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1 SOCIOLOGIA PARA NÃO-SOCIÓLOGOS ENCONTROS COM A SOCIOLOGIA Annie Dymetman 2007 2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ENCONTRO 1: Sociologia para não sociólogos ENCONTRO 2: Apresentação do curso e “dicas” da disciplina ENCONTRO 3: Formas do conhecer. ENCONTRO 4: A “cabeça” das novas tecnologias. ENCONTRO 5: A ciência e a modernidade. ENCONTRO 6: Interdisciplinaridade: o hipertexto das disciplinas, o hipertexto das ciências. ENCONTRO 7: Trabalho concreto e trabalho abstrato. ENCONTRO 8: Produção Material e Produção Imaterial. ENCONTRO 9: Indústria Cultural, “da mão ao olho”. ENCONTRO 10: Conhecendo a Dialética. ENCONTRO 11: A inclusão pela exclusão. ENCONTRO 12: Karl Marx e Max Weber, uma comparação. ENCONTRO 13: A razão dualista brasileira. 3 INTRODUÇÃO Este livro visa colocar o leitor, em geral, e o aluno das disciplinas sociais e humanas em particular, em contato com as grandes mudanças por que a sociedade contemporânea atravessa, apresentando os temas e as questões na pauta das discussões atuais. Justamente devido à atualidade de parte dos temas, eles não estão inteiramente contemplados nos manuais de sociologia disponíveis, que serviriam de base para um curso introdutório. Assim, decidimos escrever, nós mesmos, o “nosso” manual. O texto, na sua maior parte, é o produto dos cursos de Sociologia realizados ao longo do ano letivo de 2006 aos alunos dos primeiros anos noturnos de Direito e de Comércio Exterior, da Universidade São Judas Tadeu. A partir de um roteiro experimental, a aula era ministrada e, com a participação dos universitários, por meio de questionamentos e dúvidas que um material tão novo suscitava, traçamos as linhas gerais e os exemplos que comporiam o texto. No momento de redação de cada um dos nossos encontros, as sugestões, perguntas e críticas dos estudantes eram inseridas no roteiro inicial. Nossa escrita, portanto, tem o perfil de um hipertexto que se constrói à medida que vai sendo escrito. Como diz a música, é “o caminho que se faz ao andar”. Trata-se de um texto democrático, em que a voz de todos está presente. Cada encontro tinha um objetivo específico a ser atingido. A didática tinha a forma de uma construção, o que exigiu a concentração e a participação intensa dos alunos, a quem são dirigidos aqui os nossos agradecimentos. Os estudantes e pessoas interessadas em aprofundar suas leituras encontrarão no final do nosso texto parte da relação bibliográfica que serviu de base para os encontros, e que estão indicadas nas notas de rodapé, sempre que citados. Como se trata de bibliografia recomendada, são textos fáceis de encontrar e interessantes. ENCONTRO 1: Sociologia para não-sociólogos Para que serve um curso de sociologia para o aluno que pretende ser advogado, juiz, delegado, empresário, administrador, consultor de negócios, médico, enfermeiro, fisioterapeuta, educador, assistente social ou mesmo atendente de alguma ONG? E por que esses mesmos profissionais não precisam de um curso de Engenharia para não engenheiros ou de Física pra não físicos, de Medicina para não médicos ou, ainda, de Química para não químicos? 4 Seria para preencher a grade acadêmica? Ou para dar emprego aos sociólogos? Ou seria simplesmente porque a Sociologia, que lida com as relações entre os homens, é uma disciplina interessante à formação cultural dos alunos? Obviamente, nenhuma das respostas será a verdadeira. Então, se os futuros profissionais mencionados acima não pretendem fazer o que os sociólogos fazem, por que o curso de Sociologia é obrigatório? E além de obrigatório, ministrado logo no 1º ano, juntamente com as outras disciplinas introdutórias específicas? O que justifica um extenso curso de Sociologia, e que pode não ser óbvio num primeiro momento, é que o Direito, assim como a Administração e o Comércio Exterior, a Medicina, a Enfermagem, a Assistência Social, a Educação são, todas elas, ciências sociais. Embora, na sua maior parte, sejam disciplinas operacionais, práticas, quase técnicas, todas ocorrem dentro do contexto social geral. Em outras palavras, nenhuma delas é uma bolha solta no espaço, nenhum desses saberes é auto-suficiente como, por exemplo, a Aritmética e a Geometria. Embora, de um lado, o nascimento da Aritmética - as operações simples - se deva à necessidade de contagem da propriedade – o número de cabras de um rebanho, por exemplo – para fins de troca e, de outro, os fundamentos da Geometria se devam à necessidade de demarcação da propriedade territorial, esses corpos de conhecimento foram construídos numa lógica interna própria, desligada da realidade da natureza e dos homens. Assim, pode-se dizer que suas verdades independem da época histórica em que foram ditas. A equação 1+1=2, por exemplo, dentro do contexto da Aritmética, é sempre verdadeira, assim como na Geometria, a área de um retângulo é sempre a base multiplicada pela altura. Eram verdadeiras na Grécia Antiga, na Idade Média, nos tempos da Revolução Francesa, assim como hoje, na Idade Contemporânea. Tampouco dependem do sistema político em vigor, seja ele democrático ou totalitário, seja ele monarquia ou república. Nem dependem do tipo de tecnologia adotada pela sociedade, seja ela a artesanal das tribos antigas ou das sociedades mais modernas com a energia do vapor, do motor de explosão, da eletricidade ou da atual, a tecnologia digital, da informática, da Internet. Sistemas de saber abstratos que, enquanto sistemas, existem apenas na cabeça dos homens, conservam-se sempre os mesmos, porque não são tocados pela realidade concreta e cotidiana da vida. O mesmo não ocorre quando os sistemas de saber são resultado da 5 vontade, das opiniões, dos desejos, dos valores, dos julgamentos, das paixões e dos sonhos dos homens. Neste sentido, os números da Aritmética ou as leis da Geometria, por não estarem diretamente relacionadas à realidade concreta e empírica, em si mesmos, não têm valor. Eles são neutros. Não se pode dizer que o número 7 seja mais bonito que o número 8, por exemplo. Ou mais justo, ou melhor. Os números, em si, não têm valor algum. Se, entretanto, eu os coloco dentro da realidade concreta, como a nota de uma prova, ou como o preço de um carro novo, como valor, então sim, o 8 pode ser melhor que o 7 e pior que o 9. Assim, o que transforma o número - que, em si, não tem valor - em valor é o significado que os homens lhe atribuem. Outro exemplo, embora exagerado, é a piadinha: “quando é que 1+1=3?”. Ora, “quando uma mulher e um homem jovens e saudáveis estão numa ilha deserta”. Em outras palavras, até mesmo a verdade absoluta da Aritmética, que 1+1=2, quando colocada dentro de um contexto social específico, pode ser refutada. É neste sentido que a Sociologia - que trabalha com as relações entre os grupos e as sociedades humanas - é fundamental para dar contexto e, através do contexto, dar sentido e atribuir significado específico a todas as disciplinas sobre as quais falamos anteriormente. É a Sociologia que vai desvendar os contextos sociais gerais, os processos históricos, políticos e econômicos que desenvolveram e continuam desenvolvendo as técnicas e o modus operandi das diversas profissões, a fim de torná-las de fato eficientes e trazer resultados cada vez mais positivos e atualizados. Justamente por isso, a Sociologia, por dever de profissão, está sempre com o dedo no pulso da realidade sociale, portanto, é uma das disciplinas que mais acompanham as mudanças sociais, atualizando-se constantemente. Entretanto, há já alguns anos, os cursos de Sociologia Geral, bem como os manuais, têm soado obsoletos. Há uma sensação de “descompasso” entre o que ocorre na sociedade contemporânea, o estudo que dela fazemos e, principalmente, o sentido que damos ao estudo, devido ao enorme impacto e velocidade das mudanças. Nas duas últimas décadas, temos a impressão cada vez maior de estar dentro do olho do furacão das mudanças. É como se o próprio ritmo acelerado das transformações tivesse, também ele, se 6 transformado, fugido ao nosso controle, no sentido de que vivemos hoje um tempo de aceleração da própria aceleração. As mudanças, que ocorrem nas dimensões mais importantes da vida dos homens e das suas instituições, acontecem tão rapidamente que parecem atropelar umas às outras. Quando assistimos ao noticiário na televisão, por exemplo, que dá suas informações em tempo real, com diferença de poucas horas entre o ocorrido e a notícia, esta parece chegar já envelhecida e superada. Sequer temos o tempo e o gostinho de comentá-la, como fazíamos no passado, porque logo depois de apresentada, é substituída por outra, mais importante, mais urgente, mais significativa. Uma causa central dessa “aceleração da aceleração”, dessa sensação de perda de controle do próprio ritmo das mudanças em nossa atualidade, como se o maquinista da locomotiva do nosso presente tivesse saltado para fora do trem, está na revolução permanente dos meios de comunicação, conseqüência produzida pelas novas tecnologias da informação, pela revolução digital, que atinge todos os setores da vida humana. Vejam só como são grandes as mudanças e como elas envolvem todos os aspectos não só do nosso cotidiano, como da leitura que fazemos, até das gerações que nos antecederam; mudanças que nos deixam perplexos em relação ao rumo que as coisas ainda podem tomar no futuro próximo e longínquo. Antes de citar alguns exemplos dessas mudanças, queremos tranqüilizá-los em relação à avalanche de informação dos parágrafos a seguir, pois no decorrer dos nossos encontros abordaremos cada uma delas, em seu devido tempo. No setor da economia, o grande acontecimento introduzido pela revolução digital foi a globalização financeira, através da qual, diariamente, dois trilhões de dólares – dois trilhões de dólares! - são aplicados e transferidos de um país a outro, de um continente a outro, através do simples clique de um mouse, num “piscar de olhos”. Através dessa globalização financeira, podemos falar em um mercado global homogeneizado, do qual todas as nações participam. No setor da política, o grande acontecimento, os eventos que serviram de detonadores da mudança foram a queda do Muro de Berlim em 1989, a conseqüente dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria, que trouxe um novo reparto mundial do poder, com novos atores e parceiros internacionais – novas nações, grandes 7 organizações não-governamentais, as ONGs, grupos empresariais multinacionais e blocos de nações como a União Européia -, homogeneizando a política global e possibilitando, através das novas tecnologias de informação, a visibilidade permanente de todos estes novos atores. No reino da cultura – com fortes reflexos na economia - assistimos à globalização e à homogeneização do consumo e, portanto, da produção, que inclui desde marcas de alimento e refrigerantes, estilos de vestir, de decorar nossas casas, até artefatos tecnológicos como o computador (Internet, Orkut, Wikipédia), o celular, o CD, o MP3, o MP4 e a globalização e a homogeneização das músicas que ouvimos, dos filmes e seriados a que assistimos, e assim por diante. No reino do trabalho, tivemos grandes mudanças, das quais as principais são, sem dúvida, a flexibilização – principalmente o trabalho sem carteira assinada -, a terceirização – o trabalho que, ao invés de ser realizado por operários assalariados, é feito por uma outra empresa, como serviço prestado - e o desemprego – resultante da substituição dos homens por máquinas e da informatização do trabalho. Em todo o mundo, com fortes repercussões políticas, de forma quase que globalizada, a todo instante ficamos sabendo de manifestações – umas mais, outras menos violentas -contra a desregulação do trabalho ou reivindicando melhora na legislação trabalhista. No reino do comércio, em todo o mundo, por conta da informatização, compramos mercadorias cada vez mais virtuais, menos tangíveis, menos concretas. Ao invés de objetos, compramos o acesso a serviços, por exemplo, na forma de assinatura mensal ou anual, como é o caso da Internet ou da telefonia celular. Ou, então, ao invés de comprarmos a roupa, compramos a marca da roupa, a etiqueta; assim, embora vistamos a roupa, na verdade estamos usando a etiqueta. Em outras palavras, a roupa é só um pretexto para usarmos a etiqueta. No reino do consumo, da demanda, falamos de um cliente cada vez mais exigente, informado, conectado. O produto - objeto concreto, acesso, atendimento ou prestação de serviço - deve ser cada vez mais personalizado e individualizado. O cliente faz do consumo uma relação pessoal, quase que amorosa, de reconhecimento de sua própria identidade, enfim, de “seu lugar no mundo”. 8 No reino do direito, além das mudanças advindas por conta da desregulação do trabalho, outras duas grandes mudanças importantes vêm ocorrendo: uma na área do direito internacional, com o surgimento dos novos atores políticos a que nos referimos anteriormente, e a outra, não menos importante, o aprofundamento dos direitos humanos que, dos direitos fundamentais – conhecidos como direitos de primeira geração, tais como o direito à vida – se estenderam aos direitos sociais – direitos ao trabalho decente, de segunda geração - e, atualmente, aprofundam-se nos direitos civis. No reino da vida, o desenvolvimento da farmacêutica e da medicina nos possibilita viver muito, muito mais. Não só a mortalidade infantil diminuiu significativamente, como a longevidade aumentou de forma vertiginosa. Os “velhos” do passado (aos 50, 60 anos), com uma expectativa de vida muito maior, estão hoje “recomeçando” suas vidas, entrando em novas profissões, em novos cursos e mesmo em novas relações amorosas, constituindo- se em novo nicho de consumidores. Como vêem, justifica-se plenamente a sensação de que um curso de Sociologia, tem de acompanhar todas essas mudanças, atualizar-se, renovar sua própria forma, fazendo parte deste novo momento histórico, em que tudo é novo, a fim de assimilar os “novos ritmos” e a “nova cabeça” da sociedade contemporânea. Neste novo mundo, com o surgimento de novas relações comerciais e de prestação de todo tipo de serviços, com o novo direito, as novas demandas, o novo reparto mundial, também uma nova sociologia se faz necessária. A inspiração para inovar este trabalho foi a frase de um artigo da revista semanal do jornal Folha de São Paulo, muito sugestiva, sobre o forte impacto das novas tecnologias da informação, e que dizia: “a nova geração é nativa de um país no qual a velha geração fala com sotaque”. Tratava-se de uma metáfora, em que “o país” era justamente a nova sociedade da informação, a sociedade digital, também denominada sociedade da inteligência ou mesmo sociedade do conhecimento. Neste país, a nova geração, a geração dos nossos alunos, é apresentada como totalmente integrada às novas tecnologias - do computador ao celular e aos games sofisticados -, enquanto a velha geração ainda encontra dificuldades de adaptação: a velha geração fala a nova linguagem, a linguagem da informação, com“sotaque”. 9 Quantos jovens não têm, ainda hoje, de ajudar os pais na resolução de algum problema de computador, do DVD, ou da Internet. Quantas vezes ouvimos os mais velhos se queixarem de não acompanhar todas essas inovações, e quantas vezes ouvimos dizer que a nova geração já vem, “de fábrica”, sabendo acionar todos os novos equipamentos! Foi nessa direção que o nosso trabalho foi transformado. Ao invés de iniciarmos lá atrás, no passado distante, na formação da Sociologia como disciplina, para explicar como chegamos aonde estamos, tomamos como ponto de partida o presente, a nossa atualidade, o mundo contemporâneo. Iniciamos, portanto, de dentro do próprio “olho do furacão”, perguntando-nos sobre as conseqüências trazidas pela revolução digital, pelo que denominamos anteriormente a aceleração da aceleração, esta sensação de estarmos sempre correndo atrás do tempo, correndo atrás deste nosso presente que já chega em transformação. * * * * Neste ponto, para fechar nosso primeiro encontro, vamos falar dos dois paradoxos da Sociologia para aqueles que dela se aproximam pela primeira vez. O primeiro deles reside no fato de que todos nós, por vivermos em sociedade, conhecemos de antemão os fenômenos que a Sociologia estuda: a desigualdade, o poder, a violência, a família, a amizade, o casamento, a educação, o trabalho, a pobreza, e tudo aquilo que é humano e socialmente significativo. Não só conhecemos, como temos e emitimos opiniões a respeito de todos eles. Este é o primeiro paradoxo: vamos estudar algo que já sabemos. Como resolvê-lo? Como transformar algo já “manjado, degustado e deglutido” numa nova experiência? Pois a resposta está implícita no que até aqui dissemos que é a própria função da Sociologia: a de encararmos a nossa “velha sabedoria”, nossas opiniões já formadas e cristalizadas sobre os fenômenos sociais do nosso cotidiano, como uma sabedoria parcial e contingente, fruto de um determinado momento histórico, de uma determinada sociedade, de uma determinada camada social, fruto, enfim, da biografia de cada um de nós. A postura que faz a diferença, portanto, é ao invés do “já sabemos”, passarmos para o “supomos que já sabemos, mas vamos conhecer como é que pessoas de outros grupos sociais do nosso próprio tempo e da nossa própria sociedade sabem”. 10 É como se nós, com nossas crenças, opiniões, julgamentos e desejos, nos tornássemos o objeto do nosso próprio estudo. Dito de outra forma, a nossa atualidade, o mundo no qual estamos inseridos, ao invés de ser por nós vivido, torna-se o tema do nosso ponto de partida. Nós nos debruçaremos sobre nós mesmos, refletiremos sobre nossas próprias vidas, sobre as diversas formas do nosso viver atual, sobre as nossas instituições, nossas organizações e as formas de relações. Trata-se, portanto, de uma atitude reflexiva, em que somos o sujeito e o objeto do nosso próprio conhecimento. O segundo paradoxo está relacionado com a definição da Sociologia. Afinal, o que é Sociologia? Nas páginas anteriores, embora não tivéssemos definido exatamente o que é a Sociologia, já começamos a praticá-la, ao fazermos nosso rápido sobrevôo sobre algumas das dimensões mais importantes da nossa vida em sociedade: a política, a economia, o comércio, a tecnologia, e assim por diante. Este é o segundo paradoxo: por vivermos nossa vida em sociedade, fazemos sociologia antes mesmo de saber o que ela é. ENCONTRO 2: Apresentação do curso e “dicas” da disciplina Como vimos no nosso primeiro encontro, faremos sociologia sem sabermos exatamente o que ela é, de forma que recomendamos algumas dicas que, aliás, serão retomadas várias vezes ao longo dos nossos encontros, a fim de facilitar ao leitor a reflexão sobre os fenômenos sociais aqui em discussão e a fim de que essas mesmas dicas se tornem, cada vez mais, parte do cotidiano do estudante, uma postura com a qual ele se familiarizará cada vez mais. Em primeiro lugar, de forma geral, o “objeto da Sociologia é a sociedade”. Entretanto, é recomendável não usar expressões do tipo “a sociedade brasileira”, ou “a sociedade é contra o crime”, “a sociedade é a favor da democracia” etc., pois elas colocam as perguntas: “de quem é que estamos falando?”, “quem é a sociedade brasileira?”. A sociedade brasileira são os cidadãos brasileiros? E os estrangeiros que vivem no Brasil, não pertencem à sociedade brasileira? E aqueles que não estão registrados como cidadãos? Aqueles não têm carteira de identidade? Veremos que, na verdade, a sociedade brasileira é formada por uma multiplicidade de segmentos. Portanto, quando falarmos de algum coletivo, devemos ter o cuidado de indicar claramente a qual segmento nos referimos. 11 Exemplo: “os jovens das camadas mais elevadas dos grandes centros urbanos no Brasil são os maiores consumidores de marcas da moda”. Dica 1: Uma das dificuldades para os que estão se iniciando no pensamento sociológico é de que os temas sobre os quais a sociologia versa são os mesmos do “cidadão comum”, do “indivíduo do cotidiano”, do ator social, como violência, desemprego, desigualdade, política etc. A diferença, entretanto, é de postura. O ator social emite a sua opinião sobre um fato violento, enquanto que ao sociólogo interessa a opinião do ator social sobre aquele fato. Ou seja, quando em Sociologia falamos em violência, referimo-nos às diversas falas dos diferentes segmentos da sociedade sobre a violência. Nossa opinião sobre a violência só é relevante quando somos atores sociais e não quando somos sociólogos. Portanto, poderíamos resumir a diferença entre o sociólogo – o cientista social – e o homem do cotidiano, segundo o esquema a seguir: O ator social pensa a liberdade – o objeto de pensamento do ator social é a liberdade. O sociólogo pensa a liberdade, refletindo sobre o pensamento do ator social sobre a liberdade – o objeto de pensamento do sociólogo é o ator social. A grande vantagem de discutirmos uma questão social - por exemplo, o Estado de direito - a partir de “como o outro pensa esta determinada questão”, é de ver com mais clareza de onde é que cada um está falando, quais são os interesses ou quais os valores que os levam a pensar a questão desta ou daquela maneira, o que nos dá uma visão muito mais ampla da questão em si e do contexto social e político no qual está inserida. Para entender a diferença entre “estar tomado pelo tema em questão” - estar envolvido emocionalmente - e “analisar de fora” – ter uma postura neutra -, tomemos como exemplo um acontecimento da recente da realidade brasileira, o segundo turno da eleição para presidente do Brasil, que tinha como candidatos, de um lado, o presidente em exercício e, de outro, o ex- governador de São Paulo, licenciado do governo justamente para participar das eleições à presidência. O exemplo aqui sugerido é o de uma mesa redonda para discutir os resultados do segundo turno, da qual participavam vários cientistas sociais. Pois bem: a discussão da mesa estava em torno do eleitor brasileiro. Um 12 participante colocou que a questão central para o eleitor estava entre de um lado, a ética, representada pelo candidato ex-governador, que a todo momento, durante a campanha das eleições, atacava seu oponente, acusando seu governo de inúmeros atos imorais de corrupção e compra de votos de parlamentares. E, de outro lado, o social, a luta pela igualdade, representada pelo candidato-presidente que, durante toda a campanha eleitoral, lembrava as grandes quantias de dinheiro que seu governo havia investido em programas sociais. Tão logo a opção entre a ética e o social foi colocada para debate, os participantes,que além de cientistas sociais eram também atores sociais, isto é, eleitores com partidos de sua preferência, começaram a discutir ética e igualdade. Os participantes que apoiavam o candidato ex-governador atacaram os projetos sociais do presidente, no sentido de que “dão o peixe, mas não ensinam a pescar”, enquanto os que apoiavam o candidato-presidente atacaram a postura ética do outro candidato, lembrando que seu partido, de há muito tempo, estava mergulhado em corrupções. Todos os participantes, portanto, estavam atuando como atores sociais e não como cientistas. Quando a discussão parecia não ter fim, um dos participantes, que até então se mantivera em silêncio, tomando a postura de um cientista e não de ator social, redirecionou o debate, lembrando que todos eles não estavam ali para expressar suas próprias preferências sobre qual dos dois candidatos era o melhor, mas sim para tentar entender o eleitor brasileiro, para tentar explicar por que ele havia preferido o candidato-presidente, apesar dos casos de corrupção que vieram à tona no último ano e meio de seu mandato. A conclusão desse exemplo é que enquanto o ator social emite opiniões, julga situações e expressa preferências, o cientista social analisa, constrói hipóteses ou elabora teorias que expliquem as razões que levaram o ator social a ter esta ou aquela opinião, esta ou aquela preferência ou a julgar uma situação de determinada maneira e não de outra. Dica 2: A Sociologia, como já dissemos, tem por objeto de estudo a sociedade. Como a sociedade está em perpétua mudança, e como os fenômenos sociais podem ocorrer num amplo espectro de dimensões – familiar, cultural, institucional, governamental, jurídica, econômica, comercial etc. -, para entendê-los é recomendável usar três critérios gerais: a. do conhecimento; b. da economia; c. da política. Em outras palavras, sempre ajuda nos perguntarmos: 13 a. Critério do conhecimento Que mudanças o fenômeno estudado traz em relação à maneira pela qual em determinada época e em determinada sociedade as pessoas decidem o que é verdadeiro? b. Critério da economia Que mudanças o fenômeno estudado traz em relação à maneira pela qual em determinada época e em determinada sociedade as pessoas produzem, distribuem e consomem bens e riquezas? c. Critério da política Que mudanças o fenômeno estudado traz em relação à maneira pela qual em determinada época e em determinada sociedade as pessoas exercem seu poder de mando, sua influência e suas relações de dominação? Exemplo: na sociedade contemporânea, que mudanças a tecnologia da informação trouxe para a) o conhecimento; b) a economia e c) a política? Como o ingresso na universidade é, em si mesmo, um fenômeno social, fica aqui a sugestão para uma primeira prática sociológica: que cada um reflita sobre as mudanças que espera ocorrerem em seu primeiro ano de curso na instituição, em termos de formas de conhecimento, formas de produção de riquezas e formas de exercício de poder. E, para completarmos este segundo encontro, vejamos como aplicar as nossas dicas sociológicas: 1. Voltando à questão “quem é a sociedade brasileira?”, vale lembrar que ela não é homogênea; ao contrário, é constituída por uma multiplicidade de segmentos. Essa diversidade é tão verdadeira, que até mesmo um único indivíduo representa uma multiplicidade de segmentos, porque cada um de nós tem, “dentro de si”, internalizada, a sociedade. Do momento em que nascemos, somos criados por nossos pais, pela família e, depois, pela escola, pelo grupo de amigos e assim por diante, de forma que ao longo de toda a nossa vida, estamos num processo contínuo e constante no qual “a sociedade entra em nós”, no qual interiorizamos vários aspectos da cultura que vivemos e dos grupos a que pertencemos. Esse processo contínuo e constante que nos torna e nos reafirma como seres sociais é a socialização. 14 Se não, como poderíamos falar em cultura? Como poderíamos ser entendidos ao falar? O espectador solitário de um programa de televisão não faz parte da sociedade? Não está ele inter-agindo com muitos aspectos criados pela sua cultura (língua, música, propaganda, moda, jogos, esportes etc.)? Na verdade, são tantos os segmentos sociais quanto as possibilidades de categorizar as pessoas. Inclusive, com o passar do tempo e com o desenvolvimento da sociedade, alguns segmentos sociais vão se transformando, outros desaparecem e, ainda, novos segmentos vão surgindo. Por exemplo, até recentemente, todos os especialistas ligados ao mundo da informática, denominados analistas simbólicos, os programadores e os hackers, não existiam. Tampouco existiam os investigadores especializados nos crimes de informática. O conceito de segmento social é importante porque nos dá uma visão, entre outras, de segmentos ou nichos de mercado, de tribos urbanas e de grupos sociais. Da mesma maneira que novos segmentos sociais são criados, também surgem, de acordo com o nosso exemplo, novos nichos de mercado. Falamos das categorias etárias – infância, adolescência e juventude – e de como essas categorias têm seu sentido transformado em função, justamente, da segmentação do mercado. A categoria “jovem” tem se tornado cada vez mais ampla, incluindo um número cada vez maior de pessoas. As crianças tornam-se adolescentes mais cedo – hoje temos maquiagem e moda “badalada” para “consumidoras a partir dos oito anos de idade” -, enquanto os adultos “esticam” a juventude cada vez mais, por conta dos avanços da medicina, da indústria farmacêutica e da indústria cosmética. Novas categorias trazem em seu bojo novos segmentos de mercado. Os movimentos sociais, que defendiam direitos iguais para as mulheres, para os homossexuais e para os negros, terminaram, entre outras conseqüências, desembocando em um mercado voltado para essas questões, desde produção cultural - como revistas, literatura especializada etc. - até uma série de produtos de consumo ligados à aparência, por exemplo. 2. Voltando à questão da diferença entre o sociólogo e o ator social, vimos a diversidade de discursos – a diversidade de interpretações - que um fato social pode ter e como ao sociólogo interessam, justamente esses discursos diferentes, pois eles permitem ver os valores que estão por trás deles e, portanto, a diversidade de segmentos também. 15 Tomemos como exemplo a narrativa, feita em classe, por um de nossos alunos, da cena a que assistiu no ônibus a caminho da faculdade: “o caso da mendiga idosa”. Tratava-se de uma senhora que se queixava aos demais passageiros, de sua difícil situação econômica e social e que, para driblar a fome, via-se obrigada a comer comida da rua. Em meio ao relato, a senhora pegou algumas migalhas de comida do chão do ônibus e comeu-as. Os alunos deram algumas interpretações do fato, todas elas representando importantes conceitos que veremos ao longo dos encontros, como: 1. “Cadê o Estado que deveria cuidar de seus cidadãos?” (sic). Comentamos o fim do Estado de bem estar, do estado intervencionista. 2a. “A indiferença das pessoas, a falta de solidariedade”. Comentamos o recente fortalecimento da sociedade civil e o enorme aumento no número de ONGs – organizações não governamentais. 3a. “A mendicância como profissão e a mendiga como profissional”. Comentamos como a dimensão de espetáculo, a imagem, a marca, tem se tornado uma característica cada vez mais presente na sociedade atual. 3. Finalmente, à guisa de apresentação do plano do curso, retomemos os três critérios de análise dos fatos sociais e as questões a que nos referimos no primeiro encontro: “Quaisas mudanças que a tecnologia da informação trouxe à sociedade contemporânea, em termos de a) conhecimento, b) economia e c) política?” No nível do conhecimento, veremos os conceitos que envolvem a sociedade em rede e a era do acesso. No nível da economia, veremos a questão do desemprego, da auto-gestão da carreira e a noção de Eu s/a (Eu Sociedade Anônima). No nível da política, veremos a idéia de grupos transnacionais e de organizações não governamentais – ONGs. ENCONTRO 3: Formas do conhecer. Como anunciamos anteriormente, neste encontro damos propriamente início ao curso de sociologia com a pergunta: quais as mudanças que as novas tecnologias da informação e da comunicação trouxeram para a construção do conhecimento? 16 Antes de começar a responder, devemos esclarecer como é que, neste nosso contexto, se processa o “conhecimento”. Como é que conhecemos? De um modo geral, quais as formas pelas quais conhecemos? 1. A primeira resposta que nos vem à mente é: conhecemos através da experiência concreta. Qualquer nova situação por que passamos, qualquer nova experiência, acrescenta-nos algum novo conhecimento. As novas experiências, por exemplo como universitários, têm trazido uma série de novos conhecimentos sobre os vários departamentos da universidade, sobre os professores, os colegas, os horários etc. e, a cada repetição de experiência, o conhecimento adquirido vai sendo reforçado e confirmado. O conhecimento que nos vem através da experiência, que também pode ser chamado de conhecimento da vida vivida, é do tipo: “saiu na chuva, é para se molhar”, ou seja, ao entrarmos em contato com o mundo, a todo momento, podem surgir situações desconhecidas, novos desafios, que demandam soluções e respostas inovadoras. Ao longo da vida vamos, portanto, aumentando o nosso arcabouço de desafios e soluções, o que nos torna cada vez mais experientes, cada vez mais “sábios”. 2. Uma outra forma de conhecimento é aquela que vigorava, sobretudo, na Idade Média: o conhecimento dado, ou melhor, revelado, através da fé. Ao clero, à Igreja cabia interpretar a revelação divina e transmiti-la às pessoas simples e iletradas que eram a maioria da população. Era a revelação divina que ditava o conhecimento do mundo. Esse tipo de conhecimento, dado por outrem e a partir de um princípio estranho à razão, ao qual as pessoas deviam se submeter, é um conhecimento heteronômico, ou seja, as regras = nomos, são dadas por outrem = hetero, enquanto que o conhecimento científico, que veremos em seguida, é autonômico ou autônomo, ou seja, as regras desse conhecimento = nomos, são dadas pelo próprio homem = auto. 3. E, finalmente, uma terceira forma de conhecimento é aquela que, por excelência, caracteriza a Modernidade, é o conhecimento científico, o conhecimento da razão científica, o conhecimento racional. Ele é geralmente adquirido através da pesquisa e está ligado à experiência concreta, ao mundo empírico. A pesquisa científica segue uma série de normas metodológicas que lhe asseguram a validade. Trata-se de um conhecimento que pode ser realizado por diferentes formas de observação, de medição e de experimentos, e que inclui, dentre outras possibilidades, verificação, reprodução e objetividade. 17 De uma forma geral, portanto, podemos falar em três fontes do conhecimento – a experiência própria, a religião (pelo princípio da fé) e a ciência (pelo princípio da razão). Embora o conhecimento científico caracterize a nossa época, não impede que as outras duas fontes - da vida vivida e da religião - também estejam presentes, embora com menor legitimidade e em âmbitos mais específicos. Voltaremos a falar com mais profundidade sobre as formas do conhecimento em outra fase do trabalho, ao discutirmos o nascimento da Modernidade. Vemos que experiência, religião e ciência, além de serem as fontes do conhecimento, são também as formas pelas quais adquirimos um conhecimento confiável, um conhecimento que consideramos verdadeiro. Dizemos: a. “Sei que isso é verdade, porque confirmei através da minha própria experiência”. b. “Sei que isso é verdade, porque confirmei através de pesquisas científicas, realizadas por cientistas reconhecidos”. c. “Sei que isso é verdade, porque assim está escrito nas Sagradas Escrituras”. Assim sendo, podemos dizer que, quando falamos em diferentes formas de conhecimento, estamos, em outras palavras, falando em construção da verdade. E como em diferentes épocas e em diferentes sociedades, mudam-se as formas de conhecer, podemos concluir que existem diferentes formas de se construir a verdade e que, portanto, a verdade é uma construção social. Voltemos então à pergunta com que abrimos este encontro: que mudanças a tecnologia da informação trouxe para a construção da verdade, do conhecimento verdadeiro? Levando em consideração o que afirmamos no início deste trabalho, de que o objeto da Sociologia é pensar como os homens de uma determinada sociedade pensam, nossa pergunta agora é: quais as mudanças que a tecnologia da informação trouxe para o conhecimento e para o pensamento da nossa época? Enumeramos uma longa lista de mudanças: a velocidade, o bombardeio de informações, o controle e o anonimato, o controle e, ao mesmo tempo, o descontrole, a 18 dependência e a independência, as liberdades de opinião, de interpretação e de escolha, a democratização da informação, inclusão e exclusão digital, a virtualidade e a imaterialidade, a comodidade, a rede, o acesso etc. Dentre essas mudanças, as mais importantes, passaremos a considerar com mais profundidade, no nosso próximo encontro. ENCONTRO 4: A “cabeça” das novas tecnologias. Neste encontro, como prometido ao encerramos o anterior, vamos nos deter um pouco mais nas principais inovações produzidas pelas novas tecnologias digitais. Velocidade (1) Pode-se conseguir conhecimento e informações em grande velocidade. Por conta dos desenvolvimentos da informática e da eletrônica, inclusive com as diversas mídias se informatizando – o nome desse processo em que uma mídia alimenta e desenvolve uma outra mídia, é sinergia - podemos, à hora do jantar, sentados com a família ao redor da mesa assistir, pela televisão, aos acontecimentos ao mesmo tempo em que estes ocorrem, simultaneamente. Por ocasião da Guerra do Golfo, por exemplo, assistíamos aos bombardeios em tempo real, como se estivéssemos dentro da cabine do avião, e não ao redor da mesa, jantando com a família. Uma das conseqüências dessa altíssima velocidade – da simultaneidade – dos eventos é que a percepção do tempo está se transformando, como afirma Zygmunt Bauman1. O tempo começa a perder a sua forma, diz Bauman, confundindo-se o que anteriormente conhecíamos como presente, passado e futuro. É, diz o autor, como se o tempo se liquidificasse, perdendo sua forma própria e tomando a forma de seu receptáculo. Velocidade (2) O mesmo que ocorre com o tempo, que se torna líquido, por conta da velocidade, acontece com o espaço. Ora, se estou simultaneamente à mesa de jantar em São Paulo e sobrevoando o Iraque; ou se, juntos em classe, escrevermos um poema e, antes mesmo do término do nosso encontro, ele já poderá ter sido lido pela classe de uma universidade no Japão; ou se, ainda, dois trilhões de dólares mudam de continente diariamente, ao clique de um mouse, então a percepção do espaço, do território, das fronteiras, está passando por uma transformação tão grande quanto a do tempo. O espaço, diz Bauman, está se desterritorializando. 1 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeirio: Jorge Zahar, 2001.19 Acesso, democratização da informação, inclusão e exclusão digitais A liquidificação do tempo e a desterritorialização do espaço, entretanto, só são possíveis para aqueles que têm acesso às novas tecnologias da informação. Assim, nossa atualidade criou uma categoria de desigualdade absolutamente nova: a inclusão e a exclusão digitais. Estamos vivendo, segundo Jeremy Rifkin2 (uma das personalidades mais importantes da área de gestão da atualidade), na era do acesso. A propriedade, diz Rifkin, o possuir, é cada vez menos importante do que ter acesso, do que estar incluído na tecnologia digital, pois a informação é, cada vez mais, a grande produtora de riquezas. Antigamente, um produtor de algodão de alguma fazenda perdida no meio da África era obrigado a aceitar pelo seu produto o preço que seu comprador europeu ou americano estava disposto a pagar-lhe, acreditando ser aquele o preço de mercado. Hoje, a qualquer hora, esse mesmo fazendeiro perdido pode acessar a bolsa de algodão e ter seu preço atualizado em tempo real. Mas, para isto, deve-se fazer parte da ainda minoria mundial que tem acesso às novas tecnologias. Se pensarmos na educação, a importância do acesso fica ainda mais forte, graças à grande mudança que este deverá trazer – e que em parte já está trazendo. Até muito recentemente, quanto maior erudição o professor demonstrasse, tanto mais valorizado ele era. Isto porque a educação estava assentada sobre a transmissão de saber, de informação. Uma aula que rendesse muito era uma aula em que alunos e professor tivessem “dado e recebido muita matéria”. Entretanto, com o desenvolvimento da informática e com a transcrição de quase todos os textos relevantes já escritos – e ainda chegaremos lá! -, a educação passa a valorizar um outro tipo de conhecimento, não aquele que pode ser passado formalmente, visto estar quase que na íntegra no computador (nossa caixinha “inteligente”) e, portanto, acessível a qualquer um – é a democratização da informação -, mas o conhecimento que não pode ser transmitido formalmente. É o que atualmente o MEC (Ministério de Educação e Cultura) denomina habilidades e competências. Em outras palavras, um curso de sociologia, mais do que “socar informações” e “exibir erudição”, deve ensinar os alunos a pensar sociologicamente e, sobretudo, a articular e integrar as várias disciplinas do curso, seus conhecimentos anteriores e suas 2 RIFKIN, Jeremy. A era do acesso. São Paulo: Makron, 2004.. 20 experiências de vida. Enfim, um bom curso é aquele que ensina o aluno a pensar, articular e integrar todos os seus conhecimentos, de forma a utilizá-los da maneira mais hábil e competente. Rede Outra grande mudança produzida pelas novas tecnologias é a rede. Somos, diz Manuel Castells3 (um dos grandes sociólogos que escreveu uma trilogia sobre a sociedade contemporânea), uma sociedade em rede. Na verdade, a rede não é um conceito ou uma idéia nova. Conhecemos a rede desde sempre. Na infância – e mesmo depois -, nossas amizades são feitas em rede: conheço uma vizinha, que tem uma prima, que traz um amigo, e assim vamos constituindo nossa rede de amigos. Na Idade Média, os grandes banqueiros estavam dispersos por alguns países e regiões da Europa. Geralmente pertenciam à mesma família. Era a rede dos banqueiros. Nosso poeta Carlos Drummond de Andrade tem um poema curto, “Quadrilha”4, que transcrevemos em seguida e serve para ilustrar o que poderíamos chamar de “o amor em rede”: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. Desde a década de 1950, falamos na rede de supermercados, na rede de fornecedores, na rede de distribuidores, e assim por diante. As franquias são redes, os hotéis constroem redes internacionais de hospedagem etc. etc. 3 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 2003. 4 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 2001. 21 Se a idéia não é nova, então o que há de novo na Sociedade em rede? Pois existe, sim, uma grande novidade, que está diretamente relacionada à globalização: a sociedade em rede é global, planetária. Ou, em outras palavras, ela é uma rede de redes. Para entender essa imagem, vale lembrar da rede do pescador, um emaranhado de cordas amarradas em nós, sem rumo definido, armando uma imensa teia, cuja singularidade está nos nós que constantemente se desfazem, e nos novos nós que constantemente são re- amarrados, remendados, alterando e renovando as conexões, de forma que a rede não perca sua característica de conectar absolutamente todas as suas cordas e seus nós. O mesmo se dá com a globalização que, na verdade, apenas conectou entre si os mercados locais e nacionais já existentes. Em outras palavras, a globalização é uma rede de redes. As redes que conhecíamos até o desenvolvimento das novas tecnologias eram constituídas por um ou dois nós apenas, e estas não eram conectadas entre si: nossa rede de amigos, nossa rede hoteleira, nossa rede de bancos. Atualmente, quando falamos em rede, queremos dizer conexão em rede, de tal forma que todas elas estão ligadas entre si. E é isso que torna possível a nossa globalização sem fronteiras, totalmente enodada, totalmente conectada, totalmente articulada, totalmente integrada. Pensamento em rede: o hipertexto Essa forma de olharmos para as nossas vidas (globais, coletivas e individuais) a partir da perspectiva de rede, ou seja, tentando articular – linkar - cada vez mais os vários departamentos, instituições, relações e aprendizados que experienciamos, é uma forma nova de pensar, conseqüência da idéia de rede e, sobretudo, resultado de uma prática que se torna cada vez mais cotidiana, a da “navegação pela Internet”, através do hipertexto. Essa forma de pensar está se tornado tão arraigada entre nós, que Pierre Lévy,5 renomado pesquisador das “tecnologias da inteligência,” propõe que o hipertexto seja considerado uma metáfora do nosso tempo. Ele propõe que usemos o mecanismo do hipertexto (número infinito de textos em rede, totalmente articulados entre si), para descrever um novo tipo de relação social, em que todos estariam linkados, conectados, articulados – de forma mais direta uns, e menos direta outros -, assim como os nós da rede de pescador. 5 LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. São Paulo: Ed. 34, 1994. 22 O hipertexto é um texto virtual, desenvolvido a partir da leitura de textos pela Internet. Ele contém um mecanismo de acesso que o diferencia dos textos “materiais”. E é justamente a esse mecanismo que denominamos “navegar na Internet”. No texto material, quando queremos trazer alguma referência importante, um esclarecimento ou remeter a alguma obra relacionada com o tema que estamos discutindo, usamos a nota de rodapé. O hipertexto, ao invés da nota de rodapé, traz algumas de suas palavras em relevo – geralmente por meio de uma coloração diferente -, são os chamados links ou hiperlinks, de forma que, se assim o desejarmos, podemos “acessar” a referência com um clique do mouse sobre o link. Ao acessarmos o link que nos interessa, ao invés de depararmos uma nota, entramos em um novo texto que, por sua vez, também traz uma variedade de outros links, e assim por diante. Essemecanismo é impraticável no texto material. É nesse sentido que falamos em “navegação”, pois é como se estivéssemos ao leme de um navio e fôssemos traçando nosso itinerário durante a viagem (lembrem-se de “o caminho faz-se ao andar”), mesmo se ao iniciarmos a viagem tivéssemos um destino determinado (assim como Chapeuzinho Vermelho que, desviando do caminho, ficou “navegando” no bosque). Na verdade, como o leitor já deve ter notado, o hipertexto seria um texto em rede, o que nos faz entender melhor a idéia de Pierre Lévy, quando lembramos que nossa sociedade globalizada é, cada vez mais, uma sociedade em rede. O hipertexto aponta uma nova direção na maneira de conhecer, de pensar e criar. Ao procurarmos uma informação no site de busca google, por exemplo, ou algum conceito na enciclopédia www.wikipedia.org, muitas vezes, terminamos transitando por uma série de outras informações e conceitos que não só não havíamos programado, como sequer sabíamos de sua existência. Como colocou com muita propriedade um aluno, é como se “a idéia central ficasse perdida”. De fato, podemos dizer que no hipertexto não há centro. É o que Pierre Levi denomina de princípio de mobilidade dos centros: a rede não tem centro, ou melhor, possui permanentemente diversos centros que são como pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um nó a outro, trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas, finas linhas brancas esboçando por um instante um mapa qualquer com detalhes 23 delicados, e depois correndo para desenhar mais à frente outras paisagens do sentido6. Se, como dizíamos, a sociedade em rede tem o hipertexto como metáfora, será que isso significa que a sociedade está perdendo o seu centro? Ou que a sociedade possui permanentemente diversos centros? Esta é uma discussão que desenvolveremos mais adiante. Por enquanto, podemos adiantar que, de fato, muito se tem pensado em duas importantes perdas de centro na sociedade. Uma, em relação ao Estado, ao poder do Estado que, cada vez mais, parece estar dividindo suas funções com a sociedade civil. A outra, em relação à identidade dos indivíduos que cada vez mais parece diluída numa grande variedade de personas, como se durante o nosso dia-a-dia usássemos diferentes máscaras, cada uma delas envolvendo uma identidade e uma personalidade diferente. Desmaterialização Retomando nossa lista de características das novas tecnologias, queremos levantar a questão da desmaterialização que acompanha as características da desterritorialização do espaço e do acesso, substituindo a propriedade, sobre as quais já havíamos falado. “Estamos nos tornando cada vez mais imateriais”. Até pouco tempo atrás, uma das evidências de riqueza, sobriedade e credibilidade de uma empresa eram seus bens físicos, imobiliários e mercadorias: o “chão da fábrica”, os grandes galpões de depósito, pois as grandes empresas trabalhavam com grandes estoques de mercadorias (porque quanto maior a quantidade comprada, tanto menor o custo de cada unidade). Atualmente, as empresas cada vez mais preferem alugar o espaço e aplicar o dinheiro em novos investimentos. Além disso, estão interessadas em ter alta mobilidade, pois, caso haja alguma mudança na legislação do país ou da cidade em que ela está estabelecida, não sendo proprietária do imóvel onde atua, ela pode rapidamente se deslocar para outro país que, por exemplo, ofereça melhores condições comerciais. No que se refere aos depósitos e aos estoques, as empresas preferem trabalhar pelo sistema just in time. Nesse sistema, uma peça, no caso de uma montadora de automóveis, ou uma mercadoria, no caso de um produto farmacêutico, por exemplo, só são pedidos à fábrica ou ao fornecedor, quando forem necessários ou quando já vendidos. Um dos melhores exemplos é a amazon.com, a maior loja virtual de livros do mundo, que não passa 6 Pierre Lévy, op. cit. p. 26. 24 de um escritório com terminais de Internet e que, realizada a venda – e o pagamento –, entra em contato com a editora, faz seu pedido, para só então remeter a mercadoria ao comprador. Sem estoque, sem loja, tudo virtual, desmaterializado. Mas a desmaterialização vai mais além, e sua mais exuberante manifestação é a marca. A marca, pura abstração, é hoje uma das grandes mercadorias, a ponto de dizermos: “o que eu quero é a marca tal e, portanto, resigno-me a levar o tênis ou o boné para casa”. Em outras palavras, a mercadoria comprada é a própria marca, mas, como ela precisa de suporte material, para ter a tal marca, aceitamos carregar o tênis. Outro bom exemplo é a loja de uma conhecida marca de refrigerante do aeroporto: ela só tem mercadorias – suportes materiais – com o logotipo da marca. Você leva o chaveiro ou a bolsa, mas o que você está realmente comprando é o logotipo. E, se estamos nos desmaterializando cada vez mais, como fica o contato físico entre as pessoas, o afago, o toque? Dizem os autores, cada vez mais distantes. Ou mesmo a luta? Dizem os autores, cada vez mais como espetáculo. E como fica o corpo, nosso último reduto material? O corpo parece ficar cada vez mais “ideal”, cada vez mais parece pertencer à dimensão da idéia: olhamo-nos no espelho e não conseguimos ver o nosso corpo; só conseguimos vê-lo comparado ao corpo imaginário que está na nossa cabeça ou na foto retocada do anúncio da revista. O corpo, hoje, torna-se cada vez menos natural: falamos em corpos esculpidos, programados, construídos, inventados. Desidentificamo- nos. Retomando nossa metáfora do hipertexto, como dizíamos ao falar da educação, coloca-se a questão: será que a wikipédia e todos os textos científicos, cada vez mais fáceis de acessar pela Internet, não vão prejudicar ou mesmo acabar com a inovação do conhecimento? Para elaborar um trabalho de sociologia, por exemplo, antigamente o estudante tinha que consultar fontes, passar horas na biblioteca, ler grande quantidade de material, enquanto que hoje, é só acessar e... pronto! É imprimir o texto e entregar ao professor. Deixando de lado a questão da ilegalidade e da desonestidade de tal atitude, a pergunta, em termos de conhecimento puro, é: como é que dá para criar? Pois essa é uma criatividade que requer novas habilidades, justamente a habilidade do hipertexto, ou seja, agora a criação daquele que vai escrever um novo texto está na composição, nos recortes e 25 nos links – conexões – que cada um de nós vai construir em relação ao tema do trabalho. É aí que está a criatividade, a forma absolutamente singular de cada um. O trabalho será, portanto, como a composição de um mosaico, em que as peças existentes vão criando novas formas, novos significados, novas articulações, dependendo de como o aluno-autor vai construindo a conexão entre elas. É como se, na nossa metáfora de navegação, cada um de nós, ao elaborar um trabalho de reflexão, fosse construindo a sua trajetória específica, o seu mapa singular. Trata-se, antes de mais nada, da habilidade de articulação entre as idéias e de integração entre os diferentes textos. Assim também, estes nossos textos, redigidos após os nossos encontros e que contemplam as questões – os desvios, as conexões, os links – bem como os exemplos trazidos em aula – tanto pela professora como pelos próprios alunos -, são compostos à moda do hipertexto, cujos autores somos todos nós. Essa nova habilidade – de articulação e de integração das partes – é também o caminho que as ciências sociais e humanas têm tomado nos últimos anos. E essa é exatamente a questão da interdisciplinaridade que, em última instância, é um trabalho de integração earticulação entre as várias disciplinas. Mas, nem sempre as ciências procuraram essa integração entre as suas várias disciplinas. Ao contrário, houve um tempo em que o avanço de uma ciência ou de uma disciplina científica era medido pelo seu grau de especialização. E, claro, quanto mais especializada a disciplina, mais focada em seus próprios métodos e objetos, de forma que menos vinculada e articulada às outras disciplinas. Para melhor entendermos a interdisciplinaridade, portanto, vale a pena falarmos um pouco sobre esses desenvolvimentos das ciências e do conhecimento, o que faremos no nosso próximo encontro. ENCONTRO 5: A ciência e a modernidade. Podemos dizer que a história do conhecimento na civilização ocidental é a história do desmembramento contínuo das ciências de seu amplo corpo inicial, a Filosofia. Num rápido sobrevôo, o critério desse desmembramento, até recentemente, era o da proximidade entre os temas que cada uma das ciências estuda e os homens, ou seja, o critério era do quão próximos ou distantes dos homens estão os objetos de estudo de cada uma das ciências. 26 Começamos lá atrás, na Grécia antiga, com o mais distante dos temas, o céu, aquele universo distante que os gregos, pastoreando seus rebanhos, ou como homens do mar, observavam nas suas noites ao relento. A primeira ciência, portanto, foi a astronomia, com a observação de padrões regulares nos movimentos especialmente do Sol, da Lua, das estrelas e dos planetas vistos a olho nu. Estudavam, por exemplo, a mudança da posição do Sol no horizonte ao longo do dia, ou o aparecimento de estrelas ao longo do ano, o que ajudava na criação de um calendário agrícola ou para marcar os rituais religiosos. Depois, baixando dos céus à terra, aproximando-se mais da vida dos homens, surgiram as ciências da natureza: a Física e a Química. E, muito mais tarde, muito mais próxima ainda dos homens, surgiu a Biologia, ciência da vida, e a Anatomia, ciência do corpo humano. Foi só bem mais tarde, com o advento da modernidade, que nos aproximamos ainda mais dos homens e penetramos a sua interioridade e as relações entre eles: surgiram então a Psicologia – ciência da alma - e as ciências sociais – a Antropologia, a Sociologia, as Ciências Políticas e a Economia. E, num ritmo muito mais acelerado, no último século, as ciências foram se aprofundando e subdividindo, num processo de constante especialização, com disciplinas cada vez mais específicas, e as próprias disciplinas se ramificando cada vez mais e, por isso mesmo, com pouca ligação entre elas. No início do século XX, aparece a Psicanálise – a ciência do inconsciente -; depois da Segunda Guerra Mundial, as ciências do mercado – Marketing e Administração e Comunicação Social - e, por conta da globalização, a partir da década de 90, a mais recente das ciências sociais, as Relações Internacionais. As novas tecnologias também aceleraram o processo de especialização das ciências, principalmente aquelas ligadas aos ramos da comunicação, da medicina e da genética. Mas, ao mesmo tempo, trouxeram mudança na trajetória da especialização, pois atualmente, o conhecimento tem investido muito na articulação entre as mais variadas disciplinas e na integração de todo este saber. Ainda considerando o hipertexto como metáfora, é como se o conhecimento estivesse investindo na hipertextualidade das ciências. Essa intertextualidade é, em outras palavras, o que denominamos interdisciplinaridade. Antes de entrarmos nas particularidades das ciências sociais e humanas, entretanto, justamente para entender como ocorreram os desenvolvimentos que precederam os tempos 27 atuais, faremos uma rápida digressão para expor o contexto da época moderna (da Modernidade) nas nossas já conhecidas três dimensões: do conhecimento, da política e da economia. A Modernidade é um processo. Um processo revolucionário, na medida em que trouxe profundas mudanças, tão profundas, que os homens mudaram sua forma de pensar, agir, sentir, trabalhar, produzir e até de sonhar. Tão profundas, que inaugurou uma nova era na história da humanidade. Foi um processo longo que se iniciou na Europa e que, além de se dar em várias dimensões, foi se expandindo por toda a civilização ocidental. Como todo processo histórico de longa duração, convencionou-se tomar alguns acontecimentos históricos como marco, a fim de estabelecer algumas datas mais ou menos definidas para o seu início. Na perspectiva da economia, o grande marco foi a Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra, entre 1760 e 1830. A Revolução Industrial, através das novas tecnologias – as primeiras máquinas, a exploração do carvão mineral, o minério de ferro, o fabrico do aço-, favoreceu a passagem da oficina artesanal ou da manufatura para a fábrica. Uma das conseqüências dessa revolução foi o aparecimento de um novo sistema produtivo, dando forte ímpeto ao desenvolvimento do capitalismo. Através desse sistema, os homens ganharam a liberdade de produzir e consumir bens até então impensáveis. O capitalismo industrial trouxe também a transformação das relações sociais, agora relações entre o capital e trabalho, pois pela primeira vez o homem pôde vender livremente a sua força de trabalho, em troca de um salário, diferentemente do servo da Idade Média, e mais, o homem, em princípio, teve a liberdade de escolher o patrão para o qual quer, ou não, trabalhar. Assim, no nível da economia, a Modernidade foi “libertária”: liberdade de produção e consumo e, sobretudo, trabalho livre. Na perspectiva da política, a Revolução Francesa (marcada pela queda da Bastilha em 1789), baseada em princípios liberais, foi o marco da instauração da democracia representativa. Em grego demos = povo e kratos = poder. Com ela, os homens obtiveram a maior das conquistas políticas em relação ao passado: a autonomia, no sentido de que a partir de então poderiam, eles mesmos, escolher as suas leis, a sua constituição, e não 28 recebê-las da Igreja ou da revelação divina. E, poderiam, eles mesmos, tomar as decisões em relação a todas as suas questões, através do debate e do acordo. Entretanto, aquela não foi a primeira vez na história que os homens usufruíram a democracia. A primeira foi na Grécia antiga. A democracia grega, no entanto, era uma democracia direta, em que os cidadãos se reuniam na ágora – que em grego significa praça pública – para discutir e decidir suas questões políticas. A democracia moderna é representativa, isto é, o povo elege seus representantes que se encontram no congresso, a fim de defender os interesses dos vários segmentos da população que eles representam, para debaterem e, juntos, tomarem as decisões. Na Grécia antiga, a democracia direta foi possível, porque dela participavam apenas os cidadãos, ou seja, os homens livres, o que não incluía nem os escravos, nem as mulheres. Para que os cidadãos pudessem discutir na ágora, o trabalho nos campos era realizado pelos escravos, e o trabalho doméstico, pelas mulheres. Desde a Modernidade, com o trabalho livre, ou seja, com o trabalho assalariado, em que o trabalhador pôde escolher livremente para que patrão ou empresa quer trabalhar, não há mais escravos. Quanto às mulheres, ao menos juridicamente – mas sem dúvida, não de fato -, elas hoje desfrutam de igualdade de condições. Portanto, seria impossível toda a população discutir e decidir todas as suas questões. Assim, também na dimensão política, a Modernidade foi libertária no sentido de que os homens, a partir de então, estão livres para decidir as leis que os governam e o tipo de Constituição que melhor lhes aprouver. E, finalmente, na perspectiva do conhecimento, o grande fatorde transformação não foi um acontecimento, mas uma corrente de pensamento: o Iluminismo. Este nome, Iluminismo, é justamente para indicar que esta corrente de pensamento se opõe de forma absoluta à que prevalecia na Idade Média. Lembremos que a Idade Média é também conhecida como a Idade das Trevas. Pois é para se diferenciar dela que temos o Iluminismo na Modernidade, no sentido de “trazer luz às trevas”. É tão importante a sua oposição à Idade Média, que o Iluminismo tem outras duas denominações que também fazem referência à questão do fim das trevas. Alguns autores preferem Ilustração, cuja origem é “lustre”, ou “lustro”, que significa brilho, e outros ainda preferem a denominação Esclarecimento, cuja origem é “claro”, “claridade”. 29 A grande transformação trazida pelo Iluminismo foi a substituição da Fé pela Razão como base para o conhecimento verdadeiro do mundo e dos homens. O conhecimento, que na Idade Média que era “teocêntrico”, isto é, tinha como centro Deus, a revelação divina (theos em grego = Deus), na Modernidade, passa a ser “antropocêntrico”, ou seja, tem como centro o homem (antropos em grego = homem). Shakespeare, o grande dramaturgo inglês - que escreveu entre outras obras famosas: Romeu e Julieta, A megera domada e Sonho de uma noite de verão -, tem uma frase muito boa sobre a passagem da Idade Média para a Modernidade: “Os deuses desceram dos céus para a Terra”. Essa substituição da Fé pela Razão teve várias conseqüências. Duas delas são extremamente importantes. Em primeiro lugar, como todos os homens têm a possibilidade do uso da Razão, a partir da Modernidade, todos os homens serão considerados iguais; todos eles têm igualmente a possibilidade do uso da Razão. Em segundo lugar, a partir de então, os homens tornam-se os forjadores de sua própria história, de seu próprio destino, pois suas vidas não dependem mais dos desígnios de Deus; elas estão em suas próprias mãos. Libertam-se, portanto, das correntes que os prendiam à revelação divina. Assim, também na dimensão do conhecimento, a Modernidade revela-se um movimento libertário. E nesse contexto de liberdade, autonomia e profundo otimismo e esperança nas capacidades humanas, neste contexto revolucionário, em que uma nova ordem política – através da democracia representativa -, econômica – através do capitalismo industrial – e do conhecimento – através da Razão -, é que as Ciências Sociais e a Psicologia vão emergir, florescer e desenvolver-se. ENCONTRO 6: Interdisciplinaridade: o hipertexto das disciplinas, o hipertexto das ciências. Neste encontro, falaremos um pouco sobre as ciências sociais mais relevantes para o Direito, para o Comércio Exterior e para a Administração, e veremos como elas se articulam ou, na nossa linguagem metafórica, como elas se hipertextualizam. Havíamos dito que o primeiro grande critério do surgimento das ciências foi o da aproximação dos temas à vida dos homens: do conhecimento dos céus à natureza física, dela para a vida e o corpo humanos e, finalmente, para a sua interioridade e para as relações 30 entre os homens – a Psicologia e as Ciências Sociais. Estas últimas, relembrando, surgiram juntamente com a Modernidade e se desenvolveram a partir dela. Retomamos, pois, a partir do contexto no qual as ciências sociais e humanas se originaram, um contexto de transformações profundas – revolucionárias mesmo -, resultantes do surgimento e desenvolvimento do capitalismo industrial, da democracia representativa e do uso predominante da Razão. Vale ressaltar que transformações de tal porte, de uma forma ou de outra, são sempre ambivalentes, ou seja, vêm carregadas de duplicidade, de uma espécie de crise, em que as velhas formas de ser, agir e pensar ainda não desapareceram – e muitas vezes nunca desaparecerão totalmente -, e em que as novas formas ainda não estão totalmente claras e definidas. Esse caráter ambivalente também aparece nas próprias ciências sociais, pois estas são fruto de uma época, como se verá em seguida, quando falarmos dos aspectos mais relevantes para nós de algumas delas. Antropologia A primeira e a mais antiga das Ciências Sociais, a Antropologia foi produto das novas tecnologias e do desenvolvimento das grandes navegações iniciadas na Europa, no século XV e XVI e, portanto, do contato cada vez maior com os povos da África, Ásia e América. Esses povos, apesar do famoso princípio universal Iluminista de La Bruyère, “a Razão é de todos os climas”, representavam uma grande surpresa e um grande enigma, pois diferiam tanto dos colonizadores e comerciantes europeus que, tendo estes como única referência a si próprios – eram eurocêntricos -, não conseguiam atinar com o “tipo humano” encontrado no além-mar. Era o choque cultural. “Selvagens”, “primitivos”, “não totalmente humanos”, são algumas das expressões empregadas pelos cronistas e viajantes da época, que não sabiam exatamente em que categorias encaixar tanta diferença. Imbuídos que estavam da certeza da primazia da Razão, e por conta dos interesses coloniais que viam nas colônias consumidores de produtos e fornecedores de mão-de-obra, os europeus investiram no conhecimento dos costumes e da cultura desses povos, bem como na transmissão dos valores europeus. Assim, a Antropologia nasceu como ciência de culturas “estranhas”, “primitivas”, “ultrapassadas”, como ciência do outro, da alteridade. Essa forma preconceituosa de olhar para o outro tendo a si próprio como única referência, de olhar para o outro como inferior, 31 como o fizeram os colonizadores europeus, teve seu reflexo na primeira teoria antropológica, o evolucionismo que, inspirado na teoria da seleção natural das espécies de Charles Darwin, desenvolveu o “darwinismo social”, que considerava a história da espécie humana como uma série contínua de culturas, no sentido da mais simples à mais complexa, tendo, evidentemente, a cultura européia como o pólo superior e mais evoluído. Foi através desse estranhamento do europeu em relação aos colonizados - choque cultural -, reforçado pela própria ciência antropológica e pelo darwinismo social, que se constituíram as bases do racismo, mal de que padecemos até hoje. Do ponto de vista externo, sofremos o racismo do Primeiro Mundo – Europa e Estados Unidos - em relação ao Terceiro Mundo e, internamente, da população branca em relação à de origem afro- americana e à indígena. Mas a antropologia se desenvolveu muito desde então. O evolucionismo foi sucedido pelo funcionalismo, que tinha uma abordagem muito mais científica e que tentava ser menos preconceituoso. Tratava-se de considerar a sociedade a ser estudada como uma totalidade em si mesma, com sua cultura própria, e não como um estágio para atingir as sociedades mais complexas. O funcionalismo passou a estudar as sociedades a partir de suas instituições e, sobretudo, a partir de sua cultura. Foram desenvolvidos trabalhos hoje considerados clássicos da antropologia sobre sociedades de além-mar, como o estudo de Bronislaw Malinowski, das ilhas Trobriand, no Pacífico, e o estudo de Radcliffe-Brown sobre os habitantes das ilhas Andaman, no Golfo de Birmânia. Esses autores estudaram desde funções básicas desses povos, tais como alimentação, defesa e moradia, até suas funções sociais, tais como as relações de parentesco e os tabus, seus usos e costumes, seus modos de vida, suas bases de produção e seus rituais religiosos. Este tipo de estudo, que é uma ramificação da Antropologia, é a Antropologia Cultural, que tem como célula básica o conceito de cultura, cuja definição clássica nos é dada por Edward Taylor, e data de 1891: “cultura é o conjunto que inclui conhecimento,crenças, arte, moral, lei, costumes e quaisquer outras capacidades e habilidade adquiridas pelo homem enquanto membro de uma sociedade”. Devemos lembrar, entretanto, que há também uma Antropologia Física que, em parte, é uma ciência biológica, fazendo a ponte, ou melhor, a interdisciplinaridade entre a ciência social e a biológica. Através do estudo de fósseis e de artefatos antigos, fragmentos 32 de ossos, a Antropologia Física estuda as origens, evoluções e características físicas dos grupos étnicos, as origens biológicas e suas variações e as diferenças raciais. Desde seu início, um tipo de estudo freqüente da antropologia, justamente por lidar com sociedades e coletivos distintos daquele do pesquisador, é o estudo comparativo. Nos dias de hoje, parte destes estudos é capitalizada – imaginem só! - pela indústria do turismo, seja em relação a objetos, comida e arte típicos de culturas diferentes, seja como pacotes de viagem a “culturas exóticas”. Entretanto, essa singularidade vem sendo colocada em dúvida em nosso mundo globalizado, por conta do processo de total indiferenciação e de homogeneização cultural. Atualmente, a antropologia não se dedica apenas a sociedades antigas ou não- modernas. Como ciência da alteridade que é, ela tem desenvolvido trabalhos também na sociedade industrial moderna, trabalhos de antropologia urbana, estudos sobre coletivos e segmentos sociais com estilos de vida diferentes, tais como as tribos urbanas – punks, hipppies, carecas do ABC, góticos -, as minorias – étnicas, sexuais, periferias das grandes metrópoles -, as comunidades – assentamentos de sem-terra, comunidades da nova era -, todos eles denominados subculturas, ou seja, não culturas inferiores, mas culturas distintas da cultura predominante. Um exemplo recente deste tipo de estudo e que pertence ao ramo da Antropologia Visual – porque se trata de um filme -, é o documentário Falcão sobre o narcotráfico no morro carioca7. Um outro ramo da Antropologia, e que interessa de perto ao Comércio Exterior, é a Antropologia do Consumo que, como diz a antropóloga Mary Douglas8, a primeira a escrever sobre esta disciplina, “o consumo é algo ativo e constante em nosso cotidiano e nele desempenha um papel central como estruturador de valores que constroem identidades, regulam relações sociais, definem mapas culturais”9. E ainda, diz ela, “os bens são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados como cercas ou como pontes”10. Na verdade, a Antropologia do Consumo considera como texto a ser lido e interpretado as formas pelas quais as pessoas gastam (ou poupam) o que compram, por que são, ou não, exigentes em 7 Ainda sobre o tema do narcotráfico no morro carioca, uma excelente obra da Antropologia Cultural é o Cabeça de Porco, que tem um conjunto interessante de autores: um ex-Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, um rapper e um jornalista. MV BILL, ATHAYD, Celso e SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 8 DOUGLAS Mary e ISHERWOOD, Baron. O Mundo dos Bens. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. 9 idem, ibidem, p.8. 10 idem, ibidem, p. 17. 33 relação ao que compram, o que comunicam através do que compram, que identidades constroem e que relações com outros estabelecem. E, dos últimos tempos, um novo ramo, que interessa diretamente ao Direito, é a Antropologia Jurídica que, segundo a antropóloga Ana Lúcia Pastore, em entrevista ao jornal Forense, de fevereiro de 2005, estuda as lógicas que comandam os processos de judicização próprios de cada sociedade, através da análise de discursos (orais e/ou escritos), práticas e/ou representações. Processos de judicização envolvem a importância que cada sociedade atribui ao direito no conjunto da regulação social, qualificando (ou desqualificando), como jurídicas, regras e comportamentos já incluídos em outros sistemas de controle social, tais como a moral e a religião. Na verdade, a evidência para a qual a Antropologia Jurídica aponta é o reconhecimento de outros sistemas jurídicos que não o direito posto, que não o nosso – dos Estados nacionais - ordenamento jurídico. E mais, como mostram os estudos comparativos do direito (é o que faz a Antropologia Jurídica), numa sociedade como a nossa, em que coexistem tantas subculturas, coexistem também, lado a lado com o “direito oficial”, outros ordenamentos jurídicos. É o caso, por exemplo, da “lei da prisão”, em que vigoram normas ali criadas – inclusive pena de morte, que não existe fora dela, aplicável, por exemplo, aos estupradores. A essa possibilidade de existirem distintas “formas de direito posto”, de coexistirem, é o pluralismo jurídico, isto é, o convívio entre códigos e normas particulares e diferentes entre si. Isso, sem dúvida, traz reflexões sobre o alcance do direito. Se, por exemplo, os grupos e as facções do tráfico no Rio de Janeiro, e se as relações entre eles são regidas por um código particular, então pode concluir-se que há um território no Brasil – o do tráfico -, sobre o qual o Estado perdeu a sua soberania. O que ameaça a própria existência da nação. O território do tráfico seria, portanto, uma “jurisdição à parte”, o que realmente soa como um absurdo. Então, é como se esse território estivesse fora do Estado brasileiro, embora geograficamente, esse mesmo território fizesse parte do Estado brasileiro? Então, é como se o estado brasileiro tivesse perdido a soberania interna, dentro de sua própria casa? A pergunta que fica dessa rápida discussão é se o pluralismo jurídico amplia ou reduz o próprio âmbito do Estado de direito, ao reconhecer a existência de “outros 34 discursos de direito”. O que, ao mesmo tempo, mostra como são complexas as relações entre estes discursos plurais. Como podem ver e como já foi dito em encontro anterior, no século XX, sobretudo, as ciências passaram a ter alto grau de especialização. O mesmo ocorreu com a Antropologia que vem desenvolvendo uma grande quantidade de subdisciplinas, como Antropologia Urbana, Antropologia Visual, Antropologia do Consumo, Antropologia Jurídica, e assim por diante. Sociologia A sociologia recebeu forte influência da Antropologia. Como nosso trabalho trata em particular da Sociologia, por ora apenas diremos que, grosso modo, pode-se falar em duas grandes correntes distintas na sociologia, em duas Sociologias. Uma, seguindo em grande parte o modelo funcionalista da antropologia, é a sociologia que fotografa a sociedade e as relações sociais como elas são. Ela parte do princípio de que todas as sociedades têm determinados elementos em comum, as instituições. Para entender melhor o que é a instituição para o funcionalismo, devemos ressaltar que, em Sociologia, a instituição não é algo material, não é uma casa ou uma fundação como, por exemplo, uma instituição de ensino. Trata-se de uma abstração, de um conceito. Imaginemos que a sociedade é composta por uma multiplicidade de redes, todas elas se interpenetrando. Qualquer ponto dessa imagem multidimensional é uma posição social. Qualquer posição social imaginável: pai, mãe, moto-boy, empresário, réu, juiz, cantor, mendigo, deputado, aluno etc, recebe o nome de status – devemos ter cuidado em não confundir o sentido de status na Sociologia com o da linguagem cotidiana, pois, no dia-a- dia, dizer “ele tem status” significa “ele é importante”. Ser empresário bem sucedido é um status, assim como ser mendigo também é um status. Toda e qualquer posição social, todo status, tem pelo menos um parceiro. O universitário, por exemplo, tem inúmeros parceiros: os outros alunos, os professores, o coordenador, o diretor, o motorista do ônibus que
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