montaigne, Voltaire e Rousseau. […] coisa não menos estranha e difícil de crer para os que não os viram é que andam todos, homens, mulheres e crianças, nus como ao saírem do ventre materno. Não só não ocultam nenhuma parte do corpo, mas ainda não dão nenhum sinal de pudor ou vergonha […]. (LÉRY, 1972, p. 14) 35 No que diz respeito aos atos indígenas canibalistas, Léry os descreve com detalhes, relatando como os índios sacrificavam, matavam e comiam os inimigos. Todavia, como vivenciou as revoltas religiosas entre católicos e protestantes na Europa, o autor relativiza a violência indígena, salientando ao leitor que o barbarismo também era praticado pelos europeus. Poderia aduzir outros exemplos de crueldade dos selvagens para com seus inimigos, mas creio que o que disse já basta para arrepiar os cabelos de horror. É útil, entretanto, que ao ler semelhantes barbaridades não se esqueçam os leitores do que se pratica entre nós […]. Não abominemos, portanto, demasiado a crueldade dos selvagens antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e mais detestáveis do que aqueles que só investem contra nações inimigas de que têm vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem mesmo sair de nosso país, para ver coisas tão monstruosas. (LÉRY, 1972, p. 203) Retomando as tentativas colonizadoras no Brasil, no século XVII, os franceses fracassaram mais uma vez ao tentar implantar uma colônia no atual Maranhão. Porém, as narrativas escritas pelos padres capuchinhos e o nome da cidade, São Luís (“Saint Louis du Maragnan”), em homenagem ao rei francês, deixaram mais uma vez a marca da cultura francesa no Brasil. No final do século XVIII, o luxo da corte de Luís XIV, bem como o prestígio da literatura e da filosofia, motivou a difusão da cultura francesa no mundo ocidental. No que diz respeito à língua francesa, é oportuno ressaltar que o idioma era falado em algumas cortes europeias, além de na cidade parisiense. A supervalorização da cultura francesa floresceu, de fato, após a Revolução Francesa, ancorada na ideologia da “liberdade, igualdade e fraternidade”. Todavia, a leitura de filósofos franceses e os ideais revolucionários do país assustavam as autoridades coloniais. Na revista História Viva, o historiador João Paulo Pimenta (2005, p. 27) afirma o seguinte: “Na crise vivida pelo Império Português no fim do século 36 XVIII, o exemplo histórico da Revolução Francesa estimulou tanto movimentos separatistas brasileiros, como a Conjuração Baiana, quanto a férrea repressão do poder colonial a toda ameaça à ordem estabelecida.” Outro momento histórico importante aconteceu em 1816, com a vinda da Missão Francesa, composta por artistas como Jean-Baptiste Debret, Grandjean de Montigny e Nicolas-Antoine Taunay, que trouxeram para o Brasil o estilo neoclássico e formaram novos discípulos de suas artes. Vale salientar que d. Pedro I, objetivando construir a identidade brasileira, criou uma bandeira para o país baseada na da França napoleônica. Além disso, a frase “Ordem e Progresso” remete à ideologia positivista do filósofo francês Auguste Compte. No século XX, a presença da cultura francesa era ainda muito forte no Brasil, a saber: a Semana de Arte Moderna, um movimento de renovação da arte brasileira, inspirou-se nas ideias de artistas franceses. Posteriormente, a fundação da Universidade de São Paulo (USP) teve como principais colaboradores os intelectuais Claude Lévi- Strauss, Roger Bastide e Pierre Monbeig. No mundo, a cultura e a língua francesas começaram a perder prestígio para o inglês após a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, acentuaram-se, entretanto, as ações francesas para preservar a imagem da França. O artigo “Intelectuais e artistas nas estratégias francesas de ‘propaganda cultural’ no Brasil”, publicado na Revista de História número 133, de 1995, expõe que eventos culturais franceses foram acordados entre o governo brasileiro e o francês. Além dessa ação, nos anos 1930 professores franceses foram enviados ao Brasil para a organização de programas culturais. O Comitê Francês de Liberação Nacional (CFLN), após três anos de relação com o Brasil, fez, em 1943, esta declaração: 37 […] as elites sul-americanas, tão ligadas tradicionalmente à nossa cultura, têm continuado a procurar nossos educadores, nossos professores, nossos artistas e a esperar as diretrizes do pensamento francês. Na maioria desses países, o domínio norte-americano aumentou, nos aspectos militar, comercial, financeiro, industrial e, em certos casos, cultural. Procurando limitar a extensão desta ação que, em muitos casos, lhes é vantajosa ou mesmo indispensável, muitos dentre eles desejam, contudo, reservar à ação desinteressada da França o domínio do espírito. Nós temos podido promover, graças às subvenções de Londres ou de Vichy, a maioria de nossas obras e de nossos educadores. Nossas posições são ainda bem sólidas e podem servir de ponto de partida a novas influências. Ainda no século XX, é relevante explanar que as manifestações estudantis e operárias de 1968 em Paris influenciaram as organizações de esquerda no Brasil contra a ditadura militar. Todavia, na década de 1970, a derrota dos movimentos de resistênciaao governo militar e o contexto econômico-social fizeram surgir uma geração que passou a adotar como referência a cultura americana. Embora as relações franco-brasileiras não sejam as mesmas do passado, é importante salientar que a França e o Brasil ainda mantêm seus laços. Em 1998, o Brasil foi homenageado no Salão do Livro de Paris e, em 2005, aconteceu o Ano do Brasil na França, apresentando uma extensa programação cultural. Como retribuição, em 2009, o Brasil fez uma homenagem à França, com o evento intitulado Ano da França no Brasil. Não podemos deixar de dizer que a presença das Alianças Francesas no Brasil se torna cada vez mais forte. Como foi mencionado em minha pesquisa de mestrado (AZEVEDO, 2010), somente no município do Rio de Janeiro existem oito filiais, sediadas nos bairros de Copacabana, Ipanema, Méier, Barra, Recreio, Centro, Botafogo e Tijuca, além de cursos ministrados em empresas. No que tange ao espaço do ensino-aprendizado da língua francesa, esta pesquisa versará, em particular na próxima seção, sobre as ações educativas referentes às línguas estrangeiras. O objetivo será demonstrar sobretudo a presença e o papel da língua francesa no contexto escolar e social brasileiro, visando a depreender as imagens desse 38 idioma no atual contexto, tendo em vista que os vestígios da memória histórica construídos no meio social (ORLANDI, 2003) têm papel relevante no momento do processo de ensino-aprendizado, de mediação de conhecimentos, de interação aluno- professor. 1.3 SURGIMENTO DO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Segundo os estudos realizados por Valnir Chagas (1979), as primeiras ações de uma educação sistematizada no Brasil foram vislumbradas pelos jesuítas em torno do século XVI, tendo seu principal interesse na catequização dos índios. No que diz respeito ao ensino de língua estrangeira (LE), em 1808, no período joanino, foi fundada uma escola de educação na qual se ensinava a língua francesa. Entretanto, o autor conta que o ensino obrigatório dessa disciplina só ocorreu no século XIX, em 1837, concomitantemente ao surgimento do Colégio Pedro II, instituição imperial que visava a oferecer uma formação secundária. Valnir Chagas explicita, contudo, que a escola brasileira manteve até 1855 uma formação baseada nas instruções jesuíticas do século XVI. A saber, no ensino secundário, eram adotadas as diretrizes do humanismo clássico da Ratio Studiorum, que abrangia “cinco classes” de estudos: a retórica, as humanidades e as gramáticas superior, média e inferior. Além disso, o autor salienta que o latim e o grego eram concebidos como disciplinas dominantes; em contrapartida, o vernáculo, a história e a geografia não tinham um estudo autônomo. 39 A partir de 1855, no ministério de Couto Ferraz, o currículo foi modificado, visando a adaptá-lo às necessidades da sociedade e da cultura brasileira de um país pré- republicano. Para tanto, o ensino passou a ser dividido em dois ciclos: os estudos de “primeira classe” e os de “segunda classe”, ambos realizados em quatro anos. Quanto às LEs, elas passaram a ter um status semelhante ao das línguas clássicas. O francês, o inglês e o alemão faziam parte dos estudos obrigatórios, como o grego e o latim. Quanto à metodologia de ensino das línguas modernas, Chagas adverte que elas eram ensinadas conforme as línguas clássicas, ou seja, o método gramática-tradução era o predominante. Caracterizava-se por exercícios gramaticais, leitura, versão e tradução nos dois primeiros anos, e pelos estudos de obras clássicas no terceiro ano. Em Évolution de l’enseignement des langues: 5000 ans d’histoire (1993), Claude Germain explicita que, no método gramática-tradução, o professor é concebido como o personagem principal na sala de aula; ele é o detentor do saber e da autoridade. No que diz respeito ao aluno, este deve apenas fazer os exercícios escolhidos pelo mestre. Afirma que, no período da República, a partir de 1915, o grego foi retirado do ensino. Com relação aos idiomas vivos, o governo limitou-os ao ensino de duas línguas: a francesa e a inglesa ou alemã. O autor faz um panorama do ensino de língua e demonstra o declínio de prestígio dessa disciplina, que contemplava, em 1890, o total de 43 horas semanais — 20 horas destinadas às línguas clássicas: 12 horas de latim e oito horas de grego; e 23 horas, às línguas modernas: 12 horas de francês e 11 horas de inglês ou alemão. Em 1929, os estudos de língua contemplavam um total de 29 horas semanais — o latim manteve-se com 12 horas, a língua francesa passou a ter nove horas, e o inglês ou o alemão passou a ser ministrado em oito horas. Importa dizer que, nesse momento, os alunos podiam ter duas aulas de italiano como disciplina facultativa. 40 Quanto ao francês, cabe elucidar que a primeira Associação da Aliança Francesa, visando à difusão da cultura e da língua francesas, foi fundada no Rio de Janeiro em 1885, após dois anos de sua criação em Paris. O Brasil, como já foi explicitado, tinha a França como modelo de civilização. Na República, em 1911, foi criada a Lei Rivadávia, que prescrevia a adoção de um ensino mais prático das línguas vivas, permitindo ao aluno, ao término do curso, ser capaz de falar e de escrever em duas línguas estrangeiras. Sob tal linha de pensamento configuraram-se também as instruções da Reforma C. Maximiliano, de 1915, na qual se encontra esta afirmação: “O estudo de línguas vivas estrangeiras será exclusivamente prático, de modo que o estudante se torne capaz de falar e ler em francês, inglês ou alemão sem vacilar nem recorrer frequentemente ao dicionário” (MOACIR, 1942 apud CHAGAS, 1979). Contudo, o ensino ainda se baseava sobretudo em atividades voltadas para a tradução, a versão, os exercícios gramaticais e a leitura. 1.3.1 A criação do Ministério da Educação e a Reforma Francisco de Campos A partir de 1930, no governo Getúlio Vargas, o caráter elitista do ensino proposto no país foi questionado. Vargas almejava, para seu programa de reconstrução nacional, a democratização do ensino público brasileiro. Para tanto, criou o Ministério dos Negócios, da Educação e Saúde Pública e nomeou Francisco de Campos ministro, que instituiu o Conselho Nacional de Educação, instaurando a organização do ensino superior e do ensino secundário. 41 Cabe explicitar que foi no Ministério Francisco de Campos que se cogitou uma formação de nível superior para os professores. Os cursos de bacharelado eram de três anos letivos e demandavam mais um ano suplementar de “didática” para a licenciatura. Em suma, o objetivo era oferecer uma formação acadêmica, visando aos estudos universitários, mas também à promoção de uma formação pragmática, voltada para o “fazer”. Valnir Chagas (1979) chama a atenção para o fato de que, com relação às línguas, essa reforma destinou seis horas por semana ao ensino do latim. Já os estudos de línguas modernas passaram a contemplar 17 horas semanais: nove horas para o francês e oito horas para o inglês. Na tentativa de alcançar os objetivos pretendidos, foi adotada, então, no ensino, a metodologia direta (MD), que se caracterizou sobretudo pelo ensino da LE na própria LE, “proibindo” o professor e o aluno de recorrerem à língua materna (LM) e à tradução. Porém, legitimou-se o uso de gestos e de imagens em sala e adotou-se a abordagem implícita da gramática, com base no modo como as crianças aprendiam a LM. Nas salas de aula, os professores passaram, entretanto, a mesclar a metodologia tradicional (MT) e a MD, dando origem mais tarde à metodologia ativa (MA), uma versãomais eclética e mais parcimoniosa da MD. É essencial dizer que o surgimento da MD se deu no início do século XX, fundamentado no pragmatismo de John Dewey. Deve-se ressaltar igualmente que a MD adotada no Brasil não excluía totalmente o uso da LM no ensino-aprendizado de LE. A leitura e a interpretação de autores consagrados ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX ainda continuaram a fazer parte do currículo escolar. No Colégio Pedro II, os bons resultados obtidos com a MD encorajaram outras instituições a continuar investindo em tal proposta de ensino. Contudo, poucos professores de LE tinham, de fato, a proficiência de se expressar e falar na LE ensinada. 42 1.3.2 A Reforma Capanema Em 1942, na era Vargas, ocorreu a Reforma Capanema, que se caracterizou pelo aparecimento dos cursos técnico-profissionalizantes no ensino secundário. Segundo o ministro da Educação e da Saúde da época, Gustavo Capanema, a educação deveria promover o desenvolvimento de habilidades e valores nos sujeitos, despertando uma consciência patriótica e humanística, capaz de contribuir para o bom funcionamento do Estado. Com relação ao ensino de línguas, Valnir Chagas (1979) explana que a Reforma Capanema destinou 35 horas semanais ao ensino de idiomas, representando 19,6% de todo o currículo. No ginásio, o latim, o francês e o inglês foram incluídos como disciplinas obrigatórias, este último contemplando três anos de aprendizado, enquanto os dois primeiros demandavam quatro anos. No colégio, o aprendizado do francês passou a ser ministrado com 13 horas; o do inglês, com 12; o do espanhol, com duas; e o do latim, com oito horas. Nesse contexto, foi mantida a MD no ensino de LEs; portanto, além de ler, escrever, compreender o idioma oral e falar, era necessário também que os professores transmitissem conhecimentos sobre a civilização estrangeira, com o propósito de que os alunos fossem capazes de compreender as tradições de outros povos. Valnir comenta, contudo, que, muitas instituições de ensino continuaram a manter a metodologia tradicional, com base no “leia e traduza”. Para Leffa (1988), o período da Reforma Capanema, nas décadas de 1940 e 1950, foi o grande momento do ensino de LE. Os alunos estudavam latim, francês, inglês e espanhol e eram capazes de ler os clássicos em tais idiomas. Contudo, durante o 43 Estado Novo, no período do regime ditatorial instaurado por Getúlio Vargas, as línguas de imigração do país, o italiano e o alemão, passaram a ser proibidas. Gilvan Müller de Oliveira (2009) relata que, entre 1941 e 1945, o governo fechou escolas comunitárias e gráficas de jornais em alemão e italiano, bem como prendeu e torturou pessoas que não falassem português. Em Santa Catarina, na gestão do governador Nereu Ramos, foram criadas áreas de confinamento para descendentes de alemães que se expressassem em sua língua. De acordo com Müller, essa atitude do Estado fez com que tais idiomas perdessem sua forma escrita e fossem apenas falados nas zonas rurais. Acrescenta ainda que o Brasil poderia ter sido um país mais plurilíngue se tivesse preservado as línguas indígena, italiana e alemã em sua história. Nos anos 1950, tendo em vista as novas demandas sociais e a democratização do ensino, os debates sobre o ensino no Congresso Nacional desembocaram no Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com o qual se visava à predominância de um currículo “científico” no lugar do de inspiração “clássica”. Todavia, apenas em 1961 essas diretrizes passaram a ser implantadas. Importa lembrar que, após a Segunda Guerra Mundial, a relação entre os Estados Unidos e o Brasil se estreitou, e inúmeros projetos nas áreas de comunicação, comerciais e financeiras foram apoiados pelo governo norte-americano; consequentemente, a cultura e a língua americanas começaram a ser incorporadas ao cotidiano brasileiro, enquanto a cultura e a língua francesas perderam cada vez mais seu prestígio. Todavia, o número de Associações da Aliança Francesa não deixou de crescer na década de 1960. Segundo Daniel Coste (1976), o governo francês, após a perda de suas colônias, passou a investir de forma intensiva em programas culturais e educativos no 44 exterior que permitissem a conservação e o desenvolvimento do conhecimento da língua e da cultura francesas no mundo. 1.3.3 As diretrizes do ensino de língua estrangeira de 1961 a 1970 Após 27 anos de debate sobre a regularização do sistema de educação brasileiro, em 20 de dezembro de 1961 foi publicada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que tem como filosofia predominante os ideais liberalistas. Convém citar que, na década de 1950, a qualidade do ensino público brasileiro já estava sendo criticada pela sociedade. As famílias que tinham melhores condições financeiras começaram a matricular seus filhos em escolas particulares. No período do governo militar, de 1964 até 1985, as instituições privadas ganharam ainda mais força, enquanto as escolas públicas perderam seu prestígio. Com relação ao ensino de LE, nas LDBs de 1961 e de 1971, essa disciplina deixou de ser obrigatória e se tornou “complementar” ou “optativa”. Vale destacar que, nesse contexto, algumas escolas suprimiram o ensino de LE. Em contrapartida, começaram a surgir inúmeros cursos particulares de inglês. As ações neoliberalistas no âmbito da educação se impõem cada vez mais, pois os empresários começam a enxergar o ensino como um mercado rentável. Em Dimensões comunicativas no ensino de línguas (2008), Almeida Filho lamenta a predominância do ensino do inglês sobre o francês nos anos 1950, uma vez que as técnicas pragmáticas de domínio de conversação básica eram baseadas na teoria behaviorista de Skinner e na linguística estruturalista de Leonard Bloomfield, centrando 45 o ensino de língua pela língua, por meio de atividades mecânicas. Por sua vez, a leitura dos clássicos e a formação humanística eram deixadas à margem. No que diz respeito a esse tipo de abordagem, denominada metodologia áudio-oral (MAO), convém esclarecer que a expressão e a compreensão oral passaram a ser o objetivo central de muitos centros de língua nesse contexto. A propósito da questão metodológica, parece relevante mencionar igualmente o surgimento da metodologia audiovisual (MAV), fundamentada na teoria da enunciação de Charles Bally, F. Brunot e B. Benveniste, que leva em conta a significação das palavras e o contexto enunciativo, colocando em questão, por conseguinte, o ensino da língua pela língua da MAO. Todavia, o enfoque dessa metodologia também será a expressão e a compreensão oral (PUREN, 1998; LEFFA, 1988; GERMAIN, 1993). Sobre a MAV, cabe dizer que foi promovida pelo governo francês como forma de lutar contra o domínio da língua inglesa. Além dessa ação, vale acrescentar que muitos professores brasileiros de francês obtiveram bolsas para estudar na França nesse contexto. No Brasil, houve um aumento significativo do número de formações destinadas a professores de língua francesa (DE CARLO, 1998). No que diz respeito ao papel do professor de LE nessas duas metodologias, Claude Germain assevera que, na MAO, o professor era tido como um “chefe de orquestra”, “maestro”, visto que deveria atuar no sentido de dirigir, guiar e controlar o comportamento linguístico dos alunos. Já na MAV, ele passou a atuar como animador, que deveria possibilitar que o aluno se expressasse de maneira espontânea e de forma criativa. No que diz respeito à abordagem de aspectos culturais, no prefácio do manual Voix et images de France
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