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O ABANDONO AFETIVO E A RESPONSABILIDADE CIVIL FRENTE AO AFETO 1 Vanessa Viafore INTRODUÇÃO Com o advento da Constituição Federal de 1988 nasceu a possibilidade de a família ter origem matrimonial ou não. Além disso, pelo princípio da igualdade entre os cônjuges, rompe-se com o caráter eminentemente patriarcal das relações familiares, destacando o poder familiar como instrumento de divisão mútua das orientações familiares entre os genitores. Nesta esteira, a noção de filiação já não se limitava à necessidade do matrimônio vinculado, via de conseqüência, à noção de legitimidade, hierarquizado em um modelo clássico familiar. Inobstante a igualdade dos genitores, a Carta Magna e o Código Civil de 2002 prestigiaram a igualdade entre os filhos, proibindo designações discriminatórias sobre a filiação, seja qual for sua origem. Surgiu a idealização de uma filiação timidamente presente na legislação, mas que primordialmente existente nas civilizações, qual seja a socioafetividade. A verdade sociológica da filiação se constrói, não apenas na descendência, na consangüinidade, mas no cuidado que é despendido a outrem, no carinho que se faz fortalecer uma relação de afeto, mas principalmente no reconhecimento de um vinculo paterno ou materno além de um laço biológico. Ainda que se viva em mundo totalmente globalizado, é no afeto que as relações familiares buscam o alicerce do crescimento da personalidade da pessoa humana. É na família que se encontrará o esteio da vida, refletindo a concretização dos direitos fundamentais para o crescimento comum. Restringir este direito subjetivo inerente à pessoa, impossibilitando a convivência, omitindo-se de propor atenção e amor, configura o abuso de um direito. Muito embora o dano psíquico seja um dos resultados da falta de afetividade, o 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado com grau máximo pela banca examinadora composta pelo professor orientador Rolf Hanssen Madaleno, Professora Marise Soares Correa e Professora Ana Luiza Carvalho Ferreira, em 06 de Novembro de 2007. sentimento de desprezo também auxilia a construir traumas difíceis de posterior reparação. Neste sentido, têm surgido correntes positivas e negativas desta ordem de reparação pela falta de afetividade de um genitor. A discussão insurge-se na configuração de um ato ilícito, seja por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, quando violado direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. O instituto da responsabilidade civil adentra-se no direito de família para justamente impedir a impunidade frente aos atos considerados ilícitos, seja ele um abandono meramente afetivo, seja ele um abuso de um direito alheio, ainda que dentro do âmbito familiar. A reparação de ordem puramente moral tem o condão de compensar o filho ofendido, ao passo que representa também uma sanção para o genitor causador do dano. Em razão disso, ao discorrer sobre essa concepção materialmente aberta de reparação, surge a necessidade de apreciar mais acerca da sua aplicação. 1 EVOLUÇÕES DA FILIAÇÃO NO BRASIL 1.1 FILIAÇÃO ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO DE 1988 A família antiga era numerosa, edificada tão-só no casamento, tendo o pai o poder de vida e de morte sobre a mulher, filhos e escravos, podendo aceitar ou recusar a filiação. O filho, enquanto o pai vivia, não era cidadão nem podia praticar nenhum ato da vida civil sem a outorga paterna, mas, “no final do século XVIII, o Estado passou a assumir uma participação ativa na formação familiar. Os filhos pertencem à República, antes de pertencerem a seus pais”.2 Mesmo antes de o Código Civil brasileiro de 1916 entrar em vigor, alguns textos legais já regulavam acerca da perfilhação. Até o ano de 1.847, o que vigorou foi o sistema português. A partir deste ano elaborou-se a Lei nº 463, de dois de 2 MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame de DNA na investigação de paternidade e direitos de personalidade. In: BARRETO, Vicente; COMAILLE, Jacques (Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 176. setembro, que veio a reformar completamente as Ordenações naquela semelhança que elas inicialmente estabeleciam entre os filhos dos nobres e os filhos dos peões.3 Em 1.890, o Decreto 181, de 24.01.1890, descrevia acerca da filiação natural, com os seguintes termos: A afinidade ilícita só se póde provar por confissão espontânea nos termos do artigo seguinte, e a filiação natural paterna também póde provar-se ou por confissão espontanea, ou pelo reconhecimento do filho feito em escriptura de notas, ou no acto do nascimento, ou em outro documento authentico, offerecido pelo pai.4 De acordo com as diretrizes do Código Civil brasileiro de 1916, a filiação podia ser classificada em três categorias: 1) Legítima, quando resultante da união de pessoas ligadas pelo matrimonio válido ao tempo da concepção ou se resultante de união matrimonial. 2) Legitimada, decorrente de uma união de pessoas que após o nascimento do filho vieram a convolar núpcias. 3) Ilegítima, provinda de pessoas que estavam impedidas de casar ou que não queriam contrair casamento, podendo ser espúria (adulterina ou incestuosa) ou natural. O filho é adulterino quando, à época da concepção ou do parto, seu pai ou sua mãe era casado com outra pessoa. Se os pais eram parentes em grau próximo, sendo impedidos de se casar, o filho seria incestuoso. Aos filhos adulterinos e incestuosos dava-se o nome de espúrios. Ao filho daqueles que não possuíam impedimento de se casar na época da concepção ou do parto, dava-se o nome de natural. 5 Apesar de não estar elencada como uma categoria dentre o antigo rol das filiações, a filiação adotiva também constitui um ato jurídico de vínculo de parentesco. Assim, o instituto da adoção permite a constituição, entre duas pessoas, do laço e parentesco do primeiro grau na linha reta. Com o Código Civil de 1916 foram estabelecidas categorias bem determinantes nas variadas formas de filiação. Contudo, limitou excessivamente a 3 WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 65. 4 PORTUGAL, Sylvio. Investigação de paternidade. Secção de obras D’Estado de São Paulo. São Paulo: s/ed., 1926, p. 82. 5 NEVES, Márcia Cristina Ananias. Vademecum do Direito de Família. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1997, p. 825. capacidade de criar uma família, estabelecer um vínculo de parentesco e até mesmo de desenvolver os laços filiais existentes em relações que, de certa forma, fugiram do padrão estabelecido. Diante das impossibilidades criadas, o legislador não teve alternativa senão avançar no mundo jurídico tendo em vista que o mundo fático já havia extrapolado as barreiras da legislação vigente. A primeira mudança posterior ao Código Civil, foi em 1937, em que a Constituição Federal, no seu art. 126, equiparou os filhos naturais aos legítimos. Posteriormente, em 1.941, com o Decreto-Lei 3.200, ficou proibida a qualificação do filho nas certidões de nascimento, salvo o requerimento do próprio interessado ou por decisão judicial. Nesse mesmo ano, o Decreto-Lei 5.213, de 21.01.1941 modificou o Decreto supra mencionado, autorizando o pai a permanecer com aguarda do filho natural, se assim o tivesse reconhecido. Posteriormente, com o advento da Lei n° 4.737 de 1942 permitindo o reconhecimento do filho havido fora do casamento depois do desquite. Foi então a vez da Lei n° 883 de 1949, permitindo ao filho investigar a sua filiação depois de dissolvida a sociedade conjugal do seu presumido genitor. Em 1965, a Lei 4.655, de 02.06.1965, instituiu a legitimação adotiva, hoje abolida, “que integrava totalmente o legitimado na família adotante, assegurando-lhe direitos sucessórios plenos”. Por sua vez, a Lei n° 6.515/77 autorizou o reconhecimento de filho extraconjugal na constância do casamento, mas em testamento cerrado e introduziu a igualdade hereditária entre filhos legítimos e ilegítimos. 6 Em 1979, a Lei 6.697, de 10.10.1979 (instituiu o Código de Menores), revogando a Lei 4.655/65, “criando a adoção plena, reconhecendo integralmente direitos sucessórios ao adotado e a adoção simples, que seguia na matéria a orientação do Código Civil, deferindo ao adotado metade do que recolhesse o filho legítimo concorrente”.7 Ainda não era o suficiente para acompanhar os passos de um direito de família que evoluía em um ritmo acelerado, e com a Lei n° 7.250/84, o legislador permitiu o reconhecimento do filho havido fora do casamento, de cônjuge separado de fato há mais de cinco anos. Já a Lei n° 7.841/89, revogou o art. 358 do Código 6 MADALENO, Rolf. Repensando o direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 129. 7 FACHIN, Edson Luiz. A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 38. Civil de 1916, que proibia o reconhecimento dos filhos adulterinos ou incestuosos, permitindo a sua perfilhação a todo tempo e em qualquer estado civil dos pais. Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, a situação jurídica dos filhos era principalmente dividida em: 1. filhos legítimos, os concebidos durante a constância do matrimônio; 2. filhos legitimados, os havidos pelos cônjuges antes do casamento e equiparados, a partir e então, aos legítimos; 3. filhos ilegítimos, fruto de relações extraconjugais, distribuídos em naturais (havidos por pessoas não impedidas de se casarem uma com a outra) ou espúrios (adulterinos e incestuosos); e 4. os adotados, que, embora não sendo gerados pelos adotantes, adquirem, por concessão de lei, a condição de filho legítimo, para determinados efeitos legais.8 Resta claro que o Código Civil de 1916 regula a família patriarcal, assim como no direito romano, com base na hegemonia de poder do pai, na hierarquização das funções, na desigualdade de direitos entre marido e mulher, na discriminação dos filhos, na desconsideração das entidades familiares e no predomínio dos interesses patrimoniais em detrimento do aspecto afetivo.9 1.2 FILIAÇÃO POSTERIOR À CONSTITUIÇÃO DE 1988 Com o advento da Constituição Federal de 1988 nasceu a possibilidade de a família ter origem matrimonial ou não. Além disso, pelo princípio da igualdade entre os cônjuges, rompe-se com o caráter eminentemente patriarcal, na qual resta claramente demonstrado na anterior chefia da família dominada pelo marido e, atualmente, afastada. A realidade familiar tomou maior forma quando a matéria da legitimação se encontrou totalmente superada pelo atual sistema operacional tendo em vista a completa identidade de direitos entre todos os tipos de filho (CF de 1988, art. 227, § 6º). Assim, a figura da legitimação dos filhos anteriores ao casamento só pode ter interesse histórico e moral, mesmo porque a Lei nº 8.560, de 29.12.1992, que trata da verificação oficiosa da paternidade, proibiu a formalização do ato de legitimação, nos moldes que o Código Civil propiciava e que a Lei de Registros Públicos 8 WELTER, Pedro Belmiro. Ob. Cit, p. 67. 9 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Educação: o ensino do direito de família no Brasil. Repensando o direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). I Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, 1999, p.327. regulamentava ao dispor que “é vedado legitimar e reconhecer filho na ata do casamento” (art. 3, caput). Por outro lado, a classificação dos filhos em legítimos e ilegítimos, e a dos ilegítimos em naturais e espúrios representam apenas uma lembrança do passado que a nova ordem constitucional sepultou. Apenas como um exemplo, não é mais preciso aguardar a dissolução da sociedade conjugal dos genitores para que o adulterino tenha direito sucessório ou possa ter sua filiação investigada ou reconhecida, de acordo com a Lei 7.841, de 17.10.189, revogando o art. 358 do Código Civil de 1916. Com efeito, o art. 227, 6°, da Constituição Federal de 1988, repetido pelo art. 20 da Lei n° 8.069 de 13.07.1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), proclama que todos os filhos, havidos ou não da relação de casamento “terão os mesmo direitos e qualificações”. E vai mais além, proibindo, de forma categórica, “quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Esse preceito constitucional fez que com que a expressão filhos ilegítimos fosse extirpada do sistema jurídico, em respeito ao resguardo da dignidade dos filhos, cujo tratamento sempre fora preconceituoso e estigmatizado de espuriedade. O instituto da Adoção do Estatuto da Criança e do Adolescente procurou dar ao menor adotado o mesmo “status” do filho biológico, no seio da família que o recebe. Daí dispõe o art. 47 da Lei n° 8.069/90, que a adoção, nela regulada, é uma instituição, afastando-a, destarte, do campo contratual, tanto que somente pode constituir-se em processo judicial e mediante sentença. Visa-se a confundir, quanto possível, e sob intervenção e tutela do Poder Público, a filiação civil com a filiação natural.10 Evidencia-se assim o teor da conquista da igualdade, principalmente entre as filiações legítima e ilegítima, uma vez que o jurista procurou preponderar o melhor interesse da criança e do adolescente, inclusive sobre os direitos dos pais. A Constituição Federal e as mudanças repercutidas em suas derivadas legislações, ao contrário da visão moderna de proteção exclusiva da entidade familiar, “permitiu que se reconhecessem constitucionalmente, em perspectiva pós- 10 GOMES, Orlando. Ob. Cit, p.371. moderna, dois princípios eventualmente considerados antagônicos: o da proteção à unidade familiar e o de proteção aos filhos, considerados em sua individualidade.” 11 A fim de acompanhar os avanços das relações familiares, há que se distinguir filiação, relação pura de parentesco, do estado de filiação, o qual é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, em que o filho é o titular. Hoje, portanto, existe uma única espécie de relação entre o genitor e se descendente: a de filho, sem qualquer tipo possível de classificação ou restrição. 1.3 FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA – UMA FILIAÇÃO ESQUECIDA PELA LEGISLAÇÃO As relações concretizadas puramente nos laços de afeto e sentimentos superiores à consangüinidade preenchem o lugar, muitas vezes, de relações de filiação legítima e, até mesmo, ilegítima. A igualdade e o afeto tomam o lugar com real relevância sobre a quase imutável legitimidade da família e dos filhos fundados no casamento, demonstrando-se assim que existe presente outra relação parental, muito mais fortificada pelo afeto, qual seja, a relação de socioafetividade. Muito embora as relações familiares tenham obtido uma proporção diversa do imaginável torna-se mister destacar que o Código Civil apesarde ser considerado novo, detém certas lacunas. As uniões em sentido amplo, a família fraterna, a filiação sócio-afetiva foram deixadas entre linhas, dando espaço apenas para analogias, interpretações e aguardo de jurisprudências de ordem pacíficas. O legislador esqueceu que as relações modificaram, e que já se faz insuficiente a tipificação do óbvio, sendo necessário um aprofundamento de uma exegese que caminhe no ritmo dos avanços desta sociedade. O Código Civil de 1916 limitava as relações de afeto, restringindo os vínculos existentes apenas na constância do casamento. O estabelecimento da paternidade dos filhos havidos nesta geração se dá a partir de uma presunção, a pater is est quem nuptiam demonstram, ou seja, presume-se pai o esposo da mulher casada12. 11 CACHAPUZ, Maria Cláudia; VITÓRIA, Ana Paula da Silva e MARQUES, Cláudia Lima. Igualdade entre filhos no direito brasileiro atual: direito pós-moderno? Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. Porto Alegre, 16/21, 1999. Disponível em: CD Júris Síntese, n. 29. Porto Alegre: Síntese, Ago, 2001. 12 FACHIN, Luiz Edson. Direito além do novo Código Civil: novas situações sociais, filiação e família. In: DEL’OLMO, Florisbal de Souza; ARAÚJO, Luís Ivani de (Coord.). Direito de Família contemporâneo e os novos direitos. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 64. Tal limitação presumia somente a contestação de paternidade realizada pelo marido, a qual seria apta a desfazer a idéia de paternidade de filho adulterino a matre. Assim, no disposto no art. 344 deste antigo diploma legal (hoje art. 1.601, modificado apenas quanto à ausência de prescrição) mencionava que apenas o pai detinha o direito de contestar acerca da legitimidade dos filhos nascidos de sua mulher, direito este que se prescrevia se não acionado em dois meses do nascimento de seu suposto filho (artigo 178, parágrafo 3). Nasce a partir desses reconhecimentos a posse de estado, ocupando um papel relevante, qual seja, ao passo que se percebe que a separação de fato qualifica a inexistência de qualquer vínculo afetivo entre o marido da mãe e os filhos desta, mostra-se normalmente a presença de efetiva relação paterno-filial entre o terceiro (pai verdadeiro) e os filhos tidos pela mulher casada. Era o tempo em que reinava o pátrio poder, onde preponderavam os ditames do pai chefe-de-família, o qual era o detentor da autoridade de toda relação familiar. Era ele quem determinava as prerrogativas cotidianas, atribuindo aos genitores as funcionalidades de seu programa familiar, muitas vezes abusando deste poder frente à subordinação de seus ‘comandados’. Todavia, em uma época de avanços inexplicavelmente velozes, “impende situar que o ente familiar é um corpo que se reconhece no tempo”13. Assim, o respeito que anteriormente era atribuído à figura paterna, atualmente ela se mistura com o todo familiar. O pai já não dita mais as regras como antes e as atribuições aos seus descendentes muitas vezes nem mesmo é ele quem as determina. A mulher tomou grande força frente à relação familiar e assim fez-se necessário uma nova concepção, tendo em vista que “união afetiva e família têm como essência e razão de existência a sua comunhão espiritual, onde mulher e homem trabalham em igualdade de direitos, princípios valores e oportunidades, em uma atmosfera que visa ao crescimento e à fortificação da unidade familiar”.14 O elemento sócioafetivo da filiação reflete a verdade jurídica que está para além do biologismo, sendo essencial para o estabelecimento da filiação. 15 A clássica noção jurídica de família torna-se insuficiente ao vínculo parental não- 13 LUIZ, Edson Fachin. Ob. Cit., p. 65. 14 MADALENO, Rolf. Repensando o Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 116. 15 FACHIN, Luiz Edson. Ob. Cit., p. 64. consangüíneo que se fortalece apenas baseado em trocas de afeto, carinho, atenção e cumplicidade. Ao passo que o aspecto biológico caminha lado a lado com o sócioafetivo, revela-se o amadurecimento da doutrina frente à realidade calcada em uma assistência superior aos alimentos, qual seja o dar afeto. Tal relação está timidamente presente no Código Civil de 2002, no artigo 1.593, onde dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”, refletindo, ainda que sem grande proporção a possibilidade de criação de vínculo desprovido de laços de sangue. Como elemento determinante para a concretização da filiação sócioafetiva surge a constituição da posse de estado de filho, gerando uma real dimensão social da filiação. A segurança jurídica trazida pela posse de estado como forma de reconhecimento da situação de filiação se mostra pelos elementos constitutivos desse instituto: nominatio (utilização pelo suposto filho do nome do suposto pai); tractatus (manutenção, educação e instrução proveniente do suposto pai, agindo como provedor e educador) e fama (ou reputatio – notoriedade de tal filiação, reputação social de uma pessoa como filho de outra).16 Tais características completam o liame de segurança na afirmação da posse de estado. Não se fala em superação do vinculo biológico frente ao vinculo sócioafetivo, contudo tem-se uma progressiva eliminação da hierarquia, sobrepondo-se certa liberdade de escolha, fortificada em reais sentimentos desprovidos de imposições sociais. Muda-se a forma tradicional de encarar a constituição familiar, uma vez que não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade. 1.3.1 Visão interdisciplinar: Psicologia e Psicanálise 17 A família não é base natural, e sim cultural da sociedade, assegura Rodrigo da Cunha Pereira, com base nas pesquisas de Jacques Lacan, não se constituindo 16 FACHIN, Luiz Edson. Ob. Cit, p. 65. 17 Primeiramente, convém esclarecer uma distinção entre estas duas áreas que se completam, quais sejam a psicologia e a psicanálise. A psicologia é a ciência que estuda os processos mentais (sentimentos, pensamentos, razão) e o comportamento humano e animal. Já a psicanálise, a qual é a tão-somente por um homem, mulher e filhos, mas, sim, de uma edificação psíquica, em que cada membro ocupa um lugar/função de pai, de mãe, de filho, sem que haja necessidade de vínculo biológico. Prova disso, evidencia o autor, é o fato de que “o pai ou a mãe biológica podem ter dificuldade, ou até mesmo não ocupar o lugar de pai ou de mãe, tão necessários (essenciais) à nossa estruturação psíquica e formação como seres humanos”. Contudo essa função paterna precisa ser ministrada, necessariamente, pelo pai biológico, e sim por um pai (afetivo), na medida em que “o pai pode ser uma série de pessoas ou personagens: o genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele que dá o seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou ritualmente, aquele que fez a adoção (...), enfim, aquele que exerce uma função de pai”.18 Indubitavelmente, a figura paterna/materna gerencia a constituição de laços sociais bem como a estruturação do sujeito. Basta saber se esta direção irá atender ao interesse maior da criança onde prepondera um vinculo básico de afeto. Aquisição de uma herança patrimonial, biológica, e até mesmo um nome alcançam a insuficiência frente à falta de construção de um laço moldado no amor e na solidariedade, em que estesgenitores são responsáveis por esta formação, dia após dia. O pai pode vir sob várias versões, pluralidade de formas e nomes. O campo jurídico, o social, o biológico, o psicológico, o psicanalítico, o desejo materno ou paterno são insuficiente para garantir um pai para o filho. O pai sempre estará no registro de certa insuficiência, necessário na ordenação do desejo e da falta. Paternidade não é pessoa, nem sujeito, é um ponto de apoio para o material associativo presente em diversas versões, em cada recanto do Édipo, seja qual for seu disfarce. Pode vir sob diversas formas, vai depender do mito de cada um na resolução de seu drama edipiano. Mas é necessário ter acesso a essa possibilidade e aí então desfrutar da intervenção jurídica.19 Por derradeiro, a importância do afeto não está apenas sob o aspecto jurídico, mas também em termos psíquicos, eis que fundamental é o desejo segunda grande força da psicologia, é a interpretação da transferência e da resistência dos sintomas neuropsicológicos com a análise da livre associação. 18 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. Citando LACAN, Jacques. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 13. 19 BARROS, Fernanda Otoni de. Ob. Cit., p. 112. inconsciente dos pais em ter os filhos sob sua guarda, estabelecendo-se, assim, relações interpsíquicas. 3 O ABUSO DE DIREITO E A RESPONSABILIDADE CIVIL FRENTE A FALTA DE AFETO 3.1 O ABUSO DE DIREITO Os deveres de um pai em relação ao filho não nascem do reconhecimento civil ou judicial da paternidade, pelo contrário, antecedem a isso, decorrem da condição natural do homem enquanto agente a concepção daquele ser.20 A obrigação de assistência é inerente tanto à relação biológica quanto à não-biológica, sendo que este dever não se resume aos alimentos, fonte de sobrevivência, mas, entre outros, também ao afeto, fonte de construção. Neste sentido, é de competência dos pais, enquanto casados ou vivendo em união estável, o dever de sustento, guarda e educação dos filhos, conforme bem dispõe os artigos 1.566, IV, 1.634, II e 1.72421 do Código Civil brasileiro. Assim, a guarda assume a natureza de dever atribuído aos pais de manterem os filhos sob a sua companhia, constituindo em contrapartida o direito do filho de ser criado e educado por sua família, assegurada a sua convivência no ambiente familiar e comunitário. 22 Nos casos de dissolução da sociedade conjugal, da união estável, ou até mesmo naqueles em que os pais jamais conviveram sob um mesmo teto, surge a premissa do direito de visitas, onde a impossibilidade de convivência comum entre os pais determina a guarda dos filhos a um deles (art. 1.584 do CC). Neste diapasão, nasce a distinção entre direito de companhia e direito de guarda. No primeiro, o genitor provém da possibilidade de estar com seu filho, 20 COELHO, Helenira Bachi. Da reparação civil dos alimentos. Da possibilidade de ressarcimento frente à paternidade biológica. In: MADALENO, Rolf (Coord.). Ações de Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 25-26. 21 Art. 1.566, IV: “São deveres de ambos os cônjuges: (...) IV - sustento, guarda e educação dos filhos.: Art. 1.634, II: “Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: (...) II - tê-los em sua companhia e guarda.” Art. 1.724: “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.” acompanhar o seu desenvolvimento, conversar, orientar. Ter o filho sob guarda, diversamente, é mantê-lo continuamente sob sua vigilância, tendo assim a sua posse. Impossibilitar o direito de visita nada mais é que impossibilitar a exteriorização do direito de companhia inerente ao poder familiar. 23 Sob o prisma axiológico, é restringir o desempenho de um dever em favor do filho menor, impossibilitando a concretização das obrigações próprias do titular do poder familiar que não detém a guarda, mas que conserva todos os demais encargos derivados do vínculo de filiação. Assim, aquele que, de alguma forma, interrompe esta ordem natural, está, então, abusando de um direito, excedendo as fronteiras do exercício que lhe é inerente. Guilherme Gonçalves Strenger24 admite, pois, que a obstrução do direito de visitas confere a possibilidade de reclamar judicialmente o seu efetivo exercício, apontando a existência de legislações que impõem sanções civis e penais àquele que priva o não detentor da guarda da possibilidade de permanecer em companhia do filho menor, não obstante não deixe de reconhecer o primordial interesse deste ultimo, que se ignorando esvaziaria o instituto de elemento substancial. Portanto, deixou a família de ser imune ao direito de danos, como destaca Rolf Madaleno25, encontrando o pedido de indenização o seu fundamento não exatamente no ato ilícito, mas no abuso de direito previsto no art. 18726 do código Civil brasileiro, ainda que exclusivamente moral.27 Não há como não reconhecer que em tal hipótese o responsável pela obstrução está agindo com dolo, ou ao menos com culpa grave, pois é implausível admitir que não tenha ciência das conseqüências do comportamento adotado, do fato de estar deliberadamente negando ao ex-consorte e ao próprio menor o exercício de um direito que lhes é legitimamente conferido. Tal limitação somente 22 BRANCO, Bernardo Castelo. Dano moral no direito de família. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 176. 23 BRANCO, Bernardo Castelo. Ob. Cit., p. 177. 24 STRENGER, Guilherme Gonçalves. Guarda de filhos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 57. 25 MADALENO, Rolf. Repensando o Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007, p. 120. 26 Art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” 27 Art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligencia ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” pode originar-se de decisão judicial, comprovada a existência de prejuízo ao filho menor decorrente do contato com aquele que não lhe tem a guarda, não se podendo aceitar que decorra de decisão unilateral do guardião. Assim, não se pode negar, pois, que a conduta do guardião que obsta injusta e deliberadamente o contato entre o filho e o pai ou mãe não convivente constitui fator de atribuição de responsabilidade civil, dada a antijuridicidade que marca tal comportamento. Incorre aí, ressalta Bernardo Castelo Branco28, na negativa ao exercício do direito conferido ao menor de manter regular comunicação com o não titular da guarda, da companhia do qual deve desfrutar, com vistas à concreção dos deveres naturais que aos pais, conjuntamente, são atribuídos, na criação, sustento, educação e desenvolvimento psicofísico do filho. Muito embora o ascendente guardião tenha o dever de incentivar e facilitar as relações pessoais entre o filho e seu genitor visitante29, há que pesar ambiguamente as funções tanto do visitante quanto do detentor da guarda. Não raro são as situações em que o genitor guardião obstaculiza os momentos de visita do outro progenitor ao filho,atribuindo as mais variadas desculpas para que não haja o desfrute de afetividade e companhia. Por outro lado, podem ocorrer períodos em que o próprio genitor visitante não cumpra com as visitas que lhe foram outorgadas ou que as exerça de maneira desordenada, tornando desestimulante e não prazeroso o convívio para a criança ou adolescente. Há que se analisar principalmente a forma em que se desenrolou a dissolução da sociedade conjugal, tendo em vista que muitas vezes o filho acaba servindo de objeto entre uma relação mal resolvida. Este é o reflexo de sérios transtornos posteriores que serão prejudiciais apenas à criança, cuja personalidade e principalmente sua estrutura psíquica e emocional estão em construção. 3.2 REPARAÇÃO DOS DANOS AFETIVOS 3.2.1 Dano moral nas relações de filiação A reparação do dano moral inseriu-se, principalmente, na legislação brasileira a partir da Constituição de 1988. Certamente, antes mesmo da vigência da atual 28 BRANCO, Bernardo Castelo. Ob. Cit., p. 187. Carta Constitucional, já se desenhava marcante tendência na doutrina e na jurisprudência pátrias, no sentido de admissão da reparação do dano moral. A base onde se assenta a idéia de reparação do dano moral está definida no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988). A legislação, paulatinamente, absorveu o princípio constitucional da reparação do dano moral, que culminou na sua adoção de forma expressa pelo artigo 186 do CC/200230, tornando estéril qualquer discussão a respeito dos limites daquela indenizabilidade, eis que a admite claramente nos casos de prejuízo puramente moral. O principal enunciado da Constituição de hoje, de acordo com os dizeres do jurista Ruy Rosado de Aguiar Junior31, não enaltece a subordinação das pessoas aos interesses da família, mas sim realça o valor da pessoa humana que participa da família, os cônjuges, companheiros, pais, filhos, parentes, ainda que isso possa afrouxar o laço familiar. As jurisprudências que antes negavam a possibilidade de reparação ao dano moral, ou a admitia apenas quando houvesse reflexo de ordem econômica32; começaram a acolher a reparação do dano moral puro, por considerar que a afronta àquela espécie de direito não poderia deixar de receber a necessária resposta por parte da ordem jurídica. Sob a ótica de Bernardo Castelo Branco: Não obstante os abusos cometidos na seara da reparação dos danos morais, não se pode deixar de reconhecer que sua admissibilidade constitui uma conquista da civilização, à medida que o direito, especialmente o direito privado, desloca seu eixo da proteção de interesses puramente econômicos, passando a vislumbrar a pessoa sob ótica diversa, valorizando e protegendo aspectos que são comuns a todos os seres humanos, independentemente de sua raça, sexo ou condição social.33 29 MADALENO, Rolf. Ob. Cit., p. 121. 30 Dispõe o art. 186 do vigente Código Civil: “Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligencia ou imperícia, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comera ato ilícito.” 31 JUNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Direitos fundamentais do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 362. 32 Nesse sentido, Silvio Rodrigues cita o voto vencido de Orozinho Nonato (RF 138/452), no qual afirma textualmente: “Não é admissível que os sofrimentos dêem lugar à reparação pecuniária, se deles não decorre nenhum dano material.” (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 192.) 33 BRANCO, Bernardo Castelo. Ob. Cit., p. 51. A família atual passou a fundar-se na idéia de igualdade entre os seus membros, objetivando alcançar o intuito maior de proteção e respeito entre os cônjuges e conviventes, relevando a dignificação dos direitos da personalidade de que são titulares indistintamente todos os indivíduos que compõem o núcleo familiar. Os vínculos passaram a ser alicerçados na necessidade de respeito mútuo entre aqueles que formam essa nova família, seja ela biológica ou baseada apenas em laços afetivos. Assim como as relações familiares, a responsabilidade civil como instrumento de pacificação social também sofreu mutações, não se contentando, porém, apenas com a reparação da lesão puramente econômica, tendo em vista que o ser humano passou a ser compreendido sob uma ótica mais ampla, na qual são realçados os seus valores intrínsecos, elevando-se a dignidade humana à categoria de direito fundamental, expresso pelo respeito aos direitos inerentes à personalidade. A responsabilidade pela reparação do dano moral tem o dúplice objetivo, o de compensar aquele que sofre a agressão moral e, ao mesmo tempo, corresponde a uma sanção aplicada ao ofensor. 34 No direito de família a reparação do dano possui a mesma serventia, uma vez que as relações familiares não são imunes às violações que rotineiramente ofendem a esfera dos direitos patrimoniais e não patrimoniais de seus membros. Neste sentido, afirma o magistrado Alexandre Miguel: A obrigação de indenizar decorrente de ato ilícito absoluto também é aplicável ao direito de família. Não se pode negar a importância da responsabilidade civil que invade todos os domínios de ciência jurídica, e, tendo ramificações em diversas áreas do direito, é de se destacar, dentro das relações de natureza privada, aquelas de família, em que igualmente devem ser aplicados os princípios da responsabilidade civil. 35 Não se pode negar ao filho, atingido por comportamento ilícito praticado por seus pais, o direito à reparação do dano moral daí decorrente, não estando estes isentos da responsabilidade pela posição singular que ocupam, em função da qual lhes cabe, ao contrário, maior empenho na abstenção de condutas que possam violar os direitos próprios da personalidade de quem deles deve receber especial proteção. 34 BRANCO, Bernardo Castelo. Ob. Cit., p. 206. 35 MIGUEL, Alexandre. Responsabilidade civil no novo código civil: algumas considerações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 23. Por outro lado, a hipótese de um pedido indenizatório somente poderá vir a ser pleiteada face um genitor fisicamente presente, mesmo que este não se faça presente diariamente, o que pode ocorrer no caso de um genitor não-guardião, ou até mesmo no caso de nunca ter ocorrido uma sociedade conjugal. Inobstante condiciona-se o não cumprimento, a contento, de suas funções. Assim, apesar de haver uma maior abrangência nas possibilidades de responsabilização dos pais por danos morais causados aos filhos, convém salientar que tal admissibilidade não se presta à banalização das ações reparatórias nas relações de filiação. Deve-se, portanto, abdicar a idéia de que a aplicação das normas de responsabilidade civil na esfera das relações de família representaria um risco à instituição familiar, pelo infundado temor de destruição dos vínculos afetivos que caracterizam essa forma de relacionamento. Não obstante seja relevante que se tenha extrema prudência no trato da questão que envolve a admissibilidade da reparação do dano moral a fim de não esbarrar nas costumeiras demandas que servem apenas como meio de locupletamento36, é certo que no estágio alcançado pela teoria da responsabilidade por dano moral já se desenham os limites específicos que permitem barrar os inevitáveis abusos.37 Realça-sena atualidade a qualidade preventiva e educadora que tal espécie de sanção apresenta no comportamento individual e, por via de conseqüência, no de toda a sociedade, sem que se tema acerca da “patrimonialização” que possa 36 Nesse sentido adverte o Desembargador Décio Antonio Erpen, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Sei que temos responsabilidade um diante do outro. Devemos prestigiar o instituto da responsabilidade recíproca, mas sem abandonarmos sentimentos e valores que se inspiram no amor, na solidariedade, no equilíbrio, na temperança, no respeito ao próximo e, por que não dizer, até na tolerância. A cobrança persistente judicializada nos pequenos percalços, traduzida em litígios generalizados, vai tornar a vida insuportável. Os profissionais exercem seu mister em estado de suspense. Não é essa a nossa tradição. (...) Se pretendemos uma sociedade pacifica, dentro dos padrões que herdamos, devemos atentar para a circunstancia de que, na sociedade em geral, ocorrem os mesmo processos de integração e desintegração próprias do ser humano. O estimulo ao pleito de indenizações por dano moral pode aumentar a faixa de desagregação social. É isto que ocorre. V.g., quando se promove o ódio, a rivalidade, a busca da vantagem sobre outrem, a exaltação ao narcisismo.” E conclui afirmando: “A indenização a titulo de dano moral inegavelmente existe, mas deve sofrer os temperos da lei e da vida. Sua incidência há que se dar numa faixa de ruptura das relações sadias, a reparação do mesmo não pode servir de motivo para se gerar maus uma espécie de desagregação social.”(ERPEN, Décio Antonio. O dano moral e a desagregação social. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 758, 1998, p. 43-52) 37 O artigo 944 do Código Civil de 2002 apresenta um avanço no estabelecimento de parâmetros mais seguros para aplicação da reparação por dano moral, dispondo que: “A indenização mede-se pela decorrer deste instituto, impossibilitando a penalidade da violação dos deveres morais contidos nos direitos fundados na formação da personalidade do filho abandonado. 3.2.2 Elementos do dever de indenizar 3.2.2.1 Dano O dano moral se divide em direto e indireto. O dano moral indireto, de acordo com Maria Helena Diniz38, consiste na lesão a um interesse que visa à satisfação ou gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade (como a vida, a integridade corporal, a liberdade, a honra, o decoro, a intimidade, os sentimentos afetivos, a própria imagem) ou nos atributos da pessoa (como o nome, a capacidade, o estado de família). Já o dano moral direto consiste na lesão a um interesse tendente à satisfação ou gozo de bens jurídicos patrimoniais, que produz um menoscabo a um bem extrapatrimonial, ou melhor, é aquele que provoca prejuízo a qualquer interesse não patrimonial, devido a uma lesão a um bem patrimonial da vítima. Em relação ao direito familiar, sobretudo nas relações paterno-filiais, enseja reparação o dano moral considerado indireto, uma vez que são ameaçados os direitos da personalidade, os quais, segundo Caio Mário da Silva Pereira39, “despedidos embora de expressão econômica intrínseca, representam para o seu titular um alto valor, por se prenderem a situações especificas o individuo e somente dele”. Assim, o dano causado pela ausência afetiva é antes de tudo um dano causado à personalidade do indivíduo. E é justamente através do grupo familiar que esta personalidade se constrói e se manifesta, os quais são responsáveis por incutir os sentimentos de responsabilidade social, por meio do cumprimento das extensão do dano”, acrescentando em seu parágrafo único: “Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.” 38 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 1988, p. 73. 39 PEREIRA,Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: Introdução ao direito civil. Teoria Geral de Direito civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 242. prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada.40 Os progenitores, no entanto, são responsáveis pelo íntegro exercício do dever familiar, independentemente da inexistência de uma sociedade conjugal, visto que não foram destituídos de seus cargos de pais ou mães, persistindo a inerente incumbência de proporcionar os laços de afetividade junto aos seus filhos. Os diversos comportamentos que determinam a suspensão ou a perda do poder familiar (artigos 1.637 e 1.638 do CC) podem constituir fatores de atribuição da responsabilidade civil por dano moral, porquanto caracterizam efetiva violação dos direitos da personalidade inerentes ao filho. Logo, o abuso no exercício do poder familiar, a imposição de castigos imoderados, as diferentes formas de abandono e a prática de atos contrários à moral e aos bons costumes podem constituir hipóteses quais estejam presentes os elementos autorizadores da reparação por danos morais. A ausência injustificada do genitor origina – em situações corriqueiras – evidente dor psíquica e conseqüente prejuízo à formação da criança, decorrente da falta não só do afeto, mas do cuidado e da proteção (função psicopedagógica) que a presença representa na vida do filho, mormente quando entre eles já se estabeleceu um vínculo de afetividade. Neste caso, provar-se-á através de perícia técnica, determinada pelo juízo, com o intuito de analisar o dano real e sua efetiva extensão. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, forte no artigo 22, ressalta que “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. Confirmando, assim, a incidência de responsabilização dos genitores frente à falta de assistência material e moral com sua prole, na busca de prover os supremos interesses do menor. Muito embora o dever de sustento permaneça, a sensação de rejeição e abandono não supera a relação estritamente patrimonial que os conecta. 3.2.2.2 Culpa 40 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressuposto, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo. Revista brasileira de direito de família. Porto A legre, n. 12, 2007. Sílvio Rodrigues41 salienta que “atua culposamente aquele que causa prejuízo a terceiro em virtude de sua imprudência, imperícia ou negligência. Existindo infração ao dever preexistente de atuar com prudência e diligência na vida social”. Assim, torna-se necessária a comprovação da culpa do genitor não-guardião, o qual deve ter se ocultado à convivência com o filho, e deliberadamente se negado a participar do desenvolvimento de sua personalidade, de forma negligente ou imprudente. A conduta omissiva do genitor estará presente na infração aos deveres jurídicos de assistência que lhes são impostos como decorrência do “dever” familiar. Por outro lado, não se há falar em culpa do não-guardião, sempre que se apresentar, por exemplo, fatores que o impedem de conviver com o filho, como será o caso da fixação do domicílio em distância considerável, que encareça os deslocamentos a fim do cumprimento do dever de educar e conviver, mormente em hipóteses de famílias menos abastadas, assim como na hipótese de doença do genitor que, a bem dos filhos,prefere se afastar para não os colocar em situação de risco, além, ainda, da comum hipótese de não se saber se, realmente, "este suposto descumprimento é imputável à própria omissão do genitor não-guardião ou aos obstáculos e impedimentos por parte do genitor guardião”.42 Com efeito, será improvável também que seja civilmente responsável por uma relação paterno-filial rompida, aquele que nunca conheceu sua condição de ascendente. 3.2.2.3 Nexo de Causalidade A relação de causalidade se põe entre a ação ou omissão do agente e o resultado (dano). Ou seja, para que este seja imputado ao agente, é necessário que seja decorrente de sua ação ou omissão.43 41 RODRIGUES, Sílvio. Ob. Cit., p. 311. 42 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Ob Cit. 43 NETO, Inácio de Carvalho. Abuso de Direito. Curitiba: Juruá, 2002, p. 148. Assim, para que configure a reparação pelos danos afetivos, deverá ser estabelecida a ligação entre o abandono culposo e o dano vivenciado, ainda que comprovada a culpa do genitor que assume conduta omissiva e o dano do filho abandonado. Avulta, assim, a importância da perícia, em caráter retrospectiva, a fim de se estabelecer não só a existência do dano, como a sua causa. 3.3 O AFETO TRANSFORMADO EM PREÇO 3.3.1 Preceito compensatório da reparação Primeiramente convém esclarecer que o dano moral destina-se, na sua forma de reparação, essencialmente a compensar um mal-estar ou uma indisposição de natureza espiritual. Assim ensina Inácio de Carvalho Neto44, diferenciando, fundamentalmente o dano material do moral: Enquanto no caso dos danos materiais a reparação tem como finalidade repor as coisas lesionadas ao seu status quo ante ou possibilitar à vitima a aquisição de outro bem semelhante ao destruído, o mesmo não ocorre, no entanto, com relação ao dano eminentemente moral. Neste é impossível repor as coisas ao seu estado anterior. A reparação, em tais casos, reside no pagamento de uma coma pecuniária, arbitrada pelo consenso do juiz, que possibilite ao lesado uma satisfação compensatória da sua dor íntima.” O Desembargador Umberto Guaspari Sudbrack se ateve a demonstrar que “a indenização por danos morais possui função diversa daquela exercida pela dos danos patrimoniais, não podendo ser aplicados critérios iguais para sua quantificação, uma vez que a reparação de tal espécie de dano procura oferecer compensação ao lesado para atenuar a lesão havida e, quanto ao acusador do dano, objetiva infringir-lhe sanção, a fim de que não volte a praticar atos lesivos à personalidade de outrem.” 45 44 Ibidem, p. 145. 45 Ac 70020746475 da 5ª Câmara Cível, relator Umberto Guaspari Sudbrack, DJRS em 16.10.2007. Assim, a fixação de um montante indenizatório por gravames morais, deve-se buscar atender à duplicidade de fins a que a indenização se presta, atentando para a condição econômica da vitima, bem como para a capacidade do agente causador do dano. A reparação pela falta de afetividade pelo filho, embora expressa em pecúnia, não busca qualquer vantagem patrimonial em benefício da vítima. Na verdade, revela-se como uma forma de compensação diante da ofensa recebida, que em sua essência é de fato irreparável, atuando ao mesmo tempo em seu sentido educativo, na medida em que representa uma sanção aplicada ao ofensor, irradiando daí seu efeito preventivo.46 3.3.2 Acepção negativa do dever de indenizar Há correntes que enfocam a não reparação do afeto aos filhos, temendo que o pai condenado à pena pecuniária por sua ausência será um pai que jamais tornará a se aproximar daquele rebento, em nada contribuindo pedagogicamente o pagamento da indenização para restabelecer o amor.47 Questiona-se aí a probabilidade de não subsistir qualquer forma de se alcançar um afeto que jamais existiu, ao passo que um litígio judicial poderia alimentar ainda mais a falta de afetividade existente entre o genitor para com o filho, o que seria o próprio enfoque desta mesma ação. Neste sentido, Francisco Alejandro Horne48 afirma que “não se pode, portanto, quantificar o desejo e o amor, muito menos exigir que se goste ou não, que se realize ou não o ato de adoção.” Segundo o autor, por mais que esteja configurada a rejeição moral, “o princípio da liberdade afetiva se sobrepõe a qualquer outro princípio para a realização da dignidade, visto que não se pode exigir afeto.” Confirmando este foco, Rafael Lazzarotto Simioni, afirma que as relações entre os filhos e os pais condenados se distanciam pelas decisões judiciais, o que 46 BRANCO, Bernardo Castelo. Ob. Cit., p. 116. 47 COSTA, Maria Aracy Menezes da. Responsabilidade civil no Direito de Família. XII Jornada de Direito de Família. Rio de Janeiro: COAD, Edição Especial, 2005, p. 42. impossibilita qualquer perspectiva de perdão, compreensão, aceitação, enfim, afetividade.49 Desta forma, a corrente negativa do dever de indenizar pela falta de afetividade tem se orientado, frisando que os deveres decorrentes da paternidade não podem invadir o campo subjetivo do afeto. A acepção da indenização por dano moral considera-se abusiva e por demais arbitrária, uma vez que o pagamento correto da pensão alimentícia já se torna suficientemente uma demonstração de afeto e respeito pelo filho. Idealizando assim, a idéia de que o exercício reparatório do dano moral não pode ser exteriorizado frente à “monetariazação” do amor, do afeto, eximindo totalmente a culpa de uma conduta ilícita, reprovável. A esse respeito o Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se manifestar no julgamento do Recurso Especial nº 757.411 – MG50, afastando, por maioria de votos, o direito do filho em obter a reparação por danos morais, do pai pelo abandono sofrido. Caso pioneiro neste grau de jurisdição foi salientado, sobretudo, que no “caso de abandono ou de descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1.638, inc II.” Destacando-se assim, a perda do poder familiar como a mais grave pena civil a ser imputada a um pai. De acordo com o relator deste caso, o Ministro Fernando Gonçalves, a admissão desta indenização por dano moral estaria enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, mesmo que em longo prazo, busque amparo do amor dos filhos. Assim, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada, pois escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo. Há quem rotule como absurda a pretensão de uma reparação pela ausência afetiva, sendo incabível alcançar hipóteses na legislação buscando uma falta ao 48 HORNE, Francisco Alejandro. O não cabimento de danos morais por abandono afetivo do pai. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, n. 8, 2007. 49 ALDROVANDI, Andréa e SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Ob. Cit., p. 24. 50 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 757.411 – MG, Quarta Turma, Relator Ministro Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005. direito, onde apenas estivesse faltando afeto. Neste diapasão, Sérgio Resende de Barros51 destaca: Não se deve confundir a relação de afeto, considerada em si mesma, comas relações patrimoniais que a cercam no âmbito da família. Entre os membros de uma entidade familiar, por exemplo, entre os pais, ou entre estes e os filhos, a quebra do afeto se manifesta por diversas formas: aversão pessoal, quebra do respeito ou da fidelidade, ausência intermitente ou afastamento definitivo do lar, falta ou desleixo nas visitas e na convivência, etc. Mas nenhuma forma de desafeto faz nascer o direito à indenização por danos morais. Mesmo porque, muitas vezes, o ofendido é o acusado, cuja conduta reage à ação ou omissão do outro. Esta corrente considera que a liberdade afetiva está acima de qualquer princípio componente da dignidade da pessoa humana, sob pena de gerar um dano ainda maior para ambos. Seria muito mais danoso obrigar um pai, sob o temor de uma futura ação de reparação de danos, a cumprir burocraticamente o dever de visitar o filho. Em outro posicionamento desfavorável ao dever de indenizar moralmente, em recente decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul52, comprovou demonstrado que inexistindo o ato ilícito, proveniente da ação ou omissão do genitor, não há que se falar em abandono afetivo. Dessa forma, por mais que o abandono afetivo estivesse ínsito na própria ofensa, decorrente da gravidade do ilícito em si, conforme dispõe Sergio Cavalieri Filho53, ao afirmar que “se a ofensa é grave e de repercussão, por si só justifica a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”; por outro lado, conforme neste caso concreto, não se pode acolher a tese de danos sofridos apenas em alegações, em presunções. Ainda mais que, de acordo com a situação demonstrada, a falta do pai biológico não impediu seu crescimento profissional e pessoal, uma vez que a rejeição de ser abandonado não lhe insurgiu qualquer detrimento em sua vida, o qual, no entanto, já perduram cinqüenta anos. Ademais, a responsabilidade civil ocupa uma função preventiva. Caso a negativa de afeto gere responsabilidade civil, não seria possível adotar providências acautelatórias preventivas, pois dessa forma o direito forçaria o pai a visitar a criança, supondo que visitar implica amar. 51 BARROS, Sérgio Resende de. Dolarização do afeto. Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre, n. 14, 2002. 52 Ac 70019263409 da 7ª Câmara Cível, relator Luiz Felipe Brasil Santos, DJRS em 16.10.2007. 3.3.3 Acepção positiva do dever de indenizar Por outro lado, há uma vertente que se direciona para a aceitação da reparação material pela omissão do afeto, a qual acredita, em sua maioria, que ao contrário do que afirma a corrente negativa, a indenização não tem mais nenhum propósito de compelir o restabelecimento do amor, já desfeito pelo longo tempo transcorrido diante da total ausência de conta e de afeto paterno ou materno. 54 Já não existe amor para ser resgatado, bem pelo contrário, a penalidade geradora desta obrigação não acrescentaria de amor um coração paterno petrificado, mas repararia a configurada omissão voluntária prejudicial à formação da estrutura da personalidade deste filho abandonado. Há vozes, mesmo que favorável, condicionando-se a admissibilidade da reparação dos danos morais nas relações de filiação às situações nas quais, seja por conta do comportamento lesivo ou pela ausência preexistente do vínculo afetivo, não se conceba a subsistência material da relação paterno-filial, conquanto formalmente possa aquela resistir à demanda reparatória. Assim, tende afastar o risco de que a tese da reparação dos danos morais sirva como determinante do rompimento do vínculo filial, onde muitas vezes este vínculo já foi desfeito ou nunca existiu. Nesta premissa, insurge a indagação que focaliza tal reparação: “cabe ao Judiciário obrigar alguém a amar?” Inobstante o grau de subjetividade desta questão, Cleber Afonso Angeluci55, salienta que por esse ponto de vista “pareça até aceitável argumentar sobre a impossibilidade de o Judiciário arbitrar qualquer reparação em pleitos indenizatórios por morte, pois lhe escapa a possibilidade de ressuscitar a pessoa falecida, o que não procede. (...) Negar, nos dias atuais, o valor e a relevância ao afeto, consiste negar sua necessidade para a implementação da dignidade da pessoa humana, ou seja, negar o princípio fundamental do Estado brasileiro”. 53 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Ob. Cit., p. 101. 54 MADALENO, Rolf. Ob. Cit., p. 125. 55 ANGELUCI, Cleber Afonso. O amor tem preço? Revista CEJ. Brasília, n. 35, out./dez., 2006, p. 51. A Constituição Brasileira Federal dispõe, no seu art. 5º, inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”, porém esta mesma análise implicaria deixar de lado e impune os atos desfavoráveis cometidos contra as necessidades de um filho menor. Foi através desta mesma Carta Política que passou a emprestar efeitos jurídicos aos relacionamentos interpessoais fora do casamento; no momento em que a filiação foi identificada pela verdade socioafetiva e não pela verdade biológica, merecendo os vínculos afetivos a proteção do Estado.56 Esta nova orientação levou à aprovação da doutrina da proteção integral da criança, sendo esta um sujeito de direito, o qual possui preceitos fundamentais que confirmam sua importante condição de ter a prerrogativa de ser amada. Foi-se o tempo em que o direito de visita era prioridade do pai, agora se reconhece que o desfrute da companhia paterna é um direito do próprio filho. Diante da constatação de que a dignidade da pessoa humana constitui valor essencial da personalidade, deve este principio ser preservado nas diferentes esferas dos relacionamentos interpessoais. Havendo violação dos direitos da personalidade, mesmo no âmbito da família, não se pode negar ao ofendido a possibilidade de reparação do dano moral, não atuando esta como fator desagregador daquela instituição, mas de proteção da dignidade de seus membros.57 O instituto da responsabilidade civil em relação ao dano puramente moral, por se tratar de uma ordem compensatória e, até mesmo, coercitiva, não tende a desempenhar uma função meramente punitiva ao agente que ensejou o dano. Muito pelo contrário, manifesta-se a penalidade da violação dos deveres morais que deveriam compor a formação da personalidade do filho rejeitado, os quais não foram providos por um genitor ausente. Neste sentido, jurisprudências têm configurado o posicionamento desta corrente positiva. Em recente decisão no Rio de Janeiro58, pai foi condenado a 56 FREIRE, Denise Dias. O preço do amor. Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre, n. 8, 2004. 57 BRANCO, Bernardo Castelo. Ob. Cit., p. 116. 58 1ª Vara Cível de São Gonçalo (RJ). pagar o equivalente a 100 salários-mínimos por ter abandonado moralmente seu filho, sob a premissa que a decisão “não sirva de instrumento de vingança, mas sim de reparação de um dano, de fato, suportado na formação da personalidade e identidade da criança”, conforme dispôs a magistrada Simone Navalho Novaes. Completou, salientando o poder familiar inerente ao genitor: “Se o pai não tem culpa por não amar o filho, a tem por negligenciá-lo. O pai deve arcar com a responsabilidade de tê-lo abandonado, por não ter cumprido com o seu dever de assistência moral, por não ter convivido com o filho, por não tê-lo educado, enfim, todos esses direitos impostos pela Lei”. Neste mesmo teor, na Comarca de Capão da Canoa59,decisão pioneira neste sentido no Estado do Rio Grande do Sul, restou configurado o abandono afetivo. Em Minas Gerais60, em igual sentido, o Tribunal de Alçada reconheceu que “a existência do homem está na dimensão de seus vínculos e de seus afetos, sendo a afeição valor preponderante da dignidade humana”, julgando procedente assim a reparação em dinheiro a dor sofrida pelo filho rejeitado. Muito embora se admita que a simples presença não seja pressuposto de afetividade por parte do pai/mãe, por outro lado negar esta possibilidade ou até mesmo não dar a chance ao filho de ter fisicamente presente sua figura paterna/materna, configura-se aí o abuso de um direito inerente à filiação. Ademais, deve-se encontrar o verdadeiro agente do ato ilícito tendo em vista que a indenização deve ser direcionada para aquele que causou o dano, seja ele o genitor que voluntariamente omitiu-se de prestar com seu papel, seja ele o genitor que intencionalmente perturbou a chance de ocorrer esta troca. Certamente que a cautela deve ser preponderante nesse tipo de ação reparatória, até mesmo para que não ocorra a chamada monetarização das relações afetivas. Entretanto, o aspecto que deve ser respeitado nessa discussão é ajudar a criar uma mentalidade de paternidade responsável, até por que o amor pode até não ter um preço, mas a falta de amor pode gerar a obrigação indenizatória.61 59 Processo n. 1030012032-0, da 2ª Vara da Comarca de Capão da Canoa, RS, juiz Mário Romano Maggioni. 60 AC 408.550-5, Belo Horizonte, 7ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, relator Juiz Unias Silva, em abril de 2004. 61 FREIRE, Denise Dias. Ob. Cit. CONCLUSÃO Dentre todos os campos do Direito, a instituição familiar foi a que mais insurgiu reformas e avanços posteriores a Constituição de 1988 bem como posterior ao Código Civil de 2002. O pátrio poder foi substituído por um “poder familiar”, salientando-se principalmente a atual inexistência de posições na família, preponderando a igualdade entre todos os seus membros. A figura paterna deixou seu trono quase ditatorial para dividir suas tarefas entre a mãe e a prole. A relação consangüínea deixou de ser o único vínculo que une uma família, dando espaço para a socioafetiviade construir uma união familiar baseada na troca mútua de afeição. Os direitos fundamentais se tornam cada vez mais presentes e influentes nas famílias, uma vez que até mesmo o Estado conspirou para sua proteção, seja na dignidade da pessoa humana, nos direitos da personalidade ou até mesmo no principio da igualdade. O que se assiste na atualidade, é o necessário repensar dos direitos e deveres, deixando de lado o autoritarismo, a patrimonialização, para atentar aos limites do afeto, sustentando a função de esteio e alicerce da verdadeira família. A responsabilidade civil surge no Direito de Família para justamente aperfeiçoar os princípios fundamentais inerentes às relações familiares, com o compromisso único de respeito à justiça, até mesmo por que esta compõe a única forma de o Judiciário adentrar no âmbito familiar. O abuso de direito e o posterior abandono afetivo constituem atos ilícitos passíveis de reparação na ordem moral. A condenação, ainda que seja pelo desamor, uma vez que tenha causado prejuízo manifesto à dignidade do filho rejeitado, mostra-se como melhor alternativa para compensar um dano ainda que manifestamente moral. A indenização por abandono afetivo não pode servir como uma busca de um lucro fácil, frente ao descaso de um genitor com seu papel de ascendente, nem mesmo como uma busca de vaidade ou meramente de vingança. A reparação deve ser vista como nos outros campos do direito onde a violação, a omissão gera um ato ilícito, passível de indenização. Há que se visualizar o dano, a culpa e o nexo causal nesta relação de abandono, completando então os elementos do dever de indenizar. Busca-se a ausência de impunidade de genitores que, muitas vezes abusam de seus poderes familiares, não se importando nem mesmo com uma futura destituição desta posição. Convém salientar, no entanto, que a destituição do poder familiar não serve, neste caso, como uma punição do Direito Civil. Muito pelo contrário, servirá como um prêmio para um genitor que se omitiu voluntariamente de sua posição, retirando- se assim a obrigação que, frente seus atos, não fez questão alguma de exercer. Desta forma, deve haver a reparação do dano pela falta de afetividade, não para que insurja um afeto que já não se fazia presente na relação familiar, mas que gradativamente seja estabelecida uma consciência de genitores mais responsáveis com a importância que o afeto determina na vida de uma personalidade em formação. Para que o filho não sirva meramente como objeto na relação conjugal ou extraconjugal, mas que principalmente sejam respeitados os direitos mais importantes de um ser humano. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALDROVANDI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. O direito de família no contexto de organizações socioafetivas: Dinâmica, instabilidade e polifamiliaridade. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, n. 34, fev./mar., 2006. ANGELUCI, Cleber Affonso. O valor do afeto para a dignidade humana nas relações de família. Revista jurídica. Porto Alegre, n. 311, maio, 2005. ______. Amor tem preço? Revista do CEJ. Brasília, n. 35, out./dez., 2006. 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