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RESUMO CRISTO E A SOCIEDADE JUSTA NO PENSAMENTO DE AGOSTINHO Cleveland Rodrigues do Prado DODARO, Robert. Cristo e a Sociedade Justa no Pensamento de Agostinho. Curitiba: Scripta Publicações Ltda, 2014. Tradução Bárbara Theoto Lambert. INTRODUÇÃO Como Agostinho concebe a sociedade justa? Esta é a questão principal que impulsiona todo o desenvolvimento da obra, de acordo com Dodaro “ela não se refere a comunhão dos santos na cidade celestial, que é o ideal de sociedade justa, mas na cidade de Deus em sua peregrinação terrena”1. Robert Dodaro ao constatar a existência de muitos trabalhos acadêmicos que tratam dos aspectos do pensamento social e político de Agostinho, e em especial sobre a obra “De civitate Dei”, percebeu a necessidade de um estudo que se propusesse a unir os vários pensamentos de Agostinho até então abordados de forma particular, isoladas. A questão principal se torna importante a partir da constatação de que é impossível para Agostinho, pensar em Cristo, sem pensar na Igreja e vice- versa. Essa questão envolve diversos aspectos do pensamento Agostiniano, como Cristo, a Igreja, o conhecimento humano, a interpretação das escrituras, bem como a política e a ética. Assim, ao longo dos 6 capítulos que compõem essa obra, Robert Dodaro discorre cada argumento de Agostinho sobre tal sociedade, em contraposição a outros autores e seus escritos. No primeiro capítulo, ele apresenta a argumentação de Agostinho em oposição aos escritos de Cícero em “De re publica” de que Roma deixou de ser uma república quando abandonou a justiça porque sempre careceu de virtudes cívicas, como a justiça. Estudando esta questão, Agostinho apresenta oposição entre o estadista ideal de Cícero e Cristo, o fundador e soberano da cidade de Deus. 1 Ibid. p.13 No segundo capítulo, abordando a questão de como se apreende a virtude, vem à tona a discussão do pecado original e suas consequências gêmeas, a ignorância e a fraqueza, sendo o tópico principal deste capítulo que apresenta que o fracasso de Roma em alcançar a verdadeira justiça se deve ao fracasso de seu povo, mal direcionados por seus líderes a superar estes defeitos permanentes. Assim, na visão Agostiniana, apenas Cristo é capaz de estabelecer esta sociedade, como homem-Deus. No terceiro capítulo, Dodaro se debruça em examinar a conexão entre o papel de Cristo na mediação da virtude para alma e seu papel no estabelecimento da sociedade justa. No quarto e quinto capítulos, a questão da interpretação correta das escrituras, de forma a instruir os crentes a viver justamente. Estes ensinamentos éticos bíblicos aparecem como ponto de discussão entre Agostinho e os oficiais públicos, por correspondência, principalmente com Rufino Volusiano que aponta que a não violência pregada por Cristo, minimiza a capacidade do império Romano de se defender. No capítulo 4 Agostinho apresenta que a verdadeiro significado da palavra da escritura frequentemente está escondido abaixo da superfície do texto, e Dodaro se debruça em analisar as técnicas que Agostinho acredita serem utilizadas por Deus, para transmissão de verdades essências ocultas na mensagem. No capítulo 5, Dodaro discorre sobre esta interpretação das escrituras do capítulo 4, agora à luz da explicação de Agostinho acerca da transformação divina do conhecimento sobre a virtude, que os crentes adquirem a partir da leitura das escrituras. Para Dodaro “talvez este seja o capítulo mais exigente do livro, pois revela, de um lado, a relação no pensamento agostiniano entre o conhecimento humano e a sabedoria divina e, de outro lado, entre a união das naturezas humana e divina de Cristo”.2 O capítulo 6 nos apresentado o contraste entre os exemplos dos “excelentes cidadãos” de Roma e os exemplos de Cristo e dos santos. Agostinho defende que a capacidade de conquistar a verdadeira justiça depende do quanto se consegue imitar a Cristo. 2 Ibid. p.15 Por fim, para se alcançar a compreensão dos capítulos é necessário absorver o termo justiça (iustitia) em Agostinho. Este termo para ele envolve três significados gerais. I – ELOQUÊNCIA E VIRTUDE NO ESTADISTA DE CÍCERO O que é uma sociedade justa? Como é estruturada e como funciona?, Assim Robert Dodaro inicia o primeiro capítulo apresentando que ao abordar estas questões, Agostinho volta-se a analisar a obra de Cícero “De re publica”, tanto em sua obra “De civitate Dei”, quanto em suas correspondências oficiais. Nestas referências a Cícero, Agostinho “sugere dois pontos de divergência significativos entre seus respectivos conceitos de sociedade justa: a natureza e o objetivo das virtudes cívicas e o papel crucial de um estadista em fomentá-las dentro da sociedade”3. A partir disso, Agostinho apresenta a superioridade moral de seus próprios conceitos alternativos de virtude e liderança política. A partir de seus conceitos, Agostinho demonstra a Rúfio Volusiano – procônsul da África em Cartago – que, diferente do que Volusiano acredita, foi exatamente a falta dos preceitos éticos-cristãos, conforme expressos nas escrituras, teriam saído melhor do que saíram-se com os estadistas romanos. Ele apresenta que apenas o cristianismo fornece um conceito de Deus que mostra a plenitude da virtudes, que os seres humanos requerem como padrão. Somente o advento da verdadeira religião, que culmina com Cristo, produziu verdadeira virtude cívica. “O declínio da virtude de seus líderes foi causa do declínio da riqueza de Roma, como falha moral, subproduto da religião politeísta romana tradicional”4. Em cartas trocadas com o vicário imperial da África, Macedônio, o enfoque de Agostinho novamente encontra-se na “natureza da virtude cívica, suas origens e objetivos”5. Somente através de Cristo, pela sua morte e ressurreição, que podemos alcançar a graça da felicidade vindoura. Por causa do pecado, a razão humana, não pode por si só alcançar a sabedoria e as virtudes necessárias para viver com felicidade, nesta e na vida futura. Ela é recebida como graça de Deus. 3 Ibid. p.19 4 Ibid. p.20 5 Ibid. p.21 A questão da verdadeira natureza se torna tão importante ao ponto de ser o fundamento de seus argumentos aos oficiais públicos, como Necário, Volusiano, Marcelino e Macedônio. Dedicando a obra “De civitate Dei” a Marcelino, seu aliado na conversão de Volusiano, aponta a importância do “De re publica” na organização de grande parte do “De civitate Dei”. A obra de Cícero oferece fundamentos filosóficos seguro para o debate que Agostinho gera entre cristãos e não-cristãos com base nos argumentos dos que ele chama de “excelentes cidadãos” romanos, permitindo-lhe construir um contraste efetivo entre os estadistas romanos e Cristo, o “fundador e soberano da cidade de Deus”6. Assim em De civitate Dei, Agostinho apresenta o pensamento de Cícero que consiste em afirmar que “nenhuma república poderia existir sem o “comum acordo sobre o que é direito” e, consequentemente, sem justiça, mesmo Cícero, conforme concluído por Agostinho, ter afirmado que Roma tinha deixado de existir como uma república”7. Para Agostinho ela nunca tinha existido como república, pois, sempre careceu de justiça verdadeira, que só existe na “cidade cujo fundador e soberano é Cristo”8. A partir dessa afirmação, Agostinho se ausenta de abordar este tema e só o retoma ao final do livro 19, onde aborda que Roma era duplamente culpada por negar ao seu “povo o culto ao verdadeiro Deus e de negar a Deusa indivisível fidelidade que cada indivíduo deve a ele”9. É no conceito de “consensus iuris” de Cícero, que Agostinho identifica que sem a verdadeira justiça, nenhuma república é possível, conforme sugere Volkmar Hand. Essa interpretação de Hand está fundamentada na conclusão de Agostinho de que “onde a justiça verdadeira não existe, não pode haver direito”10, assim, Hand percebe que Agostinho sustenta seu argumento na oposição de Cícero ao argumento de Fílon de que a justiça é definida pelo “interesse do mais forte” e só através de alguma injustiça poderá haver uma república de sucesso. 6 Ibid. p.21 7 Ibid. p.22 8 Ibid. p.22 9 Ibid. p.22 10Ibid. p.22 Hand conclui que há uma continuidade entre o conceito cristão de justiça de Agostinho e o conceito clássico romano de Cícero parece imperfeita, pois não é possível determinar um sentido preciso do consensus iuris no conceito de justiça de Cícero em “De re publica”, não há necessidade de que o conceito de consensus iuris tenha relação com o conceito de justiça. Hand, ultrapassa limites teológicos quando tenta fazer um paralelo entre os pensamentos de Agostinho e Cícero sobre o direito e Deus. Acreditar que ambos filósofos possuem o mesmo entendimento entre os conceitos de direito e de Deus, não é somente confundir mas tentar unir diferentes conceitos de Deus entre os dois. Mas é preciso compreender melhor o pensamento de Agostinho e de Cícero, quanto ao entendimento de justiça verdadeira, é interessante compreender a forma como Lactâncio entende esta mesma questão. Este entendimento alcançamos a partir da análise de Giulia Piccaluga faz da obra Divinae intitutiones, aonde Lactâncio realiza a transformação do conceito de ius (justiça) e vera iustitia (justiça verdadeira), onde nos capítulos 5 e 6 de sua obra. É Lactâncio que primeiramente apresenta que os romanos não alcançaram a verdadeira justiça por não cultuarem o Deus verdadeiro. Devido a essa ignorância, ele acusa os romanos de perseguirem e torturarem os cristãos que tinham conhecimento da fonte da verdadeira justiça. Assim há uma contraposição entre o argumento de Lactâncio de vera iustitia, que provém de Deus, e o conceito jurídico e filosófico romano de ius, que define as obrigações de Roma para com suas divindades. Lactâncio vai citar o mito de Saturno, da Era de Ouro, onde Jupiter, com uma falsa justiça, destitui Saturno e assim, faz com que a justiça saia da terra. Com essa lacuna criada pela ausência da justiça, esta falsa justiça acaba por preenchê-la. Para ele, o advento de instituições jurídicas e políticas, representa o crescimento da injustiça social, aonde através da invenção de direitos, como os dos senhores políticos (ius dominorum), que desejam apenas honra e poder pela força da espada. Lactâncio compreende que os romanos ainda aguardam o retorno da justiça ao mundo, como na era do ouro. Apoderando-se dessas aspirações religiosas anuncia o monoteísmo cristão e o advento da verdadeira justiça. O pensamento de Lactâncio é de que os filósofos nunca poderiam compreender a natureza da verdadeira justiça. Para ele, a justiça tem piedade que só é conhecida a partir do conhecimento de Deus. Para se conhecer a Deus é necessário rejeitar qualquer divindade falsa. O pensamento de Lactâncio sobre verdadeira justiça e conhecimento do Deus verdadeiro, antecipam os argumentos de Agostinho em “De civitate Dei” e assim, demonstra falhas “de que a similaridade nos conceitos de Deus de Agostinho e Cícero, é responsável pela convergência entre seus conceitos de justiça”.11 A proposta de Hand está justamente no ponto de maior divergência no pensamento de ambos. Deus, como fonte de justiça, segundo Agostinho, revela-a na pessoa e na obra de Cristo. Ele se preocupa com veemência na relação entre Cristo e a verdadeira justiça, tornando a questão sobre Roma ter sido ou não uma república, secundária em seus escritos. Isso é tão claro que do livro 2 ao 19 de “De civitate Dei”, a única preocupação na qual ele se debruça é apresentar a inter-relação entre as implicações políticas e teológicas da justiça verdadeira. Nestes livros ele diz que o fundamento da justiça verdadeira é um conhecimento apropriado do Deus verdadeiro e do amor (culto) a ele.12 Para isso, “nos livros de 2 a 10, ele faz a distinção do culto pagão a sistemas filosófico e de 11 a 19 distingue da religião cristã para demonstrar os diferentes efeitos que eles possuem para promover a justiça verdadeira e a piedade na cidade”.13 Nesse sentido sua crítica à religião e a filosofia pagãs se assemelham a Lactâncio, tanto em estrutura quanto em objetivo.14 Observando os argumentos de Agostinho a partir desse ponto de vista, esclarece-se ao compreender o porquê de seu diferimento quanto a alegação contraria de Roma como república a partir de uma justiça relativa, ao invés de absoluta, justificando o pouco empenho de Agostinho em abordar este ponto que seus intérpretes. Agora, isso não significa que Agostinho seja indiferente a esta questão, apenas acredita ser, a justiça na sociedade política, de caráter provisório e fugidio dos julgamentos da esfera política, devido a imperfeita natureza da razão e da justiça humanas. Neste ponto se assemelha a Platão e a Cícero, embora a definição de justiça em algumas ocasiões seja diferente. 11 Ibid. p.25 12 Ibid. p.26 13 Ibid. p.26 14 Ibid. p.26 A importância da definição da origem e natureza da virtude verdadeira encontra-se com clareza no livro 19, no capítulo 21 da mesma obra15 onde analise o pensamento de Cícero acerca do conceito de consensus iuris. Agostinho compreende que o conceito de consensus iuris não pode ficar no âmbito da simples definição, no contexto da res publica de Cícero, mas somente pode emergir a partir do diálogo. Aqui encontramos uma aprovação da dialética de Cícero. Assim, abre-se o seguinte questionamento: “Quais trecho do De re publica Agostinho tem em mente? ”16 . É possível a partir das referências diretas afirmar pelo menos o trecho sobre os argumentos de Fílon, no 3º livro aonde ele se opõe ao pensamento de Fílon de que não há condições de sobreviver uma república sem injustiça, baseada nos interesses dos mais fortes. Agostinho relaciona os conceitos de justiça verdadeira e de república a Cristo, “fundador e soberano da república”17, fazendo referência direta ao estadista ideal18 de Cícero. Esta questão é importantíssima no pensamento de Cícero, já que ele considera fundamental que o estadista tenha, não somente experiência prática, mas habilidade em aprender e ensinar, como grande vontade e entusiasmo, tal como os filósofos. Aqui passa a haver uma oposição ao pensamento epicurista, já que para ele é necessário haver proximidade entre o estadista e os filósofos, renegando o pensamento epicurista de que o sábio19 deveria evitar as questões políticas.20 Para ele a justiça e a virtude associadas, piedade, são encontradas na sociedade na proporção que os estadistas, não os filósofos, são capazes de traduzi-las em costumes e leis. O estadista surge como imagem daquele que é 15 De civitate Dei 16 Ibid. p. 26 17 Conditor rectoque rei publicae 18 Rector rei publicae – a função deste estadista é a de promover a justiça e a as virtudes na dentro da comunidade. A leitura minuciosa leva a compreender como Cícero apresenta a importância deste estadista nesta função e para isso é necessário que o mesmo tenha uma excelente oratória, ou seja, é necessário que ele, a priori,assimile as virtudes oratórias. Aqui há uma concordância da parte de Agostinho, apesar do conceito de estadista diferir entre ambos. cf. Ibid. pg. 27 19 Vir sapiens 20 Ibid. p. 27 hábil em transmitir idéias. Capaz de preencher as lacunas entre erudição e aplicação prática na vida política O estadista precisa unir eloquência e sábio conselho – aqui ele considera “sábio conselho” ao modo de Péricles21. Cicero afirma que o estadista ideal deve ser “justo e sábio”, “livre das paixões e de total transparência moral”, e obediente às leis que o mesmo impõe aos outros. Para que haja um estadista nestes moldes, é necessário que ele tenha predicados divinos para tal, ficando então limitado este entendimento aos deuses, segundo Cícero e Ênio. O que caracteriza o estadista ideal são os seguintes atributos e conceitos, conforme Cícero: Orador sábio e justo Liderança política Dedicado e hábil estadista Zelo pela aprendizagem Força e eloquência no discurso Se estas características / qualidades forem unidas a integridade moral, o estadista será capaz de obter consenso no que diz respeito do direito22. Essa condição política gera coesão social e segurança para a república. O estadista ideal de Cícero possui autoconhecimento e capacidade para aperfeiçoamento moral para servir como modelo e padrão pelo qual outros indivíduos possam medir seu próprio progresso nas virtudes cívicas. Ele se move para dentro de si mesmo (se contemplare) enquanto convida aos outros imitá-lo. Cícero compara o estadista a um maestro que alcança a harmonia política. Ele apresenta uma conexão entre justiça e decoro. Para ele, estadista, é mais uma arte do que uma ciência. A recuperação da república é comparada a restauração de uma pintura. Requer conhecimento artístico para tal. No capítulo 5, Cícero, aponta alguns “homens excelentes”23 que, por incorporarem costumes do passado e de uma mais perfeita república, são, sozinhos, capazes dessa restauração. Ele exalta a pessoa de Numa 21 Péricles para Cícero é importante porque possui a imagem de um professor que libertou os atenienses de medos irracionais, neste caso em específico, explicando o fenômeno do eclipse, tal como havia aprendido de Anaxágoras e assim, acalmando a população ateniense. Ibid. p.28 22 Consensus Iuris 23 Viri optimi / excellentes Pompílio na história de Roma porque compôs leis e promoveu a justiça e a piedade. Cícero apresenta como a lacuna entre filosofia e retórica pode ser preenchida. O estadista necessita ter conhecimentos sobre direito e leis, evitando o isolamento epicurista. A retórica serve como instrumento para criar e reforçar as formas culturais que legitimam a ordem política, gerando pressão suficiente para manter esta forma, além de, através da paixão romana por honra e glória pessoal, com medo da desonra e da desgraça, predispõem seus cidadãos aos argumentos dos seus líderes que se fundamentam em honra e reputação. É através da manipulação da oratória que o estadista promove o bem público. Ou seja, o estadista para Cícero deve ser um orador magnânimo e que através de suas qualidades e virtudes cívicas, conduz a comunidade para uma sociedade onde haja equilíbrio social político, gerando aos cidadãos, o desejo de imitá-lo, pelas suas qualidades, bem como o bem da república. II. JUSTIÇA E OS LIMITES DA ALMA Dodaro inicia este capítulo com a afirmação de Agostinho de que “os homens são justos na mesma proporção que conhecem a Deus”24. A partir disso ele constata que devido a ignorância, a fraqueza e o temor da morte (timor mortis), como consequências do pecado original, é impedimento para que o homem conheça e ame a Deus, de forma natural. “Ele associa estes defeitos espirituais a concupiscência”25. Ele apresenta duas “formas de morte”, sendo a primeira corporal e a segunda espiritual. A morte do corpo, segundo Agostinho, não deve ser temida pelos cristãos, mas sim a morte da alma, pois, representa um distanciamento completo da graça e da presença do Criador. A temor da morte do corpo nada mais é que ignorância e fraqueza, frutos do pecado original. Tendo introduzido desta forma, Dodaro passa a apresentar a sua análise dos livros 1-10 da obra “De civitate Dei”, onde as ideias buscam demonstrar a ineficácia dos deuses pagãos em promover a felicidade temporal e permanente e refutar as acusações contra a religião cristã. Nos livros de 1-5 ele apresenta a 24 Ibid. p.47 25 Ibid. p.47 “inabilidade dos deuses romanos em proporcionar felicidade na vida presente”26, enquanto nos livros 6-10 “examina sua inabilidade em prover felicidade após a morte”27. No mesmo tempo ele apresenta nos livros de 1-7 “o fracasso das religiões não cristãs em guiar os seres humanos a essa felicidade”, e nos livros de 8-10, faz a mesma reflexão em relação a filosofias não cristãs. Agostinho critica duramente o politeísmo, em especial o politeísmo romano. Essa crítica está baseada na incapacidade destes politeístas em conhecer a si mesmos, aos outros e ao Deus verdadeiro, e consequentemente não conheceram a justiça verdadeira - que provêm da adoração ao verdadeiro Deus – que é a base de uma verdadeira república, assim, demonstrando que Roma nunca teria sido uma verdadeira república. III – CRISTO E A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE JUSTA Baseando-se nas cartas paulinas, Agostinho compreende a união de Cristo com seus seguidores, onde ele é a Cabeça e nós somos o seu corpo. É através da Palavra encarnada – o próprio Cristo – onde Deus faz a mediação da justiça. Para adorar o verdadeiro Deus, no ato da encarnação, os homens devem abandonar a pretensão de que alcançam a virtude por si mesmos. É através da humilhação da encarnação, que aos seres humanos é dada a capacidade de alcançarem a justiça verdadeira, ao humilharem-se a si mesmos. Ao mesmo tempo, essa compreensão é que dá condições aos homens de se esforçarem contra a ignorância e a fraqueza moral, fruto do pecado original, sobre a alma. É pela ajuda da graça de Cristo que somos instruídos e fortalecidos nesta fé. A partir disso, somos capazes de progredir na busca da verdadeira virtude. Assim, conscientes de que é pela morte de Cristo que lhes é assegurada o perdão dos pecados, a partir da confissão destes, a salvação lhes é garantida, pelos méritos de Cristo. A comunicação entre Cristo e seus seguidores, ou seja, entre a Cabeça e os membros do corpo é o que simboliza a “justificação”28 para Agostinho. 26 Ibid. p.50 27 Ibid. p.51 28 Ibid. p.131 Essa capacidade de Cristo justificar como único mediador retorna como tema de suma importância no livro 4, capítulo 1729, na obra “De civitate Dei”, aonde Agostinho apresenta a nação hebraica, de Abraão a Cristo, como uma “quase república”30 que prefigura a cidade de Deus, cujo Cristo é fundador e rei. Ao contrário da visão de Cicero de que a fonte da virtude é a razão, é a partir desse diálogo que Agostinho vê em Cristo este mediador que é a fonte da virtude é produto da direta mediação divina. “Ao reconhecer que a virtude perfeita é prerrogativa de Cristo, e ao sublinhar a confissão dos pecados e ação de graças pelo perdão recebido, o corpo de Cristo, que é a Igreja, pode confiantemente adquirir uma justiça limitada durante sua peregrinação pela cidade terrena”. (Dodaro, 2014, p.136) Eis que vem a pergunta: “Quão confiantemente Agostinho supõe que os cristãos possam racionalmente conhecer os requisitos práticos da vida justa?”31. Nessa questão temosque levar em consideração de que se Cristo é o homem cuja virtude é perfeita o qual jamais poderemos nos igualar nesta vida, podemos estar sempre confiantes de que nossa compreensão da vida moral é correta? ”32. Pois, se cada um de nossos julgamentos morais é condicionado pela ignorância e fraqueza, deveríamos sempre nos sentir justificados quando agimos? Para isso é preciso compreender que papel as escrituras, como palavra de Deus, desempenham na revelação dos requisitos de uma vida justa e no oferecimento de exemplos de conduta justa capazes de inspirar os crentes?33 IV – ELOQUÊNCIA DIVINA E VIRTUDE NAS ESCRITURAS Analisando a visão de Agostinho a partir das escrituras, Dodaro apresenta o que as escrituras propõem para que alcancemos a sociedade justa, já que para os cristãos nossos passos estão pautados no que a palavra de Deus nos tem a dizer. Agostinho remete-se diretamente aos ensinamentos que a palavra de Deus tem a nos dizer quanto a virtude nos homens. Aqui encontramos que a virtude está relacionada aos atos morais. As escrituras 29 Ibid. p.131 30 Ibid. p.131 – Quaedam res publica 31 Ibid. p.136 32 Ibid. p.136 33 Ibid. p.136 citam alguns exemplos como o suicídio como ato imoral e age contra os princípios cristãos. Mas ele apresenta também que nem todo homicida é assassino porque não temos condições de julgar quão grande é sua fé, tomando como exemplo a obediência de Abraão quanto ao sacrifício de Isaac34. É claro que para ter essa compreensão é preciso ir além de uma “exegese escriturística que combine a resistência ao engodo de qualquer interpretação literal, restritiva, de preceitos ou exemplos individuais e respeito a certo entendimento intuitivo da justiça”35. Para Agostinho há relação entre as escrituras como discurso divino e o papel da oratória política na sociedade romana. Há comunicação divina. Essa comunicação se dá em primeiro na alma, e a partir dela se torna “essencial para o entendimento verdadeiro das virtudes”36. Deus é o orador a falar em toda a escritura. Ele é o autor, não somente no conteúdo, mas de todas as estratégias retóricas empreendidas. Assim, discorrendo por todas as escrituras, Agostinho, ponto-a-ponto, apresenta as questões mais eminentes da virtude cívica vivida e ensinada, tanto pelos santos quanto pelo próprio Cristo, desde de Abraão, passando por todo o Antigo Testamento e culminando nos dias da paixão, abordando tanto as virtudes, quanto as questões morais envolvidas, com o único intuito de treinar o coração na vivência das virtudes, na proximidade a Cristo, canal de graça e fonte da verdadeira justiça. V - RAZÕES OCULTAS DA SABEDORIA Este capítulo inicia-se abordando as diferenças entre Agostinho e Pelágio, quanto à natureza humana. Agostinho redefine “o papel da graça em mediar o conhecimento da justiça e o amor a essa alma”37. Rebatendo Pelágio e seus seguidores, Agostinho diz que toda atividade intelectual que objetive a compreensão da virtude depende da união de Cristo com a alma. Este diálogo acontece entre a cabeça (Cristo) e 34 Ibid. p.164 35 Ibid. p.186 36 Ibid. p. 163 37 Ibid. p.201 seu corpo (Igreja). Aqui é apresentado também o conceito de unidade em Agostinho: “em uma pessoa”38 aonde se explica a união das naturezas de Cristo, divina e humana. Neste capítulo o autor aborda como Agostinho se serve desta imagem complexa para explicar a relação que assume entre dois conjuntos de categorias exegéticas: exemplos e sacramentos, conhecimento e sabedoria. No livro 11 de sua obra, Agostinho refere-se a dois termos distintos: “homem interior e homem exterior”. “No homem exterior está a atividade intelectual pertencentes às ações intelectuais ditas “inferiores” como a percepção sensorial e as funções básicas de memória e imaginação, compartilhadas pelos seres humanos com os animais”.39 “O homem interior representa as capacidades “superiores” da razão e o potencial para a iluminação divina, pertencentes exclusivamente à mente (mens) ”40. Entendamos que para Agostinhos estes dois homens não se referem a dois homens distintos. Não há separação ou distinção. Deus criou o homem como unidade, embora sua imagem resida no homem interior. Agostinho afirma que para o desenvolvimento desse homem interior é necessário escutar a palavra divina pregada, como afirma Paulo, em sua carta ao romano, capitulo 10, versículo 17, de que “a fé vem do ouvir a pregação” 41. É através dos sacramentos que se há uma renovação espiritual da alma. Os sacramentos e mistérios não são apenas símbolos, mas uma graça no processo espiritual que leva a alma a superar a ignorância e a fraqueza, enquanto busca compreender as verdades eternas. A compreensão destas verdades, o conhecimento de Deus só é possível tanto quanto for o seu amor à Deus. Quanto maior amor, maior o seu conhecimento e sua compreensão. 38 Ibid. p.201 39 Ibid. p.202 40 Ibid. p.202 41 Ibid. p.203 A justiça verdadeira para Agostinho só nasce na compaixão, como a de Cristo para com a mulher adúltera. É através da compaixão que se alcançará o conhecimento da justiça verdadeira. VI – ELOQUÊNCIA E VIRTUDE NO ESTADISTA DE AGOSTINHO Ao Agostinho analisar o estadista de Cícero, neste capítulo, Dodaro debruça-se em analisar o que seria o estadista e suas qualidades e características a partir da visão de Agostinho. Em cartas trocadas com os oficiais públicos, Agostinho refere-se aos estadistas romanos e a questão da virtude dos “melhores cidadãos (optimi viri)” romanos, nas quais ele não endossa o ideal de estadista de Cícero, já que o mesmo necessita ser glorificado e ou de que seu exemplo seja importante para manter a república, através de seu exemplo de virtude. Os governantes cristãos possuem em Cristo o modelo ideal de virtude cívica e de eloquência, mesmo que não seja possível aos governantes imitá-lo em plenitude, já que a fonte de sua virtude está na união de suas naturezas e que só a ele é possível. Diante disso, Agostinho apresenta os exemplos dos santos que devido a sua luta constante contra o pecado, tornam-se exemplos de virtude cívica. Aqui Agostinho apresenta que os santos são os verdadeiros modelos de virtude cívica e que suas confissões de pecado os tornam o mais autêntico e virtuoso discurso político, e que difere daquele presente em sua época, seja pagão ou cristão. E juntamente com esta análise, se faz presente neste capítulo a crítica que Agostinho faz em sua obra à concepção pelagiana quanto a natureza humana e a graça, diferente do ideal heroico romano. Essa sua crítica à glória humana como motivação política confronta diretamente contra os conceitos pelagianos42: 1) Os seres humanos podem ser sem pecado; 2) Podem agir virtuosamente sem a graça; 3) A virtude pode ser perfeita nesta vida; e por fim, 4) A de que o medo da morte pode ser completamente superado. Quanto a isso, Agostinho diz: “...que os cristãos que creditam a si mesmos a própria virtude e que acreditam que essa possa ser perfeita nesta vida não praticam a virtude verdadeira, mesmo se suas ações parecem virtuosas”. (Dodaro, 2014, p.249, apud De testamenti novi). 42 Ibid. p.249 Retomando as escrituras ele afirma que além de Cristo, não consta nas mesmas, existência alguma de homem livre totalmente do pecado e que os cristãos apenas avançam na virtude de forma gradativa nesta vida e que só se completaapós a morte. Então, encontramos aqui uma verdadeira oposição de Agostinho a qualquer mérito humano por suas ações virtuosas. A virtude é uma dádiva, um presente de Deus para a alma que o busca constantemente e não fruto do desejo humano, de sua própria natureza. Em sua reflexão ele apresenta a penitência pública de Teodósio, como aparece nos capítulos 19-20, De civitate Dei, aonde ele se utiliza destes termos como objeto de discussão acerca do imperador, para o qual faz os seguintes apontamentos:43 1) Tanto Teodósio quanto o imperator Felix não são inflamados de orgulho, mas lembram que são somente homens; 2) Usam seu poder (potestas) para estender o louvor ao Deus verdadeiro por todos os seus domínios; 3) São vagarosos em punir e prontos a perdoar, usando de vingança somente para proteger a república; 4) Perdoam não por desejo de ver o mal impune, mas em vista de reformar o criminoso; 5) Combinam severidade com misericórdia e generosidade; 6) Praticam a moderação; 7) Oferecem humildade, compaixão e oração (humilitas, miseratio, oratio) a Deus como sacrifício por seus pecados e antídoto contra o ardor gloriae. Assim, em contraposição aos argumentos de Agostinho, Nectário confronta-o colocando em cheque a justiça com a qual os cristãos são tratados diferente dos pagãos, visto que ao cristão, as penas civis são substituídas pelas penas eclesiásticas. Entretanto, para Agostinho, os longos períodos de penitência sob responsabilidade da Igreja são para os cristãos, um meio de força-los a refletir sobre tuas atitudes e comportamentos, arrependendo-se desses e alcançando a mudança de vida, o que o proposto por Nectário não alcançaria tal resultado. A verdadeira piedade para Agostinho só existe na Igreja Católica, porque somente ela oferece aos crentes os meios para alcançar a reconciliação com Deus e com os outros. Isso se realiza na pessoa de Cristo, que é o único mediador entre os homens e a sua graça salvífica. Quanto mais imitadores de Cristo, acerca de suas virtudes cívicas, a república experimentaria maior crescimento e segurança que as alcançadas pelos líderes ideais anteriores, como Rômulo, Numa e Bruto. 43 Ibid. p.255
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