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INTRODUÇÃO À TEOLOGIA II 1º MÓDULO NOÇÕES BÁSICAS DE CRISTOLOGIA Pe. Adenilson S. Ferreira Apostila Ad usum scholarum 1 o . Semestre/2015 NOÇÕES BÁSICAS DE CRISTOLOGIA 1. NOÇÕES PRELIMINARES Abre-se o presente curso com um estudo elementar de “Cristologia”. A referida disciplina compõe o vasto universo da Teologia. A partir da etimologia, é possível depreender que esta seja o “estudo ou o discurso (lógos) sobre Jesus Cristo”. Na verdade, a Cristologia é considerada o tratado central da Teologia cristã. Afinal de contas, Jesus Cristo é o revelador do Pai e do Espírito Santo, redentor da humanidade e modelo para o qual todos os homens são convidados a tender. A Teologia cristã é essencialmente cristocêntrica. Isso quer dizer que as diversas disciplinas da ciência teológica (eclesiologia, teologia Moral, escatologia, antropologia teológica, teologia fundamental, dogmática etc.) são diferentes partes de uma construção que busca sua unidade e coerência, seu sentido e sua chave hermenêutica na pessoa e no acontecimento de Jesus Cristo 1 . 2. A FÉ CRISTÃ Etimologicamente, o nome “Jesus” significa “Javé Salva”. Trata-se de uma adaptação para o português de um nome hebraico que aparece na Bíblia em duas formas: Yehoshua e Yeshua. No caso, Yeshua é uma forma abreviada do nome Yehoshua. Por sua vez, nas línguas europeias, o nome “Jesus” deriva do grego Iesous.2 Atualmente, sob o ponto de vista histórico, pode-se dizer tranquilamente que Jesus foi um judeu do século I. Porém, chamá-lo de “Cristo” é um pouco mais delicado, pois, nem todos podem ou querem dizer que Jesus é o Cristo 3 . Na verdade, essa afirmação traz no seu bojo o núcleo mais íntimo da fé cristã, ou seja, aquilo que, desde o tempo dos apóstolos, a Igreja tem proclamado. No dia de Pentecostes, quando Pedro se levantou com os onze para dirigir aos judeus a mensagem considerada como a primeira pregação cristã, o ponto alto de suas palavras foi: “Que toda a casa de Israel saiba com certeza: a esse Jesus que vós crucificastes, 1 DUPUIS, Jacques. Introdução à Cristologia. São Paulo: Loyola, 1999, p. 9. 2 Cf. PAGOLA, José Antônio. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 29. 3 Cf. LOEWE, William P. Introdução à Cristologia. São Paulo: Paulus, 2000, p. 7. 2 Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2,36). Dessa forma, nasceu a confissão de fé “Jesus é o Cristo” que só mais tarde evoluiria, semanticamente, para o nome composto “Jesus Cristo”. Parte-se de uma confissão de fé da Igreja Primitiva que consiste em atribuir ao homem Jesus um título particular emprestado à terminologia do Antigo Testamento: Masiah. Esse termo foi traduzido para o grego Chistós e, em português, significa “ungido”. Com ele, a Igreja apostólica reconheceu e anunciou Jesus como salvador universal 4 . Portanto, chamar Jesus de Cristo, para os cristãos, significa dizer que ele é muito mais do que o fundador de sua religião. Significa aceitar aquilo que o anjo anunciou aos pastores sobre o seu nascimento: “nasceu-vos hoje um Salvador, que é Cristo-Senhor, na cidade de Davi” (Lc 2,11). Significa também aderir à profissão de fé que Jesus havia aceitado de Pedro: “Tu és o Cristo” (Mc 8,29) ou “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16,16). Simão Pedro, além de chamar Jesus de “Cristo”, chama-o também “Senhor” e o “Filho de Deus”. Note-se que ao lado do título “Cristo”, mais dois títulos aparecem e ajudam a entender o núcleo central da fé cristológica. Evidenciam claramente o lugar central que essa confissão ocupou, desde o início, na fé da Igreja cristã. 5 O Catecismo da Igreja Católica explica o sentido deles ao tratar da Profissão de fé cristã: Filho de Deus, no Antigo Testamento, é um título dado aos anjos, ao povo da Eleição, aos filhos de Israel e a seus reis. Significa então uma filiação adotiva que estabelece entre Deus e sua criatura relações de uma intimidade especial. Quando o Rei-Messias prometido é chamado “filho de Deus” isso não implica necessariamente, segundo o sentido literal desses textos, que ele ultrapasse o nível humano. Os que designaram Jesus como Messias de Israel talvez não tenham tido a intenção de dizer mais do que isto. Não acontece o mesmo com Pedro, quando confessa Jesus como “o Cristo, o Filho do Deus vivo”, pois este lhe responde com solenidade: “Não foi a carne e o sangue que te revelaram isso, e sim meu Pai que está nos Céus” (Mt 16,17).6 Se Pedro pôde reconhecer o caráter transcendente da filiação divina de Jesus Messias foi porque este o deu a entender claramente. Diante do Sinédrio, à pergunta de seus acusadores: “Tu és o Filho de Deus?”, Jesus respondeu: “Vós dizeis que eu sou” (Lc 22,70). Já bem antes, Ele se designara como “o Filho” conhece o Pai e que é diferente dos “servos” que Deus enviou anteriormente a seu povo, superior aos próprios anjos. Distinguiu sua filiação daquela de seus discípulos, não dizendo nunca “nosso Pai”, a não ser para ordenar-lhes: “Portanto, orai desta maneira: Pai Nosso” (Mt 6,9); e sublinhou este distinção: “Meu Pai e vosso Pai” (Jo 20,17).7 4 Cf. DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 8-9. 5 Cf. IDEM. Ibidem, p. 8. 6 Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000, p. 125, n. 441. 7 Ibidem, n. 443. 3 E ainda: Na versão grega dos livros do Antigo Testamento, o nome inefável com o qual Deus se revelou a Moisés, Iahweh, é traduzido por “Kyrios” [“Senhor”]. Senhor torna-se desde então o nome mais habitual para designar a própria divindade do Deus de Israel. É neste sentido forte que o Novo Testamento utiliza o título de “Senhor” para o Pai, e também – e aí está a novidade – para Jesus reconhecido assim como o próprio Deus. Jesus mesmo atribui-se de maneira velada este título quando discute com os fariseus sobre o sentido do Salmo 110 (cf. Mt 22,41-46), mas também de modo explícito dirigindo-se a seus apóstolos (cf. Jo 13,13). Ao longo de toda a sua vida pública, seus gestos de domínio sobre a natureza, sobre as doenças, sobre os demônios, sobre a morte e o pecado demonstravam sua soberania divina. 8 Portanto, a fé cristã, desde a Igreja Apostólica, reconhece a Jesus como Cristo, como o Filho de Deus encarnado para a salvação da humanidade. Isso quer dizer que, em Jesus Cristo, Deus assumiu a natureza humana sem deixar de ser Deus. Essa verdade da nossa fé católica foi reafirmada no Concílio de Calcedônia (451) com as seguintes palavras: “Ele se fez verdadeiramente homem permanecendo verdadeiro Deus. Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem”.9 3 A VIDA DE JESUS CRISTO E SUA CREDIBILIDADE HISTÓRICA A pessoa, a vida, a obra, a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus constituem a fonte, o centro e o fim de tudo o que o Cristianismo anuncia ao mundo. Se fosse eliminado o fato da encarnação do Filho de Deus na história para salvação da humanidade, seria eliminada a essência do cristianismo! O cristianismo é Cristo! Mas, o que se pode saber sobre a vida histórica de Jesus Cristo? Em princípio, os cristãos não precisam recorrer à investigação histórica. Pela fé, conhecem o mistério de Cristo. Porém, como em Jesus Cristo confessam o Filho de Deus encarnado na história, seria um grande contrassenso não usar dos meios que estejam ao alcance para conhecer melhor sua dimensão histórica e sua vida humana concreta 10 . Sobre ele existe especialmente o testemunho dos evangelhos, mas também algum conhecimento seu em fontes não cristãs. Existem vários testemunhos extrabíblicosque, desde o ponto de vista histórico, descrevem a Jesus de Nazaré de quem os Evangelhos falam. Trata- 8 Ibidem, n. 446-447. 9 Ibidem, n. 464. 10 Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 13-14. 4 se de escritores romanos, de personagens famosos do mundo judeu, como também achados arqueológicos que confirmam situações descritas nos evangelhos. 3.1 Fontes pagãs (escritores romanos) Entre as fontes pagãs, no que se refere a Jesus de Nazaré, aparecem referências nos escritos de quatro personalidades romanas: o escritor Suetônio (por volta de 120); o historiador Tácito (50-120); o legado do imperador Trajano na Bitínia, Plínio o Jovem (61- 120); e, finalmente, o imperador Adriano 11 . Por um lado, admite-se que esses testemunhos são muito áridos. Por outro lado, essa “aridez” pode ser considerada garantia de sua imparcialidade12. De qualquer forma, suas referências têm um valor documental muito importante, pois fornecem dele uma imagem esquemática: “Jesus é oriundo da Judeia, foi executado sob Tibério pelo governador Pôncio Pilatos e, no momento em que escrevem, é venerado por seus seguidores como um deus”13. Suetônio alude ao Cristianismo, e quase certamente ao seu fundador, ao descrever a política estrangeira de Cláudio. O cronista narra que Cláudio “expulsou de Roma aos judeus que eram causa permanente de desordens sob o impulso de Crestus”14. Essa notícia se refere aos anos 51-52, e nela, atribui às desordens a “Cresto”. Em outra passagem, o mesmo autor diz que se “infligiam suplícios aos cristãos, gente entregue a uma superstição nova e maléfica”15. Sem dúvida, o testemunho de Tácito é o mais importante com relação às coordenadas históricas de Cristo. Em seus Anales, pelo ano 115-117, elucida o grande incêndio de Roma (64 d.C.), que Nero atribuiu aos cristãos, pois a voz popular atribuía a ele o incêndio. Tácito diz o seguinte: Este nome lhes vem de Cristo, a quem, no reinado de Tibério, o procurador Pôncio Pilatos havia condenado à morte; reprimida de momento esta detestável superstição retornava outra vez, não somente na Judeia, onde o mal teve sua origem, mas também em Roma, de onde aflui tudo o que há de horrível de vergonhoso, e encontra inúmeros seguidores 16 . 11 Cf. IDEM. Ibidem, p. 591. 12 Cf. GRANDMAISON, Léonce de. Jesucristo. Madrid: EDIBESA, 2002, p. 17. 13 Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 591. 14 “Iudaeos, impulsore Chresto, assidue tumultuantes Roma expulit” [Vita Claudii, n. 25 apud GRANDMAISON, L. Jesucristo, op. cit., p. 18]. 15 “Afflicti supplicis christiani, genus hominum superstitionis novae ac maleficae” [Vita Neronis, n. 6 apud GRANDMAISON, L. Jesucristo, op. cit., p. 18]. 16 Tácito, Annales, t. III, lib. Xv, p. 44 apud GRANDMAISON, L. Jesucristo, op. cit., p. 18. 5 Essa referência histórica tem uma importância enorme, pois reflete o estilo próprio de Tácito. O contexto, o estilo e o tom a tornam totalmente crível a juízo dos críticos. Nela se dá o dado inquestionável do julgamento de Cristo por parte de Pilatos no tempo de Tibério. Note-se ainda que tal referência está em perfeita concordância com a de outro historiador, nesse caso cristão, o evangelista Lucas: No ano quinze do império de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos procurador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia; Filipe, seu irmão, tetrarca de Ituréia e Traconítide; e Lisânias, tetrarca de Abilene; no pontificado de Anás e Caifás, foi dirigida a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto (Lc 3,1-2). O imperador romano Trajano havia enviado um comandante de legião a uma província da Ásia menor (Bitínia): Plínio o Jovem. Esse dirigiu uma carta ao Imperador, entre 111 e 113, interrogando-o sobre o tipo de conduta que deveria assumir para com os cristãos. Plínio diz que chegara à conclusão de que o cristianismo era uma grande superstição. Pelo que diz respeito às práticas cristãs, há um único ponto significante: “reúnem-se antes do amanhecer, cantam a Cristo, como se fosse deus…”. Assim, o texto testemunha o culto a Cristo 17 . Consta ainda a existência de uma carta do imperador Adriano enviada por volta de 125 ao procônsul da Ásia (atual Turquia), Minúcio Fundano. Essa carta, conservada pelo historiador Eusébio, dava instruções para atuar contra os cristãos. Há também uma segunda carta, atribuída ao mesmo Adriano, agora dirigida ao cônsul Serviano, na qual acidentalmente se mencionam Cristo e os cristãos 18 . Segundo Pagola, essas referências “têm um valor documental importante, pois eles são observadores neutros e inclusive hostis ao movimento cristão. Não duvidam nenhum momento da existência de Jesus”19. 3.2 Flávio Josefo: um escritor judeu fala de Jesus O historiador judeu, Flávio Josefo 20 , alude a Cristo em duas ocasiões na obra Antiguidades judaicas, escrita em Roma pelos anos 90: ao falar do apedrejamento de Tiago, 17 Cf. GRANDMAISON, L. Jesucristo, op. cit., p. 19. 18 Cf. CASCIARO, José Maria. Jesus de Nazaré. Lisboa: Instituto Superior Politécnico de Viseu, 1999, p. 97. 19 Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 591. 20 Flávio Josefo, nascido entre 37 e 38 d.C., foi primeiro sacerdote em Jerusalém. No ano 70 esteve presente no cerco e destruição de Jerusalém pelas legiões de Tito. Sem dúvida soube arranjar-se e entrou na gens Flavia em Roma, onde conseguiu a profissão de cronista da corte. Entre os anos 75 e 79, escreveu sua célebre “Guerra judaica” onde conta a história dessa guerra contra Roma. Pouco mais tarde, escreveu a obra 6 em Jerusalém em 62, refere-se ao apóstolo como “irmão de Jesus, a quem chamam o Cristo”21. Esse testemunho é fidedigno: trata-se de uma afirmação nitidamente neutra sobre Tiago, chefe da Igreja de Jerusalém. A passagem que mais diretamente alude a Cristo é o chamado Testimonium Flavianum. Trata-se de um breve texto que fala de Jesus em sua obra “Antiguidades dos judeus” (18, 3,3): Naquele tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Foi autor de feitos admiráveis, mestre de pessoas que recebem com gosto a verdade. E atraiu muitos judeus e muitos de origem grega. E, quando Pilatos, por causa de uma acusação feita pelos homens principais dentre nós, o condenou à cruz, os que antes o haviam amado não deixaram de fazê-lo. E até o dia de hoje a tribo dos cristãos, chamados assim por causa dele, não desapareceu 22 . A crítica moderna encontra dificuldades em alguns elementos desse texto. Alguns veem nele uma interpolação (alteração do texto) de copistas cristãos na Idade Média. Atualmente, a maioria dos críticos opina que, sobre um texto original, pode-se ter interpolado certos dados. Porém, não há dúvidas de que o texto faça uma clara referência à atividade didático e taumatúrgica de Jesus, como também à intervenção de Pilatos em sua morte. 3.3 Principais dados arqueológicos José Antônio Pagola enumera, em síntese, as descobertas e escavações de maior interesse sobre a investigação atual sobre Jesus: os manuscritos de Qumran; os códices de Nag Hammadi; a inscrição de Pilatos; o ossário do sumo sacerdote Caifás; Yehohanan, o crucificado de Jerusalém; a localização do pretório e do Gólgota; as escavações de Séforis e Tiberíades; as aldeias de Jodefat e Gamla; escavações na Galileia; restos em Nazaré e a embarcação da pesca do lado de Galileia 23 . 3.4 Os Evangelhos A fonte principal sobre a vida de Jesus se encontra nos Evangelhos. Etimologicamente, a palavra“Evangelho” vem do grego “Euangélion” e significa “boa “Antiguidades judaicas”, história completa do povo hebreu, desde as origines até a queda de Jerusalém em 70 d.C. [CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 98]. 21 IDEM. Ibidem, p. 591. 22 IDEM. Ibidem, p. 591. 23 IDEM. Ibidem, p. 599-603. 7 nova”, particularmente, anúncio de vitória24. Trata-se de um gênero literário que apareceu depois das Cartas autênticas de Paulo e propôs-se transmitir fatos e palavras da vida de Jesus de Nazaré, que as Cartas não tinham ainda referido 25 . Portanto, não se trata de uma biografia no sentido moderno da palavra. Na realidade, os Evangelhos são uma recopilação da mensagem e dos fatos fundamentais da vida de Cristo que foram escritos com o fim de comunicar a fé nele. Sabe-se que as palavras de Cristo e os fatos de sua vida, antes de serem postos por escrito, foram transmitidos pela comunidade cristã primitiva em sua liturgia e em sua pregação. Os Evangelhos são, na realidade, catequese testemunho de fé de pessoas que creram em Cristo e que quiseram comunicar a fé nele. Foram escritos à luz da Páscoa, o que permitiu aos redatores ver os feitos de Jesus com uma nova luz. Claro, isso não quer dizer que deixem de ser históricos. Quanto à sua redação, pode-se distinguir três momentos: Momento de fato – Jesus de Nazaré, o filho do carpinteiro e de Maria; sua vida, ação, junto aos pobres, sua pregação, seu grupo, as controvérsias com as autoridades políticas e religiosas, sua condenação e morte e mais a sua ressureição; Momento da pregação oral – Jesus é o Cristo vindo de Deus que nos salva. O plano de Deus realizou-se, pois ele ressuscitou e enviou o seu espírito. Jesus foi poderoso em gestos e palavras, foi condenado e morto na cruz, é o filho de Deus, deixou a lei do amor, deixou o memorial de sua morte e ressurreição, vai voltar, envia seus seguidores a serem testemunhas e anunciadores da Boa nova; Momento da fixação por escrito – Primeiros escritos: as cartas que já nascem prontas e os rascunhos dos ditos, dos feitos, da vida e morte de Jesus... Redação final: a montagem dos blocos das tradições orais e escritas compondo os evangelhos como temos hoje 26 . A Igreja Católica reconhece como inspirados quatro narrações do Evangelho, os chamados Evangelhos Canônicos: Mateus, Marcos, Lucas e João 27 . Os três primeiros são chamados “Evangelhos Sinóticos”, porque podem ser lidos em “sinopse”. O quarto Evangelho pertence à tradição “joaneia” ou “joanina”, compreendida como independente da 24 Cf. MOLLAT, Donatien. “Evangelho”. In: LÉON-DUFOUR, Xavier (dir.). Vocabulário de Teologia Bíblica. Tradução de Frei Simão Voigt, OFM. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 319. 25 Paulo de Tarso iniciou seus escritos com a 1ª Carta aos Tessalonicenses. Depois, outras foram escritas pelo próprio apóstolo ou por discípulos seus (estas com certeza foram escritas a próprio punho:1 e 2 Cor, Gl, Fl, Fm, Rm; as outras tem autoria atribuída a seus discípulos: 2Ts, Cl, Ef, 1 e 2 Tm e Tt) e outros teólogos do primeiro século (1,2,3 Jo, Hb, 1 e 2 Pd, Tg, Jd, Ap).[Cf. MILANI, André Luis; PASSOS, João Décio [et al.]. Introdução ao Segundo Testamento: Eu vim para que todos tenham vida em plenitude. São Paulo: Paulus, 2007, p. 75]. 26 MILANI, A. L.; PASSOS, J. D. [et al.]. Introdução ao Segundo Testamento, op. cit., p. 75-76. 27 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Dei Verbum, n. 19. In: Documentos do Concílio Vaticano II [Organização geral Lourenço Costa; tradução Tipografia Poliglota Vaticana]. São Paulo: Paulus, 1997, p. 361-362. 8 tradição sinótica; “o quarto evangelista tem seu estilo próprio de narração e formulação, e não mostra tendência alguma de corrigir ou substituir os sinóticos”28. Quanto à autoria, a Tradição da Igreja sempre entendeu que os Evangelhos de Mateus e de João pertencem aos respectivos Apóstolos. O Evangelho de Lucas atribuiu a Lucas, um companheiro de Paulo, e o Evangelho de Marcos, a um companheiro de Pedro que se chamava João Marcos. Sobre a questão da historicidade, a Constituição Dogmática sobre a Revelação Dei Verbum insiste que a Igreja, firme e constantemente, manteve e mantém que estes quatro Evangelhos, cuja historicidade afirma sem hesitar, transmitem com fidelidade o que Jesus, Filho de Deus, realmente operou e ensinou para a salvação eterna dos homens, durante a sua vida terrena até ao dia em que foi elevado ao céu (At 1, 1-2) 29 . Com toda a garantia, é possível concluir que os Evangelhos contêm uma verdadeira história. A fé que tiveram os primeiros discípulos de Jesus e aqueles que lhes seguiram, a mesma que professavam os evangelistas, não era uma fé ingênua ou infantil. Assentava-se em exigências de veracidade histórica, salvando-se as devidas proporções, iguais às da atualidade. Os primeiros cristãos fizeram um juízo crítico sobre a veracidade dos Evangelhos. Tanto é verdade que muitos “evangelhos” foram rejeitados, como por exemplo, os “apócrifos”30 que não possuíam nenhum valor para a fé31. A respeito da redação, atualmente, entende-se que os evangelistas se serviram de documentos escritos anteriormente, numa primeira recopilação, e investigações pessoais, ao mesmo que tempo que davam aos seus escritos uma intencionalidade teológica. Tudo isso pode ser deduzido do início do Evangelho de Lucas (1, 1-4): 28 Cf. HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia: a revelação, a promessa, a realização. São Paulo: Paulus, 1985, p. 594. 29 CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Dei Verbum, op. cit., p. 361. 30 Etimologicamente, a palavra apókryphon significa “oculto”. Tais escritos são assim considerados não por se tratar de livros secretos, mas porque seu conteúdo doutrinal não conseguiu se impor (ainda que neles existam algumas verdades históricas). Começaram a circular rapidamente, pois são citados na segunda metade do séc. II; porém, não gozavam da garantia apostólica como os quatro que tinham sido reconhecidos (ainda que normalmente fossem apresentados com o nome de algum apóstolo). Além do mais, muitos deles continham doutrinas que não estavam conformes com os ensinamentos apostólicos. Quando o cânon das Escrituras Sagradas foi fixado no século IV, a partir daí se precisa a noção de apócrifo “como aqueles escritos que não fazem parte do cânon bíblico”. Entre as informações dos Santos Padres, considerando aqueles que foram conservados pela piedade cristã e os que eram atestados de uma ou outra maneira em papiros, o número dos “evangelhos apócrifos” conhecidos é algo superior a cinquenta. [Para aprofundamento: ZILLES, Urbano (introdução e tradução). Evangelhos Apócrifos. 3. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.] 31 Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 165-168. 9 Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós – conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra – a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste. Logo após a primeira guerra mundial, entre 1919 e 1922, na Alemanha, foi desenvolvido um novo enfoque ou método para a análise dos Evangelhos sinóticos. A explicação das relações entre os evangelhos levara à teoria das duas fontes. Marcos seriao Evangelho mais antigo e, os outros, dependentes dele e de uma coleção de ditos do Senhor designada por “Q” (do alemão Quelle = “fonte”)32. Essa teoria é defendida por um grande número de exegetas 33 . Pode-se dizer que a exegese católica (e a de grande parte de outras confissões cristãs) afirma a existência de critérios válidos, criticamente elaborados, que permitem escutar, se não as “mesmas palavras de Jesus”, pelo menos a sua mensagem autêntica, e ainda alcançar alguns fatos de sua vida “acontecidos de verdade”. 4. DADOS FUNDAMENTAIS SOBRE A HISTÓRIA DE JESUS DE NAZARÉ Depois da exposição de alguns elementos importantes do testemunho histórico acerca de Jesus Cristo, apresentam-se alguns dados que, segundo a maioria dos investigadores, oferecem alto grau de solidez histórica 34 . 4.1 Nascimento Embora muitos admitam que Jesus tenha nascido em Nazaré, segundo os Evangelhos de Mateus (2,1) e Lucas (2,1-20), teria nascido em Belém, durante o reinado do Imperador romano Augusto, certamente antes da morte de Herodes o Grande, ocorrida na primavera do ano 4 a.C. Ainda que não seja possível precisar a data de seu nascimento, os historiadores coincidem em situá-lo entre os anos 6 e 4 antes de nossa era 35 . 32 Cf. HARRINGTON, W. J. Chave para a Bíblia, op. cit., p. 432. 33 IDEM. Ibidem, p. 449. 34 Esses dados estão baseados principalmente no texto “Breve perfil histórico de Jesus” [PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 577-582]. 35 O monge Dionísio o Exíguo († 556), com os dados históricos de que dispunha, situou o nascimento de Jesus no ano 753 da fundação de Roma e assinalou o ano de 754 como o primeiro da era cristã. Este 10 4.2 Língua materna A língua materna de Jesus foi o aramaico. Segundo José Antônio Pagola, não se sabe com certeza se sabia ler e escrever. Em todo caso, o Evangelho de São Lucas narra que ele, “conforme seu costume, no dia de sábado, foi à Sinagoga e levantou-se para fazer a leitura” (Lc 4,16). Jesus conhecia certamente o hebraico que, nessa época, era uma língua literária empregada na liturgia do templo e nas sinagogas. Antes de serem traduzidas para o aramaico, as Escrituras eram lidas em hebraico. Segundo alguns autores, Jesus pode ter falado também um pouco de grego, porém desconhecia o latim. 4.3 Vida em Nazaré Jesus viveu sua infância, a juventude e os primeiros anos da vida adulta em Nazaré (Lc 2, 39.51s; Mt 2,19-23), um pequeno povoado que se erguia sobre uma encontras na região montanhosa da Galileia, longe das grandes rotas comerciais. Segundo Pagola, Jesus era um homem de mentalidade mais rural que urbana. O conhecimento do contexto sociocultural e religioso permite reconstruir de maneira plausível alguns aspectos sobre seu ofício de artesão e sua educação no seio de uma família judaica. 4.4 Encontro como Batista Em determinado momento, Jesus ouviu falar de João Batista, que movia um movimento de conversão numa região desértica junto ao rio Jordão. Deixou sua aldeia de Nazaré, ouviu a mensagem de João e recebeu seu batismo (Cf. Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21s). 4.5 Atividade itinerante Por volta do ano 27-28, Jesus iniciou uma atividade itinerante que o levou da Galileia a Jerusalém, onde foi executado provavelmente a 7 de abril do ano 30. Trata-se, portanto, de uma atividade que não chegou há três anos. Embora não seja possível reconstruir com exatidão os lugares de sua atividade e cômputo, ainda que esteja atrasado em alguns anos, é o que continua em vigor. Jesus nasceu provavelmente no ano 748 da fundação de Roma (6.° antes da era cristã), ou quando muito no ano 746 da fundação de Roma (8.° antes da era cristã) [Cf. Bíblia Sagrada: Anotada pela Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra. Braga: Edições Theologica, 1994, pp. 77-86]. 11 suas rotas de viagem, certamente exerceu seu ministério público nas proximidades do lago da Galileia e, durante algum tempo, em Cafarnaum. Sempre acompanhado por um grupo de discípulos e discípulas, sua atividade concentrava-se em duas tarefas: curar enfermos de diversos males e anunciar sua mensagem sobre o “Reino de Deus”. Sua fama cresceu rapidamente e as pessoas se mobilizavam para encontrar-se com ele. Jesus tinha o costume de retirar-se de noite a lugares afastados para rezar. 4.6 Profeta do reino de Deus Jesus empregava uma linguagem característica e sugestiva. Seus ditos breves e penetrantes, seus aforismos e, sobretudo, suas belas parábolas são inconfundíveis. Sua pregação concentra-se no anúncio do “Reino de Deus”. Sua mensagem parte da tradição judaica que ele procura comunicar através de uma linguagem simbólica e poética, extraída da vida. Sua pregação ocupa um lugar central a experiência de um Deus Pai que “faz nascer seu sol sobre bons e maus” e acolhe e busca os filhos perdidos. É essencial sua exortação a “entrar” no Reino de Deus e seu chamado a ser “compassivos” como o é o Pai do céu. O perdão aos inimigos constitui o ponto culminante deste chamado. 4.7 Atividade curadora Embora seja difícil precisar o grau de historicidade de cada relato transmitido pelas tradições evangélicas, não há dúvida de que Jesus levou a cabo curas de diversos tipos de enfermos, que foram consideradas milagrosas por seus contemporâneos. Praticou também exorcismos, libertando pessoas do mal. Naquela cultura, elas eram consideradas possuídas por espíritos malignos. Tais prodígios eram entendidos como sinais da chegada do reino de Deus. Porém, Jesus sempre se opôs a executar os sinais espetaculares que alguns setores críticos provavelmente lhe pediam fazer ver a todos, de maneira plástica, que o Reino de Deus está aberto a todos, sem excluir ou marginalizar ninguém. 4.8 Rodeado de discípulos Jesus aparece sempre convocando seu povo a entrar no reino de Deus (cf. Mt 12 3,17; Mc 1,15). Por isso, formou-se em torno a Jesus um grupo reduzido de seguidores itinerantes (cf. Lc 10,1), entre os quais havia também certo número de mulheres. Além desse grupo reduzido, houve um setor mais amplo de simpatizantes que continuaram vivendo em suas casas, mas que se identificavam com sua mensagem e acolhiam Jesus e seu grupo quando chegavam à sua aldeia. Segundo os evangelhos, Jesus chamou para junto de si um grupo mais próximo, os “Doze” (Mc 3,13-19; Mt 10,1-4; Lc 6,12-16), que simbolizava seu desejo de conseguir a restauração de Israel. 4.9 Reações diante de Jesus Fora do grupo reduzido de discípulos e do círculo de simpatizantes, Jesus alcançou uma popularidade bastante grande na Galileia e regiões vizinhas. Jesus mobilizava massas relativamente importantes (cf Mt 5,1; Mc 3,7; Lc 6,17), e isso o transformava precisamente em personagem perigoso perante as autoridades. Jesus provocou também a rejeição de setores que procuraram estigmatizá-lo e desacreditá-lo para impedir sua influência. De fato, Jesus não foi bem recebido entre seus convizinhos e despertou a oposição de escribas e dirigentes religiosos tanto na Galileia quanto em Jerusalém. Foi criticado por comer com pecadores e acusado de estar possuído pelo demônio. Jesus defendeu-se com firmeza de ambas as acusações. 4.10 Execução Na primavera do ano 30, Jesus subiu a Jerusalém, no território da Judeia, que, ao contrário da Galileia, era regida por um prefeito romano. A cidade de Jerusalém eragovernada diretamente naquele momento pelo sumo sacerdote Caifás. Jesus realizou um gesto hostil para com o templo, gesto que provocou sua detenção. Parece que não houve propriamente julgamento de Jesus perante as autoridades judaicas. Antes, em vista do que aconteceu no templo, a aristocracia sacerdotal ficou ainda mais convencida da periculosidade que Jesus representava e confabularam para fazê-lo desaparecer. De fato, Jesus morreu crucificado provavelmente no dia 7 de abril do ano 30 e foi o prefeito romano Pôncio Pilatos quem ditou a ordem de sua execução. 13 4.11 Fé em Jesus ressuscitado É possível verificar historicamente que, entre os anos 35 e 40, os cristãos da primeira geração confessavam com diversas fórmulas uma convicção compartilhada por todos e que rapidamente foram propagando por todo o Império: “Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos”. 5 A MENSAGEM DE JESUS Um amplo número de exegetas está de acordo em afirmar que a missão e a atividade de Jesus estão centradas no tema da vinda do “Reino de Deus”. Os evangelhos narram que, nas aldeias da Galileia, Jesus anunciava a boa nova do Reino (Mt 4,23; 9,35) 36 . São Marcos resume assim sua pregação: “Cumpriu-se o tempo e o reino de Deus está próximo, convertei-vos e crede na boa-nova” (Mc 1,15). Uma indicação estatística pode sublinhar isto: a expressão “Reino de Deus” ocorre no conjunto do Novo Testamento 122 vezes; destas, encontra-se 99 vezes nos três Evangelhos sinópticos e, destas, de novo, 90 pertencem às palavras de Jesus. No Evangelho de S. João e nos restantes escritos do Novo Testamento a expressão representa um papel muito limitado. Pode-se dizer: enquanto o eixo da pregação pré-pascal de Jesus é a mensagem do Reino de Deus, a cristologia constitui o centro da pregação apostólica pós-pascal 37 . Porém, esse fato deixa aberta uma questão central: ao falar do “Reino”, do que Jesus estava falando? Sabe-se que a monarquia é um regime político entre os muitos que os seres humanos criam: trata-se de um sistema em que o monarca cumpre certos deveres, goza de certos privilégios e em certas ocasiões usa determinadas insígnias. Certamente, nada disso se aplica a Deus. Aqui, parte-se de uma linguagem que não é literal e sim metafórica, simbólica 38 . Para saber em que consiste essa realidade misteriosa que Jesus veio instaurar na terra, faz-se mister saber que o referido tema, presente também na pregação de João Batista, provém do Antigo Testamento que lhe havia esboçado as grandes linhas enquanto o anunciava e preparava a sua chegada. Na verdade, a realeza divina era uma ideia comum a todas as religiões do antigo Oriente. Consta que as mitologias se serviam dessa ideia para 36 Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 57. 37 BENTO XVI. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo do Jordão à Transfiguração. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007, p. 58. 38 Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 58-59. 14 conferir um valor sagrado a rei-humano, lugar-tenente terrestre do deus-rei. Porém, o Antigo Testamento assume essa ideia, mas com um conteúdo diferente, peculiar. A ideia aparece relacionada com o seu monoteísmo, sua concepção do poder político, sua escatologia. Israel é o Reino de Deus. Ele reina sobre Israel (Jz 8,23; 1Sm 8,7). Ele reina para sempre no céu (Sl 11,4; 103,19), na terra (Sl 47,3) no universo inteiro que ele criou (Sl 93,1s; 95,3ss), reina sobre todas as nações (Jr 10,7.10). Mesmo quando a estrutura política evolui (quando o povo resolve ter um rei – 1 Sm 8,1-9), a instauração da realeza humana deve subordinar-se à realeza divina (1Sm 10,24; 16,12; 2Sm 7,14) 39 . Quando a realeza israelita desmorona, entendem que a causa principal da queda é a ruptura dos reis humanos com o Rei do qual recebiam seu poder (Jr 10,21). A partir daí, os profetas iniciam o anúncio do Rei futuro, o Messias filho de Davi. O próprioDeus, como um pastor, irá se ocupar de seu rebanho para congregá-lo e salvá-lo (Miq 2,12s; Ez 34,11;Is 40, 9ss). O povo viverá então a expectativa do reinado de Deus: um reino que se instaurará sobre as ruinas dos impérios humanos (Dn 2,44; Sb 3,8). Muitas vezes essa espera se configurará numa forma política: espera-se a restauração do reino de Davi pelo Messias 40 . Como se pode notar, o tema do Reino de Deus correspondia perfeitamente à expectativa do povo judeu. Jesus dirigiu-se a seus compatriotas numa linguagem tirada de sua herança comum 41 . Esse fato trouxe algumas dificuldades: para os ouvintes de Jesus, a vinda do Reino de Deus endireitaria tudo, traria ao mesmo tempo, a resolução do problema do mal. Talvez alguns dos contemporâneos de Jesus pensassem que o reino seria instaurado pela revolução. Outros, quem sabe, no cenário apocalíptico 42 . Porém, o Reino de Deus é uma realidade misteriosa, cuja natureza só Jesus pode dar a conhecer. A pedagogia dos Evangelhos consiste em grande parte na revelação progressiva dos mistérios do Reino, notadamente nas parábolas 43 e nos atos de Jesus, ou seja, seus milagres e exorcismos 44 . 39 Cf. DEVILLE, Raymond; GRELOT, Pierre. Reino. In: LÉON-DUFOUR, Xavier (dir.). Vocabulário de Teologia Bíblica, op. cit., p. 871-872. 40 IDEM. Ibidem, p. 873. 41 Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 60. 42 Cf. IDEM. Ibidem, p. 63. 43 Todos estão de acordo que as parábolas formam, sem dúvida, o núcleo essencial da pregação de Jesus. O uso pedagógico das parábolas servia para transmitir os ensinamentos para o maior número de pessoas possíveis, em diversos níveis culturais: para que todos compreendessem. Era mais fácil usar as imagens do cotidiano para transmitir os grandes ensinamentos da vida de modo que o ouvinte pudesse interagir e aplicar à própria vida os novos conhecimentos trazidos por Jesus. Por outro lado, a pedagogia do Senhor se torna original, diferenciando-se do método dos mestres da religião da época, pois o ouvinte deveria passar da passividade para um movimento de abertura frente a realidade que o levasse a uma livre escolha de seguir ou não seguir o Senhor. Bento XVI fala do assunto: “ ... cada educador, cada mestre que queira transmitir conhecimentos aos seus ouvintes sempre há de servir-se também de exemplos, de parábolas. Por meio do exemplo, o mestre aproxima do seu pensamento uma realidade que até então permanecia longe do ângulo de visão dos seus interlocutores. Ele quer mostrar como algo transparece numa realidade que pertence ao seu campo de 15 No Evangelho de São Mateus, no décimo terceiro capítulo, estão reunidas sete parábolas seguidas de Jesus sobre o Reino de Deus. São as chamadas parábolas do Reino: (1) a parábola do semeador (que aparece nos três sinóticos com sua explicação: Mt 13,1-9.18-23; Mc 4,1-9.13-20; Lc 8,4-8.11-15); (2) a parábola do joio (Mt 13, 24-30); (3) a parábola do grão de mostarda (Mt 13, 31-32); (4) a parábola do fermento (Mt 13, 33, cfr. Lc 13,20-21); (5) a parábola do tesouro escondido (Mt 13, 44); (6) a parábola da pérola (Mt 13, 45) e (7) a parábola da rede (Mt 13, 47-50). Essa parábolas são “comparações” por meio das quais Jesus ilustra e, aos poucos, revela os mistérios do Reino ou do Reinado de Deus. São notas e características desse reinado: (1) a pequenez e a humildade das origens, mas, ao mesmo tempo, o seu progressivo crescimento; (2) a força regeneradora para o homem, mediante a qual Deus convida a todos à salvação (porém só a alcançarão aqueles que corresponderem ao chamamento com abertura de alma e perseverarem nele)45 ; (3) o juízo divino, que discernirá a reta intenção dos homens ao seguirem Jesus Cristo; (4) a misteriosa ligação entre os aspectos terrestre e celeste e a tensão para a plenitude final, isto é, rumo ao tempo escatológico 46 . Embora se tenha destacado aqui as parábolas do décimo terceiro capítulo de São Mateus, como “parábolas do Reino”, atualmente admite-se que todas as parábolas acabam por anunciar algum aspecto do Reino de Deus e a sua proximidade iminente 47 . E ainda mais: nas parábolas de Jesus sempre se desvenda, junto com alguma dimensão do Reino de Deus, algum aspecto do modo divino de agir: “o ‘Reino dos Céus’ não é uma realidade, digamos, estática, experiência, de que até então se não tinham apercebido. Por meio da parábola, aproxima dos ouvintes o que estava longe, de tal modo que chegam até o desconhecido através da ponte da parábola. Trata-se aqui de um duplo movimento: por um lado, a parábola traz o que está longe para a proximidade dos ouvintes. Por outro lado, o ouvinte é ele mesmo, deste modo, posto a caminho. A dinâmica interior da parábola, a interior autossuperação da imagem escolhida, convida-o a confiar-se a esta dinâmica e a avançar para além do seu anterior horizonte, a aprender e a compreender o até agora desconhecido. Mas isto significa que a parábola exige a colaboração do aprendiz, ao qual não somente se traz alguma informação, mas ele mesmo deve acolher o próprio movimento da parábola e seguir com este movimento. Neste momento surge também a problemática da parábola: pode dar-se a incapacidade de descobrir a sua dinâmica e de se deixar conduzir por ela. Pode dar-se, principalmente se se trata de parábolas que tocam a existência e a mudam, a falta de vontade de se deixar entrar no movimento exigido” [RATZINGER, J. (Bento XVI). Jesus de Nazaré, op. cit., p. 171- 172.] 44 Cf. DEVILLE, R.; GRELOT, P. Reino. In: LÉON-DUFOUR, X. Vocabulário, op. cit., p. 874. 45 O Reino de deus é dom por excelência. Mas para recebe-lo é preciso cumprir certas condições (se tudo é graça, os homens devem responder à graça): os pecadores endurecidos no mal “não herdarão o Reino de Cristo e de Deus” (1Co 6,9s; Gl 5,21; Ef 5,5; cf. Ap 22,14s); é preciso ter uma alma de pobre (Mt 5,3); uma atitude de criança (Mt 18,1-4; 19,14); uma ativa busca do Reino e da sua justiça (Mt 6,33), o suportar das perseguições (Mt 5,10; At 14,22; 2 Tl 1,5), o sacrifício de tudo que se possui (Mt 13,44ss; cf. 19,23), uma perfeição maior que ados fariseus (Mt 5, 20); uma palavra, o cumprimento da vontade do Pai (Mt 7,21), especialmente em matéria de caridade fraterna (Mt 25,34) [Cf. DEVILLE, R.; GRELOT, P. Reino. In: LÉON-DUFOUR, X. Vocabulário, op. cit., p. 875-876]. 46 Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 275. 47 Cf. IDEM. Ibidem, p. 302. 16 mas dinâmica, na qual se projeta o modo divino de agir”48. Como enunciado anteriormente, o Reino de Deus não se manifesta somente nas parábolas de Jesus, mas também no agir de Cristo. Os quatro Evangelhos mencionam quarenta e um milagres diferentes feitos por Jesus. Deve-se observar que o Senhor se recusa a fazer milagres espetaculares para benefício próprio (Mt 4,3-6); em compensação, fá-los para manifestar a chegada do Reino que inaugura (Mt 11,4-6; 12,22-30), para testemunhar que foi enviado por Deus Pai (Jo 5,36; 10,25); para mostrar a sua condição de Filho de Deus (Jo 10,31-38; 11,3-4), etc. Os seus milagres são de índole muito variada: curas repentinas; exorcismos, três ressurreições de mortos e vários prodígios na natureza. Os seus contemporâneos jamais colocaram em dúvida (At 10,37-38), nem mesmo seus inimigos declarados, que tentavam atribuí-los ao demônio (Mc 3,22) 49 . Historicamente, é muito .provável que Jesus tenha curado pessoas e realizado exorcismos 50 . Quando se pergunta por que algo aconteceu, geralmente há uma resposta. Pode-se recorrer a uma disciplina ou a uma combinação de disciplinas em busca de explicação. Começa a chover, nasce uma criança, políticos assinam um tratado de redução de armas, uma família sai de férias: para cada um desses acontecimentos há uma explicação. Porém, quando ocorre algo que é inexplicável, algo que interrompe o curso normal das coisas e suspende as leis da natureza, pode-se deduzir a existência de um milagre. Esse critério parece muito simples: se o evento não pode ser explicado é milagre. Porém, há uma diferença muito grande entre dizer “algo é inexplicável” e atribuir esse fato a Deus. Por isso, alguns biblistas católicos, já há algumas décadas, sugeriram uma compreensão alternativa do termo milagre, mais de acordo com o testemunho do Novo Testamento. Significa dizer que só é milagre se for um evento portador de um significado religioso 51 . As curas e os exorcismos feitos por Jesus são mais positivos: são sinais do Reino. Sob o ponto de vista funcional, a vinda do Reino significa a resposta, uma solução para o problema do mal. Ao curar as doenças das pessoas, Jesus oferece uma experiência antecipada da realidade vindoura. Ao realizar exorcismos, mostra que o Reino de Deus traz a vitória sobre Satanás. Essa vitória sobre o maligno também é constatada nas curas, pois, na antiguidade, as doenças eram atribuídas aos espíritos maus. Em síntese: as curas e os exorcismos de Jesus indicam que há uma realidade que cura e liberta tudo o que precisa ser libertado e curado. A proximidade do Reino de Deus 48 Cf. IDEM. Ibidem, p. 306. 49 Cf. IDEM. Ibidem, p. 315-316. 50 Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 83. 51 Cf. IDEM. Ibidem, p. 77-78. 17 traz plenitude e liberdade 52 . Portanto, o significado teológico dos milagres de Jesus é o seguinte: “são testemunho do começo dos tempos finais da salvação, em que Satanás começa a ser derrotado, ainda que não o será definitivamente até à segunda vinda de Cristo”53. Os milagres confirmam a verdade de suas palavras, são ajudas exteriores para a fé nele 54 . Embora a maior parte dos textos digam que o Reino é objeto de desejos e esperanças, alguns textos fazem supor que ele já chegou. Alega o seus exorcismos de que o Reino já veio (Mt 12,28). Quando os fariseus perguntam quando é que o Reino vem, recebem uma dupla resposta: de um lado sua vinda não poderá ser calculada e, de outro, já está no meio deles (Lc 17,20s). Essa aparente contradição resolve-se, quando se entende que Jesus é o próprio Reino. Na sua atividade, na sua pessoa, o Reino se faz presente (Mt 12,28; Lc 17,20s.). Observe-se que São Mateus (16,28) descreve a gloriosa manifestação do Reino como a vinda do Filho do Homem em seu reino 55 . A partir da leitura das suas palavras, Orígenes caracterizou Jesus como a autobasiléia, isto é, como o Reino de Deus em pessoa. Jesus mesmo é o “Reino”; o Reino não é uma coisa, não é um espaço de domínio como um reino do mundo. É pessoa: o Reino é Ele 56 . Em síntese, pode-se dizer, que o tema do “Reino de Deus” penetra toda a pregação de Jesus e só poderá ser compreendido a partir da totalidade da sua pregação. Ao falar do Evangelho do Reino de Deus, diz o Papa Bento XVI que “Jesus anuncia, à medida que fala do Reino de Deus, simplesmente Deus e precisamente o Deus vivo, que é capaz de agir de modo concreto no mundo e na história e que já está exatamente agora em ação”57. 6 O MISTÉRIO PASCAL O Novo Testamento associa indissoluvelmente a redenção e a salvação esperadas desde o Antigo Testamento à pessoa e a história de Jesus Cristo.Por exemplo, nos relatos dos sofrimentos do “Servo de Javé”, Isaías (52,13–53,12; cf. 42,6;49,6.8) já anunciava que “alguém” assumiria e pagaria voluntariamente a culpa do povo de Israel e de todos os outros 52 Cf. IDEM. Ibidem, p. 84. 53 CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 317. 54 Cf. IDEM. Ibidem, p. 318. 55 Cf. NELIS, J. Reino de Deus. In: VAN DEN BORN, A. (org.). Dicionário enciclopédico da Bíblia. 6. ed. Tradução de Frederico Stein. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 1289-1295. 56 RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007, p. 59. 57 IDEM. Ibidem, p. 64. 18 povos no seu lugar e por sua salvação 58 . Os cristãos sempre aplicaram essas profecias de Isaías a Jesus. Há na literatura neotestamentária diversas citações e alusões em que se dá uma clara associação de Jesus à essa figura, dentre elas: Mt 8,17 (Is 53,4); Mt 12,18 (Is 42,1-4); Mc 10,45 (Is 53,10); Lc 22,37 (53,12); Jo 12,38 (Is 53,1) e At 8,32s (Is 57,7s) 59 . Portanto, como transparece no símbolo Niceno-constantinopolitano, os cristãos sempre professaram a sua fé em ... um só Senhor Jesus Cristo, unigênito Filho de Deus e nascido do Pai antes de todos os séculos, [...] o qual em prol de nós (grifo nosso), homens, e de nossa salvação, desceu dos céus, e se encarnou, do Espírito Santo, <do seio> de Maria Virgem, e se fez homem; que também foi crucificado por nós (grifo nosso), sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado, e ressuscitou no terceiro dia segundo as Escrituras e, e subiu ao céu, está sentado a direito do pai e virá novamente para julgar os vivos e os mortos, cujo reino não terá fim 60 . Desde o início do Cristianismo, há uma nítida consciência de que existe uma obra salvífica realizada por Deus na pessoa de Jesus Cristo. Isso quer dizer que os seguidores de Jesus aprenderam a ver a morte dele como o sofrimento do justo que conquista a justificação de Deus como morte por seus pecados 61 . Em síntese, este é o chamado mistério pascal: o mistério da Cruz e da Ressurreição de Cristo que ocupa o “centro da Boa Nova que os apóstolos e a Igreja, na esteira deles, deve anunciar ao mundo”62 . 6.1 A liberdade de Jesus diante de sua morte iminente Da leitura dos textos do Novo Testamento, transparece claramente que Jesus Cristo entregou-se voluntariamente a sua morte cruz. Encontrava-se em Cesareia de Filipo, antes dos sérios enfrentamentos que tivera com os judeus, quando tomou a decisão de abraçar a cruz. Depois da confissão de Pedro, diz o evangelho: “E começou a ensinar-lhes que o filho do homem tinha que sofrer muito e ser reprovado pelos anciãos, os sumos sacerdotes e os escribas, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia” (Mc 8,31). 58 Cf. KESSLER, Hans. Redenção/Soteriologia. In: EICHER, Peter (dir.). Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 745. 59 Cf. BOUWMAN. Servo de Javé. In: BORN, A. Van Den (org.). Dicionário enciclopédico da Bíblia. 6. ed. Tradução de Frederico Stein. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 1425. 60 DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2007, p. 66, n. 150. 61 Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 116. 62 Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 161, n. 571. 19 É possível admitir que a experiência de seu ministério e as inúmeras oposições que enfrentou por parte dos fariseus e das autoridades religiosas o levariam a prever a sua morte como um destino inevitável 63 . Os fariseus formavam um grupo de homens letrados, familiarizados com as tradições e os costumes de Israel e, muitos deles possuíam cargos administrativos ou burocráticos, sobretudo em Jerusalém. Dedicavam-se ao estudo da Torá, cuidavam de observar todas as prescrições como a observância do sábado, o pagamento dos dízimos ao Templo ou a pureza ritual. Ainda que as curas que Jesus realizava os atraíssem como atraiam a todos e ainda pudessem considera-lo um grande profeta como Isaías ou Jeremias, eram seus adversários por excelência: faziam-lhe perguntas capciosas e procuravam tirar a sua credibilidade diante do povo. De sua parte, Jesus lançava sobre eles diversas ameaças e condenações: disse que não entrariam no Reino dos Céus, que estavam cheios de hipocrisia e de maldade, que se preocupavam das minúcias, mas descuidavam-se da justiça, da misericórdia e da fé. Jesus chegou a compará-los com sepulcros caiados, bonitos por fora, mas cheios de podridão. Contudo o que mais irritava aos fariseus, era que Jesus falava diretamente em nome de Deus, com autoridade própria, sem respeitar aquilo que os outros mestres ensinavam. Apesar de tudo, ainda que tomassem parte, como grupo, em sua condenação ou execução, não foram os fariseus os instigadores da sua morte 64 . As autoridades religiosas, que também fizeram oposição a Jesus, constituíam uma aristocracia formada por uma minoria de cidadãos ricos e importantes, muitos deles sacerdotes e alguns membros do grupo saduceu. Consta que, naquele tempo, o sumo sacerdote tinha poder de governo tanto nem Jerusalém como na Judeia. Talvez não vissem com bons olhos as curas e os exorcismos que davam popularidade a Jesus e ameaçavam o seu poder de intermediários exclusivos do perdão e da salvação de Deus em Israel. Em linhas gerais, pode-se dizer que a atividade de Jesus questionava o templo como fonte exclusiva de salvação para o povo. Além disso, a tradição cristã conservou uma parábola que parecia dirigida às autoridades religiosas do Templo: a “parábola dos vinhateiros homicidas” (Mc 12,1-8; Lc 20,9-15 e Mt 12,33-39 e ainda no apócrifo de Tomé 65) que, provavelmente, afirmava que não sabiam cuidar do povo que lhes fora confiado, mas somente pensavam em seus próprios interesses. Além disso, a parábola deixa entender que eles se sentiam proprietários de Israel, quando eram apenas administradores e que não foram capazes de acolher os enviados de Deus. 63 Cf. DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 72. 64 Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 400-405. 20 Em outras passagens, ainda há outros ecos da critica que Jesus fez aos dirigentes religiosos do Templo, como por exemplo, o lamento profético que feito por ele sobre Jerusalém no estilo dos profetas como Amós ou outros (Lc 13,34-35; Mt 23,37-39). No caso, parece evidente que se referia não a toda Jerusalém, mas aos lideres religiosos que a governavam. Por tudo isso, a sua vida corria perigo, pois, os sumos sacerdotes não poderiam aceitar tamanha agressão 65 . Aos conflitos com as autoridades religiosas, inclua-se a sua comunhão com pessoas que, naquela sociedade, eram consideradas “dignas de desprezo”. Essa atitude era também considerada uma verdadeira afronta aos líderes religiosos. O fato de ele – para além de todos os limites estabelecidos contra a impureza – anunciar o incondicional amor paterno e a disposição ao perdão de Deus a todos podia ser entendido pelos guardiões mesquinhos da doutrina oficial como ataque aos fundamentos da fé e como traição da causa sagrada de Israel. “Certamente muitos críticos de Jesus eram de opinião que tinham de defender a Deus contra Jesus”66. Além das questões religiosas, pode-se apontar o receio do poder romano surgido da desconfiança de que ele tornara-se um profeta inquietante e perigo de subversão. O seu anúncio da implantação do Reino de Deus era fonte de preocupação para as autoridadese, por isso, poderia ser executado em qualquer território controlado por Roma. Deve tê-los inquietado muito a postura de Jesus sobre o imposto (Mc 12,13-17). Quando lhe perguntaram se era lícito ou não pagar imposto a César, a formulação não poderia ser mais delicada para Jesus. Se respondesse negativamente, poderia ser acusado de rebelião contra Roma. Se aceitasse a tributação dos impostos, ficaria desacreditado diante das pessoas exploradas pelo Império Romano. Diante da cilada, com uma imensa liberdade proclamou: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12,17). Nesse caso, a hábil postura de Jesus driblou seus adversários. Porém, mais tarde, conforme diz São Lucas, foi acusado diante de Pilatos de alvoraçar o povo a não pagar impostos a César (Lc 23,2) 67 . De qualquer forma, Jesus contou com a possibilidade de um final violento. Não era ingênuo. Sabia do perigo a que se expunha se prosseguisse sua atividade e continuasse na irrupção do Reino de Deus. Mais cedo ou mais tarde sua vida poderia desembocar na morte. O perigo o ameaçava a partir de diversas frentes. [...] Provavelmente Jesus contou desde cedo com a possiblidade de um desenlace 65 Cf. IDEM. Ibidem, p. 405-409. 66 KESSLER, Hans. Cristologia. In: SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual de Dogmática. V. I. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 253. 67 Cf. IDEM. Ibidem, p. 410-416. 21 fatal. Primeiro era só uma possibilidade; mais tarde transformar-se-ia num final bastante provável; por fim numa certeza 68 . Há ainda outros textos que expressam a consciência de Jesus a respeito de sua morte: o sinal de Jonas (Mt 12,39-39; Mc 8,11-12; Lc 16,29-32), as metáforas do Batismo, do cálice, da hora e do pastor ferido mostram também a consciência de que paulatinamente se aproxima o sofrimento da Paixão. Transparece a convicção de estar numa crescente tensão que culminará no sacrifício de sua vida 69 . Tudo isso para dizer que Jesus não era ingênuo e sabia do perigo que corria. Poderia ter mudado de conduta, poderia ter fugido... No entanto, Jesus Cristo dirigiu-se voluntariamente à Cruz, pois, ele mesmo o dirá: “Ninguém me tira a vida, eu a dou voluntariamente” (Jo 10,18). São sinais claros que Cristo pôde prever a sua morte. Com muita frequência Jesus falava de sua morte (cf. Mc 2,19-20; 14,21). No total encontramos oito solenes predições de sua crucifixão! 6.2 O sentido redentor dado por Jesus a sua morte Se Jesus pode prever a sua morte como um “destino inevitável”, é certo que Jesus lhe conferira um sentido preciso. A tradição dos Evangelhos guardou diversas alusões com referência ao sentido redentor dado por ele à própria morte. Por exemplo, no Evangelho de São Marcos, depois do terceiro anúncio de sua paixão, ao exortar os apóstolos do perigo da ambição, afirmou claramente que “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos” (Mc 10,45)70. Contudo, somente na última ceia Jesus expressou “explicitamente” o sentido redentor de sua morte: “Tomai, comei, isto é o meu corpo… Este é meu sangue da aliança que vai ser derramado por muitos para remissão dos pecados” (Mt 26,26-28). Jesus se serviu aqui da profecia do servo do SENHOR (cf. Is 53,11-12) para dar a entender que sua vida se entrega em expiação dos pecados da humanidade. Assim, Jesus entendia que, como outrora no Sinai o sangue das vítimas selou a aliançado SENHOR com o seu povo (Ex 24,4-8; Gn 15,1), sob a cruz, o seu sangue iria selar a “nova aliança” entre Deus e os homens (Cf. Lc 22,20). Trata-se da mesma aliança que os profetas tinham anunciado (Jr, 31,31) 71 . Desse modo, ao cear com 68 IDEM. Ibidem, p. 416-417. 69 Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 518. 70 Cf. DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 72. 71 Cf. A Bíblia de Jerusalém. 7ª impressão. São Paulo: Paulus, 1995, nota c, p. 1889. 22 seus discípulos, às vésperas de sua paixão, Jesus sabia que sua morte iminente seria para a remissão dos pecados 72 . Um aspecto particular da interpretação que Jesus faz da morte, e que ocorreu durante a última ceia, consiste em havê-la associado à oferta de um dom, o dom do pão e de um cálice de vinho. Na verdade, numa refeição festiva judia, o consumo de pão e vinho é natural, mas aqui isto é visto sob uma luz diferente, a luz de sua interpretação da morte. [...] No início da refeição Jesus tomou um pão, pronunciou uma bênção, partiu-o e distribuiu os pedaços aos discípulos enquanto interpretava o que estava fazendo. No fim, depois de uma oração de ação de graças, ele fez circular o (seu?) cálice de vinho, dando também a interpretação. Por causa da dificuldade para reconstituir as palavras de interpretação pronunciadas por Jesus, poderíamos renunciar a isto e falar de uma ceia de despedida que apontava para o banquete escatológico, ou, com maior reserva ainda, falar misteriosamente de uma ceia cheia de significado. Poderíamos também apontar para o gesto de oração presente na entrega do pão e do cálice que foram abençoados, e unicamente neste gesto ver manifestada a bênção a salvação realizada por Jesus ao dirigir-se para a morte. Certamente esse ato está orientado para essa vontade. Mas ainda podemos dar um outro passo adiante, uma vez que contamos com a interpretação salvífica da morte de Jesus 73 . Note-se que esse sentido redentor dado por Jesus à sua morte também aparece após sua ressurreição. Quando Jesus Ressuscitado aparece em Jerusalém aos onze apóstolos, retoma os diálogos acontecidos antes da Paixão: 44 Depois disse-lhes: “São estas as coisas que eu vos falei quando ainda estava convosco: era necessário que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”. 45Então ele abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras, 46 e disse-lhes: “Assim está escrito: o Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, 47 e no seu nome será anunciada a conversão para o perdão dos pecados, a todas as nações começando por Jerusalém. 48 Vós sois as testemunhas destas coisas” (Lc 24,44-45). Portanto, Jesus era consciente de um projeto divino de salvação anunciado antecipadamente pelas Escrituras e que se realizaria mediante a morte de um “Servo, o Justo”. Esse projeto, na verdade, consistia no mistério da redenção universal em que se dá o resgate que liberta os homens da escravidão do pecado 74 . 72 Cf. IDEM. Ibidem, p. 73-74. 73 GNILKA, Joaquim. Jesus de Nazaré: mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000 , p. 263-264. 74 Cf. Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 171, n. 601. 23 6.3 A paixão e a morte de Jesus A Paixão de Jesus Cristo é o momento de sua vida mais minuciosamente narrado pelos quatro evangelistas. Essas narrativas coincidem em tudo o que é fundamental 75 . Apresentam passagens próprias que, de modo algum, são contraditórias, mas se complementam entre si. Por isso, qualquer um dos quatro relatos da Paixão constitui um legítimo relato 76 . Muitos consideram que, na formação dos Evangelhos, a narração da Paixão parece ser a primeira parte de toda a história de Jesus tecida em forma contínua. Sob ponto de vista cristão, cada evangelista escreveu com o objetivo de comunicar o significado religioso dos últimos dias de Jesus 77 . Na noite da Última Ceia, começou-se a desenrolar uma série de acontecimentos que parecem ter ocorrido de forma bemrápida. Depois que cantaram o hino, Jesus e os apóstolos saíram para o Monte das Oliveiras (Mc 14,26), o local em que Jesus foi preso. Nesse lugar, Judas e a tropa encarregada da prisão entraram em cena. Depois do beijo da traição, Jesus foi preso e os discípulos fugiram. Segundo o Evangelho de São Marcos (15,1), “logo de manhã, os sumos sacerdotes, com os anciãos, os escritas e o sinédrio inteiro, reuniram-se para deliberar. Depois, amarraram Jesus, levaram-no e o entregaram à Pilatos”. Perante o tribunal romano, ele fora julgado. Quanto ao processo do julgamento de Jesus, não consta a presença de jurados nem de assistentes judiciais. Tribunais de jurados não eram usuais na Judeia. Não se sabe se Pilatos que o julgou recorreu a um conselho e, certamente, isso não poderá ser esclarecido. Seu processo consistiu basicamente em uma acusação apresentada pelos sumos sacerdotes (ou por seus representantes) e de uma audiência realizada por Pilatos. Enquanto o governador da Judeia o interrogava, Jesus respondia ou silenciava (Mc 15,2-5). Sem entrar em outros detalhes 78 , pode-se dizer que esse processo terminara com uma sentença de morte formal: a crucifixão 79 . Como forma de execução romana, nunca poderia ser aplicada aos cidadãos romanos, exceto em casos excepcionais e para manter a disciplina entre os militares 80 . A crueldade da crucificação tinha a intenção de aterrorizar a população e servir assim de escarmento geral. Sempre era um ato público. As vítimas permaneciam totalmente nuas, agonizando na cruz, num lugar visível: uma encruzilhada concorrida, uma pequena elevação não longe das portas de um 75 Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 517. 76 Cf. IDEM. Ibidem, p. 519-521. 77 Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 113. 78 Por exemplo, poderia se falar da cena de Barrabás (Mc 15,6; Mt 27,15; Lc 23,18 e Jo 18,39). 79 Cf. GNILKA, Joaquim. Jesus de Nazaré, op. cit., p. 273-278. 80 Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 465. 24 teatro ou o próprio lugar onde o crucificado havia cometido seu crime. Não era fácil esquecer o espetáculo daqueles homens retorcendo-se de dor entre gritos e maldições. [...] O escritor romano Plauto (apr. 250-184 a.C.) descreve com quanta facilidade crucificavam-se escravos para mantê-los aterrorizados, cortando pela raiz qualquer tentativa de rebelião, fuga ou roubos. Por outro lado, era o castigo mais eficaz para os que se atreviam a a erguer-se contra o Império. Durante muitos anos foi o instrumento mais comum para “pacificar” as províncias rebeldes. O povo judeu o havia experimentado repetidas vezes. Só num período de setenta anos, próximos à morte de Jesus, o historiador Flávio Josefo nos informa de quatro crucificações em massa: no ano 4 a.C., Quintílio Varo crucifica dois mil rebeldes em Jerusalém; entre os anos 48 e 52, Quadrato, legado da Síria, crucifica todos os capturados por Cumano num enfrentamento entre judeus e samaritanos; no ano 66, durante a prefeitura do cruel Floro, são flagelados e crucificados um número incontável de judeus, na queda de Jerusalém (setembro do ano 70), números defensores da cidade santa são crucificados brutalmente pelos romanos 81 . Condenado à morte, Jesus foi flagelado pelos soldados encarregados de sua execução. Na verdade, a flagelação era o começo da execução. Só poderia ser feita em peregrinos, pois, naquela época, era proibido flagelar cidadãos romanos. Além disso, César punia a flagelação de cidadãos romanos com violência grave. Para essa, os soldados usavam uma correia de couro que muitas vezes continham fragmentos de ossos ou grumos de chumbo. O flagelado era despido, atirado ao chão ou amarrado em uma coluna. O número dos golpes ficava a critério dos carrascos 82 . Depois de ser torturado, Jesus foi levado ao Gólgota para ser crucificado. Era a forma de morte mais dolorosa e horrenda que se podia dar a um delinquente. Como castigo público, era colocado como exemplo para sociedade e, por isso, acontecia num lugar bem visível, onde o corpo do justiçado ficava exposto durante alguns dias. 83 A morte para um crucificado sobrevinha após uma dolorosíssima agonia, para a que contribuíam conjuntamente a perda de sangue, a febre produzida pelas feridas, a sede, a asfixia 84 . Assim morre Jesus. Segundo os evangelistas, morreu, rezando, à hora nona, ou seja, às três horas da tarde. A sua última oração fora tirada do Salmo 31: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46; cf. Sl 31,6) 85 . Segundo Mateus (27,55-56) e Marcos (15,40-41), ao pé da Cruz se encontram quatro mulheres: Maria Madalena, Maria a mãe de Tiago, a mãe de José e uma quarta, a mãe dos filhos de Zebedeu (Mateus) ou Salomé (Marcos). São João (19,25-27) é o único a 81 IDEM. Ibidem, p. 465-466. 82 Cf. GNILKA, Joaquim. Jesus de Nazaré, op. cit., p. 282-283. 83 PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 465-466. 84 Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 520. 85 Cf. RATZINGER, J. (Bento XVI). Jesus de Nazaré, op. cit., p. 202. 25 registrar o episódio de forma completa: diz que no Calvário também estavam a “Mãe de Jesus” e o “discípulo amado”86. Na parte superior de sua cruz, colocada pelos soldados, estava certamente uma pequena placa de cor branca na qual, com letras negras ou vermelhas bem visíveis, indicava- se a causa pela qual fora crucificado. O hebraico (língua sagrada mais utilizada no templo), o latim (a língua oficial do Império Romano) e o grego (a língua comum dos povos do Oriente e mais falada pelos judeus da diáspora) indicavam o delito de Jesus: “rei dos judeus” (Mt 15,27). Fora executado com outros condenados, como um delinquente qualquer 87 . Enquanto os romanos, como intimidação, deixavam propositadamente pender do instrumento de tortura depois da morte os crucificados, estes, segundo o direito judaico, deviam ser tirados no mesmo dia (Dt 21,22-23)”. Por isso, era tarefa do pelotão de execução acelerar a morte quebrando-lhes as pernas. Aconteceu assim também no caso dos crucificados no Gólgota. Aos dois “bandidos” foram quebradas as pernas. Chegados a Jesus, porém, veem que ele já está morto; então renunciaram a quebrar-Lhe as pernas; em vez disso, um deles trespassa o lado direito – o coração – de Jesus e “logo saiu sangue e água” (Jo 19,34). [...] Saíram sangue e água do coração traspassado de Jesus. Em todos os séculos, a Igreja segundo a palavra de Zacarias, olhou para esse coração traspassado e nele reconheceu a fonte de bênção indicada antecipadamente no sangue e na água 88 . Com o passar do tempo, a Igreja nascente, sob a guia do Espírito Santo, foi lentamente penetrando no sentido mais profundo da cruz. Em primeiro lugar, os cristãos entenderam que os antigos sacrifícios do templo estavam completamente superados. A crítica dos profetas, que também ganhara expressão nos salmos, dizia que Deus não queria ser glorificado por meio de sacrifícios de touros e de cabritos, cujo sangue não pode purificar o homem nem fazer expiação por ele. Jesus é o “Cordeiro de Deus” que carregara sobre si o pecado da humanidade. Parece estranho que um Deus, anunciado como amor e misericórdia, exija uma expiação infinita? Não se trata de uma ideia indigna de Deus 89 ? Bento XVI observa que acontece exatamente o contrário: Ora, acontece não que um Deus cruel venha pedir algo de infinito, mas precisamente o contrário: o próprio Deus coloca-Se como lugar de reconciliação e, no seu Filho, carrega o sofrimento sobre Si. O próprio Deus introduz no mundo, sob a forma dedom, a sua pureza infinita. O próprio Deus “bebe o cálice” de tudo aquilo que é terrível e, assim, restabelece o 86 Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 528. 87 Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 472-473. 88 RATZINGER, J. (Bento XVI). Jesus de Nazaré, op. cit., p. 203-204. 89 Cf. IDEM. Ibidem, p. 208-209. 26 direito por meio da grandeza do seu amor, o qual, através do sofrimento, transforma a escuridão 90 . O referido pontífice interpreta a paixão de Cristo de outra forma, como o momento em que o Puro entra em contanto com imundície do mundo: Na Paixão de Jesus, toda a imundície do mundo entra em contato com o imensamente Puro, com a alma de Jesus Cristo e, desse modo, com o próprio Filho de Deus. Se habitualmente a realidade suja, através do contato, contagia e mancha a realidade pura, aqui temos o contrário: onde o mundo, com toda a sua injustiça e as crueldades que o mancham, entra em contato com o imensamente Puro, aí ele, o Puro, revela-se o mais forte. Neste contato, a imundice do mundo é realmente absorvida, anulada transformada por meio do sofrimento do amor infinito 91 . Como observa o Catecismo da Igreja Católica, é o “amor até o fim” (Jo 15,13) que confere o valor de redenção e de expiação e de satisfação ao sacrifício de Cristo 92 . Essa perspectiva do amor também se encontra nos escritos de São Paulo. O apóstolo diz que em Cristo já existe a garantia do amor do Pai: “Quem não poupou seu próprio Filho, mas por nós o entregou, como não nos dará todas as coisas juntamente com ele?” (Rm 8,32). Ou ainda: “a prova que Deus nos ama é que Cristo, sendo nós ainda pecadores, morreu por nós” (Rm 5,8). O que dá valor redentor ao suplício da cruz é o amor e não o sofrimento. O que salva a humanidade não é algum “misterioso” poder salvador contido no sangue derramado diante de Deus. Por si mesmo, o sofrimento é mau, não tem nenhuma força redentora. Não agrada a Deus ver Jesus sofrendo. A única coisa que salva no Calvário é o amor insondável de Deus, encarnado no sofrimento e na morte de seu filho. Não há nenhuma outra força salvadora a não ser o amor 93 . De qualquer forma, aparentemente, tudo terminava num espantoso fracasso. Ainda que seus discípulos tivessem o ouvido anunciar a sua morte, não o podiam crer. Esperavam que ao final algo acontecesse. Aquele que fizera tantos milagres não podia terminar assim. Pelo que se podia ver, venceram seus inimigos. No entanto, nessa morte espantosa há algo que fala. O soldado que o viu morrer, estremecido pelo que havia visto, exclama: “Verdadeiramente este homem era o filho de Deus” (Mc 15,39). 90 IDEM. Ibidem, p. 211. 91 IDEM. Ibidem, p. 210. 92 Cf. Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 176, n. 616. 93 PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 520. 27 6.4 A ressurreição Se todos os evangelistas narram a história da paixão e da morte de Jesus, o mesmo acontece com a ressurreição. O que é perfeitamente compreensível, porque a ressurreição de Jesus é o fato que justifica o Cristianismo. Nela está o ponto de partida da fé cristã e o seu núcleo central. Como diz São Paulo, “se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é sem fundamento, e sem fundamento também é a vossa fé” (1Cor 15,14). Se Jesus não tivesse ressuscitado dos mortos, o cristianismo seria apenas um grupo de amigos de Jesus, unidos na recordação de seus ensinamentos e na melhor reprodução possível de seus exemplos. Nesse caso, embora seja um dos grandes gênios religiosos da humanidade, Jesus não teria sido o “Senhor” e o cristianismo não constituiria uma Boa Notícia para a humanidade de hoje, mas simplesmente uma moral elevada 94 . Segundo os evangelistas, no primeiro dia da semana, bem cedo, algumas mulheres se aproximaram do sepulcro em que o corpo de Jesus havia sido depositado e o encontraram aberto e vazio (Mc 16,1-8; Mt 28, 1-8; Lc 24,1-12; Jo 20,1-18). São Marcos conta que um “jovem vestido de branco”95 tirou-as da perplexidade com as seguintes palavras: “Não vos assusteis! Procurais Jesus, o nazareno, aquele que foi crucificado? Ele ressuscitou! Não está aqui! Vede o lugar onde o puseram! Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro: ‘Ele vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis, com ele vos disse’” (Mc 16,6-7). Do anúncio desse jovem, poderia ser captada a grande mensagem: “é um erro procurar o crucificado no sepulcro vazio; ele não está ali, não pertence ao mundo dos mortos”96. O fato de ter encontrado o sepulcro vazio, a princípio, deve ter-lhes causado grande perplexidade! É claro que um túmulo vazio não significa que um morto tenha ressuscitado. E, por isso, como essas mulheres não eram tão ingênuas, fizeram logo a pergunta: “será que levaram o corpo do Senhor?” (Jo 20,13). Porém, de acordo com os relatos evangélicos, o túmulo vazio não é o principal fundamento para a Ressurreição. A fé em Cristo ressuscitado se apoia no fato de que seus seguidores o encontraram e o testemunharam cheio de vida depois de sua morte. De fato, seria um erro pensar que o sepulcro vazio foi a grande prova da ressurreição de Jesus. 94 DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 76. 95 São Mateus (28,2) diz que no sepulcro do Senhor estava um anjo. São Lucas (24,4) fala de dois homens com vestes resplandecentes. São João (20,12), por sua vez, fala que Maria Madalena enxergou dois anjos vestidos de branco. Ainda que haja algumas diferenças nesses relatos, a historicidade desse relato pode ser comprovada pelo fato de que seria difícil imaginar que os evangelistas criassem essa história para reforçar com realismo a narrativa da ressurreição. Não seria oportuno escolher mulheres como protagonistas de um testemunho que seria pouco valorizado na sociedade judaica [Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 511-512]. 96 IDEM. Ibidem, p. 513-514. 28 Somente a partir da experiência do encontro com o Ressuscitado, entenderam que o túmulo vazio era o primeiro sinal, mas não o mais importante. Ao encontra-lo vazio, talvez pudessem se lembrar de que Jesus afirmara que sofreria muito, morreria e ressuscitaria depois de três dias (Mc 8,31), mas, mesmo assim, ficariam muitas dúvidas... Sendo assim, só o encontro pessoal com Cristo foi capaz de dissipar as dúvidas e enchê-las de alegria. Mesmo os discípulos não acreditaram logo. Num primeiro momento, espantaram-se com o anúncio das mulheres. Também para eles, só o encontro com Cristo dissiparia as dúvidas e incertezas. As aparições do Senhor redivivo são sinais dados aos discípulos para suscitar a fé. Mas, na verdade, eles creram porque viram Jesus vivo 97 . Por isso, o Ressuscitado apareceu a Pedro, aos dois discípulos que iam a caminho de Emaús e aos outros apóstolos. Assim, ao lado do sepulcro vazio, que por si só não podia dar garantias de que Cristo ressuscitara, apresentam-se as aparições do Jesus Ressuscitado. Um estudo dessas aparições mostra que ele se fez reconhecer como pessoa viva e presente. As narrativas das aparições sempre se desdobram em três momentos: (1) Jesus se manifesta vivo, (2) os discípulos o reconhecem e (3) dele recebem a missão de anunciá-lo 98 . Porém, não seriam essas aparições visões ou imaginações interiores dos discípulos? Primeiramente, ao analisar os relatos na língua original, em grego, nota-se imediatamente que o verbo empregado para falar das aparições é opthé. Em 1Cor 15,5-8, o referido verbo costuma ser traduzido por “apareceu”. Porém, segundo os peritos, é mais
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