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HELGA DA SILVA BROD USO DE ALGEMAS: O LIMITE ENTRE A LICITUDE E O ABUSO Monografia apresentada como requisito para obtenção do certificado de conclusão do curso de Pós-Graduação Ordem Jurídica e Ministério Público da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, sob orientação do Prof. Paulo Afonso Carmona. BRASÍLIA – DF 2009 Aos meus pais, Jairo e Maria Lucia, e à minha avó Geralda, razões da minha vida. Os limites da liberdade individual não são postos senão no ponto em que ela comece a prejudicar a liberdade de outrem. Abade Sieyès SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................8 2. DISCIPLINA LEGAL SOBRE O USO DE ALGEMAS ..................................................9 2.1 A Lei de Execução Penal............................................................................................................. 9 2.2 O Código de Processo Penal ..................................................................................................... 11 2.3 O Código de Processo Penal Militar ........................................................................................ 12 2.4 O Estatuto da Criança e do Adolescente ................................................................................. 14 2.5 As Leis da Segurança da Água e do Ar ................................................................................... 15 2.6 As Normas do Estado de São Paulo ......................................................................................... 16 2.7 As Regras Mínimas para Tratamento de Presos no Brasil.................................................... 17 3. O USO DE ALGEMAS E SUA PROBLEMÁTICA .......................................................18 3.1 O abuso de autoridade e o constrangimento ilegal................................................................. 18 3.2 Algemas e os direitos fundamentais......................................................................................... 19 3.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana....................................................................... 19 3.2.2 O princípio da presunção de inocência ............................................................................... 21 3.2.3 A proibição à tortura e ao tratamento desumano ou degradante ........................................ 21 3.2.4 O direito à integridade física e moral .................................................................................. 23 3.2.5 O direito à imagem versus o direito de informação............................................................. 25 3.2.6 O princípio da proporcionalidade como limite entre a legalidade e o abuso no uso de algemas ......................................................................................................................................... 30 4. INCONGRUÊNCIAS DA SÚMULA VINCULANTE Nº 11..........................................35 4.1 A inconstitucionalidade da súmula .......................................................................................... 35 4.2 O ativismo judicial no conteúdo da súmula ............................................................................ 39 4.3 O âmbito de abrangência da súmula ....................................................................................... 42 4.4 A súmula vinculante n° 11 como exemplo de decisão judicial simbólica ............................. 44 4.4.1 O simbolismo sob a ótica de Marcelo Neves ....................................................................... 44 4.4.2 O momento de edição da súmula ......................................................................................... 48 4.4.3 A impossibilidade de se cumprir a súmula........................................................................... 49 4.4.4 A desnecessidade da súmula ................................................................................................ 51 4.4.5 A ausência de legitimidade da súmula ................................................................................. 52 5. CONCLUSÃO.....................................................................................................................56 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................57 RESUMO O presente trabalho investiga o limite entre a licitude e o abuso no emprego de algemas. Embora não haja uma lei, no Brasil, regulando o uso desse instrumento em âmbito nacional, é feita uma análise das leis que, de algum modo, servem para orientar o emprego adequado das algemas. Após, passa-se a enfrentar os problemas que envolvem o tema, como o possível enquadramento do mau uso de algemas em crimes de abuso de autoridade e de constrangimento ilegal, e a questão da compatibilidade dos direitos fundamentais do preso, tais como a dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência, a integridade física e moral e a imagem, com o uso de algemas. Nesse aspecto, surge o princípio da proporcionalidade como o meio de se aferir se o uso de algemas, em determinado caso concreto, está dentro do que o ordenamento jurídico permite ou se houve algum excesso. Por fim, são levantadas críticas à súmula vinculante nº 11 editada pelo Supremo Tribunal Federal, que se em nada contribuiu para a solução dos conflitos hoje existentes sobre o uso de algemas, serviu para acentuá-los. Palavras-chave: Uso de algemas. Abuso de autoridade. Direitos fundamentais. Princípio da proporcionalidade. Súmula vinculante n° 11. ABSTRACT This paper investigates the boundary between the lawful and abuse in the use of handcuffs. Although there is no law in Brazil, regulating the use of the instrument at the national level, there is a review of laws that in some way serve to guide the appropriate use of handcuffs. Following, is to tackle the problems that surround the subject, as a possible framework for the misuse of handcuffs in crimes of abuse of authority and illegal constraint, and the question of the compatibility of the fundamental rights of the prisoner, such as the dignity of human, the presumption of innocence, the physical and moral integrity and image, with the use of handcuffs. In this respect, is the principle of proportionality as the means to assess whether the use of handcuffs, in a case is within the law allows or if there was an excess. Finally, the criticisms raised are binding summary number 11 issued by the Supreme Court, which in no way contributed to the solution of conflicts now available on the use of handcuffs, served to accentuate them. Keywords: Use of handcuffs. Abuse of authority. Fundamental rights. Principle of proportionality. Summary binding 11. 1. INTRODUÇÃO Algema é uma pulseira metálica, dotada de fechadura, empregada para prender os braços de uma pessoa pelos punhos, na frente ou atrás do corpo.1 A utilização desse instrumento tornou-se comum por volta do século XVI, não somente para garantir a segurança pública, mas também, e principalmente, comomeio de castigar e humilhar os infratores da lei.2 Ao longo do tempo, o uso de algemas vem gerando diversos questionamentos, sobretudo com a consagração do Estado Democrático de Direito e dos princípios insculpidos na Constituição de 1988, onde houve uma crescente preocupação em se estabelecer os limites dessa prática. Em face do princípio da dignidade da pessoa humana, por exemplo, hoje é inadmissível o emprego de algemas com o fim de infligir sofrimento físico ou psíquico a quem quer que seja. Contudo, não se olvida que persiste a necessidade de utilização de algemas para garantir a segurança dos responsáveis pela prisão e pelo transporte de presos, bem como de todos os presentes durante a realização de audiências e julgamentos.3 E à míngua de uma norma específica que discipline o uso de algemas em âmbito nacional, este trabalho faz um apanhado das leis do ordenamento jurídico pátrio, que de uma forma ou de outra, trazem em seu bojo alguma regra balizadora do emprego adequado do artefato em estudo. O cerne da questão, porém, consiste em encontrar uma solução para o conflito existente entre o uso de algemas e os direitos fundamentais do preso à dignidade da pessoa humana, à presunção de inocência, à integridade física e moral e à imagem, dentre outros. Propõe-se então, o princípio da proporcionalidade como o instrumento capaz de aferir, no caso concreto, se o uso de algemas respeitou os ditames legais e constitucionais vigentes ou se houve excesso, caracterizado este pela violação à integridade física do preso ou pela exposição pública do preso algemado, o que configura o crime de abuso de autoridade. Por fim, é feita uma análise da polêmica súmula vinculante nº 11, editada pelo Supremo Tribunal Federal, versando sobre o emprego de algemas. As principais críticas apontadas à súmula referem-se ao ativismo judicial e ao seu conteúdo eminentemente simbólico. Em vez de resolver os problemas, que não são poucos, envolvendo o uso de algemas, restará aqui demonstrado que a súmula criou vários outros. 1 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1998, p.162. 2 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Inquérito Policial: novas tendências. Belém: CEJUP, 1987, p. 49. 3 QUEIJO, Maria Elizabeth. Estudos em Processo Penal. São Paulo: Siciliano Jurídico, 2004, p. 20. 2. DISCIPLINA LEGAL SOBRE O USO DE ALGEMAS 2.1 A Lei de Execução Penal O artigo 199 da Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984, que instituiu a Lei de Execução Penal (LEP) no sistema brasileiro, prevê que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”.4 Assim, na forma definida em lei, o uso de algemas depende de regulamentação complementar, a ser feita por um decreto federal, que o discipline em âmbito nacional de maneira geral e uniforme. Por oportuno, vale lembrar que a LEP é do ano de 1984 e por isso se refere a um decreto federal para regulamentar o uso de algemas, o qual deveria ser editado pelo Poder Executivo. Todavia, com a Constituição de 1988, isso passou a ser matéria de lei, portanto de competência do Legislativo Federal.5 De qualquer forma, decorridos quase vinte e cinco anos de vigência da LEP, o artigo 199 ainda carece de complementação legal. De fato, desde 1986 surgem projetos de lei que visam regulamentar o uso de algemas, porém, nenhum deles, até o presente momento, logrou se transformar na tão esperada lei, sendo que vários foram arquivados6 e outros tantos ainda se encontram em fase de tramitação7. Historicamente, em regra, imperam as chamadas “normas de emergência”,8 isto é, basta um episódio envolvendo o uso de algemas e que repercuta socialmente para, mais que depressa, despontarem toda sorte de projetos de lei prontos a dar uma resposta àquela situação determinada. 4 BRASIL. Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivl 03/Leis/L7210.htm. Acesso em: 25 mar. 2009. 5 BARBOSA, Júnio Alves Braga. O uso de algemas. Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/49/1949. Acesso em: 25 mar. 2009. 6 O primeiro projeto de lei que pretendeu regulamentar o artigo 199 da Lei de Execução Penal foi proposto pelo senador Jamil Haddad e recebeu o n° 241/1986, sendo, porém, arquivado ao fim da legislatura do referido parlamentar. No ano seguinte, o senador insistiu em seu propósito, por meio do PLS n° 41/1987, o qual mais uma vez não chegou a ser apreciado. Já em 1991, como deputado federal, Jamil propôs o PL n° 1.918/1991, que tramitou durante oito anos até ser arquivado em 1999. Em 2007, o PL n° 4/2007, de autoria do deputado Carlos Lapa, também não se desincumbiu de regulamentar o uso de algemas, restando arquivado nesse mesmo ano. 7 Há na Câmara dos Deputados 13 projetos apensados com o tema algemas, que tramitam em conjunto e aguardam votação, são eles: PL n° 2.753/2000, PL n° 3.287/2000, PL n° 4.537/2001, PL n° 5.494/2005, PL n° 5.858/2005, PL n° 2.527/2007, PL n° 3.506/2008, PL n° 3.746/2008, PL n° 3.785/2008, PL n° 3.887/2008 PL n° 3.888/2008, PL n° 3.889/2008 e PL n° 3.938. Há ainda o Projeto de Decreto Legislativo – PDC n° 853/08. No Senado Federal tramita o PLS n° 185/2004. 8 “A idéia de emergência é corriqueiramente atrelada à de urgência e, num certo sentido, à de crise. Chama a atenção para algo que, de forma repentina, surge de modo a desestabilizar o status quo ante, colocando em xeque os padrões normais de comportamento e a conseqüente possibilidade de manutenção das estruturas. Nesse sentido, a ela se une a necessidade de uma resposta pronta, imediata e que, substancialmente, deve durar enquanto o estado emergencial perdura.” CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de emergência: aspectos introdutórios. Disponível em: http://www.justicavirtual.com.br/artigos/art98.htm. Acesso em: 25 mar. 2009. Tome-se como exemplo o projeto de lei de n° 5.494, apresentado em 23 de junho de 2005, o qual se originou logo após a prisão de um dos proprietários da Cervejaria Schincariol, caso esse que colocou em voga o debate sobre a necessidade do uso de algemas. Mais recentemente, no ano de 2008, em virtude do grande número de operações policiais que culminaram com o polêmico algemamento de pessoas da alta sociedade, como o advogado Ricardo Tosto, o banqueiro Daniel Dantas e o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, houve uma avalanche de projetos de lei motivados pela exposição na mídia dos detidos com algemas. Sobre esse processo de legiferação de urgência, Fauzi Hassan Choukr critica o costume tupiniquim, destacando que a situação brasileira apresenta uma delicadeza particular quando se pensa na cultura emergencial, característica esta comum aos países em processo de (re)democratização, onde os valores que lhes são próprios mal são estabelecidos no pacto de civilidade e acabam por ser desmoralizados na prática dos operadores do direito - e na prática social, de forma geral - que desta forma conferem uma vivência apenas formal ao cânones culturais da normalidade.9 Não resta dúvida de que a falta de uma lei específica a regulamentar nacionalmente o uso de algemas no Brasil, que tem como tradição o sistema da Civil Law,10 traz insegurança para todos os agentes estatais que as utilizam como instrumento de trabalho, tais como policiais e agentes penitenciários na execução de prisões e no transporte de presos respectivamente, e para o juiz responsável pela decisão de se manter ou não as algemas no réu em audiência.11 Todavia, a elaboração dessa norma deve ser feita de forma responsável e séria, ampliando-se o debate democrático com os setores interessados da sociedade, e não apenas intentando-se projetos de lei de emergência para, em seguida, relegá-los ao esquecimentoaté o próximo episódio envolvendo algemas. “O direito do cidadão e a segurança da sociedade, via de regra, ocasionam conflitos que devem merecer soluções 9 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de emergência: aspectos introdutórios. Disponível em: http://www.justicavirtual.com.br/artigos/art98.htm. Acesso em: 25 mar. 2009. 10 “Os dois principais sistemas jurídicos do mundo ocidental são o sistema jurídico de common law e o sistema jurídico de civil law. [...] Em países que adotam o civil law, a legislação representa a principal fonte do Direito. Os tribunais fundamentam as sentenças nas disposições de códigos e leis, a partir dos quais se originam as soluções de cada caso. Adotado por países americanos e de origem anglo-saxônica, o sistema do common law é o sistema no qual o costume prevalece sobre o direito escrito. Os casos de direito (case law) são as principais fontes do Direito, ou seja, a base da criação das regras de conduta.” MOCHNY, Daniela. Civil Law, Consuetudinário ou Common Law: qual é o seu direito? Disponível em: http://www.ccaps.net/newsletter/06-05/art_1pt.htm. Acesso em: 09 abr. 2009. 11 Vários doutrinadores apontam para a premente necessidade de se regulamentar o artigo 199 da Lei de Execução Penal, dentre eles consultar MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei n° 7.210 de 11/07/1984. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 835. judiciais, razão pela qual não podem ficar a mercê da regulamentação de um dispositivo legal que eterniza desde 1984”.12 2.2 O Código de Processo Penal Embora não exista no Brasil uma lei específica regulamentando o uso de algemas, é possível extrair do ordenamento jurídico pátrio algumas regras balizadoras do manejo adequado desse instrumento restritivo da liberdade. O Código de Processo Penal (CPP) estabelece no artigo 284 que “não será permitido o uso de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”.13 Essa é um dos artigos do CPP que é frequentemente utilizado para fundamentar o uso de algemas nas hipóteses de resistência ou de fuga. Ao interpretar referido dispositivo, Guilherme de Souza Nucci esclarece que o CPP impõe “que a prisão seja feita sem violência gratuita e desnecessária, especialmente quando há aquiescência do procurado. Entretanto, especifica, expressamente, que a força pode ser utilizada, no caso de haver resistência ou tentativa de fuga”.14 Seguindo essa trilha, Marcus Vinicius Boschi também entende que “não se legitima ou até mesmo se autoriza a força policial excessiva ou desproporcional quando da prisão, o que não significa dizer no entanto, que não possam as autoridades utilizar-se de forte aparato humano e/ou técnico na captura daqueles que devem deter”.15 Mais adiante, ao tratar da prisão em flagrante, fixa o CPP em seu artigo 292 que se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.16 Por meio desse artigo a lei autoriza, se necessário, o emprego de meios, como o de algemas, para deter a insubordinação ou evitar que a fuga ocorra, incumbindo ao agente decidir proporcionalmente à gravidade da reação que necessite ser estancada, o 12 CAVALCANTI, Ubyratan Guimarães. O uso de algemas. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Ministério da Justiça, janeiro a junho de 1993, p.29. 13 BRASIL. Decreto-Lei n° 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em: 06 abr. 2009. 14 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 579. 15 BOSCHI, Marcus Vinicius (org). Código de Processo Penal Comentado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 249. 16 BRASIL. Decreto-Lei n° 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em: 06 abr. 2009. momento, o quantum e a espécie de força a ser utilizada no caso concreto.17 Assim, em todos os casos de prisão, em que tenha o agente resistido ou tentado a fuga, quer seja prisão em flagrante ou qualquer outra prisão de caráter cautelar a utilização de algemas encontra respaldo no CPP. Hélio Tornaghi confirma que “diante dos artigos 284 e 292, parece não haver dúvida de que, se com as algemas o executor da prisão pode vencer a resistência, ele está autorizado a usá-las.”18 Foi somente, porém, no ano de 2008, com a reforma do procedimento do júri, feita pela Lei n° 11.689, de 09 de junho de 2008, que a palavra “algemas” apareceu expressa no CPP. Dispõe a nova redação do artigo 474 do CPP em seu § 3° que não “se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”.19 Também o artigo 478 do CPP veda no inciso I que as partes durante os debates façam referências “à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado”.20 Tem-se, portanto, que no âmbito do tribunal do júri o uso de algemas está disciplinado. Todavia, como a alteração do CPP se deu, especificamente, no Capítulo que dispõe sobre o procedimento no tribunal do júri, Fernanda Herbella sustenta que a nova regra se aplica apenas aos julgamentos realizados perante o tribunal popular. Isso porque a ratio da criação da norma é a influência que supostamente as algemas exerceriam na decisão dos jurados, leigos que são, o que não ocorre nas audiências da Justiça Criminal Comum, onde o réu está diante de um juiz togado que, por ser um técnico, não se influencia.21 2.3 O Código de Processo Penal Militar O Código de Processo Penal Militar (CPPM) permite o uso da força no caput do artigo 234, nos mesmos moldes do Código de Processo Penal, in verbis: Art. 234. O emprego da força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou 17 ROCHA, Luiz Carlos. Prática Policial. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 94. 18 TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal. 2. ed. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 233. 19 BRASIL. Decreto-Lei n° 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em: 06 abr. 2009. 20 Ibidem. 21 HERBELLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana: fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex, 2008, p. 118. para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto, subscrito pelo executor e pelas testemunhas.22 Já o § 1° desse mesmo artigo, regula explicitamente o uso de algemas nos seguintes termos: “o emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o artigo 242”.23 Por sua vez, o artigo 242 do CPPM diz o seguinte: Art. 242. Serão recolhidos a quartel ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão, antes de condenação irrecorrível: a) os ministros de Estado; b) os governadoresou interventores de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polícia; c) os membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados; d) os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei; e) os magistrados; f) os oficiais das Fôrças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados; g) os oficiais da Marinha Mercante Nacional; h) os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional; i) os ministros do Tribunal de Contas; j) os ministros de confissão religiosa. É importante salientar que a maioria da doutrina questiona a validade do artigo 234 do CPPM sob o argumento de que a proibição do uso de algemas nos denominados presos especiais ofende ao princípio da igualdade. Nestor Távora e Rosmar Antonni são categóricos ao afirmar que “a parte final desse dispositivo, ao vedar o uso de algemas em determinadas autoridades e portadoras de diploma de curso superior, afigura-se anti- isonômica, por não se compatibilizar com o sistema constitucional”.24 Endossando esse entendimento, Rodrigo Carneiro Gomes sustenta que “a nova ordem constitucional não recepcionou o questionável sistema de privilégios do citado dispositivo do CPPM, resquício de uma época de intangibilidade das autoridades, com escassos instrumentos de controle social e de prestação de contas”.25 Realmente, esse sistema de apartheid entre homens comuns e autoridades vem da época das Ordenações Filipinas que vigoraram no Brasil até o advento do Código Civil de 1916.26 22 BRASIL. Decreto-Lei 1.002, de 21 de outubro de 1969. Código de Processo Penal Militar. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1002.htm. Acesso em: 06 abr. 2009. 23 Ibidem. 24 TÁVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 443. 25 GOMES, Rodrigo Carneiro. Algemas segundo o STF. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, nº 241, 2007, p. 34. 26 VIEIRA, Luís Guilherme. Algemas: uso e abuso. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal. s.l.: síntese, n° 16, out.-nov. 2002, p. 11-16. Além disso, o CPPM surgiu em pleno regime militar, portanto, os seus dispositivos devem ser reinterpretados à luz do Estado Democrático de Direito trazido pela Constituição Federal de 1988. E não poderia ser diferente, pois o que determina o uso de algemas é a situação em concreto e não o cargo ou a função do prisioneiro, como bem afirmou Ricardo Vergueiro Figueiredo.27 Portanto, não importa se o crime é comum ou militar, desde que se mostre imprescindível pelas circunstâncias, seja para impedir a fuga, seja para conter a violência da pessoa que está sendo presa, será admissível algemar as pessoas destacadas no artigo 242 do CPPM como qualquer outra pessoa. 2.4 O Estatuto da Criança e do Adolescente O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), previsto pela Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990, não proíbe expressamente o emprego de algemas em menores de idade. O uso desse instrumento de contenção física em crianças e adolescentes se escora no artigo 178 do ECA que assim reza: Art. 178. O adolescente, a quem lhe atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que lhe impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade.28 Assim, a proibição legal versa somente no sentido de que crianças e adolescentes não podem ser transportados em compartimentos fechados de viaturas policiais, em condições que violem a sua dignidade ou que lhes comprometa a saúde física e mental. Diante disso, alguns doutrinadores sustentam que a lei não impede que um menor de idade venha a ser contido por meio de algemas caso pratique algum ato infracional, desde que a medida se mostre necessária e isso não afete a integridade do menor. A respeito do tema, Sílvio França da Silva esclarece que são freqüentes as dúvidas com relação a algemar ou não um adolescente. A jurisprudência é pacífica no sentido de que, se o indivíduo possui um alto grau de periculosidade e seu porte físico avantajado coloque em risco a incolumidade física das pessoas, é lícito que ele seja contido mediante o emprego de algemas.29 Selma Sauerbronn de Souza também admite o algemamento de crianças e adolescentes quando estes forem de altíssimo grau de periculosidade, de porte físico 27 FIGUEIREDO, Ricardo Vergueiro. Algemas: algumas considerações. Revista Direito Militar. Florianópolis: s.e., n° 56, 2005, p. 08-09. 28 BRASIL. Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm. Acesso em: 11 abr. 2009. 29 SILVA, Silvio França da. Algemas, estreito limite entre a legalidade e o abuso. Revista Força Policial. São Paulo: s.e., n° 29, jan. - mar., 2001, p. 42. compatível a um adulto, e que reajam à apreensão. Segundo a promotora de justiça, algemar um menor diante de tais circunstâncias, certamente, evitará luta corporal e fuga com perseguição policial de desfecho muitas vezes trágico para o policial ou para o próprio adolescente. Portanto, o policial que [...] optar pela colocação de algemas, na realidade estará preservando a integridade física do adolescente, e, por conseguinte, resguardando o direito à vida e à saúde, assegurados pela CF, e como não poderia deixar de serem, direitos substancialmente, consagrados pelo ECA [...]30 Dessa forma, admite-se que utilização de algemas em crianças e adolescentes, desde que sejam preservados os seus direitos fundamentais e que sejam obedecidas as mesmas regras que se pregam aos adultos delinqüentes, ou seja, que haja resistência à prisão ou tentativa de fuga. 2.5 As Leis da Segurança da Água e do Ar A Lei n° 7.565/1986, que instituiu o Código Brasileiro de Aeronáutica, não dispõe especificamente sobre o uso de algemas, porém prevê em seu artigo 168 que o comandante poderá tomar as providências que entender cabíveis para manter a aeronave, as pessoas e os bens transportados em segurança, nos termos a seguir: Art. 168. Durante o período de tempo previsto no artigo 167,31 o Comandante exerce autoridade sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá: [...] II - tomar as medidas necessárias à proteção da aeronave e das pessoas ou bens transportados;32 Há ainda a Instrução da Aviação Civil 2504-0388, editada em março de 1988 pelo extinto Departamento de Aviação Civil – atual Agência Nacional de Aviação Civil – que em seu item II – 5 normatiza o embarque de passageiro preso dispondo que “caso o prisioneiro seja transportado com algemas esta situação deverá, se possível, ser encoberta”.33 Essa determinação visa evitar o possível constrangimento do preso e dos demais passageiros. Por outro lado, a Lei nº 9.537/97, que cuida da segurança do tráfego aqüaviário em águas sob jurisdição nacional, diz em seu artigo 10, inciso III, que o comandante, com o fim de manter a segurança das pessoas, da embarcação e da carga, poderá 30 Apud GOMES, Rodrigo Carneiro. Algemas para a salvaguarda da sociedade: a desmistificação do seu uso. Disponível em: http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/191006i.pdf. Acesso em: 14 abr. 2009. 31 “Art. 167. O comandante exerce autoridade inerente à função desde o momento em que se apresenta para o vôo até o momento em que entregaa aeronave, concluída a viagem. Parágrafo único. No caso de pouso forçado, a autoridade do comandante persiste até que as autoridades competentes assumam a responsabilidade pela aeronave, pessoas e coisas transportadas.” 32 BRASIL. Lei n° 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Código Brasileiro de Aeronáutica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7565.htm. Acesso em: 15 abr. 2009. 33 AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL. Disponível em: http://www.anac.gov.br/biblioteca/iac/IAC2504.pdf. Acesso em: 15 abr. 2009. deter o passageiro inconveniente, em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, textualmente: Art. 10. O comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada, pode: [...] III – ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga.34 Assim, as leis que cuidam da segurança do ar e da água conferem aos comandantes das aeronaves e das embarcações poder de polícia, por meio do qual é possível se determinar o algemamento daquele que colocar em risco a segurança desses meios de transporte. Tanto o Código Brasileiro de Aeronáutica como a Lei nº 9.537/97, preconizam, de forma implícita e explícita respectivamente, que algemar o passageiro inconveniente prevenirá luta corporal com a tripulação ou com os demais passageiros e danos às aeronaves e embarcações com possíveis desfechos trágicos para a segurança do vôo ou da navegação.35 2.6 As Normas do Estado de São Paulo Ante a ausência de uma lei que uniformize o uso de algemas nacionalmente, São Paulo serve de parâmetro para as demais regiões do país, pois foi o primeiro Estado a regulamentar, em nível local, o emprego do equipamento em estudo. O Decreto Estadual nº 19.903, de 30 de outubro de 1950, ainda em vigor, traz em seu artigo 1° as hipóteses de utilização de algemas: Art. 1°. O emprego de algemas far-se-á na Polícia do Estado, de regra, nas seguintes diligências: 1°. Condução à presença da autoridade dos delinqüentes detidos em flagrante, em virtude de pronúncia ou nos demais casos previstos em lei, desde que ofereçam resistência ou tentem a fuga; 2°. Condução à presença da autoridade dos ébrios, viciosos e turbulentos, recolhidos na prática de infração e que devam ser postos em custódia, nos termos do Regulamento Policial do Estado, desde que o seu estado externo de exaltação torne indispensável o emprego de força; 3°. Transporte, de uma para outra dependência, ou remoção, de um para outro presídio, dos presos que, pela sua conhecida periculosidade, possam tentar a fuga, durante diligência, ou a tenham tentado, ou oferecido resistência quando de sua detenção.36 34 BRASIL. Lei n° 9.537, de 11 de dezembro de 1997. Dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional e dá outras providências. Disponível em:. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9537.htm. Acesso em: 15 abr. 2009. 35 HERBELLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana: fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex, 2008, p. 81. 36 ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/portal/site/Internet/BuscaDdiLei?vgnextoid=82ea0b9198067110VgnVCM100000590 014acRCRD&status=P&texto=Decreto+Estadual+n%C2%BA+19.903. Acesso em: 15 abr. 2009. Buscando garantir o estrito cumprimento deste Decreto, a Secretaria de Segurança Paulista baixou a Resolução n° 41, de 05 de maio de 1983, a qual estabelece em seu artigo 3° que “o emprego de algemas far-se-á somente nos casos expressamente previstos no Decreto nº 19.903, de 30 de outubro de 1950, observadas as cautelas e as disposições regulamentares ali mencionadas”.37 Além disso, a Lei Estadual Paulista n° 12.906, de 14 de abril de 2008,38 prevê o uso de algemas e tornozeleiras eletrônicas para monitorar presos que cumprem pena em regime aberto ou semi-aberto. Os principais objetivos dessa Lei são tornar a fiscalização dos presos mais efetiva, garantir que retornem após as saídas temporárias autorizadas e reduzir os custos de manutenção do custodiado. Desse modo, o Estado de São Paulo tem regramento próprio dispondo sobre a contenção de pessoas por meio das pulseiras de metal. 2.7 As Regras Mínimas para Tratamento de Presos no Brasil A Resolução n° 14, de 11 de novembro de 1994, editada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão do Ministério da Justiça, criou em nível federal, as Regras Mínimas para Tratamento do Preso no Brasil. Desta Resolução interessa destacar os seguintes dispositivos: Art. 25. Não serão utilizados como instrumentos de punição: correntes, algemas e camisa-de-força. Art. 29. Os meios de coerção, tais como algemas e camisas-de-força, só poderão ser utilizados nos seguintes casos: I – como medida de precaução contra fuga, durante o deslocamento do preso, devendo ser retirados quando do comparecimento em audiência perante autoridade judiciária ou administrativa; II – por motivo de saúde, segundo recomendação médica; III – em circunstâncias excepcionais, quando for indispensável utilizá-los; IV – em razão de perigo iminente para a vida do preso, de servidor, ou de terceiros. 39 Com toda razão, essa norma não admite que as algemas sejam utilizadas como forma de punição ou de humilhação de pessoas, servindo apenas para a contenção momentânea daquele que está sendo detido. As Regras Mínimas para Tratamento do Preso no Brasil trazem ainda as hipóteses que ensejam a aposição de algemas em âmbito federal. 37 ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/portal/site/Internet/BuscaDdiLei?vgnextoid=82ea0b9198067110VgnVCM100000590 014acRCRD&status=P&texto=Decreto+Estadual+n%C2%BA+19.903. Acesso em: 15 abr. 2009. 38 Ibidem. 39 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: http://www.mj.gov.br/cnpcp/main.asp?ViewID=%7BC7BBEEA7%2DFF56%2D4874%2D870D%2D244D26 9A8716%7D¶ms=itemID=%7B84434F13%2DFF18%2D4546%2D87BB%2DBC18F9365596%7D;&UI PartUID=%7B183ACEAD%2DEEF8%2D4BD1%2D9B10%2DC12459181A73%7D. Acesso em: 15 abr. 2009. 3. O USO DE ALGEMAS E SUA PROBLEMÁTICA 3.1 O abuso de autoridade e o constrangimento ilegal Importa analisar se o mau uso das algemas acarreta o crime de abuso de autoridade. A Lei n° 4.898, de 09 de dezembro de 1965, regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade. “A responsabilidade administrativa será apurada por meio de procedimento administrativo próprio (sindicância ou processo), de acordo com o Estatuto ou Lei Orgânica a que estiver sujeito o funcionário que praticou o abuso”.40 Tratando-se de responsabilidade civil o funcionário responderá ação civil indenizatória, nos termos do Código de Processo Civil. Na esfera penal, a responsabilidade do funcionário será apurada com supedâneo nos artigos 3° e 4° da Lei de Abuso de Autoridade. Rômulo de Andrade Moreira assevera que a Lei de Abuso de Autoridade tem dois objetivos primordiais: que a função pública seja exercida na mais absoluta normalidade democrática, no sentido que os representantes da administração pública tenham um comportamento legal, portanto, sem abusos de qualquer ordem; de outro modo, a lei também visa a proteger as garantias individuais inerentes à pessoa, aquelas mesmas postas na Constituição Federal.41 A primeira consideração a ser feita é que, para a aplicação dessa lei, o abuso deve ser praticado pela autoridade no exercício de suas funções. Em segundo lugar, é importante deixar claro o conceito de autoridade.O artigo 5° da Lei considera autoridade qualquer pessoa que exerça função pública, ainda que transitoriamente e sem remuneração.42 Como as algemas não são restritas aos agentes estatais, ao contrário, são de livre comercialização e podem ser encontradas em casas de esportes, ferragens, armas e até em sex shops, é possível que um particular se utilize desse instrumento para a contenção de vítimas seqüestradas, para a prática de tortura e maus tratos, dentre outros fins ilícitos. Entretanto, não havendo vínculo profissional da pessoa que fez mau uso das algemas com o Estado, esta poderá responder por outros crimes, como o de constrangimento ilegal, mas não pelo abuso de autoridade. 40 SILVA, José Geraldo da; LAVORENTI, Wilson; GENOFRE, Fabiano. Leis Penais Especiais Anotadas. 8. ed. São Paulo: Millennium, 2005, p. 349. 41 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Algemas pra quem precisa. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7830. Acesso em:.30 abr. 2009. 42 BRASIL. Lei n° 4.898, de 09 de dezembro de 1965. Regula o direito de representação e o processo de responsabilidade Administrativa, Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l4898.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. O artigo 3°, alínea a, da Lei,43 apregoa que constitui crime de abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção. O direito à liberdade de locomoção engloba quatro situações: direito de ingressar, sair, permanecer e deslocar no território nacional.44 Desse modo, se as algemas forem utilizadas para obstarem ilegalmente o direito de locomoção de uma pessoa estará configurado o crime do mencionado dispositivo legal. Ademais, o artigo 3°, alínea i, da mesma Lei,45 prevê que qualquer atentado à incolumidade física do indivíduo também enseja abuso de autoridade. Assim, se houver excesso na colocação de algemas, seja pela desnecessidade do seu uso, seja pelo ocasionamento de ferimentos nos punhos do preso, o agente do Estado responderá pelo crime de abuso de autoridade em concurso material com o delito que tenha provocado dano à integridade física, como, por exemplo, a lesão corporal. Além disso, o artigo 4°, alínea b, da Lei de Abuso de Autoridade,46 tipifica como abusiva a conduta da autoridade que submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei. Portanto, o que a lei repudia é a violação da integridade física e/ou moral do preso, bem como a sua indevida exposição e humilhação pública quando estiver algemado. A finalidade das algemas deve ser a de contenção e de transporte do preso, garantindo a segurança dele próprio e de terceiros. “O simples ato de algemar, por si só, desde que necessário, justificado e moderado, decorrendo de uma prisão legalmente imposta, nenhum abuso perfaz”.47 3.2 Algemas e os direitos fundamentais 3.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana O primeiro problema que envolve o tema algemas consiste em saber se o uso desse instrumento fere a dignidade humana. Proclamada como fundamento da República 43 BRASIL. Lei n° 4.898, de 09 de dezembro de 1965. Regula o direito de representação e o processo de responsabilidade Administrativa, Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l4898.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 44 MORAES, Alexandre de; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 30. 45 BRASIL. Lei n° 4.898, de 09 de dezembro de 1965. Regula o direito de representação e o processo de responsabilidade Administrativa, Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l4898.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 46 Ibidem. 47 HERBELLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana: fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex, 2008, p.122. Federativa do Brasil no artigo 1°, inciso III, da Constituição,48 a dignidade da pessoa humana, é definida por Alexandre de Moraes como um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.49 Assim, a personalidade humana é o único requisito para a titularidade de direitos. “Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de nenhum outro critério, senão ser humano.50 É o princípio da dignidade que concede unidade aos direitos fundamentais expressos na Constituição de 1988, ou seja, “sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á lhe negando a própria dignidade”.51 A positivação no texto constitucional da dignidade da pessoa humana representa a consagração de uma ordem social justa, consubstanciando o respeito à integridade moral de todo ser humano, independentemente de credo, raça, cor, origem ou status social. O acatamento a esse princípio significa o triunfo da igualdade sobre a intolerância, o preconceito, a exclusão social, a ignorância e a opressão.52 Tendo em vista o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, a utilização de algemas pelos profissionais da área de segurança pública com o fim de contenção daquele que transgrediu uma norma do ordenamento jurídico e para se preservar os direitos dos demais integrantes da sociedade, é legítimo e, por si só, não avilta a dignidade. Seguindo esse entendimento Herotides da Silva Lima ensina que se as algemas [...] atentam contra a dignidade do homem pacto, legitimam-se contra o preso insubmisso; e a insurreição e a violência do preso atentam também contra a autoridade e a lei; a si mesmo ele deve imputar as conseqüências dos seus excessos; já não há a preservar nenhuma dignidade quando a lei já esta sendo ofendida e desprezada a decisão de autoridades, incentivando a desordem generalizada.53 48 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 49 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 50. 50 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade humana. Revista dos advogados, ano 23, n° 70, São Paulo: s.e., jul. 2003, p. 38. 51 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 87. 52 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.392. 53 LIMA, Herotides da Silva. O emprego de algemas. Revista do Departamento de Investigações, ano I, São Paulo: s.e., fev. 1949, p.41. Não sendo usada como forma de impor sofrimento, castigo, humilhação ou de antecipação de pena a quem quer que seja e demonstrando-se a necessidade de sua utilização, as algemas desempenham uma função meramente instrumental, não tendo o condão de atentar contra a dignidade humana. Magalhães Noronha finaliza esse debate ao sustentar que “não há de se falar em humilhação ou ofensa à dignidade humana, visto não se tratar de ‘castigo’, mas de medida acauteladora dos interesses sociais e do próprio detento”.54 3.2.2 O princípio da presunção de inocência Importa ainda esclarecer se o uso dealgemas conflita com o princípio da presunção de inocência. Por força do artigo 5°, inciso LVII, da Constituição, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.55 Esse princípio impede, portanto, que o investigado ou denunciado sofra as conseqüências jurídicas da condenação antes do trânsito em julgado da sentença criminal. Trata-se de garantia processual penal que tem por fim tutelar a liberdade do indivíduo, que é presumido inocente, cabendo ao Estado (no caso de ação penal pública) ou à parte acusadora (na hipótese de ação penal privada) comprovar a sua culpabilidade.56 Todavia, a fim de permitir o êxito da persecução criminal, admite-se a decretação de prisão cautelar e de medidas restritivas de liberdade, como o uso de algemas, mesmo antes da condenação, desde que se mostre necessário e que estas não tenham qualquer propósito de antecipação de pena ou da execução penal. Do mesmo modo, aceitam-se como legítimas as medidas cautelares concernentes ao processo, com a adoção de determinadas medidas de caráter investigatório, tais como a interceptação telefônica.57 Assim, o princípio da presunção de inocência não obsta a adoção de determinadas medidas de caráter cautelar, seja em relação à própria liberdade do eventual investigado ou denunciado, seja em relação aos seus bens. O que não se admite é a que a providência a ser tomada importe em antecipação da condenação ou de sua execução. 3.2.3 A proibição à tortura e ao tratamento desumano ou degradante A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 5° uma série de direitos e garantias fundamentais que devem ser observados pelos agentes estatais no manejo 54 DIÁRIO DE SÃO PAULO. Notícias forenses. São Paulo: s.e., 26 nov. 1950. 55 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 56 LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 626. 57 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 632. de algemas. Dentre esses direitos do artigo 5°, o inciso III garante que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”58 e o inciso XLIII prevê que a lei considerará crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática da tortura, por essa respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-la, se omitirem.59 Por se tratar de norma constitucional de eficácia limitada, o artigo 5°, inciso XLIII depende da atuação do legislador infraconstitucional para produzir efeitos no mundo jurídico. Em razão disso, quanto à inafiançabilidade e insuscetibilidade de graça ou anistia, foi editada a Lei n° 8.072, de 25 de julho de 1990, a conhecida lei dos crimes hediondos.60 Ainda em atenção à determinação constitucional, foi necessária a edição de uma lei infraconstitucional, de competência da União,61 para tipificar os crimes de tortura, surgindo assim a Lei n° 9.455, de 07 de abril de 1997.62 Tortura é um conjunto de procedimentos destinados a forçar, a constranger alguém, mediante coerção física e moral, causando-lhe dor, pavor e sofrimento. “Tal expediente caracteriza-se pela sua finalidade torpe: obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa, com o objetivo de provocar ação ou omissão criminosa, em razão de discriminação racial ou religiosa”.63 Por isso mesmo é considerado um crime inafiançável.64 58 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 59 Ibidem. Embora não esteja expresso no texto constitucional, os crimes insuscetíveis de graça também no admitem indulto, pois este é uma espécie de graça. Na definição de Maria Helena Diniz graça “é o ato de clemência do poder Executivo, favorecendo um condenado por crime comum ou por contravenção, extinguindo ou diminuindo-lhe a pena imposta. Ter-se-á perdão, se a graça for individual, e o indulto, se coletiva. É o perdão concedido pelo Presidente da República, em relevação da pena”. Já a anistia “é um perdão concedido, mediante lei, aplicável a crimes coletivos, em geral políticos, que produz efeitos retroativos, ou seja, desfaz todos os efeitos penais da condenação (mas não eventual ação civil de indenização por danos eventualmente causados pelo anistiado). PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 156. 60 BRASIL. Lei n° 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L8072.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 61 Diz a Constituição Federal em seu artigo. 22 que “compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 62 BRASIL. Lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9455.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 63 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.427. 64 Prevê a Constituição em seu artigo 5º, inciso XLIII que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá- los, se omitirem”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. José Afonso da Silva salienta que “a tortura não é só um crime contra o direito à vida. É uma crueldade que atinge a pessoa em todas as suas dimensões, e a humanidade como um todo”.65 E Uadi Lammêgo Bulos complementa: a tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete – enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva – um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo.66 Nesse sentido a tortura seria um tipo agravado de tratamento desumano, atribuído a alguém com finalidade específica (ex: conseguir uma confissão). Já o tratamento desumano “é o tratamento degradante que provoca grande sofrimento mental ou físico e que na situação específica é injustificável, impondo esforços que vão além dos limites razoáveis (humanos) exigíveis. Assim, o tratamento desumano, engloba o degradante”.67 Por sua vez, o tratamento degradante “ocorre quando há humilhação de alguém perante si mesmo e perante os outros, ou leva a pessoa a agir contra sua vontade ou consciência”.68 Nesse ponto também, desde que devidamente colocadas para que nenhuma lesão seja ocasionada ao detido ou ao preso, as algemas não constituem instrumento de tortura ou de tratamento desumano ou degradante. Ao contrário, as algemas servem como forma de acautelamento do preso. 3.2.4 O direito à integridade física e moral Outra questão a ser investigada é se o uso de algemas viola o direito fundamental à integridade físicae moral daquele que está sendo preso, amparado pelo artigo 5°, inciso XLIX, da Constituição.69 No âmbito legal, esse mesmo direito encontra proteção no artigo 40 da Lei de Execução Penal ao dispor que “impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios”70. A integridade física consiste, como o próprio nome indica, o direito de o cidadão não ter o seu corpo violado fisicamente, danificado, agredido ou ferido. Vale frisar 65 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 201. 66 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.394. 67 VIEIRA, Adriana Dias. Significado de penas e tratamentos desumanos. Análise histórico-jurisprudencial comparativa em três sistemas jurídicos: Brasil, Europa e Estados Unidos. Disponível em: http://www.altrodiritto.unifi.it/latina/dias/index.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 68 Ibidem. 69 “Art. 5º. XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 70 BRASIL. Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivl 03/Leis/L7210.htm. Acesso em: 25 mar. 2009. que esse direito é inclusive tutelado pelo Direito Penal, que tipificou criminalmente como lesão corporal leve (artigo 88 da Lei 9099/95)71, grave ou gravíssima (artigo 129 do Código Penal)72. Já a integridade moral é o direito de o preso ter resguardada a sua incolumidade psíquica, sem ser humilhado, insultado ou menosprezado. Caso esse direito seja desrespeitado a Constituição garante à vítima o direito de resposta proporcional ao agravo, cumulado ou não com uma indenização por dano moral, nos termos do artigo 5°, inciso V.73 Desse modo, impõe-se ao Estado o dever constitucional e legal de vigilância para evitar que qualquer preso que esteja sob sua custódia venha a sofrer danos pessoais. É incumbência dos agentes públicos resguardar as pessoas recolhidas a prisões, buscando evitar que auto-lesões ou agressões praticadas por terceiros venham a ocorrer. Em decorrência desse direito Julio Fabbrini Mirabete assevera que estão proibidos os maus-tratos e castigos que, por sua crueldade ou conteúdo desumano, degradante, vexatório e humilhante, atentam contra a dignidade da pessoa, sua vida, sua integridade física e moral. Ainda que seja difícil desligar esses direitos dos demais, pois dada sua natureza eles se encontram compreendidos entre os restantes, é possível admiti-los isoladamente, estabelecendo, como faz a lei, as condições para que não sejam afetados. Em todas as dependências penitenciárias, e em todos os momentos e situações, devem ser satisfeitas as necessidades de higiene e segurança de ordem material, bem como as relativas ao tratamento digno da pessoa humana que é o preso. 74 Entretanto, Gilmar Ferreira Mendes observa que “a exigência de respeito à integridade física e moral do preso não impede o padecimento moral ou físico experimentado pelo condenado, inerentes às penas supressivas da liberdade”.75 De igual modo, o preso deve se submeter como consectário natural da prisão ao uso de algemas, havendo necessidade de contê-lo ou de transportá-lo, sem que isso ofenda a sua integridade. 71 “Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.” BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 72 “Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano. § 1º Se resulta: I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; II - perigo de vida; III - debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV - aceleração de parto: Pena - reclusão, de um a cinco anos. § 2° Se resulta: I - Incapacidade permanente para o trabalho; II - enfermidade incurável; III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função; IV - deformidade permanente; V - aborto: Pena - reclusão, de dois a oito anos.” BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 73 “Art. 5º. V - V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 74 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 119. 75 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 603. 3.2.5 O direito à imagem versus o direito de informação A principal discussão sobre algemas paira não sobre o seu uso propriamente, mas sobre o vexame causado pela exibição na mídia da pessoa algemada. A Constituição reservou dois incisos do artigo 5° para conferir proteção ao direito à imagem. O inciso V diz que é “assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”76 e o inciso X prevê que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.77 A Constituição protege tanto a imagem social como a imagem retrato. A primeira constitui os atributos exteriores da pessoa, com base naquilo que ela própria transmite na vida em sociedade, e, em regra, os agentes causadores dos danos à imagem social são os meios de comunicação em massa, tais como televisão, rádio, internet, jornais, revistas, boletins, etc. Por seu turno, a imagem retrato representa o físico do indivíduo, ou seja, fisionomia, partes do corpo, gestos, expressões, atitudes, traços fisionômicos, sorrisos, aura, fama, dentre outros, captada pelos recursos tecnológicos e artificiais, normalmente fotografias, filmagens, pinturas, gravuras, esculturas, desenhos, caricaturas, manequins, máscaras.78 Além da cobertura constitucional do direito à imagem, o preso conta com a Lei de Execução Penal, que no artigo 41, inciso VIII, o protege contra qualquer forma de sensacionalismo79, e no artigo 198 diz que “é defesa ao integrante dos órgãos da execução penal, e ao servidor, a divulgação de ocorrência que perturbe a segurança e a disciplina dos estabelecimentos, bem como exponha o preso a inconveniente notoriedade, durante o cumprimento da pena”.80 Há ainda a Resolução n° 14, de 11 de novembro de 1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que trouxe as Regras Mínimas para o tratamento do prisioneiro no Brasil, reiterando a necessidade de preservação da imagem da pessoa presa em seu artigo 47, in verbis: 76 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 77 Ibidem. 78 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.432 e 433. 79 “Art. 41. Constituem direitos do preso. VIII – proteção contra qualquer forma de sensacionalismo.” BRASIL. Lei n° 7.210, de 11de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivl 03/Leis/L7210.htm. Acesso em: 25 mar. 2009. 80 BRASIL. Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivl 03/Leis/L7210.htm. Acesso em: 25 mar. 2009. Art. 47 O preso não será constrangido a participar, ativa ou passivamente, de ato de divulgação de informações aos meios de comunicação social, especialmente no que tange à sua exposição compulsória à fotografia ou filmagem. Parágrafo Único – A autoridade responsável pela custódia do preso providenciará, tanto quanto consinta a lei, para que informações sobre a vida privada e a intimidade do preso sejam mantidas em sigilo, especialmente aquelas que não tenham relação com sua prisão.81 O dano à imagem “é toda investida, proveniente dos Poderes Públicos, pessoas físicas ou jurídicas, que atenta contra a expressão sensível da personalidade”.82 O direito à imagem é inalienável e intransmissível, uma vez que não há como dissociá-lo de seu titular, mas não é indisponível, tendo em vista que a pessoa pode dispor ou não da própria imagem para que outros a utilizem para diversos fins. Em regra, exige-se a autorização expressa do titular da imagem para a sua utilização, sob pena de o responsável pelo manuseio indevido ter que reparar os danos daí decorrentes.83 A violação ao direito de imagem ocorre em três situações distintas. Quanto ao consentimento ocorre quando a pessoa “tem a própria imagem usada sem que tenha dado qualquer consentimento para tal”.84 Quanto ao uso, há o consentimento, “mas o uso feito da imagem ultrapassa os limites da autorização”.85 Por fim, quanto à ausência de finalidades que justifiquem a exceção, “é o caso das fotografias de interesse público, ou de pessoas célebres, cujo uso leva à inexistência de finalidade que se exige para a limitação do direito da imagem. Acontece quando o uso dessas imagens não tem um caráter cultural ou informativo”.86 Excepcionalmente, o direito à imagem poderá se restringido, o que significa que mesmo sem autorização do titular a utilização da imagem não será considerada ilícita. Regina Ferretto D’Azevedo explica que há limitações impostas que restringem o exercício do direito à própria imagem. Essas restrições são baseadas na prevalência do interesse social, e, portanto, o direito coletivo sobrepõe o direito individual. Se o retratado tiver notoriedade, é livre a utilização de sua imagem para fins informativos que não tenham objetivos comerciais, e desde que não haja intromissão em sua vida privada. Com as ressalvas feitas no caso anterior, é livre também a fixação da imagem realizada com objetivo cultural, porque a informação 81 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: http://www.mj.gov.br/cnpcp/main.asp?ViewID=%7BC7BBEEA7%2DFF56%2D4874%2D870D%2D244D26 9A8716%7D¶ms=itemID=%7B84434F13%2DFF18%2D4546%2D87BB%2DBC18F9365596%7D;&UI PartUID=%7B183ACEAD%2DEEF8%2D4BD1%2D9B10%2DC12459181A73%7D. Acesso em: 15 abr. 2009. 82 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.436. 83 HERBELLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana: fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex, 2008, p.101. 84 D’AZEVEDO, Regina Ferretto. Direito à imagem. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2306. Acesso em: 30 abr. 2009. 85 Ibidem. 86 Ibidem. cultural prevalece sobre o indivíduo e sua imagem desde que respeitadas as finalidades da informação ou notícia. Há também os casos de limitação relacionada à ordem pública, como a reprodução e difusão de um retrato falado por exigências de polícia. Obviamente, não teria lógica um criminoso se opor à esta exposição de sua imagem. Há ainda o caso do indivíduo retratado em cenário público, ou durante acontecimentos sociais, pois ao permanecer em lugar público, o indivíduo, implicitamente, autorizou a veiculação de sua imagem, dentro do liame notícia-imagem. Esse indivíduo só poderá alegar ofensa a seu direito à própria imagem se a utilização da fixação da imagem for de cunho comercial.87 Fora dessas hipóteses excepcionais, o uso da imagem alheia exige a devida e expressa autorização do titular. Em razão do progresso tecnológico dos meios de comunicação, tanto na facilidade de captação, como de reprodução e de divulgação da imagem, aumentou a preocupação em se encontrar meios de proteção ao direito à imagem. Dessa maneira, hodiernamente, a violação à imagem pode tomar grandes e irreparáveis proporções, pois por meio da internet, em segundos, uma imagem circula todo o mundo. Se de um lado o detido ou o preso tem o direito de não ser exposto algemado publicamente, os órgãos de comunicação têm o direito de informação. O texto constitucional dispõe no artigo 5°, inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”88 e no artigo 220 que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.89 Assim, a manifestação da liberdade de pensamento é assegurada “tanto sob o aspecto positivo, ou seja, proteção da exteriorização da opinião, como sob o aspecto negativo, referente à proibição de censura”.90 O exercício do direito à informação é de extrema relevância para o Estado Democrático de Direito, mas o que não pode ser tolerado é o abuso desse direito. Sob esse prisma, Ricardo Chimenti expõe que a existência de opinião pública livre é um dos primeiros pressupostos da democracia de um país. Só é possível cogitar de opinião pública livre onde existe liberdade de expressão jornalística. Por isso entende-se que esta é mais do que um direito, uma garantia constitucional. A liberdade de informar só existe diante de fatos cujo conhecimento seja importante para que o indivíduo possa participar do mundo em que vive, não se incluindo, portanto, os fatos sem importância, geralmente relacionados à vida íntima de uma pessoa.91 87 D’AZEVEDO, Regina Ferretto. Direito à imagem. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2306. Acesso em: 30 abr. 2009. 88 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 89 Ibidem. 90 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 72. 91 CHIMENTI, Ricardo et al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 77. Nesse sentido, o que deve ser coibido com veemência é a espetacularização das diligências policiais– e isso serve tanto para a criminalidade de colarinho branco quanto para a criminalidade dos menos favorecidos economicamente – promovida por alguns órgãos de comunicação e por algumas operações policiais. As Forças Policiais devem utilizar algemas como instrumento de trabalho, com o objetivo de conter ou de transportar o detido ou o preso, independentemente do seu status social ou econômico. Não é papel do policial convocar a imprensa para acompanhar o desempenho de suas atividades e também não cabe aos órgãos de comunicação abusar do seu direito de informar explorando imagens de réus algemados que não têm qualquer fim informativo. O direito de informar pode ser exercido, mas desde que não viole os direitos da personalidade do preso. Em 09 de julho de 2008, o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta estampou a capa do jornal O Estado de São Paulo, tentando esconder as algemas, que usava quando de sua prisão pela Polícia Federal, por meio de uma malha de lã jogada sobre elas. Para piorar a situação foi exposto trajandopijamas. Do mesmo modo, a execução das prisões dos senadores Luiz Estevão e Jader Barbalho, dos juízes Nicolau e Rocha Mattos, da cantora Glória Trevi, do jogador argentino Desábato, da proprietária da grife Daslu, do advogado Ricardo Tosto e do banqueiro Daniel Dantas, são casos emblemáticos de pessoas expostas algemadas na mídia e que tiveram repercussão nacional. A figura da pessoa algemada, mesmo que legalmente presa, é degradante e tem o condão de constranger e de provocar, inclusive, a sua morte social. Nessa direção são as lições de Julio Fabbrini Mirabete: Prejudicial tanto para o preso como para a sociedade é o sensacionalismo que marca a atividade de certos meios de comunicação de massa (jornais, revistas, rádio, televisão, etc). Noticiários e entrevistas que visam não à simples informação, mas que têm caráter espetaculoso não só atentam contra a condição da dignidade humana do preso, como também podem dificultar sua ressocialização após o cumprimento da pena. Pode ainda o sensacionalismo produzir efeitos nocivos sobre a personalidade do preso. A divulgação e, principalmente, a exploração, em tom espalhafatoso, de acontecimentos relacionados ao preso, que possam escandalizar ou atrair sobre ele as atenções da comunidade, retirando-o do anonimato, eventualmente o levarão a atitudes anti-sociais, com o fim de manter essa atenção pública em processo de egomania e egocentrismo inteiramente indesejável.92 A imagem desnecessária e aviltante desrespeita não apenas os direitos à personalidade, Alexandre de Moraes também adverte que contraria a própria dignidade da pessoa humana 92 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 123. converter em instrumento de diversão ou entretenimento assuntos de natureza tão íntima quanto falecimentos, padecimentos ou quaisquer desgraças alheias, que não demonstrem nenhuma finalidade pública e caráter jornalístico em sua divulgação. Assim, não existe qualquer dúvida de que a divulgação de fotos, imagens ou notícias apelativas, injuriosas, desnecessárias para a informação objetiva e de interesse público, que acarretem injustificado dano à dignidade humana autoriza a ocorrência de indenização por danos materiais e morais, além do respectivo direito a resposta.93 É preciso considerar que o preso continua titular de direitos fundamentais e só serão restringidos (e nunca suprimidos) aqueles direitos incompatíveis com o cumprimento da pena. Dispõe o artigo 38, do Código Penal, que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral”.94 Dessa forma, o preso tem o direito à imagem e deverá ser devidamente indenizado pelos danos causados pela sua exposição indevida e não autorizada. A orientação das instituições policiais é justamente atuar de modo a não expor o preso, todavia, como salienta o delegado Rodrigo Carneiro Gomes, “não será a polícia que impedirá o trabalho da imprensa que tem o direito constitucional de informar, incumbindo a toda a sociedade conscientizá-la de seu papel e do respeito à imagem dos investigados”.95 Já o promotor de justiça Humberto Ibiapina defende que a maneira de se coibir a exposição injusta e desnecessária do preso, em especial quando está algemado, incumbe também à polícia, mas não só a ela, e sim ao Estado como um todo: cabem aos agentes estatais, Delegados de Polícia, Policiais Militares, Ministério Público e Poder Judiciário o dever de preservar os direitos da personalidade do suspeito, pois como dito antes, o Estado assumiu o dever dessa preservação, quando legislou sobre a proteção à imagem, à honra e à intimidade, elevando tais direitos a nível constitucional, não podendo, esses mesmos agentes, serem desanteciosos neste trato, impedindo as ações previsíveis da mídia sedenta por algo, que lhe ponha no topo da audiência.96 Assim, as algemas podem ser empregadas licitamente pelos agentes estatais como instrumento de constrição física, com a finalidade de garantir a segurança pública ou individual e para impedir a fuga do detido ou do preso. De modo algum, as algemas poderão ser utilizadas como instrumento de execração pública, com o propósito de humilhar ou de ridicularizar a pessoa. A compatibilização do direito à imagem com o direito de informar depende tão somente de uma postura adequada e responsável dos integrantes dos órgãos 93 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 80. 94 BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em: 30 abr. 2009. 95 GOMES, Rodrigo Carneiro. A eficácia das decisões dos juízes criminais e as operações da polícia federal. Revista Jurídica Consulex, Brasília: Consulex, n° 277, 2008, p. 29-30. 96 IBIAPINA, Humberto. A mídia versus o direito à imagem, na investigação policial. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=151. Acesso em: 02 mai. 2009. públicos e dos meios de comunicação. “Se a liberdade de imprensa colide com os direitos individuais, urge alcançar o equilíbrio, de modo que nenhuma das garantias seja obrigada a suportar, sozinha, as conseqüências da indevida expansão da outra”.97 3.2.6 O princípio da proporcionalidade como limite entre a legalidade e o abuso no uso de algemas A dogmática clássica estabeleceu três critérios para a solução de regras conflitantes. O primeiro é o critério hierárquico, segundo o qual a lei superior prevalece sobre a inferior. O segundo é o critério cronológico, pelo qual a lei posterior prevalece sobre a anterior. E o terceiro é o critério da especialização, que prega que a lei específica prevalece sobre lei geral.98 Ocorre que pela aplicação de qualquer um desses critérios, uma regra necessariamente exclui a outra, não servindo, portanto, para resolver conflitos entre princípios constitucionais. Como proceder então, diante de valores igualmente tutelados pela atual Constituição Brasileira que são potencialmente antagônicos, como, por exemplo, o direito à imagem resguardado pelo artigo 5º, inciso X,99 e a liberdade de comunicação, prevista no artigo 5º, inciso IX100? Pelo silogismo clássico, não seria possível saber qual desses bens deve prevalecer, uma vez que ambos são direitos fundamentais constantes de um único texto constitucional, estando, portanto, no mesmo plano hierárquico, criados pelo mesmo poder constituinte e um não é especial ao outro. É cediço que inexistem direitos fundamentais absolutos. A necessidade de coexistência de um direito com os outros direitos impõe forçosamente a admissibilidade de restrições. Previsto implicitamente na Constituição Federal de 1988 pelo artigo 5º, inciso LIV,101 como uma das vertentes do devido processo legal substantivo, e acolhido 97 FRANCO JÚNIOR, Raul de Mello. A imprensa, as ocorrências policiais e a dignidade humana. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=158. Acesso em: 30 abr. 2009. 98 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 346. 99 “Art. 5º. X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 02 mai. 2009. 100 “Art. 5º. IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. BRASIL. Constituição da República
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