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Amne´sia e infereˆncias sobre a memo´ria Fa´bio Scramim Rigo - RA:008632 Marcelo de Almeida Oliveira - RA:009264 Instituto de Computac¸a˜o Universidade Estadual de Campinas MC906A - Inteligeˆncia Artificial 1 Introduc¸a˜o O estudo da operac¸a˜o dos mecanismos da memo´ria ainda e´ muito recente, tendo sido iniciado no inı´cio do se´culo XX, por volta da de´cada de 20, com os experimentos do psico´logo americano Karl Lashley (1890-1958). Muito do que se sabe sobre a memo´ria foi proveniente de estudos de pessoas com amne´sia con- forme veremos adiante. Pore´m, primeiramente, vamos estudar o funcionamento da memo´ria para entender melhor como a amne´sia afeta a memo´ria das pessoas. 2 Memo´ria A memo´ria pode ser descrita como uma sequ¨eˆncia de processos, os quais sa˜o ilustrados pela figura 1. O primeiro destes processos mnemoˆnicos e´ a aquisic¸a˜o, que consiste na entrada de um evento qualquer nos sistemas neurais ligados a memo´ria. Por evento entendemos qualquer coisa memoriza´vel: um objeto, um som, um acontecimento, um pensamento, uma emoc¸a˜o, uma sequ¨eˆncia de movimentos. Estes eventos podem se originar do mundo externo, conduzidos ao sistema nervoso atrave´s dos sentidos, ou enta˜o do mundo interior da pessoa da pessoa, surgidos de nossos pro´prios pensamentos e emoc¸o˜es. Durante a aquisic¸a˜o ocorre uma selec¸a˜o: como os eventos sa˜o geralmente mu´ltiplos e complexos, os sistemas de memo´ria so´ permitem a aquisic¸a˜o de alguns aspectos mais relevantes para a cognic¸a˜o, mais marcantes para a emoc¸a˜o, mais focalizados pela nossa atenc¸a˜o, mais fortes sensorialmente, ou simplesmente priorizados por crite´rios desconhecidos. Apo´s a aquisic¸a˜o dos aspectos selecionados de um evento, estes sa˜o armazenados por algum tempo: a`s vezes por muitos anos, a`s vezes por na˜o mais que alguns segundos. Esse e´ o processo de retenc¸a˜o da memo´ria, durante o qual os aspectos selecionados de cada evento ficam de algum modo disponı´veis para serem lembrados. Com o passar do tempo, alguns desses aspectos ou mesmo todos eles podem desaparecer da memo´ria: e´ o esquecimento. Isso significa dizer que a retenc¸a˜o nem sempre e´ permanente – alia´s, na maioria das vezes e´ tempora´ria. Quando uma pessoas vai ao cinema, logo ao sair e´ capaz de lembrar de muitas cenas e dia´logos do filme. No entanto, ja´ no dia seguinte so´ se lembra de alguns, e apo´s um ano talvez nem se lembre do tema do filme! O tempo de retenc¸a˜o, portanto, e´ limitado pelo esquecimento, e ambos sa˜o definidos, entre outros aspectos, pelo tipo de utilizac¸a˜o que faremos de cada evento memorizado. Os psico´logos teˆm estudado a capacidade de retenc¸a˜o das pessoas, e sabem que ela pode variar de indivı´duo para indivı´duo, bem como em diferentes situac¸o˜es e momentos de cada um. De qualquer modo, esta´ estabelecido que para algumas formas de memo´ria a capacidade de retenc¸a˜o e´ finita e parece na˜o ultrapassar um pequeno nu´mero de itens de cada vez. Para outras formas, a capacidade de retenc¸a˜o e´ praticamente infinita. Testes com volunta´rios normais mostraram que, se lhes apresentamos sequ¨eˆncias de letras para memorizar, o limite me´dio de retenc¸a˜o gira em torno de 7 letras. Quando 1 lhes apresentamos sequ¨eˆncias de palavras, igualmente so´ sa˜o capazes de momorizar cerca de sete. E quando sa˜o expostos a sequ¨eˆncia de frases, o mesmo nu´meros 7 representa o limite para retenc¸a˜o. Isso reforc¸a o conceito de evento que delineamos: nos testes de retenc¸a˜o, os eventos inicialmente foram letras, depois palavras compostas de muitas letras, e depois frases composta de muitas palavras. Os psico´logos tambe´m teˆm estudado os determinantes do esquecimento. Por que retemos algumas coisas e esquecemos de outras? Quais os fatores que determinam um caminho ou outro? Descobriu- se que a retenc¸a˜o e´ altamente influenciada por elementos distratores, e que o nu´mero de distratores determinara´ maior ou menor retenc¸a˜o. Tente memorizar um nu´mero de telefone com algue´m ao seu lado lendo alto outra sequ¨eˆncia de nu´meros. Ale´m da interfereˆncia de distratores, tambe´m a ordem de apresentac¸a˜o de uma sequ¨eˆncia de itens a serem memorizados influi sobre a retenc¸a˜o. Tendemos a reter mais facilmente os primeiros e os u´ltimos de uma se´rie, e esquecemos aqueles situados no meio. O esquecimento e´ uma propriedade normal da memo´ria. Provavelmente desempenha papel muito importante como mecanismo de sobrecarga nos sistemas cerebrais dedicados a` memorizac¸a˜o, e tem ainda a virtude de permitir a filtragem dos aspectos mais relevantes ou importantes de cada evento. Mas ha´ casos em que o esquecimento e´ patolo´gico, para mais ou para menos. Chama-se amne´sia quando o indivı´duo apresenta esquecimento “demais”, e hipermne´sia quando ocorre o oposto – uma exacerbada capacidade de retenc¸a˜o que impede a separac¸a˜o entre aspectos relevantes e irrelevantes dos eventos. Infere-se, do que acabamos de dizer, que, dentre os va´rios aspectos de um evento, alguns sera˜o esquecidos imediatamente, outros sera˜o memorizados durante um certo perı´odo, e apenas uns pou- cos permanecera˜o na memo´ria prolongadamente. Neste u´ltimo caso, diz-se que houve consolidac¸a˜o quando o evento e´ memorizado durante um tempo prolongado, a`s vezes permanentemente. Lembra- mos de algumas coisas durante muito tempo, embora possamos em algum momento esqueceˆ-las. Mas lembramos de outras durante toda a vida, como o nosso pro´prio nome e data do nosso aniversa´rio. Finalmente, o u´ltimo dos processos mnemoˆnicos e´ a evocac¸a˜o ou lembranc¸a, atrave´s do qual temos acesso a` informac¸a˜o armazenada para utiliza´-la mentalmente na cognic¸a˜o e na emoc¸a˜o, por exemplo, ou para exterioriza´-la atrave´s do comportamento. Figura 1: A operac¸a˜o dos sistemas de memo´ria pode ser esquematicamente representada por uma sequ¨eˆncia de etapas, a partir da entrada de um evento novo. 2 2.1 Tipos de memo´ria O trabalho de psico´logos permitiu tambe´m classificar a memo´ria em diferentes tipos, conforme descritos na tabela 1, de acordo com as suas caracterı´sticas. Essa classificac¸a˜o se mostrou importante, pois se verificou que os tipos de memo´ria sa˜o operados por mecanismos e regio˜es cerebrais diferentes. Tipos e Subtipos Caracterı´sticas Quanto ao tempo Ultra-ra´pida Dura de frac¸o˜es de segundos a alguns segundos; memo´ria sensorial de retenc¸a˜o Curta durac¸a˜o Dura minutos ou horas, garante o sentido de continuidade do presente Longa durac¸a˜o Dura horas, dias ou anos, garante o registro do passado autobiogra´fico e dos conhecimentos do indivı´duo Quanto a` natureza Explı´cita ou declarativa Pode ser descrita por meio de palavras - Episo´dica Tem uma refereˆncia temporal; memo´ria de fatos sequ¨enciados - Semaˆntica Envolve conceitos atemporais; memo´ria cultural Implı´cita ou na˜o-declarativa Na˜o pode ser descrita por palavras - Perceptual Representa imagens sem significado conhecido; memo´ria pre´-consciente - Procedural Ha´bitos, habilidades e regras - Associativa Associa dois ou mais estı´mulos (condicionamento cla´ssico), ou um estı´mulo a uma certa resposta (condicionamento operante) -Na˜o associativa Atenua uma resposta (habituac¸a˜o) ou a aumenta (sensibilizac¸a˜o) atrave´s da repetic¸a˜o de um mesmo estı´mulo. Operacional Permite o raciocı´nio e o planejamento do comportamento Tabela 1: Tipos, subtipos e caracterı´sticas da memo´ria. 3 Amne´sia e Hipermne´sia Como a memo´ria explı´cita e´ tipicamente (embora talvez na˜o unicamente) humana, os casos de pacientes com distu´rbios da memo´ria tornam-se muito importantes para a elucidac¸a˜o dos mecanismos neurobiolo´gicos subjacentes. Os neurologistas acumularam descric¸o˜es detalhadas de casos clı´nicos relativamente comuns, como os de pacientes com doenc¸a de Alzheimer e os de alcoo´latras com a sı´ndrome de Korsakoff, ambos portadores de amne´siasgraves. Ha´ tambe´m relatos pormenorizados de casos raros com leso˜es cerebrais localizadas ou de indivı´duos com ce´rebros aparentemente normais que, no entanto, apresentam amne´sias ou hipermne´sias. Geralmente se tenta correlacionar os sintomas com as regio˜es cerebrais lesadas, para tirar concluso˜es sobre os mecanismos da memo´ria humana. A localizac¸a˜o das leso˜es pode ser feita pelo estudo da anatomia patolo´gica apo´s a morte, mas atualmente pode tambe´m ser feita em vida com grande precisa˜o, utilizando os me´todos de imagem cerebral morfolo´gica e funcional. Sendo assim, para o estudo dos distu´rbios da memo´ria, estudaremos alguns casos clı´nicos que entraram para a literatura devido a sua importaˆncia na compreensa˜o da memo´ria humana. 3 3.1 Tipos de amne´sia Os primeiros treˆs tipos descritos podem ser considerados mais gene´ricos, ja´ que englobam os subsequ¨entes. Na literatura me´dica e psicolo´gica encontram-se ainda diversos subtipos, que sera˜o no ma´ximo citados. 3.1.1 Amne´sia antero´grada A amne´sia antero´grada tem como maior sintoma a diminuic¸a˜o da capacidade de consolidar novos conhecimentos, apesar de o indivı´duo ainda ser capaz de se lembrar de fatos ocorridos no passado anterior ao trauma. O indivı´duo perde a noc¸a˜o de familiaridade (por na˜o conseguir relacionar o presente com o passado - “de´ja` vu”). Dependendo da gravidade do caso, um portador de amne´sia antero´grada ainda sera´ capaz de absorver conhecimentos atrave´s de processos repetitivos e mecaˆnicos (processos estes que envolvem a memo´ria implı´cita). Pore´m, existem casos extremos nos quais a memo´ria presente de tal paciente dura apenas poucos segundos. Na Figura 2(a), mostra-se uma linha do tempo que representa a vida do portador de amne´sia an- tero´grada, desde o seu nascimento. Em cada etapa da sua vida, atribui-se um percentual de memo´ria normal para tal indivı´duo. Como pode ser notado, ate´ a lesa˜o sofrida (e que causa a amne´sia an- tero´grada), a memo´ria esta´ normal. Pore´m, a partir de enta˜o, ele na˜o consegue armazenar novas informac¸o˜es. O estudo de caso do paciente HM, que sera´ visto adiante, trata desse tipo de amne´sia. 3.1.2 Amne´sia retro´grada A amne´sia retro´grada tem sintoma oposto ao da amne´sia antero´grada: o portador perde a memo´ria do seu passado, pore´m e´ capaz de aprender normalmente apo´s o trauma que provocou a amne´sia. A perda de memo´ria pode ter diversos nı´veis de gravidade, dependendo das regio˜es cerebrais que foram atingidas. Como a memo´ria de longa durac¸a˜o esta´ espalhada ao longo de todo o ce´rebro, a perda costuma ser parcial. Normalmente a perda de memo´ria se da´ para fatos mais recentes, pois quanto mais tempo se passa, mais consolidada fica uma informac¸a˜o no ce´rebro. Conforme pode ser visto na Figura 2(b), no momento imediatamente anterior a lesa˜o a memo´ria e´ praticamente nula, adquirindo percentagens maiores de memo´ria normal conforme o passado se torna mais longı´nquo. Apo´s a lesa˜o, a retenc¸a˜o de informac¸o˜es volta a se estabilizar nos nı´veis de memo´ria normal. (a) Amne´sia Antero´grada (b) Amne´sia Retro´grada Figura 2: Porcentagem de memo´ria normal com relac¸a˜o ao tempo para a amne´sia antero´grada(a) e para a amne´sia retro´grada(b). 4 3.1.3 Amne´sia global transito´ria A amne´sia global transito´ria e´ uma combinac¸a˜o dos dois tipos ja´ descritos, e normalmente acom- panha os seguintes passos: • Primeiramente, ha´ um surto de amne´sia antero´grada, que dura de alguns minutos a alguns dias; • Apo´s o surto, segue-se uma amne´sia retro´grada para eventos recentes anteriores ao trauma. Esse tipo de amne´sia e´ difı´cil de ser identificado, devido a` falta de causas consistentes. Nor- malmente e´ disparada por enxaquecas, isquemias transito´rias, uso de drogas como a antidiarre´ica clioquinol (que tem sua venda proibida atualmente). Ha´ relatos de pessoas que adquiriram amne´sia global transito´ria devido a stress, banhos frios ou relac¸o˜es sexuais, ja´ que todas essas podem diminuir o fluxo sangu¨ı´neo no ence´falo. Pore´m, os progno´sticos de recuperac¸a˜o sa˜o bastante favora´veis. 3.1.4 Amne´sia infantil Acredita-se que todas as pessoas possuam amne´sia infantil. Esse tipo de amne´sia e´ descrito como a incapacidade de uma pessoa se recordar de sua histo´ria na primeira infaˆncia. Todas as pessoas sa˜o capazes de se recordar de um ou outro fato isolado, pore´m faltam detalhes e uma sequ¨eˆncia cronolo´gica, devido a presenc¸a de inu´meras lacunas. Existem diversas teorias sobre as suas causas, mas todas giram em torno de duas esferas: a neu- rolo´gica e a psicolo´gica. Segundo as teorias neurolo´gicas, o ce´rebro infantil ainda esta´ em processo de amadurecimento. Embora o sistema de memo´ria de uma crianc¸a seja o o mesmo que o de um adulto, os neuroˆnios ainda esta˜o se organizando e mielinizando. Ja´ as teorias psicolo´gicas defendem que a crianc¸a ainda atravessa um processo de aprendizagem da linguagem. Isso faz com que sua forma de codificac¸a˜o e armazenagem de informac¸o˜es na˜o seja compreensı´vel pelos adultos. ´E bem prova´vel que haja uma combinac¸a˜o de ambos os fatores para explicar o fenoˆmeno. Estudos recentes esta˜o confirmando a teoria de que utilizando-se formas na˜o verbais de requisic¸a˜o de informac¸o˜es e´ possı´vel recuperar lembranc¸as armazenadas na primeira infaˆncia. Portanto, supo˜e-se que entre os humanos exista alguma relac¸a˜o entre os mecanismos de linguagem e a forma de pensar, uma vez que ha´ armazenagem de informac¸o˜es que na˜o podem ser recuperadas por vias verbais. 3.1.5 Amne´sia dissociativa ou psicogeˆnica A amne´sia dissociativa ou psicogeˆnica (que ainda e´ chamada de psicolo´gica) prove´m de sı´ndromes emocionais ou traumas, sendo normalmente de cara´ter tempora´rio. Sua caracterı´stica essencial e´ a incapacidade de recordac¸a˜o de fatos pessoais importantes, constituindo lacunas na histo´ria pessoal do indivı´duo. Pode acontecer de parte da memo´ria ser perdida, principalmente no que se refere ao trauma. ´E muito comum acontecer em indivı´duos que se automutilaram, que sofreram ataques violentos ou que tentaram se suicidar. Uma forma mais aguda pode ainda ser encontrada em vı´timas de desastres naturais ou ainda em tempos de guerra. A amne´sia funciona como um mecanismo de defesa contra o trauma, na forma de negac¸a˜o ı´ntima daquilo que aconteceu. Ha´ alguns sintomas associados com esse tipo de amne´sia como: depressa˜o, despersonalizac¸a˜o, estados de transe, analgesia e regressa˜o eta´ria espontaˆnea. 5 3.1.6 Outros tipos Encontra-se na literatura ainda as amne´sias histe´rica e po´s-convulsiva ou epile´ptica. Na˜o sera˜o tratadas em detalhes aqui. A primeira e´ muito semelhante a` dissociativa, tendo pore´m um perı´odo de transitoriedade melhor definido. Muitas vezes e´ relacionada com estados de extrema desorientac¸a˜o por parte do paciente. A outra e´ aquela ocasionada por sequ¨elas de processos convulsivos e/ou epile´ticos. Podem ser relacionadas com traumas neurolo´gicos e ter consequ¨eˆncias diversas. 3.2 Estudo de caso: Amne´sia - HM Teve grande repercussa˜o na literatura me´dica o caso do paciente canadense conhecido pelas ini- ciais HM. HM era portador de epilepsia grave desde a adolesceˆncia. O nu´mero e a intensidade das crises que sofria diariamente levaram os neurologistas a recomendar uma cirurgia radical, durante a qual se faria a remoc¸a˜o dos focos epile´pticos situados no setor medial do lobo temporal, bilateral- mente (veja a figura 3A). A cirurgia foi realizada em 1953, quando HM tinha 27 anos. Logo apo´s a operac¸a˜o constatou-se melhora do quadro epile´ptico, mas infelizmente tambe´m um grave distu´rbio de memo´ria. Figura 3: O paciente HM sofreu a remoc¸a˜o ciru´rgica bilateral das porc¸o˜es mediais do lobo tempo- ral, atingindo o hipocampo e regio˜es adjacentes (a´reasem vermelho em A). Imagens de ressonaˆncia magne´tica realizadas recentemente, mostram a auseˆncia desta regia˜o cerebral (setas vermelhas em B). Examinado por uma equipe de neurologistas e psico´logos durante va´rios anos apo´s a cirurgia, HM na˜o se lembrava da operac¸a˜o, relatava sempre ter 27 anos, na˜o reconhecia os profissionais de sau´de que o atendiam e era incapaz de lembrar qualquer fato que tivesse acontecido a partir de 1953. Lembrava-se perfeitamente, entretanto, dos fatos mais antigos de sua vida, exceto aqueles ocorridos 6 em um perı´odo de dois a treˆs anos imediatamente precedente a` cirurgia. O quadro era de uma amne´sia antero´grada total, isto e´, completa perda de memo´ria para os fatos ocorridos apo´s a lesa˜o de seu sis- tema nervoso, associada a uma amne´sia retro´grada parcial, restrita ao perı´odo imediatamente anterior a` cirurgia, e tanto mais forte quanto mais pro´xima do momento da lesa˜o ciru´rgica. Os psico´logos o examinaram detalhadamente, constatando que sua inteligeˆncia era normal e que ele era capaz de com- preender tudo o que lhe diziam, responder normalmente a perguntas, raciocinar sobre dados que lhe eram apresentados, realizar ca´lculos aritme´ticos, bem como aprender novas habilidades motoras. Seu quadro de amne´sia permaneceu inalterado permanentemente. O caso HM permitiu concluir que as regio˜es mediais do lobo temporal participam de modo funda- mental no processo de consolidac¸a˜o da memo´ria explı´cita, levando a uma modificac¸a˜o na sequ¨eˆncia dos processos de memorizac¸a˜o, ilustrada na figura 4. Mas como justificar esta importante conclusa˜o? Primeiro, as imagens de ressonaˆncia magne´ticas (veja a figura 3B) confirmaram que as estruturas do lobo temporal medial e´ que haviam sido atingidas, sendo elas portanto as responsa´veis pelas func¸o˜es perdidas. Segundo, nem a aquisic¸a˜o nem a retenc¸a˜o tempora´ria da memo´ria sofreram alterac¸o˜es com a lesa˜o, ja´ que HM se mostrou capaz de aprender tarefas tı´picas da memo´ria procedural, como novas habilidades motoras, e reter informac¸o˜es de curta durac¸a˜o em sua memo´ria operacional, para utiliza´- las em testes que envolviam raciocı´nio, ca´lculos e outras operac¸o˜es mentais. Portanto, as func¸o˜es atingidas pela lesa˜o envolviam especificamente a memo´ria explı´cita. Terceiro, as memo´rias ja´ conso- lidadas haviam sido preservadas, o que permitia que HM lembrasse normalmente de fatos ocorridos antes da cirurgia, exceto aqueles ocorridos pro´ximos a ela. A lesa˜o na˜o havia atingido a retenc¸a˜o du- radoura das memo´rias antigas e nem seus processos de evocac¸a˜o. Finalmente, os de´ficits apresentados por HM se restringiam a` consolidac¸a˜o da memo´ria explı´cita, provocando amne´sia antero´grada (inca- pacidade de reter novas memo´rias) e amne´sia retro´grada pre´-lesional (incapacidade de consolidar as memo´rias de curta durac¸a˜o que haviam sido adquiridas pouco tempo antes da cirurgia). Figura 4: O estudo dos sintomas de apresentados por HM permitiu concluir que o hipocampo esta´ envolvido especificamente com os processos de consolidac¸a˜o da memo´ria explı´cita. O caso HM estimulou bastante a observac¸a˜o neurolo´gica de outros pacientes com de´ficits de memo´ria, muitos outros casos de amne´sia foram estudados e relacionados a leso˜es neurais localizadas ou generalizadas. Por exemplo, ocorre amne´sia retro´grada isolada em certos casos de leso˜es do lobo temporal lateral; ocorre de´ficit na memo´ria operacional em casos de lesa˜o do giro supramarginal, e assim por diante. 7 3.3 Estudo de caso: Hipermne´sia - S. Sherashevski O neurologista russo Aleksandr Luria (1903-1978) acompanhou desde os anos 20 as venturas e desventuras de um jovem repo´rter de jornal que tinha uma fanta´stica caracterı´stica: hipermne´sia e incapacidade de esquecer! S. Sherashevski era capaz de memorizar listas de 70 a 100 itens (palavras e nu´meros, especialmente), repetindo-os em qualquer ordem. Sua extraordina´ria memo´ria explı´cita fez com que deixasse a profissa˜o para ganhar dinheiro exibindo-se em apresentac¸o˜es populares. Mas o que seria uma vantagem tornou-se uma desvantagem. As sucessivas se´ries de itens que tinha que memorizar na˜o podiam ser esquecidas, e cada vez se tornava mais difı´cil diferencia´-las umas das ou- tras! Sua capacidade de pensar era limitada, porque na˜o conseguia ignorar detalhes para generalizar uma coisa. Luria investigou o mecanismo utilizado por seu paciente e concluiu que ele apresentava uma anomalia perceptual chamada sinestesia, valendo-se dela para sua extraordina´ria memo´ria. Cada palavra (ou nu´mero, ou um evento qualquer) era associada a uma imagem visual, a uma sensac¸a˜o corporal, a um cheiro e a um gosto. Uma vez declarou, lembrando-se de uma pessoa: “Tem a voz amarela e crocante”. O nu´mero de associac¸o˜es sensoriais que estabelecia com objetos e fatos, facili- tava a memorizac¸a˜o, mas dificultava muito sua compreensa˜o. A cada palavra de cada frase que ouvia, imediatamente associava imagens, sons e outras sensac¸o˜es. Ao final se perdia na compreensa˜o do sentido. Os casos de hipermne´sia sa˜o muito raros, e ainda na˜o foi possı´vel compreender sua determinac¸a˜o neurobiolo´gica. 3.4 Algumas du´vidas relevantes sobre amne´sia 3.4.1 O que provoca a amne´sia? Sabe-se hoje que a amne´sia pode provir de patologias neurais, estados emocionais crı´ticos (como o stress, a ansiedade e a depressa˜o), problemas de metabolismo ou intoxicac¸o˜es. Dentre as formas mais conhecidas de amne´sia esta˜o as demeˆncias - tambe´m chamadas de “esclerose” - sendo a mais comum a doenc¸a de Alzheimer (que tem como sintomas a acentuada perda de memo´ria e a alienac¸a˜o). A sı´ndrome de Korsakoff, provocada pelo alcoolismo croˆnico, tambe´m e´ uma causa frequ¨ente de amne´sia. Seus sintomas incluem a incapacidade de aprender novos atos simples, embora o indivı´duo ainda seja capaz de executar procedimentos complexos aprendidos antes da sı´ndrome. Quando o alcoolismo provoca a amne´sia, a doenc¸a torna-se progressiva e irreversı´vel. A falta de vitamina B1 (tiamina), hipotireoidismo, uso prolongado de calmantes, vida sedenta´ria com excesso de preocupac¸o˜es e insatisfac¸o˜es, e ainda dieta deficiente podem provocar perda de memo´ria. Tais perdas de memo´ria frequ¨entemente sa˜o localizadas num curto intervalo de tempo, mas podem vir a desenvolver os sintomas de amne´sia. 3.4.2 ´E possı´vel reverter a amne´sia? A reversa˜o da amne´sia depende muito das causas, do tipo e da gravidade da mesma. Uma amne´sia do tipo global transito´ria normalmente e´ revertida, enquanto amne´sias provenientes de danos severos no ce´rebro sa˜o permanentes. Casos de origem psicolo´gica podem ser revertidos atrave´s de terapia. Cada caso deve ser analisado individualmente, e nos casos de gravidade intermedia´ria e´ possı´vel desenvolver te´cnicas alternativas para o aprendizado, que independa das a´reas cerebrais afetadas. 8 Por fim, ao contra´rio do que muitos pensam, as te´cnicas citadas abaixo na˜o trazem resultados na reversa˜o da amne´sia: • Hipnose • Regressa˜o • Interpretac¸a˜o de sonhos • Entrevistas com uso de drogas 3.5 Filmes Amne´sia antero´grada - Amne´sia (Memento), Como se fosse a primeira vez (50 First Dates). Amne´sia retro´grada - Filmes com as famosas perguntas: “Quem sou eu?”, “Onde estou?”. 4 Concluso˜es Do presente estudo, pode-se concluir que a amne´sia e´ um fenoˆmeno bastante comum, e que tem bases tanto neurolo´gicas quanto psicolo´gicas. Pode ser causada por leso˜es no ce´rebro, doenc¸as, dro- gas, experieˆncias trauma´ticas, insuficieˆncias de metabo´litos e nutrientes ou ate´ mesmo imaturidade do sistema nervoso e deficieˆncias de linguagem. Dependendo do tipo e da gravidade da amne´sia, ela pode ser revertida, mas mesmo que na˜o o seja, ha´ meios de contorna´-la atrave´s de um novo estilo de vida. Estudou-se aqui tambe´m os diversostipos e mecanismos de memo´ria, que constitui-se num pre´- requisito para a compreensa˜o do fenoˆmeno da amne´sia. Existem diversos tipos de memo´ria, que podem ser classificados de va´rias maneiras, e se encontram espalhados ao longo do ce´rebro em seus muitos “centros”. Os estudos de caso sa˜o de extrema importaˆncia para o conhecimento de fenoˆmenos neurolo´gicos e psı´quicos, e aqueles descritos aqui esta˜o entre os mais elucidativos com relac¸a˜o a` memo´ria e seus mecanismos. O caso HM demonstra uma das origens da amne´sia antero´grada, decorrente da remoc¸a˜o do hipocampo do paciente, o que lhe retirou a capacidade de consolidar novos conhecimentos. O caso Sherashevski demonstra por sua vez os efeitos catastro´ficos do na˜o esquecimento, e o porqueˆ dos mecanismos naturais de selec¸a˜o e rejeic¸a˜o das informac¸o˜es. Por fim, reuniu-se algumas curiosidades e du´vidas frequ¨entes sobre amne´sia, e filmes nos quais seus efeitos podem ser vistos por pessoas interessadas no assunto. Refereˆncias [1] Mark F. Bear, Neurocieˆncias - Desvendando o sistema nervoso, Ed. Artmed, Porto Alegre, 2002. [2] Robert J. Sternberg, Psicologia Cognitiva, Ed. Artmed, Porto Alegre, 2000. [3] Roberto Lent, Cem Bilho˜es de Neuroˆnios, Ed. Atheneu, Rio de Janeiro, 2002. [4] Rosenweig and Bennett, Neural Mechanisms of Learning and Memory, The MIT Press, Boston, 1976. 9
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