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CENTRO INTEGRADO DE APRENDIZAGEM EM REDE UFG UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS 9 788580 830125 ISBN 978-85-8083-012-5 Licenciatura em educação física Governo federal república federativa do Brasil ministério da educação coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de nível superior universidade federal de Goiás Licenciatura em educação física Goiânia, 2011 CENTRO INTEGRADO DE APRENDIZAGEM EM REDE R EITORIA Edward Madureira Brasil PRÓ-R EITORIA DE GRADUAÇÃO Sandramara Matias Chaves DIR ETOR DA fAcUlDADE DE EDUcAÇÃO físIcA Marcus Fraga Vieira cOORDENAÇÃO GERAl DO cURsO DE lIcENcIAT URA PlENA EM EDUcAÇÃO físIcA/EAD Profª. Ms. Marília de Goyaz DIR ETORIA DO cENTRO INTEGRADO DE APR ENDIZAGEM EM R EDE (cIAR) Leonardo Barra Santana de Souza Nilson Mendes Borges cOORDENAÇÃO DE cOMUNIcAÇÃO IMPR EssA Ana Bandeira R EVIsÃO PEDAGÓGIcA Profª Drª Mara Medeiros R EVIsÃO lINGUIsTIcA Raquel Mourão DEsIGN GR ÁfIcO - PROjETO EDITORIAl Cleomar de Souza Rocha Yannick Aimé Ferreira Taillebois EDITORAÇÃO Marília Toledo Dados Internacionais de catalogação-na-Publicação (cIP) (GPT/Bc/UfG) Goyaz, Marília de. G724l Licenciatura em educação física/ Marília de Goyaz. - Goiânia: FUNAPE: UFG/ Ciar, 2011 v.1. 260 p. Bibliografia. ISBN: 978-85-8083-012-5 1. Educação Física - Licenciatura. 2. Educação Física - Educação à distância. 1. Título. II.Universidade Federal de Goiás. III. Universidade Aberta do Brasil. CDU: 37.015.3:796 sumÁrio 1. fundamentos fiLosóficos e sócio- históricos da educação Ementa ......................................................................................................................... Apresentação .............................................................................................................. 1. Educação, uma Prática Social, Cultural e Histórica ........................................ 2. Educação ou Educações? ..................................................................................... 3. Estado, Sociedade e Educação no Brasil ........................................................... 4. Qual Nação? Quais Escolas? ............................................................................... Referências .................................................................................................................. Links ............................................................................................................................. Texto Complementar 1 - Marx e a Sociologia da Educação ............................. Texto Complementar 2 - Os Significados da Educação, Modalidade de Prática Educativa e a Organização do Sistema Educacional ............................. Texto Complementar 3 - A Escola como Criação do Imaginário: Uma ‘História Sem Fim’ ........................................................................................... 2. Pesquisa como PrincíPio educativo e de formação docente Ementa ......................................................................................................................... Apresentação .............................................................................................................. 1. A Pesquisa e a Formação da Docência .............................................................. 2. Currículo de Formação, Mediado pela Pesquisa ............................................. 2.1 O Currículo como Campo de Conflitos? ............................................................. 2.2 Qual a Tarefa do Professor-Pesquisador? ............................................................. 2.3 Uma Formação de Professores de Educação Física como Práxis? ................... Referências .................................................................................................................. 3. anatomia funcionaL do movimento Apresentação .............................................................................................................. 1. Introdução ao Estudo da Anatomia ........................................................................ 1.1 Definições e Conceitos ............................................................................................. 1.2 Termos de Posição e Direção .................................................................................. 1.2.1 Posição Anatômica ................................................................................................. 9 9 11 13 24 27 46 47 48 59 83 91 91 91 95 97 98 101 109 111 112 112 113 113 1.2.2 Planos de Delimitação ........................................................................................... 1.2.3 Planos de Secção ..................................................................................................... 1.2.4 Eixos de Orientação ............................................................................................... 1.2.5 Termos de Posição ................................................................................................. 1.3 Conceito de Variação Anatômica: Normal, Anomalia e Monstruosidade ..... 1.4 Anatomia Sistêmica e Segmentar ........................................................................... Resumo ............................................................................................................................... 2. Sistema Esquelético: Ossos ................................................................................. 2.1 Sistema Esquelético: Conceito ............................................................................... 2.2 Ossos ............................................................................................................................ 2.2.1 Conceito e Função ................................................................................................. 2.2.2 Tipos de Esqueleto ................................................................................................. 2.2.3 Divisão do Esqueleto ............................................................................................. 2.2.4 Tipos de Ossos ........................................................................................................ 2.2.5 Seção Longitudinal de um Osso Longo ............................................................. 2.2.6 Classificação dos Ossos ......................................................................................... 2.2.7 Acidentes Ósseos .................................................................................................... 2.2.8 Ossos do Crânio ..................................................................................................... 2.2.9 A Coluna Vertebral ................................................................................................. 2.2.10 O Membro Inferior .............................................................................................. 2.2.11 O Membro Superior ............................................................................................ Resumo ............................................................................................................................... 3. Sistema Esquelético: Articulações ..................................................................... 3.1 Conceito e Função ..................................................................................................... 3.2 Classificação das Articulações ................................................................................. 3.2.1 Articulações Fibrosas ............................................................................................. 3.2.2 Articulações Cartilaginosas .................................................................................. 3.2.3 Articulações Sinoviais ............................................................................................3.3 Movimentos das Articulações ................................................................................. 3.3.1 Movimentos Deslizantes ....................................................................................... 3.3.2 Movimentos Angulares ......................................................................................... 3.3.3 Movimentos de Rotação ....................................................................................... 3.4 Articulações do Crânio ............................................................................................. 3.5 Articulações da Coluna Vertebral ........................................................................... 3.6 Articulações do Membro Inferior .......................................................................... 3.7 Articulações do Membro Superior ......................................................................... Resumo ............................................................................................................................... 4. Filogênese do Movimento ................................................................................... 4.1 Dos Invertebrados aos Vertebrados ....................................................................... 4.2 Paleontologia Funcional ........................................................................................... 114 115 116 117 119 119 120 121 121 122 122 124 126 127 128 129 131 131 132 133 133 134 134 135 136 136 138 140 144 145 145 147 147 148 148 148 149 149 150 153 Resumo ............................................................................................................................... 5. Sistema Muscular .................................................................................................. 5.1 Músculos: Conceito e Funções ............................................................................... 5.2 Variedade de Músculos ............................................................................................. 5.3 Componentes Anatômicos dos Músculos Estriados Esqueléticos .................. 5.4 Fáscia Muscular .......................................................................................................... 5.5 Origem e Inserção ...................................................................................................... 5.6 Classificação dos Músculos ...................................................................................... 5.7 Classificação Funcional dos Músculos .................................................................. 5.8 Músculos da Cabeça .................................................................................................. 5.9 Músculos da Coluna Vertebral, do Tórax e do Abdômen ................................. 5.10 Músculos do Membro Inferior ............................................................................. 5.11 Músculos do Membro Superior ........................................................................... Resumo ............................................................................................................................... 6. Alavancas Musculares ........................................................................................... 6.1 Conceito de Máquina Simples ................................................................................ 6.2 Definição de Alavancas ............................................................................................. 6.3 Classificação das Alavancas ...................................................................................... 6.4 Alavancas Musculares ............................................................................................... Resumo ............................................................................................................................... 4. Pesquisa e ensino de GinÁstica escoLar Ementa ......................................................................................................................... Apresentação .............................................................................................................. 1. Ginástica Escolar: Situando o Campo de Intervenção .................................. 2. Contextualizando os Objetivos do Ensino da Ginástica Escolar ................. 3. Os Conteúdos da Ginástica Escolar .................................................................. 3.1. Elementos Constitutivos Básicos da Ginástica, Vinculados às Habilidades Básicas do Ser Humano ................................................................................................... 3.2. Elementos Corporais ou Fundamentos Ginásticos ........................................... 3.3. Combinação entre os Elementos Corporais da Ginástica ................................ 3.4. Elementos das Ginásticas Artística ou Olímpica, Rítmica, Acrobática e Aeróbica ...................................................................................................... 3.5 Os modelos Esportivos de Ginástica ..................................................................... 3.5.1 Ginástica Olímpica/ Artística .............................................................................. 3.5.1.1 Provas Oficiais Masculinas ................................................................................ 3.5.1.2 Provas Oficiais Femininas ................................................................................. 3.5.1.3 Equipamentos Básicos ....................................................................................... 3.5.1.4 Vestimenta Feminina .......................................................................................... 157 157 158 159 159 160 160 161 168 168 169 169 170 170 170 171 172 172 174 177 179 179 181 186 189 193 193 197 197 198 199 200 203 204 204 3.5.1.5 Vestimenta Masculina ........................................................................................ 3.5.1.6 Posturas Básicas ................................................................................................... 3.5.1.7 Eixos do Corpo .................................................................................................... 3.5.1.8 Fundamentos da Ginástica de Solo ................................................................. 3.5.2 Ginástica Rítmica ................................................................................................... 3.5.2.1 Características e Possibilidades de Manuseio dos Aparelhos .................... 3.5.2.2 Algumas Possibilidades de Movimento com Aparelhos ............................. 3.5.3 Ginástica Aeróbica Esportiva ............................................................................... 3.5.3.1 Aspectos Exigidos Numa Apresentação Coreográfica de Ginástica Aeróbica de Competição ................................................................................................ 3.5.4 Ginástica Acrobática .............................................................................................. 3.5.4.1 Categorias ............................................................................................................. 3.5.4.2 Composição dos Pares e Grupos (CBG) ....................................................... 3.5.5 Trampolim Acrobático .......................................................................................... 3.5.6 Ginástica Geral/ Ginástica para Todos .............................................................. 3.5.6.1 Aspectos a Serem Observados na Composição Coreográfica da Ginástica Geral ............................................................................................................ 4. Uma Proposta Metodológica para o Ensino da Ginástica Escolar .............. 5. A Avaliação na Ginástica ......................................................................................Referências .................................................................................................................. 204 205 205 206 221 224 239 241 243 244 245 245 247 249 250 251 255 259 Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 9 1 Fundamentos FilosóFicos e sócio-históricos da educação Rubia-Mar Nunes Pinto Cristina Borges de Oliveira ementa A educação como processo social. A educação brasileira na experi- ência do Ocidente. A ideologia liberal e os princípios da educação pública estatal. Sociedade, cultura e educação no Brasil. Os movimentos sociais e a luta pelo ensino público no Brasil. A relação entre as esferas pública e priva- da no campo da educação e os movimentos de educação popular. apresentação Caríssimo aluno(a) do curso de Educação Física Seja bem-vindo à disciplina Fundamentos Filosóficos e Sócio-histó- ricos da Educação. Nesta disciplina, desejamos construir uma relação aberta e dialógica em torno do conhecimento. O mediador dessa relação é este ma- terial. Na sua produção, foram realizadas pesquisas sobre o campo da edu- cação, e, portanto, as informações, discussões, reflexões e os questionamen- tos nele contidos são sustentados por fundamentação teórica consistente e atualizada. Esperamos que o material e a disciplina lhe proporcione condi- ções para a aprendizagem de alguns conceitos e noções relacionadas à edu- cação e que são importantes na proposta formativa no curso de Educação Física da FEF/UFG. Embora este material vise primordialmente contribuir com a sua formação acadêmica e profissional, ampliando conhecimentos e ensejando provocações, ele também convida você a renovar e fortalecer o ‘encantamento’ pela educação. Vamos lá? 10 Licenciatura em Educação Física Depois de cursar esta disciplina, você deverá ser capaz de: • Compreender o caráter sociocultural, histórico e político da educa- ção e da escola, em particular, na sociedade brasileira; • Conhecer alguns aspectos do processo histórico da consolidação da escola no Ocidente, com destaque para a criação do sistema escolar público no Brasil; • Refletir acerca das relações entre a educação e a cultura brasileira, enfatizando as lutas pela democratização da escola e pela construção de uma educação pública, laica e de qualidade social. Ao estudar este material, tenha em mente algumas questões. Reflita sobre elas, comparando continuamente suas respostas com a abordagem te- órica oferecida pelos textos. • O que você entende por educação? O que é educar? • Qual a função da educação? • Como a sociedade ‘participa’ da educação? Como a educação ‘pro- duz’ a sociedade e os indivíduos? • Só a escola e os seus professores educam? Em que espaços e tempos ocorrem práticas educativas? Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 11 1. educação, uma PrÁtica social, cultural e histórica Educação é um tema muito atual e muito presente na vida de cada um de nós. Todos nós temos explicações e entendimentos sobre a educação e qualquer pessoa pode falar sobre ela, porque todos passaram e passam por processos educativos, todos ensinam e aprendem. A educação é parte essen- cial da vida de cada um. Mas aqueles diretamente envolvidos com práticas educativas precisam ir além das compreensões que se originam da experiên- cia pessoal e social. Devem pensar a educação a partir da teoria. A teoria, é bom lembrar, não nega as percepções e explicações sobre a educação que os sujeitos retiram da experiência pessoal e social; ela permite a sua ampliação e aprofundamento, questiona verdades estabelecidas e favorece a compre- ensão de aspectos menos visíveis nas práticas educativas, por exemplo, o as- pecto ideológico da educação. Mas como podemos conceituar a educação? O que é educação? A educação é prática social e histórica complexa e multifacetada, constituída de numerosos processos educativos formais, não formais e informais, intencionais ou não, diversificados e difusos entre classes e grupos sociais, como a educação na família, no trabalho, na igreja, no sin- dicato, no lazer, na escola, dentre outros. Isto quer dizer que existe uma grande variedade de formas de educação e processos de sociabilização e, ainda, que a educação ocorre em múltiplos espaços e tempos, sob a ação de distintos sujeitos. De uma perspectiva crítica, o entendimento do que é a educação passa pelo entendimento do ser humano como ser capaz de produzir a si mesmo, ao mesmo tempo em que produz a sociedade (SAVIANI, 1997). Mesmo as sociedades mais simples criaram práticas educativas e as colocaram em ação para transmitir/ensinar às crianças e aos mais jovens os conhecimentos acumulados, a língua, as normas e os valores, os costu- mes, as maneiras de fazer e as histórias que compõem a história do grupo. A transmissão, pela educação, desse conjunto de elementos é fundamental para a continuidade das sociedades e para que os indivíduos possam se re- conhecer como parte delas. Nestas sociedades, a aprendizagem dos saberes não ocorre em aulas ou salas de aula, e sim no cotidiano das relações sociais. Nas sociedades em que não existem escolas, 12 Licenciatura em Educação Física [...] os que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam, demons- tram, corrigem, punem ou premiam. Os que não sabem espiam, na vida que há no cotidiano, o saber que ali existe, veem fazer e imitam, são instruídos com o exemplo, incentivados, treinados, corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos poucos aceitos en- tre os que sabem fazer e ensinar, com o próprio exercício vivo do fazer. Esparramadas pelos cantos do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e entre pessoas e a natureza – situações sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura do grupo – têm, em menor ou maior escala, a sua dimensão pedagógica. Ali, todos os que convivem aprendem da sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o saber que torna to- dos e cada um pessoalmente aptos e socialmente reconhecidos e legitimados para a convivência social, o trabalho, as artes da guerra e os ofícios do amor. (BRANDÃO, 1981, p. 31) Por ser profundamente relacionada à sociedade no qual é instituída e ao modos de pensar, sentir e agir ali vigentes, a educação se caracteriza como prática social e cultural. Também por isso, é histórica, já que não exis- te uma única forma válida e universal de educar as novas gerações, e as prá- ticas educativas são dinâmicas, se transformando continuamente conforme se modificam as esferas sociais, econômicas, políticas e culturais das socie- dades humanas. O caráter social, cultural e histórico da educação impede que pense- mos as práticas educativas como um fenômeno abstrato, desvinculado de outras atividades sociais, como as práticas produtivas, artísticas, jurídicas, dentre outras. Também não podemos entender a educação de forma des- vinculada dos grandes condicionantes econômicos, políticos, sociais e cul- turais que causam impactos sobre a vida social: o sistema produtivo, o Esta- do e as políticas públicas, a luta de classes, os movimentos organizados da sociedade civil, as relações de gênero, etnia, geração e idade, dentre os mais significativos. A educação deve ser, então, compreendida como prática so- cial profundamente relacionada a outras práticas e a outros condicionantes, dos quais recebe influências e sobre os quais igualmente deixa suas marcas. Existe, neste ponto de vista, uma relação dialética (de mão dupla, diríamos) entre a educação e a sociedade na qual ela se insere. Também por ser histórica e social, a educação não se constitui como atividade cujo fim é levar cada indivíduo ao mais alto grau de perfeição pos- sível, conforme a conceberam alguns pensadores, como Immanuel Kant, Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação13 Mill, Herbart e Spencer. A educação não é, portanto, um fenômeno emi- nentemente individual: embora se realize no ser humano individualmen- te, objetivando desenvolver-lhe as potencialidades, as práticas educativas visam à formação para os dilemas e imperativos da vida coletiva, na qual o indivíduo assume funções e posições sociais específicas e condicionadas, em parte, também por sua educação. A finalidade maior da educação é, por- tanto, o coletivo, e não o individual. Outro entendimento que se depreende do caráter sócio-histórico das práticas educativas é que elas não são frutos de decisões ou desejos in- dividuais daqueles que educam. Ao contrário, tais práticas são poderosa- mente determinadas pelas necessidades, exigências e interesses oriundos da estrutura social que fornecem aos educadores os conteúdos, os modelos, as fórmulas, os padrões, os valores, as regras e normas que pautam sua ação educativa. Quem educa o faz, portanto, condicionado por tais necessidades e interesses (que se transformam na história) e, mesmo sem ter consciência disso, tem em vista certas concepções de homem e de sociedade condizen- tes com reclames sociais específicos de cada contexto histórico e social. A educação se mostra, assim, como fenômeno vasto e complexo, ine- rente às sociedades humanas em sua existência histórica. “Ninguém escapa da educação”, lembra Brandão (1981, p. 07). Se é verdadeiro que mesmo nas sociedades mais simples existem práticas educativas, é também verdadeiro que nas sociedades modernas as práticas de educação vêm se expandindo mais do que em qualquer outro período da história. Em outras palavras, nunca se falou tanto em educação e de sua importância para a formação humana, nem jamais existiram tantos espaços, sujeitos e tempos dedicados à educação como nos tempos em que vivemos. O que quer dizer essa expan- são? Como entender a proliferação das práticas de educação? 2. educação ou educações? Nos últimos séculos, tem-se assistido a um notável crescimento dos contextos e intenções educacionais e ao aparecimento de uma enorme varie- dade de práticas de educação. Esse crescimento pode ser relacionado à com- plexificação da vida social, que fez emergir necessidades e exigências sociais relacionadas à expansão (e crise) do capitalismo, à urbanização, ao desenvol- vimento científico e tecnológico, à destruição ambiental, etc. A emergência de movimentos sociais organizados de trabalhadores, mulheres, negros, de- 14 Licenciatura em Educação Física ficientes, homossexuais, entre outros, é também elemento que vem exigindo e promovendo a ampliação dos contextos e das oportunidades educacionais. Uma expressão emblemática da atual importância da educação é o termo pedagógico, que, quase sempre, é usado com o mesmo sentido da pa- lavra educativo. É muito comum, em nossos dias, ouvirmos que algo é peda- gógico ou educativo. O ambiente doméstico, as políticas públicas, o trabalho, o cinema e a televisão, os jogos e as brincadeiras, as ações promovidas pe- los movimentos sociais, os cultos e eventos religiosos, as cidades, as blitzes policiais, as campanhas políticas e as eleições, a alimentação, dentre outras práticas sociais, são anunciadas como pedagógicas. Mesmo acontecimentos que não foram pensados e realizados originalmente com intencionalidade educativa podem exercer profícuas funções pedagógicas. Goiânia, cidade-educadora A construção de uma cidade pode adquirir função educativa, embora esta não seja a sua finalidade primordial. Tomemos o caso da construção, na dé- cada de 1930, da cidade de Goiânia, cidade-capital de Goiás, a partir de seu potencial de educação. No processo de edificação de ruas, praças, residên- cias e prédios públicos, por exemplo, foi destacado o valor das obras para a educação dos trabalhadores goianos e de suas famílias. Educar o goiano, retirando-o da ignorância, polindo suas maneiras, substituindo antigos cos- tumes (jecas, atrasados, sertanejos) por novas práticas (civilizadas, urbanas, modernas) era considerado algo essencial para que o estado de Goiás alcan- çasse o nível de progresso e civilização já experimentado por outras regiões brasileiras. Conforme afirmou, em 1936, o deputado Oscar Campos Júnior, então diretor-geral da Fazenda do governo do estado de Goiás, as edificações (prédios públicos e residenciais) da nova capital adquiriram [...] uma função altamente educativa. Elas repre- sentam os marcos de um avanço [...], e portanto, devem ser colocadas no ponto mais próximo pos- sível dos fins colimados: a sincronização de nos- so progresso com o dos centros mais avançados do Brasil; e assim, impressionar bem o espírito de nossa gente para fazê-las sentir com a evidên- cia dos factos o quanto nós estamos atrazados Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 15 Qual o significado desse anunciado caráter pedagógico de práticas tão díspares quanto o trabalho de policiais fiscalizando o trânsito, uma pas- seata de professores em greve, a construção de uma cidade-capital, uma par- tida de futebol, um professor ensinando ginástica para um grupo de crianças ou jovens em uma escola (pública ou privada)? Quais os objetivos e fins atrelados ao pedagógico? O que é o pedagógico? O pedagógico da escola é o mesmo pedagógico que existe nos espaços e tempos não escolares? Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que tudo que é pedagógico carrega a possibilidade de promover mudanças nos indivíduos e nas insti- tuições. Por meio da educação, os indivíduos podem desencadear transfor- mações nos seus modos de pensar, sentir e agir. A aposta do pedagógico é, pois, a de promover uma transformação nos indivíduos – em seus compor- tamentos, pensamentos, emoções e sentimentos – que, em grande escala, possa produzir impactos sobre a vida social. O pressuposto filosófico que confere significado ao caráter pedagógico das práticas sociais é, portanto, o de uma transformação nos indivíduos e, por meio deles, transformações na vida coletiva. Conforme afirma Tambara (2005, p. 14), referindo-se ao pen- samento de Karl Marx, “[...] os indivíduos transformados serão os que, em longo prazo, induzirão o processo de transformação nas estruturas sociais [...]”. (Veja o texto complementar 1) É preciso lembrar, entretanto, que embora a transformação individu- al e social seja inerente ao pedagógico, não existe consenso acerca das trans- formações necessárias ou desejadas ou de até onde devem ir as transfor- mações nos indivíduos e na sociedade. A educação se torna, por isso, uma arena de lutas, um campo de conflito entre sujeitos e grupos que possuem perspectivas distintas e, muitas vezes, antagônicas. Mas não podemos nos esquecer de que o sentido pedagógico de muitas práticas sociais não é o mesmo que o pedagógico das escolas, salas de aula, etc. em relação àqueles centros, e com argumento insofismável das cousas feitas, convencê-los que este avanço que se tenta é realizável. Esta função profundamente psicológica, profundamente edu- cativa, que estas obras necessariamente têm que cumprir, tem sido motivo de nosso zelo em dar- lhes um acabamento o quanto possível perfeito. 16 Licenciatura em Educação Física Existem diferenças significativas entre o pedagógico escolar e o não escolar, o que expressa o que é específico de distintas modalidades educacionais. José Carlos Libâneo (1992) identifica, na contemporaneidade, três modalidades de educação: formal, não formal e informal ou paralela. Para o autor, o que permite distingui-las é o grau de intencionalidade, estruturação, organização e sistematização contido em cada modalidade. Assim temos: • A educação formal “[...] seria, pois, aquela estruturada, organizada, planejada intencionalmente, sistemática”, como é o caso da educação escolar. Práticas educativasformais incluem também a educação de adultos, a educação sindical e a educação profissional. • A educação não formal abrange “[...] atividades com caráter de intencionalidade, porém com baixo grau de estruturação e siste- matização, implicando certamente, relações pedagógicas, mas não formalizadas”. O trabalho comunitário, as associações de bairro, os meios de comunicação social, as práticas de animação sociocultural, as ações dos movimentos sociais organizados na cidade e no campo e ainda as atividades extra-escolares (cursos de esportes, línguas, in- formática, culinária, colônias de férias, etc.) são esferas de educação não formal. • E, por fim, a educação informal, como processo formativo difu- so e não intencional deslocado de qualquer quadro institucional, pressupõe o sujeito envolvido por seu contexto sociocultural e his- tórico, afetado por práticas, discursos, objetos e pessoas, produtor de si mesmo, indivíduo que se constrói nas relações que estabelece com mundo, um ser capaz de refletir e aprender sobre/com a ex- periência vivida por si mesmo e pelos outros. A educação informal ocorre nas atividades de trabalho, no cotidiano da vida familiar e religiosa, na participação em celebrações coletivas, nos “ofícios do amor” (BRANDÃO, 1981, p. 31), nas relações do dia a dia (apa- rentemente saturadas de mesmice), no manejo de tecnologias, na produção e fruição artística e em todas as relações que o indivíduo mantém com os outros, com a natureza e com os objetos. (Veja o texto complementar 2) Entre as modalidades de educação, a escolar é, sem dúvida, a que carrega maior carga de intencionalidade e organização. O altíssimo grau de formalização dessa modalidade de educação expressa as expectativas, proje- Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 17 ções e intencionalidades presentes no ato educativo de sociedades bastante complexas. Isso quer dizer que a sociedade atribui uma grande responsabili- dade à educação escolar, investe econômico e afetivamente na manutenção das escolas como ‘lugar de criança’ e espera, em contrapartida, que a escola forme indivíduos aptos e preparados para a vida social. A importância da educação escolar para o exercício da cidadania fez com que ela se tornasse um direito de todos e um dever do Estado. Ao Estado compete criar, manter e gerir os sistemas ou as redes públicas de educação, conceder autorização para o funcionamento de sistemas/redes educacionais privados, bem como fiscalizá-los. A educação escolar pública, laica e gratuita é, por sinal, um direito de todas as crianças brasileiras desde o nascimento. O que confere formalização e garante a coesão organizacional da edu- cação escolar é, portanto, a sua vinculação à esfera pública, ao Estado. O Es- tado é o agente encarregado, pela ‘sociedade civil’, da formação de professo- res, do estabelecimento de programas e currículos comuns às escolas de uma cidade, estado ou nação, do controle e registro da atividade de professores e alunos, da edificação de espaços próprios para o funcionamento escolar, da definição dos tempos escolares, interferindo também na adoção de méto- dos de ensino, aprendizagem e avaliação, e na utilização de livros didáticos, entre outros aspectos. Em outras palavras, o Estado é o agente que gerencia a educação escolar, criando e mantendo os sistemas educacionais públicos. Mas, apesar dos discursos que ressaltam a necessidade da escola, o direito à educação escolar (pública) não se concretizou plenamente e se ampliando o conhecimento Na atual legislação brasileira, o direito à educação foi ampliado, alcançando as crianças desde o nascimento. Anteriormente, o Estado estabelecia como dever apenas a educação de crianças a partir dos sete anos de idade. O nível educacional responsável pela educação de crianças de zero a seis anos é a educação infantil, que deve ser ofertada em creches (zero-3 anos) e pré- escolas (4-6 anos), as quais passam a ser incorporadas ao sistema nacional de educação. Estudiosos da infância e movimentos sociais de defesa dos direitos da criança têm considerado que essa incorporação representa um avanço da sociedade brasileira no sentido da proteção e formação das novas gerações. 18 Licenciatura em Educação Física tornou uma bandeira de luta de movimentos sociais organizados em todo o mundo, principalmente naquelas regiões consideradas subdesenvolvidas, como a América Latina, Caribe e África. Nas últimas décadas, esse direi- to tem sido reivindicado pelos movimentos sociais de grupos excluídos ou destituídos de poder, como mulheres, negros, deficientes, homossexuais, etc. A existência dessas lutas indica que, mesmo resguardado pelas políti- cas públicas, o direito de todos à educação não se concretizou plenamente na vida social moderna. Neste sentido, os movimentos e lutas sociais por educação procuram tanto garantir a existência de vagas escolares em quanti- dade suficiente para atender a todos que anseiam pela escolarização quanto buscam a construção de uma educação de qualidade social. uma tradição de lutas Pela educação Pública Os movimentos sociais são, geralmente, interpretados sob duas óticas distin- tas. De um lado, eles são vistos como uma manifestação irracional das massas e um rompimento perigoso da ordem vigente. O filósofo espanhol Ortega y Gasset é um dos representantes dessa tendência de pensamento. Para ele, a atuação de coletivos sociais tem o significado de desagregação social, promo- vida pela ausência de lideranças autoritárias que conduzam o povo (ignorante por essência) na direção certa. Regimes de força são, pois, uma solução para a dissolução das tensões sociais provocadas por esses coletivos. Numa outra interpretação, os movimentos sociais são vistos como modos de ação social que possuem a capacidade de inserir certas demandas e ne- cessidades no espectro da ação política. Ou seja, os movimentos sociais po- dem tensionar a ordem vigente e, efetivamente, desencadear mudanças e transformações significativas na sociedade. Marx, Durkheim e Weber assim pensavam. Sob qualquer ótica, contudo, os movimentos sociais demonstram a existência de tensões na sociedade, apontam para mudanças e induzem comportamentos coletivos. No Brasil, as tensões e lutas sociais, em especial pelo direito à educação pública, atravessaram nossa história. Já na gênese da construção do Estado brasileiro ocorreram lutas e protestos relacionados aos limites para a prática da cidadania impostos pela Constituição liberal promulgada em 1824 por Pedro I. Uma dessas lutas era relativa à definição do público-alvo das escolas e pelo alargamento do direito à educação, em direção à incorporação dos Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 19 índios e de negros libertos, e à revisão da educação oferecida às mulheres. O movimento de negros e mestiços, por exemplo, ganhou impulso no Período Regencial com a proliferação de jornais como O homem de cor, O brasileiro pardo, O Mulato e O Cabrito, publicações que tensionaram o campo social, denunciando a exclusão da população negra e mestiça dos direitos sociais, entre eles a educação. Posteriormente, as demandas sociais pela educação do povo foram importan- tes no movimento que instaurou a República (1889), sendo que nas décadas subsequentes a participação social organizada (em movimentos) em prol da educação popular foi intensa e significativa. Nesse sentido, a chegada em mas- sa dos imigrantes estrangeiros foi fator fundamental, na medida em que eles já conheciam formas de organização e liderança social que contribuíram para o desenvolvimento dos movimentos sociais no Brasil. Frutos das demandas das classes subalternas urbanas brasileiras e em confronto com o modelo social e político que se constituía, essesmovimentos pressionaram o Estado na ampliação do acesso à educação no início do século XX. O Manifesto dos Educadores Brasileiros por uma Educação Nova (1932), embora não seja um produto da organização das classes subalternas, pode ser citado como uma expressão das lutas populares por educação pública, gratuita, laica e de cariz científico. Nesse documento, vários intelectuais brasileiros mostra- vam a imperiosa necessidade de transformar a educação nacional, clamavam pela massificação da instrução primária e convocavam o Estado a cumprir a promessa educativa contida na ideia de República. A educação nova era requerida em um duplo sentido: pedagogicamente, confrontava o ensino li- vresco e tradicional a partir de uma renovação nos métodos de ensino, na or- ganização dos espaços e tempos escolares, na ação do professor, no material didático-pedagógico; politicamente, era também a proposta de construção de um sistema escolar pautado pela democratização do acesso e voltado para a eliminação definitiva da herança colonial na sociedade brasileira. Posteriormente, o início dos anos 1960 foi um momento ímpar de afir- mação e participação popular em torno da ampliação dos direitos sociais, com destaque para a educação. É um período importante para o apareci- mento e consolidação das perspectivas progressistas e críticas em educa- ção. Surgiram inúmeros movimentos sociais de defesa da escola pública, bem como voltados para a construção de modelos de escolarização mais condizentes com a realidade vivida pelos brasileiros pobres, portanto, con- 20 Licenciatura em Educação Física siderados capazes de instrumentá-los para a defesa de seus interesses de classe. O avanço nas formas de organização social dos despossuídos foi um dos fatores provocadores do Golpe Militar (1964) que instaurou a Ditadura Militar (1964/1978) e promoveu um retrocesso nas conquistas educacionais que então se experimentavam. A organização coletiva da sociedade civil brasileira entraria novamente em cena – e com todo vigor – a partir da segunda metade dos anos 1970, se constituindo como fiel da balança no processo que levou à abertura política, ao fim da Ditadura Militar e à recomposição da democracia. A participação social em movimentos organizados (de trabalhadores da indústria, de profes- sores, estudantes, bancários, de mulheres, de meninos e meninas de rua, etc.) foi também significativa nas discussões e aprovação da Constituição Brasileira de 1988, a chamada Constituição Cidadã. Todo um conjunto de leis direta- mente relacionadas à educação foi sendo criado com a presença e participa- ção de sujeitos sociais coletivos, o que tornou as políticas públicas brasileiras da atualidade uma referência de qualidade social no campo educacional. Nesse conjunto, destacamos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- nal (1996), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e, já nos primeiros anos do século XXI, a política de reserva de vagas por critérios de clas- se social, etnia e limitações oriundas da deficiência. A qualidade social dessa legislação, entretanto, tem sido reduzida a partir da expansão do modelo político e econômico neoliberal, desencadeado no Brasil a partir dos anos 1990. As propostas progressistas e sintonizadas com as necessidades sociais das classes subalternas são ressignificadas pela ótica neoliberal, perdendo sua força libertadora. Os ajustes que têm sido realizados nessas políticas públicas primam pela redução do papel do Estado e, consequentemente, pelo alargamento da par- ticipação da esfera privada no campo da educação, colocando em risco os avanços conquistados pelas lutas sociais. De outro lado, há toda uma série de dispositivos que desestimulam a associação organizada dos indivíduos em movimentos sociais e promovem o desmonte daqueles que já se encontram em atividade. Mesmo diante deste contexto, podem ser identificados movi- mentos sociais vigorosos e, no seu interior, propostas de educação pertinen- tes à formação da consciência cidadã, das quais a proposta de educação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra é emblemática. Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 21 De qualquer forma, a importância da educação escolar nas socieda- des ocidentais modernas tem relação íntima como o fato de a escola ser uma instituição social que foi inventada precisamente com a função de educar as novas gerações, transmitir-lhes o acervo de saberes produzidos coletiva- mente pelos seres humanos e ensinar-lhes os valores, os princípios, as regras e as normas (novas ou antigas) desejáveis para a vida em grupo. Em outras palavras, educar é a função social profícua e fundante da escola, seu grande motivo de existência. Por isso, é comum que se considere a escola como instituição centralizada na formação das novas gerações. O slogan ‘lugar de criança é na escola’ é, por sinal, representativo dessa centralidade, sinteti- zando também uma aspiração social de enorme relevância. Entretanto, dizer que a escola é instância centralizada na formação humana não significa dizer que fora dos ambientes escolares não há possibi- lidade de educar e ser educado. Como vimos, o ser humano é formado por uma enorme multiplicidade de contextos, e a escola não é o único. Mas é, sem dúvida, a que contém o mais alto grau de intencionalidade, que, por sua vez, expressa os investimentos na escola e as expectativas sociais em relação à formação das crianças e dos jovens. Também não queremos afirmar que antes do surgimento da escola, tal como a conhecemos, não houvesse educação. Apenas queremos dizer que, antes do aparecimento e da consolidação da escola como principal agência social na educação dos mais novos, prevaleciam práticas educativas difusas e pouco formalizadas (como a educação na família e no trabalho). O Estado não se responsabilizava pela formação dos mais jovens, e a educação não ocorria em um espaço e tempo separados da totalidade da vida do in- divíduo, sob a responsabilidade de alguém que foi preparado – também em outras escolas – especialmente para exercer o ofício de educar: aprendia-se uma profissão ao executá-la, quase sempre sob a orientação dos mais velhos; incorporavam-se valores e comportamentos no interior das relações com os pais, irmãos e companheiros, na paróquia, na vizinhança, evidenciando uma aprendizagem na prática. Aqui, algumas questões se fazem pertinentes: quando e por que sur- ge uma instituição como a escola, encarregada de transmitir o acervo de conhecimentos socialmente acumulado? Que fatores levam as sociedades a privilegiar essa modalidade educativa, secundarizando as aprendizagens re- alizadas no cotidiano? De acordo com Brandão (1981), a aprendizagem, ou 22 Licenciatura em Educação Física educação, na prática vai perdendo espaço para a educação formal (realizada na escola), à medida que a sociedade alcança estágios complexos de organi- zação social e cultural e defronta-se com questões relativas a tal organização, por exemplo, a divisão social do trabalho e do poder. É nesse momento que aparece, como um problema vivido e pensado pela sociedade, a questão da transmissão do conhecimento acumulado pelo grupo e surge a necessida- de de se construir dispositivos específicos que ensinem aos mais novos, de forma rigorosa e uniforme, aquilo que já está estabelecido ou que se quer transformar na vida social. Vamos explicar melhor esse ponto: a educação escolar existe em so- ciedades que experimentam uma rigorosa divisão social do trabalho entre classes sociais desiguais e nas quais o exercício social do poder foi centra- lizado pela classe dominante como um ‘Estado’. É somente em sociedades desse tipo que surge um sistema pedagógico controlado por um poder cen- tral que é externoa ele e que, quase sempre, destina-se à reprodução das de- sigualdades sociais e econômicas, mediante a oferta desigual do saber. Uma das mais notórias (mas não a única) formas de oferta desigual do saber é a estruturação de um sistema dualista de educação – escolas diferentes para ricos e pobres, saberes distintos para uns e outros – que reproduz e mantém a ordem social desigual. A existência dessa dualidade de escolas demonstra que, embora te- nha sido inventada para a formação do cidadão e de sociedades livres e igua- litárias, a educação escolar também se insere na perspectiva de educar para a reprodução e para a manutenção da desigualdade social. A escola pode, portanto, formar cidadãos ou educar súditos. Essa tensão – formação para a cidadania ou educação para a submissão – tem atravessado a história da educação nas sociedades, sendo representativa das lutas e dos conflitos que perpassam a vida social moderna. A história da educação brasileira também revela a construção e con- solidação de um sistema dual de escolas, bem como do desenvolvimento de outras variadas formas de distribuição desigual do conhecimento e, conse- quentemente, do poder. Porém, no nosso caso, os trezentos anos de colo- nização portuguesa e os duzentos anos de regime escravocrata são elemen- tos considerados estruturantes de um sistema escolar que, quase sempre, primou pela exclusão da maioria e pouco se aproximou da ideia de escola como agência de formação cidadã. Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 23 em síntese A educação é prática social difusa em múltiplos contextos e exercida sob a ação de múltiplos sujeitos, e não somente pela escola e pelos professores. A educação é prática social e cultural que surge da necessidade social de criar formas de transmitir a cultura (modos de agir, pensar e sentir) e a história do grupo. Tem também caráter histórico, pois não há uma forma única, universal e eterna de educar e as práticas educativas se transformam na história. A educação visa formar a pessoa para a vida coletiva, e não o aperfeiçoamen- to individual de cada um. Quem educa tem em vista, sempre, um modelo do homem a ser formado pela educação, bem como o projeto da sociedade da qual tal o homem faz parte. O grau de intencionalidade e estruturação das práticas de educação permite a Libâneo (1992) encontrar três modalidades de educação na contemporaneidade: 1- Educação formal – alto grau de intencionalidade e estruturação: educação escolar, educação profissional. 2- Educação não-formal – relativo grau de intencionalidade e estruturação: lazer, atividades extracurriculares (cursos de línguas, esportes, culinária, infor- mática, etc.), trabalho voluntário, ações de movimentos sociais organizados (passeatas, greves, manifestos, etc.). 3- Educação informal – baixo grau de intencionalidade e estruturação: vida cotidiana, relações sociais, relações com a natureza e com os objetos, educa- ção familiar, etc. A educação formal é predominante na modernidade ocidental e a escola se constitui como a instituição cuja função social é educar as novas gerações, transmitir-lhes um acerco de saberes e conhecimentos, valores e princípios morais além de modelos de comportamento. A educação escolar somente surge em sociedades complexas que se defron- tam com questões relativas à organização da vida social, como a de saber quem trabalha corporalmente e quem trabalha intelectualmente (a divisão 24 Licenciatura em Educação Física 3. estado, sociedade e educação no Brasil Depois de refletirmos sobre as práticas de educação, de forma bastante ampla e genérica, é hora de nos voltarmos um pouco sobre a educação esco- lar no Brasil, com destaque para a educação pública. Talvez uma pequena in- cursão pela história brasileira seja útil para explicitar como a escola foi sendo constituída como lugar privilegiado da educação das novas gerações, substi- tuindo práticas educativas difusas e pouco estruturadas e consolidando-se como instância de produção e manutenção de hierarquias, classificações e exclusões sociais. Não se trata de escrever a história da educação brasileira, mas de historicizar alguns modelos de escola, com a intenção de demonstrar as relações entre sociedade, educação e Estado na realidade nacional. Para tanto, optamos por uma abordagem que consideramos extre- mamente válida para conhecer e refletir como a sociedade e o Estado vêm enfrentando o desafio de educar os brasileiros. Vamos tratar de algumas formas escolares já experimentadas nos períodos imperial e republicano. Nosso foco recai, então, sobre três distintos modelos ou tipos de institui- ção escolar: 1) a casa-escola, ou casa de escola; 2) a escola de ensino mú- tuo; e 3) o grupo escolar. Todos esses tipos são de escolas primárias, que é o nível educacional historicamente constituído como direito do cidadão e responsabilidade do Estado. Ao eleger os períodos imperial e republicano, não desconsidera- mos que no Brasil Colonial inúmeras práticas de educação foram colocadas social do trabalho e do poder). A educação e o ato de educar não são, por- tanto, neutros e apolíticos. Sociedades deste tipo são cindidas em classes sociais antagônicas (os que trabalham e os que dirigem) e têm o poder centralizado em um Estado que, numa leitura crítica, defende os interesses da classe dirigente. A escola, como instituição que se relaciona de forma dialética (de mão dupla) com outras práticas e instituições sociais da sociedade capitalista, também tem contribuído para a divisão social ao realizar a divisão social do saber (um saber para a classe dirigente, outro para a classe trabalhadora). A educação escolar vem reforçando, assim, a manutenção da desigualdade e a dominação. Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 25 em andamento e (algumas) persistiram mesmo depois da Independência (1822), conforme demonstram recentes pesquisas em história da educação brasileira. Entre elas, a ação civilizadora dos padres jesuítas nas aldeias indí- genas (nossos primeiros professores); a alfabetização feita em casa, pratica- da pela mãe ou por preceptor; as instituições asilares de caráter filantrópico; os colégios e internatos católicos; os liceus; as aulas régias; a aprendizagem profissional realizada em oficinas de artesãos e corporações de ofícios, etc. Mas foi a partir da Independência que um poder centralizado – o Estado Imperial brasileiro – assumiu a responsabilidade de legislar sobre a educação dos cidadãos, dando início à construção de um sistema público de educação escolar. Foi também no século XIX que, segundo Schueler e Gondra (2008, p. 35), “[...] a ideia de educar e instruir a população livre por meio de instituições escolares adquiriu consistência no âmbito das provín- cias e do Estado Imperial.” Vamos nos valer de imagens e metáforas, na perspectiva de conferir maior concretude ao desenvolvimento histórico dessa instituição, esperan- do tornar a aprendizagem mais efetiva, duradoura e reflexiva. lembrando escolas Pense nas escolas que você conhece, lembre-se das que você conheceu! Con- sidere, além de suas memórias e experiências pessoais, relatos ouvidos de outras pessoas e imagens vistas em fotografias, telas de pintura, desenhos e filmes, descritas em livros e poemas. Atente-se para alguns elementos identi- ficadores da escola. Primeiro, a materialidade da instituição escolar: a arquitetura, o mobiliário escolar, a decoração interna; o endereço das escolas (no campo ou na cidade), sua vizinhança. Concentre-se, agora, nos sujeitos da educação: estudantes, professores, gestores, secretários, faxineiros, porteiros. Pense, depois, na contabilidade dos tempos escolares (os intervalos do recreio, os horários das aulas, o período de férias,etc.), nos usos do espaço (a distribui- ção dos estudantes e do mobiliário, os locais permitidos e os interditados, os espaço de estudo, os espaço de brincar) e nos rituais escolares (as filas, os exa- mes de avaliação, as festas cívicas e o culto aos símbolos pátrios, entre outros). 26 Licenciatura em Educação Física Faça agora um exercício de sistematização, de forma que o ajude a refletir so- bre algumas questões. Você pode fazer um quadro que alinha alguns elemen- tos identificadores, como no exemplo abaixo, no qual, de um lado aparece o elemento identificador e de outro, uma descrição sucinta dele. E por daí em diante.... Reflita então sobre as seguintes questões e, somente depois, volte ao texto “Qual nação, quais escolas?: • É possível identificar, por esses elementos, como Estado e sociedade li- dam com a educação dos cidadãos? • O que tais elementos dizem sobre a atuação da esfera privada na área educacional? • Quais sujeitos sociais privados (igrejas, sindicatos, ONGs, associações profissionais e patronais) você consegue identificar atuando nessa área? • Como você se posiciona a respeito da responsabilidade da esfera pública diante da questão da educação? Endereço da Escola [Escreva aqui] Escola urbana ou rural - zonas centrais, periféricas, operárias, nobres, boêmias das cidades. Vizinhança [Escreva aqui] Próxima ou distante de outras instituições sociais e culturais (prefeitura, fórum, bibliotecas, cinemas, etc.). Se próxima, dizer de quais instituições. Tipo de Prédio [Escreva aqui] Pequeno. Grande. De uma só sala de aula. Anexo à casa do professor. Com várias salas de aula e salas para direção, biblioteca e secretaria. Quadras. Pátios. Refeitórios. Sanitários. Laborató- rios. Mobiliário Escolar [Escreva aqui] Ausente, uso do solo. Carteiras indi- viduais. Mesas para quatro alunos. Bancos coletivos. Decoração Interna [Escreva aqui] Fotografias de autoridades políticas. Imagens de heróis e dos símbolos da nação. Desenhos e cartazes feitos pelos próprios alunos. Quadro de avisos e recados. Quadro de notas, etc. Estudantes [Escreva aqui] Muitos. Poucos. Classe social. Ricos. Divididos por idade. Separados por gênero. Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 27 4. Qual nação? Quais escolas? Quando pensamos em educação e escola, algumas imagens surgem de forma inevitável. Em uma das mais fortes aparece um prédio escolar com várias salas de aulas, algumas destinadas à direção, biblioteca, secretaria. Eventualmente, a imagem inclui pátios, quadras poliesportivas, refeitórios, etc. As salas de aula abrigam séries ou anos escolares nos quais os alunos, divididos por idade, avançam lentamente, ano a ano, em grau crescente de complexidade. O conhecimento é apresentado aos poucos, do simples para o complexo. Essa forma de organizar a escola foi denominada de escola gra- duada, ou forma escolar graduada, exatamente porque distribui o conhe- cimento escolar em frações, para transmiti-lo gradualmente aos alunos no decorrer de um tempo pré-estabelecido. A forma escolar graduada não determina somente a transmissão gradual do saber escolar, mas alcança todo um espectro de dimensões orga- nizacionais e didático-pedagógicas da escola, a partir da lógica da raciona- lidade científica. Nessa racionalidade e na escola que lhe é correspondente, o controle do tempo é uma das características mais centrais. A divisão dos estudantes por idades, as parcelas temporais que contêm frações de saber (ano, semestre, mês, semana e dia letivos, por exemplo), a definição de in- tervalos para o descanso e de horários para os estudos, do tempo das férias e do tempo das aulas. Instaura-se uma ‘pedagogia do tempo’, cujo objetivo é o de ensinar a cada um como viver no tempo controlado pelo Estado, despre- zando ou ignorando os ritmos individuais. (Veja o texto complementar 3) As imagens de escolas que nos vêm à mente podem incorporar também rituais típicos da cultura escolar, como as filas e os exames de ava- liação, as normas e regras de conduta, etc. Desfiles cívicos, hinos, orações podem também aparecer nessas imagens. Até mesmo dimensões não visí- veis, como os tempos escolares: hora da aula, recreios, horários de chegada e saída, período de férias e tempo das aulas. Nas salas de aula, a imagem mais forte é a do professor ou professora posicionado(a) entre um grupo de crianças ou jovens, uma mesa e um quadro-negro. Sua imagem é de sobrie- dade. Ele ou ela fala aos estudantes ou escreve no quadro. Os estudantes, que têm mais ou menos a mesma idade, podem estar sentados em carteiras individuais, com os olhos voltados para a professora e o quadro-negro, ou em atitude de escola, debruçados sobre livros e cader- nos, se a orientação pedagógica for mais conservadora. Ou podem estar reu- 28 Licenciatura em Educação Física nidos em mesinhas, aos pares, em grupos ou dispostos em círculos, às voltas com materiais coloridos, conforme propõem as chamadas pedagogias ativas. Os detalhes podem variar, mas essas imagens são, de modo geral, a representação dominante sobre a escola em nossa sociedade. É uma re- presentação de enorme poder e mantém-se mesmo diante de significativas transformações da escola, de seus professores e mesmo de seus estudantes. Talvez por isso, pode parecer que esse modelo de escola existiu desde sem- pre. Ou seja, a força da imagem dominante do modelo acaba impedindo que se perceba o caráter histórico da instituição escolar e, assim, não se conside- ram suas transformações. Acaba-se por acreditar que a escola sempre foi as- sim como a conhecemos, que não existiram (e existem) modelos diferentes, e até mesmo que a educação das crianças e dos jovens esteve, desde sempre, atrelada à existência da instituição escolar. A escola graduada, ou forma escolar graduada, representada pelas ima- gens acima descritas, é uma instituição de emergência relativamente tardia na história da humanidade. No Brasil, esse tipo de escola surgiu pela primei- ra vez em São Paulo, em 1894, após a Proclamação da República (SOUZA, 1998), difundindo-se, lentamente, por todo o país. Apesar da predominância desse tipo de escola, talvez ainda possamos encontrar, nas regiões mais afas- tadas dos centros urbanos, escolas onde todos os alunos estudam em uma só sala e sob a orientação e responsabilidade de um único professor. A escola graduada, hoje dominante, é o resultado de um longo desenvolvimento histórico das práticas de educação. Seu surgimento pode ser atrelado ao movimento de massificação da educação, que começou a ocorrer após alguns importantes acontecimentos do século XVIII europeu, como a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Industrial inglesa. Sendo assim, o surgimento da escola graduada tem relação estreita com o desen- volvimento do sistema capitalista, com a emergência dos Estados-Nação e com a expansão do modelo de civilização europeu. Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 29 um Pouco mais de história Entre os séculos XVIII e XIX, a Europa viveu um período de muitos conflitos entre nações e de enorme instabilidade no interior de cada nação: diferen- tes grupos de poder, principalmente burgueses e proletários, se defronta- vam, buscando o alcance do poder político. A burguesia, classe que então era revolucionária, buscava a consolidação do poder na direção e no governo da sociedade, tornando-se, aos poucos, classe dominante. É também nesse momento que trabalhadores pobres, campesinos, intelectuais e a classe média europeia começavam a se organizar para a defesa de seus interesses e, pela primeira vez na história humana, ocupavam a cena política, constituindo-se, daí em diante, como importantes sujeitos coletivos. Estava em curso uma expansão mundial do capitalismo, que assumia,cada vez mais, feições de colonização e imperialismo dos países europeus sobre nações sul-americanas, asiáticas e africanas. Difundia-se também o liberalismo econômico, como fórmula ideal para o governo e regulação das relações entre capital e trabalho, e a crença no poder da ciência para o progresso material e moral da sociedade. No campo da cultura, o modo burguês de vida se expandia, o mundo se ‘ocidentalizava’, aprendendo novos parâmetros de produção e também de consumo. Naquele contexto, consolidou-se o Estado-Nação (democrático e republica- no) como modelo político coerente com as necessidades de apoio a grandes projetos de expansão e acumulação capitalista. Mas esse modelo de Estado surgia também como resultado do crescimento da crescente demanda po- pular por políticas públicas que atendessem aos direitos do povo. Ou seja, o Estado-Nação incorporava as demandas oriundas da ação dos novos sujeitos coletivos que entravam em cena, implantando políticas públicas de saneamen- to básico, saúde e, principalmente, educação. Isto quer dizer que, além das classes dominantes, os emergentes movimentos sociais operários foram (e continuam a ser) fundamentais para que o Estado-Nação assumisse a respon- sabilidade econômica pela construção e manutenção de escolas. Para saber um pouco mais, procure conhecer os seguintes livros: A era das revoluções – Eric Hobsbawm A formação da classe operária na Inglaterra – Edward Palmer Thompson 30 Licenciatura em Educação Física Tais eventos e suas consequências sociais, políticas, econômicas e culturais inicialmente continham, como projeto, a educação de grandes contingentes populacionais, como forma de combater a ignorância e o pre- conceito advindos de uma visão pouco racional dos fenômenos do mundo. Educar o povo foi, então, visto como processo essencial para a construção de uma sociedade livre e democrática. Por outro lado, o potencial libertador da educação começava a ser confrontado com as necessidades do modo de produção capitalista e com a consolidação da visão burguesa de mundo, se transformando, aos poucos, em instrumento de manutenção da desigualda- de social e da dominação de uns sobre os outros. Foi naquele momento que alguns países europeus (França, Ingla- terra, Portugal, Espanha) e os Estados Unidos da América iniciaram a es- truturação de sistemas públicos nacionais de instrução primária, processo consolidado no século XIX. O movimento de criação de sistemas públicos de educação nesses países permitiu a experimentação de alguns modelos de organização escolar que precederam a escola graduada, como a casa-escola, ou casa de escola, e também a escola de ensino mútuo. O Brasil apropriou-se dessas experiências inspirando-se nos mode- los educacionais que tais países colocavam em andamento para construir seu sistema de educação, que teve sua gênese no processo de independência política, sendo prescrita na Constituição Brasileira outorgada por Pedro I em 1824. No seu artigo 179, parágrafo 32, a primeira Carta Magna da nação reconhecia a educação como direito social e previa que a “instrução primá- ria era gratuita a todos os cidadãos”. Posteriormente, a lei de 15 de outubro de 1827 determinou, no seu artigo 1º, que seriam criadas escolas de primei- ras letras “em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos” do país. De acordo com Ilmar Mattos (1990), a instrução pública gratuita era um aspecto importante para a “invenção do Brasil”, projeto político que intencionava construir a nação e formar o povo, dando-lhe identidade e o sentimento de ser brasileiro, e fornecendo-lhe a consciência dos direitos de cidadania. Projeto complexo e vasto, principalmente tendo em vista os vários obstáculos que dificultavam (e continuam a dificultar) a prática da cidadania no Brasil. Entre os historiadores mais importantes daquele perí- odo, Carvalho (2008) enumera as heranças da colonização portuguesa que foram mantidas na realidade nacional: a escravidão, a grande propriedade rural e o descaso pela instrução pública. Segundo esse mesmo autor, Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 31 Em três séculos de colonização (1500-1822), os portugueses ti- nham construído um enorme país dotado de unidade territorial, lingüística, cultural e religiosa. Mas também deixado uma po- pulação analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista. À época da independência, não havia cidadãos brasileiros, nem pátria brasi- leira. (CARVALHO, 2008, p. 17) Tratava-se, portanto, de ‘inventar’ um Estado e uma sociedade in- dependente politicamente da Corte Portuguesa, com cultura e identidade próprias, porém pautada pelo ideal de civilização e modernidade dos países europeus e dos Estados Unidos da América. Nesse projeto, o liberalismo político e econômico foi visto como antípoda ao absolutismo da coloni- zação portuguesa e como ordenação capaz de levar o país à modernização econômica e, por extensão, social. A ideia era, pois, ensinar aos brasileiros a aceitação e o respeito aos fundamentos liberalizantes que fundamentavam a construção do Estado e da Nação. Ao tornar-se independente da Corte Portuguesa, o Brasil assumia o liberalismo como doutrina política, adotando integralmente a defesa da pro- priedade privada, mas, contraditoriamente, ignorava um dos seus postulados básicos, a liberdade individual, mantendo o regime de escravidão. A educa- ção primária pública, por sua vez, teve pouca atenção do Estado Imperial, que já em 1834 promulgava uma emenda à Constituição de 1824, transfe- rindo às províncias a responsabilidade de construir e manter escolas de pri- meiras letras e secundárias. De acordo com Schueler e Gondra (2008, p. 35), O processo de descentralização na gestão da instrução pública, provocado pelo Ato Adicional de 1834, tem sido interpretado por parte da historiografia da educação como um obstáculo ao desenvolvimento da educação escolar no Brasil Imperial, devido às diversidades regionais e à insuficiência de recursos destina- dos ao ensino nos orçamentos provinciais, ou ainda, em razão do desinteresse das elites políticas provinciais na difusão da ins- trução primária e secundária, o que teria acarretado uma enor- me distância entre as leis e a prática educacional, favorecendo, assim, o predomínio de formas heterogêneas de educação e o acesso à instrução, via de regra no âmbito doméstico ou familiar, ao longo do século XIX. 32 Licenciatura em Educação Física De outro lado, no projeto de ‘invenção da nação’, a instrução básica do povo não era a única necessidade percebida pelas elites imperiais: era igualmente fundamental formar um corpo de especialistas (intelectuais, cientistas) que produzisse um conhecimento científico sobre o Brasil, sua cultura, natureza, território e população, e que pudesse dirigir a nação (ba- charéis, burocratas). A história mostra que os investimentos do Estado Im- perial direcionaram-se à criação de um sistema educacional voltado para a formação de elites dirigentes, composto de colégios secundários na Corte (cidade do Rio de Janeiro) e escolas de educação superior em todo o país, deixando em segundo plano a educação do povo. Nesse projeto político podemos encontrar, então, os primeiros sinais da organização de um sistema dual de educação: escolas básicas, de primei- ras letras, para a formação das massas populares e despossuídas, convivendo com escolas secundárias e superiores para formar as elites que comungavam com o projeto civilizatório imperial e para constituir quadros profissionais para o Estado. A criação de escolas para o atendimento de públicos distin- tos reforçava e legitimava a hierarquia que já existia entre os indivíduos na sociedade escravista. É no interior desse projeto que podemos entender a longaexistên- cia histórica da casa-escola, ou casa de escola, um modelo de escola de pri- meiras letras voltado para a educação das massas subalternas que surgiu no Brasil da iniciativa de particulares (professores, famílias) no fim do século XVIII. Aos poucos, já no século XIX, os poderes públicos se tornariam par- ceiros dessa iniciativa privada e acabariam por incorporar a casa-escola aos precários sistemas educacionais que se formavam nas distintas províncias do Império. É, pois, uma forma escolar que reúne, de forma íntima, as esfe- ras pública e privada. Nela, o professor – o mestre-escola – recebia alunos em sua própria residência ou em uma casa alugada para tal, fazendo com que a dimensão es- colar (pública) e a doméstica (privada) se misturassem. O mestre-escola era pago, quase sempre, pelas famílias das crianças, mas podia também receber subsídios econômicos dos cofres públicos para o aluguel da casa de escola, amalgamando as esferas públicas e privadas também na oferta educacional. Ele tinha autonomia para escolher e adotar o método de ensino e de avaliação que quisesse, sem qualquer interferência do Estado, o que fazia com que houvesse uma enorme variedade de métodos. Apesar da variedade Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 33 metodológica, o ensino era feito individualmente. Não havia muita exigên- cia quanto à formação do mestre-escola: às vezes bastava que ele soubesse ler e escrever e dominasse rudimentos matemáticos básicos, mas havia exi- gências relacionadas à moralidade do professor, a qual devia ter o aval de uma autoridade religiosa ou política. Independentemente da idade e do nível de conhecimento que deti- nham, os alunos estudavam todos em uma só sala, quase sempre ao redor de uma única mesa, à qual também se sentava o mestre-escola. Na ausência de bancos e mesa, o que não era incomum, as crianças sentavam-se no chão. Não existia, portanto, espaços e tempos separados para a graduação do co- nhecimento. Estudava-se de acordo com o ritmo individual, em cartilhas que iam sendo vencidas sem que houvesse tempo pré-determinado para cada uma delas. A disciplina era rígida, chegando mesmo aos castigos corporais, em- bora a legislação educacional proibisse esse tipo de punição, recomendando, em seu lugar, as punições morais. O relato de uma progressista educadora do século XIX, Nisia Floresta, é revelador das facetas da disciplina escolar e dos instrumentos utilizados pelos mestres para corrigir os alunos e incenti- vá-los a aprender em escolas da Corte Imperial (cidade do Rio de Janeiro): As escolas de ensino primário tinham antes o aspecto de casas penitenciárias do que de casas de educação. O método da pal- matória e vara era geralmente adotado como melhor incentivo para o desenvolvimento da inteligência. Não era raro ver-se nes- sas escolas o bárbaro uso de estender o menino que não havia cumprido os seus deveres escolares, em um banco e aplicarem- lhe o vergonhoso castigo do açoite. [...] a palmatória era o cas- tigo menos afrontoso reservado às meninas por mulheres, em grande parte, grosseiras, que faziam uso de palavras indecorosas, lançando-as ao rosto das discípulas onde ousavam imprimir al- guma vez a mão, sem nenhum respeito para com a decência e menos acatamento ao importante magistério que, sem compre- ender, exerciam. (FLORESTA, 1989, p. 57-58) As crianças que frequentavam esse tipo de escola eram originárias das camadas empobrecidas da sociedade brasileira. Eram escolas destinadas ao ensino do ler, escrever e contar. Mas não se pense que era uma escola aberta a todos os pobres. Ao contrário, já nos seus primórdios, a educação 34 Licenciatura em Educação Física escolar no Brasil primava pela exclusão (étnica, social e cultural) de inúme- ros sujeitos sociais. Os escravos e negros livres eram proibidos de estudar em escolas, e as meninas tinham sua escolarização extremamente dificulta- da pela ideia de que as mulheres não precisavam (e talvez nem devessem) estudar para o exercício do papel social que lhes estava reservado. Quase sempre marcada pela pobreza e pela precariedade, a casa-es- cola localizava-se, em grande parte, em ruas periféricas e secundárias, em becos e vielas. Os professores que alugavam casas para receber alunos ti- nham a preocupação de procurar uma que [...] fosse mais afastada possível do centro, na ‘rua de baixo’ de preferência [...]; que não tivesse a sala principal muito grande (para não caber muitos alunos); que tivesse um quintal grande (para nele fazer suas plantações de mandioca, milho e feijão, e a criação de galinhas e engorda de um porco, para complementar o necessário para sua subsistência); e cujo aluguel fosse o mais barato possível. Não importava se fosse um casebre, contanto que tivesse essas características. Assim se instalava a escola, em geral numa casa velha, sem forro [...], sem assoalhos, de chão ba- tido. Com o tempo esse chão (solo) não era nada liso ou plano, mas cheio de buracos, feitos sob a ação da vassoura, das unhas dos gatos e dos focinhos dos porcos, e servindo de ninhos para gatos, cachorros, porcos e pulgas, com os quais os meninos ti- nham que conviver, infestando-se, ainda, não só de piolhos, mas também de bichos de pé. (BRETAS, 1991, p. 403) A existência da casa-escola no Brasil Imperial permite concluir que a ideia de formar para o trabalho ainda não estava muito presente nos hori- zontes políticos e ideológicos do Estado, haja vista que o regime escravocra- ta fornecia a massa de trabalhadores que produziam a riqueza do Império e mantinha suas classes senhoriais na ociosidade. Contudo, em uma socie- dade de iletrados como a brasileira, a educação primária destinada à popu- lação pobre servia a um complexo processo de capacitação para o trabalho e, logo, de ascensão social daqueles que aprendiam a ler, escrever e realizar operações matemáticas. Embora quase clandestina, a casa-escola foi o modelo predominante de instituição escolar nos tempos do Império (1822-1889), mas permaneceu existindo ainda por um longo período posterior ao advento da República. Fundamentos Filósóficos e Sócio-Históricos da Educação 35 No estado de Goiás, por exemplo, até meados da década de 1920, a maioria das escolas ainda eram as casas-escolas que, nessa época, passaram a ser de- nominadas na legislação educacional de escolas isoladas. A casa-escola onde estudou a poetisa Cora Coralina é um exemplo célebre dessa forma esco- lar. Nos belos versos que Cora escreveu sobre sua escola primária é possível encontrar flagrantes do cotidiano nesse tipo de escola, principalmente uma narrativa acerca dos rituais, do mobiliário, dos tempos e espaços escolares. um Pouco da Poesia de cora coralina CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo/SP: Global, 2003. A ESCOLA DA MESTRA SILVINA Minha escola primária... Escola antiga de antiga mestra. Repartida em dois períodos para a mesma meninada das 8 às 11, da 1 às 4. Nem recreio, nem exames, Nem notas, nem férias. Sem cânticos, sem merenda... Digo mal - sempre havia distribuídos alguns bolos de palmatória... [...] A gente chegava – “Bença, Mestra”. Sentava em bancos compridos, Escorridos, sem encosto. Lia alto lições de rotina: O velho abecedário, Lição salteada. Aprendia a soletrar. [...] Não se usava quadro-negro. As contas se faziam em pequenas lousas individuais. Não havia chamadas 36 Licenciatura em Educação Física E sim o ritual De entradas, compassadas. – “Bença, Mestra...” Banco dos meninos. Banco das meninas. Tudo muito sério. Não se brincava. Muito respeito. Leitura alta. Soletrava-se. Cobria-se o debuxo. Dava-se a lição. Tinha dia certo de argumento com a palmatória pedagógica em cena. Cantava-se em coro a velha
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