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PEDAGOGIA F I L O S O F I A E E D U C A Ç Ã O Universidade Estadual de Santa Cruz Reitor Prof. Antonio Joaquim da Silva Bastos Vice-reitora Profª. Adélia Maria C. M. Pinheiro Pró-reitora de Graduação Profª. Flávia Azevedo de Mattos Moura Costa Diretora do Departamento de Ciências da Educação Profª. Maria Olívia Lisboa Ministério da Educação E24 Educação, história e sociedade : módulo 1 : Filosofia e Educação, volume 2 / Elaboração de conteúdo: Carla Milani Damião. – [Ilhéus, BA] : UAB/UESC, [2009]. 1 v. (várias paginações). Módulo: PEDAGOGIA/EAD-UESC. Inclui bibliografias. ISBN: 978-85-7455-176-0 1. Educação – Filosofia. 2. Filosofia da Educação. I. Damião, Carla Milani. CDD 370.1 Ficha Catalográfica Coordenadora UAB – UESC Profª. Maridalva de Souza Penteado Coordenadora Adjunta UAB – UESC Profª. Flaviana dos Santos Silva Coordenadora do Curso de Licenciatura em Pedagogia (EAD) Profª. Maria Elizabete Souza Couto Elaboração de Conteúdo Profª. Carla Milani Damião Instrucional Designers Profª. Marileide dos Santos de Olivera Profª. Gessilene Silveira Kanthack Revisão Profª. Sylvia Maria Campos Teixeira Profª. Maria Luiza Nora Diagramação Jamile A. de Mattos Chagouri Ocké João Luiz Cardeal Craveiro Ilustração e Capa Sheylla Tomás Silva PE DA G O G IA EA D - U ES C UNIDADE I O Surgimento da Filosofia e as Cosmologias das Escolas Pré-socráticas ............................. 9 INTRODUÇÃO1. ................................................................................................................11 O NASCIMENTO DA FILOSOFIA2. ........................................................................................12 AS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS3. ........................................................................................16 3.1. A escola jônica ........................................................................................................17 3.2. A escola pitagórica ou itálica .....................................................................................19 3.2.1. Ensinamentos, contribuições e decadência do pitagorismo ..........................................19 3.3. Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.) .................................................................22 3.4. A escola eleata ........................................................................................................23 3.5. A escola da pluralidade ..................................................................................................24 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................27 UNIDADE II Porque Sócrates é Filósofo e porque a Filosofia não é um saber ....................................... 29 INTRODUÇÃO1. ................................................................................................................31 TIPOS DE SÁBIOS NA ANTIGUIDADE GREGA......................................................................322. SÓCRATES: “SÓ SEI QUE NADA SEI”3. ................................................................................35 PLATÃO E A BUSCA DO SABER4. .........................................................................................39 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................46 UNIDADE III As Propostas Educativas em Platão e Aristóteles: Mímesis e Aprendizagem ..................... 49 INTRODUÇÃO1. .................................................................................................................51 O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO APRENDIZADO EM PLATÃO2. .............................52 O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO APRENDIZADO EM ARISTÓTELES3. .....................59 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................63 Sumário UNIDADE IV As Utopias Clássicas ...........................................................................................................65 INTRODUÇÃO1. ................................................................................................................. 67 A UTOPIA:2. UM EXERCÍCIO DE TORNAR CONHECIDO UM LUGAR INEXISTENTE ......................... 68 2.1 O imaginário das utopias clássicas ............................................................................ 68 NARRADORES NAVEGANTES3. OU NAVEGANTES NARRADORES NAS TRÊS UTOPIAS ................... 71 3.1 More e A Utopia ..................................................................................................... 71 3.2 Campanella e A cidade do sol .................................................................................. 71 3.3 Francis Bacon e Nova Atlântida ................................................................................ 72 CONHECIMENTO, EDUCAÇÃO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL NAS UTOPIAS4. ................................... 72 4.1 Nova Atlântida ....................................................................................................... 73 4.1.1 Nova Atlântida: as atividades da Casa de Salomão................................................... 75 4.2 A Cidade do Sol de Campanella ............................................................................... 77 4.2.1 O sistema heliocêntrico e a ordenação da Cidade do sol ............................................ 78 4.3 A Utopia .............................................................................................................. 79 4.3.1 A função da ironia na narrativa ............................................................................. 80 CONSEQUÊNCIAS E DIMENSÃO TOMADAS PELO CONCEITO DE UTOPIA NO SÉCULO XIX E XX5. ... 82 REFERÊNCIAS6. ................................................................................................................. 87 UNIDADE V A Constituição da Subjetividade na Filosofia Moderna .......................................................89 INTRODUÇÃO1. .................................................................................................................. 91 DESCARTES: SUJEITO DO CONHECIMENTO E SUBJETIVIDADE2. ..............................................92 RACIONALISMO E EMPIRISMO3. ..........................................................................................95 REFERÊNCIAS4. ...............................................................................................................101 UNIDADE VI Filosofia e Educação em Jean-Jacques Rousseau ............................................................. 103 INTRODUÇÃO1. ................................................................................................................105 JEAN-JACQUES ROUSSEAU E SUA CRÍTICA AO CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO 2. ..................... 106 2.1 Rousseau e o Iluminismo francês ............................................................................106 NATUREZA, AMOR DE SI E AMOR-PRÓPRIO:3. ......................................................................109 UNIDADE VII As Reflexões de Kant sobre a Educação ...........................................................................123 INTRODUÇÃO1. ...............................................................................................................125A FILOSOFIA DE KANT2. ...................................................................................................126 KANT E A EDUCAÇÃO3. ....................................................................................................127 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................135 UNIDADE VIII A Educação após Auschwitz .............................................................................................137 INTRODUÇÃO1. ............................................................................................................... 139 A TEORIA CRÍTICA E O INSTITUTO DE PESQUISA SOCIAL2. ................................................. 140 ADORNO E A EDUCAÇÃO APÓS AUCHWITZ3. ...................................................................... 141 SOBRE MÍMESIS EM ADORNO4. ........................................................................................ 145 4.1 O estudo sobre a personalidade autoritária..............................................................146 EDUCAÇÃO: REIFICAÇÃO E MÍMESIS5. .............................................................................. 148 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 153 UNIDADE IX Tecnologia e Educação .................................................................................................. 155 INTRODUÇÃO1. ..............................................................................................................157 OBRA DE ARTE SOB AS CONDIÇÕES DOS NOVOS MEIOS E DA TÉCNICA2. ...........................158 CINEMA, METRÓPOLE E TRABALHO INDUSTRIAL3. .............................................................159 O APRENDIZADO DO ADULTO4. .......................................................................................161 O APRENDIZADO DA CRIANÇA5. ......................................................................................167 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................170 MÍMESIS E A CRÍTICA AO TEATRO E À EDUCAÇÃO 4. ........................................................... 112 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................120 M et a O bj et iv os Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: identificar as características nascentes da • filosofia e algumas problematizações a respeito de seu surgimento; determinar a origem dos filósofos pré-• socráticos e suas teorias; distinguir, nas teorias expostas, as • respostas dadas pelos filósofos pré- socráticos ao princípio de organização que rege a ordem do mundo; o movimento e o repouso; a unidade e a multiplicidade; discutir a oposição entre o pensamento de • Heráclito e Parmênides, como um problema inaugural da questão do conhecimento na história da filosofia. Introduzir interpretações sobre a origem da Filosofia e apresentar as preocupações comuns geradas pelo pensamento cosmológico. 1 unidadeO SURGIMENTO DA FILOSOFIA E ASCOSMOLOGIAS DAS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS 11 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA UNIDADE I INTRODUÇÃO1 Para você compreender o que seja a Filosofia, nosso roteiro de estudo dessa unidade é o seguinte: O nascimento da Filosofia• As escolas pré-socráticas:• A escola jônica;• A escola pitagórica ou itálica;• Heráclito de Éfeso;• A escola eleata;• A escola da pluralidade.• 12 Volume 2 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA Cosmologia é uma palavra de origem grega que provém da junção entre kósmos (ornamento, ordem) e lógos (razão, discurso). Cosmologia é a explicação racional sobre a origem e ordem do mundo. Antropocêntr ica - composta pela palavra grega ánthropos (homem) e centro. Diz respeito às explicações e às teorias não religiosas que elegem o homem como causa do que existe e centro das atenções, com ênfase nos problemas relacionados ao conhecimento, à moral e à política. O NASCIMENTO DA FILOSOFIA2 Segundo os historiadores, a filosofia tem data e local de nascimento: século V a.C. em Atenas, Grécia Antiga. Considera- se também o surgimento, no século anterior, século VI a.C., das cosmologias, teorias sobre a ordenação da natureza que investigam a origem e o princípio de todas as coisas. Os cosmólogos não eram atenienses, mas gregos, em sua maioria, provindos da expansão geográfica da Grécia na Antiguidade. Ao determinar a data e o local de origem da filosofia, os historiadores buscam fornecer um entendimento específico desse tipo de conhecimento que o torna diferente da religião, por sua característica política e antropocêntrica. Esse sentido de filosofia, portanto, não se confunde com a utilização da palavra em sentido amplo ou vago, como “filosofia de vida” ou “filosofia do trabalho”. Por outro lado, não é difícil perceber associações com outras culturas e religiões, quando estudamos os problemas que orientaram as primeiras teorias na filosofia. Vemos, com isso, um problema de interpretação em relação à origem, que se estendeu ao longo dos séculos e que se tornou motivo de debate na primeira parte do século passado. Alguns estudos demonstram a assimilação de conhecimentos científicos, como a astronomia e a matemática, provenientes do Oriente: Egito e Mesopotâmia. Essa “importação” de conhecimentos ocorreu devido à expansão marítima grega, que ocorria em função do comércio e da colonização grega na Ásia Menor e Sul da Itália. Várias teorias em relação ao surgimento foram comprovadas ou reprovadas, em alguns casos em função de descobertas arqueológicas, no século passado (XX), de documentos até então desconhecidos, ou mesmo de documentos já conhecidos e que, relidos com o suporte dos novos meios tecnológicos, revelaram textos sobre textos, isto é, palimpsestos, no reaproveitamento do material utilizado nos manuscritos: o papiro. FIGURA 1 - Fonte: http://persephones.250free.com FIGURA 1: O Papiro de Derveni foi encontrado em 1962, perto de Tessalônica, na Macedônia grega. Foi escrito provavelmente entre os séculos VI e V a.C. Este documento passou a ser fonte importante nos estudos sobre o desenvolvimento da religião e da filosofia, por conter a cosmologia e a doutrina teológica do orfismo, movimento religioso de importância para o pitagorismo, para Heráclito, Anaxágoras e, mais tarde, para Platão. 13 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA Antes mesmo da descoberta do Papiro de Derveni, alguns historiadores do período atribuíam elevada importância à relação entre mito, religião e filosofia, inovando a interpretação que datava desde o período helênico, com Diógenes Laércio, na obra Vida e doutrina dos filósofos, século II, que afirmava uma clara distinção entre razão (Filosofia) e mito (narrativas sobre divindadese seus feitos). Estudos mais aprofundados demonstraram existir um tipo de conhecimento organizador da realidade nas narrativas fabulosas do mito. Essa estrutura racional do mito, segundo Francis M. Cornford, em Principium Sapientiae. As origens do pensamento grego, obra publicada em 1952, estaria presente nas primeiras cosmologias, procurando comprovar o vínculo entre mito, religião e filosofia. Chauí (2002) dialoga com importantes historiadores da filosofia as teses extremistas (mito ou razão; influência oriental ou originalidade ocidental) sobre a origem da filosofia e encontram um meio termo nos seguintes aspectos: Francis MacDonald Cornford (1874-1943) dedicou-se aos estudos clássicos; foi membro do Trinity College em Cambridge, Inglaterra, onde ensinou Filosofia Antiga. Escreveu sobre Tucídedes, historiador da Grécia Antiga e em 1912 iniciou seus estudos sobre a origem da filosofia em relação à religião. Sua obra Principium Sapientae: as origens do pensamento grego foi publicada postumamente, em 1952. Cornford foi casado com a poetisa Frances Darwin, neta de Charles Darwin. Diógenes Laércio (em grego Διογένης Λαέρτιος, em nosso alfabeto Dioguénes Laértios) viveu no século II d.C., entre 200 e 250. Sua obra mais conhecida por trazer referências a teorias e filósofos da Antiguidade grega se chama Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, composta por dez livros. Marilena Chauí é historiadora de filosofia brasileira e professora de Filosofia Política e História da Filosofia Moderna da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Para saber mais, consulte a sua obra: CHAUÍ. Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Ed. Schwarcz (Cia. das Letras), 2002. PA RA C O N H EC ER 14 Volume 2 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA Em relação ao mito Houve, no mito, uma aproximação de deuses e homens, seja pelo caráter antropomórfico dos deuses, seja pela divinização dos homens que mantinham um estreito vínculo com as divindades por meio da narrativa do poeta-aedo, das sacerdotisas e pela prática de sacrifícios. Reconhece-se nessas narrativas uma organização racional que busca explicar a origem do mundo e a organização social. Em relação à invenção grega O que os gregos nos séculos VI e V a.C. inventaram, além do que incorporaram de outras culturas, diz respeito à transformação de aspectos práticos da vida em conhecimento racional, abstrato e universal. Esses conhecimentos provêm da prática comercial e marítima, da invenção da moeda, do calendário e, principalmente, da organização política da cidade organizada por leis e instituições públicas. A democracia é uma forma inédita de organização política que não se baseava mais no poder tradicional do patriarca (do chefe de família, da tribo ou do rei), aliado ao poder sacerdotal. Em relação à razão Os gregos inventam uma forma laica de discursar, relacionada à prática e à organização dos negócios públicos, isto é, à política. Essa fala dessacralizada busca organizar sistematicamente seu pensamento em função de um princípio universal: o conceito, a ideia, a lei, o axioma. Os primeiros filósofos ou filósofos pré-socráticos, embora não estivessem com suas indagações voltadas exclusivamente para o contexto da pólis ateniense e para os problemas éticos e morais, exercitaram o desprendimento da explicação religiosa dogmática e elaboraram teorias sobre o surgimento do universo e de como este se organiza. Como você pode notar, o mito também explica o surgimento do mundo em suas narrativas. São Teogonias, isto é, narrativas sobre como as divindades ou deuses (Théos) foram gerados (“gonia” vem de genos, em grego, geração, gênese). Essa geração, como a dos humanos, era entendida como procriação e, por isso, os seres (a Terra, o Céu) e as divindades copulam e geram outros seres. A explicação para tudo o que existe é de ordem sobrenatural. Igualmente, as cosmologias A n t r o p o m ó r f i c o , do grego ánthropos (homem) unido à morphé (forma), palavra normalmente utilizada para se atribuir a deus a forma e ações humanas. Laica (adjetivo) do latim laicu, o mesmo que leigo, secular ou não religioso. Derivam dessas: laicizado, laicizar, secularizado, secularizar. Utilizamos essas palavras para distinguir o tipo de conhecimento ou discurso que depende só do homem e não da religião ou do que é doutrina religiosa. Pólis - palavra grega que quer dizer cidade, em particular, a cidade que tem a característica de Estado, por ter uma constituição própria. Na Antiguidade, cada cidade possuía a configuração legal da concepção moderna de Estado, por isso, pólis é traduzida, às vezes, como “Cidade-Estado”. Derivam desta palavra, as palavras política (negócios da cidade) e político (cidadão apto – homem, livre, adulto - a participar das assembleias, elaborar e promulgar leis em conjunto com os outros cidadãos). 15 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA procuram por uma explicação para o surgimento da ordem na natureza e no mundo, e, mesmo que ainda utilizem, às vezes, o vocabulário, o mito, a causa nomeada é de ordem racional. Antes de reconhecermos os princípios encontrados para a explicação do cosmos, vamos ver quais são as preocupações gerais dos pré-socráticos, conforme Mondolfo (1971), em O pensamento antigo: Qual é a origem de todas as coisas?• Como um único princípio pode dar origem à multiplicidade • das coisas? Como o imutável pode dar origem ao mutável?• Como o múltiplo retorna ao múltiplo?• Esse mesmo autor nomeia as seguintes características, algumas mais evidentes, outras menos, nas teorias dos pré- socráticos: Trata-se de uma cosmologia enquanto explicação sobre • a ordem presente do mundo em vista de sua origem ou causa, forma, transformação, repetição e término; A • phýsis (natureza, “brotação”), palavra traduzida por natureza, é o fundo imortal e perene de onde tudo brota e para onde tudo regressa. Ela é a qualidade primordial da origem e constituição de todos os seres. A manifestação invisível da phýsis, com as mesmas características, mas só alcançável pelo pensamento, é a arkhé (princípio, começo, ponto de partida, princípio organizador do cosmos); Há uma preocupação marcante com o devir ou vir-• a-ser. O movimento kínesis (movimento, ação) ou movimento de transformação dos seres ocupa papel central nas teorias, bem como seu contrário: o repouso e a estabilidade dos seres; Há distinção entre “aparência”• e “essência”, principalmente nos pensamentos de Heráclito e Parmênides. À primeira se relaciona a dóxa (opinião) e à segunda, a essência. Agora que você já tem ideia de quais são as preocupações e características das cosmologias pré-socráticas, vamos estudar cada uma delas! 16 Volume 2 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P EDA G O G IA AS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS3 Como você pode perceber na ilustração abaixo, a Grécia, na Antiguidade, possuía uma extensão territorial que ia do sul da Itália, conhecida como Magna Grécia, às colônias da Ásia Menor. Essa localização geográfica é importante de ser feita, pois, quando falamos em nascimento ou surgimento da filosofia, notaremos que este ocorre não em Atenas, mas no território expandido que visualizamos no mapa. FIGURA 2 - Mapa da Grécia Antiga. Fonte: http://plato-dialogues.org/tools/gk_wrld.htm ATIVIDADE 1. A fim de compreender o conteúdo a seguir, de maneira a perceber a importância da extensão do território grego do período e do importante trânsito marítimo existente, localize no mapa acima: Na Ásia Menor, as seguintes cidades: Mileto, Éfeso, 1. Samos, Colofão e Clazômena; Na Magna Grécia, Eléia, Agrigento e Crotona;2. No centro do mapa, ao norte, Abdera.3. 17 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA Os chamados filósofos pré-socráticos, que viveram entre os séculos IV a.C. a V a.C., provêm dessas cidades e essa origem os identifica. Assim, falamos de Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Pitágoras de Samos, Heráclito de Éfeso, Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômena, Leucipo de Abdera, Demócrito de Abdera, Parmênides de Eleia. Em vista da distância histórica e das fontes documentais precárias que permaneceram para a posteridade, em sua maioria fragmentos de obras, algumas completamente perdidas, esses primeiros filósofos são estudados de maneira agrupada, isto é, por região, ou teorias com algum grau de semelhança. Por isso, falamos em escola jônica, isto é, as colônias gregas localizadas na Ásia Menor; escola eleata, de Eleia na Magna Grécia. Os dois outros grupos são reunidos por preocupações semelhantes e provêm de diferentes partes da região expandida da Grécia. O que você deve perceber nas teorias, que serão brevemente expostas a seguir, não é a verdade ou falsidade de suas afirmações, mas a maneira como organizam as explicações, buscando como causa a phýsis em sua visibilidade ou a arkhé. O visível e o invisível nem sempre separam e definem esses termos, pois, em alguns casos, eles coincidem. Vamos conhecê-las! 3.1 A escola jônica Chamados de físicos ou naturalistas, os filósofos considerados dessa divisão são: Tales de Mileto (cerca de 625/4-558/6 a.C.), Anaxímenes de Mileto (cerca de 585-528/5 a.C.) e Anaximandro de Mileto (cerca de 610-547 a.C.), que elaboraram teorias hilozoístas, atribuíram movimento próprio e transformação à matéria. Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo e também um dos 7 Sábios da Antiguidade. Aristóteles (em Metafísica, I, 3.983 b6) expressou da seguinte maneira as ideias de Tales: “Tales, o fundador de tal filosofia [cosmologia], diz ser a água [o princípio], levado sem dúvida a esta concepção por ver que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (ora, aquilo de que as coisas vêm é, para todos, o seu princípio)”. Existem informações secundárias sobre certas habilidades práticas de Hilozoísmo: do grego hýle que quer dizer matéria. Entendemos o hilozoísmo como uma concepção filosófica que atribui vida à matéria, capaz de autotransformação e movimento. Para saber identificar os princípios ou causas de cada uma das teorias, você conhecerá apenas o essencial delas. Vale salientar que os fragmentos de seus escritos são poucos, aos quais fizeram referências outros filósofos mais próximos do período, como Aristóteles, na Metafísica. Por Éfeso ser também uma colônia da Jônia, Heráclito seria agrupado a essa escola, mas, dada a importância de seu pensamento, ele costuma ser estudado à parte. SA IB A M A IS R AAC a F U V MK 18 Volume 2 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA Tales, que teria sido político e uma espécie de engenheiro, por ter estudado a causa das enchentes do rio Nilo em sua viagem ao Egito e pretender desviar o curso de um rio. A ele também se atribui a descoberta da constelação da Ursa Menor, um auxílio à navegação. A definição da água como phýsis ou princípio explicativo de tudo o que existe e de como tudo veio a ser confere, ao mesmo tempo, unidade à causa e à ideia de que esta causa, de onde tudo parte e para a qual regressa, possui um movimento que lhe é inerente. Pode-se encontrar, portanto, na natureza um elemento que explica a origem da vida e o seu próprio movimento desta: no estado úmido, encontra-se vida; no ressequido, a morte. Anaxímenes de Mileto segue o raciocínio de Tales, escolhendo na natureza um elemento que organiza e explica a ordem do universo. Para ele, este é pneuma, palavra traduzida por ar, sopro vital e também alma ou espírito. Anaxímenes concebe o ar como phýsis e como arkhé. A ordem do mundo se estabelece no ritmo de uma respiração vital. Em um fragmento compilado por Simplício (Aécio, I, 3.4), lemos: “Como nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o cosmo sopro e ar o mantém”. Nesse sentido, novamente, a matéria, o ar em diferentes estados, interna e externamente, possui a qualidade de movimentar a si mesmo. A definição de phýsis contrasta com a de Anaximandro, no que diz respeito ao aspecto indeterminado do apeíron. O ar é infinito, mas determinado como matéria menos corpórea do que a água. Anaximandro de Mileto foi discípulo de Anaxímenes. Em sua cosmologia, o princípio explicativo que rege a ordem das coisas torna-se mais claramente arkhé, pois não corresponde mais a um elemento mais ou menos visível na natureza. Trata- se do ápeiron; o prefixo “a” significa ausência ou negação de “peras”, que significa limite. Literalmente ápeiron é o “sem limite” ou ilimitado, entendido pela quantidade, e indeterminado ou indefinido, pela qualidade. O apeíron é um princípio eterno, imortal e imperecível, isto é, não foi gerado, não degenera e não finda. Essa é uma importante distinção de sua cosmologia em relação às teogonias, nas quais os deuses eram gerados e, mesmo que fossem imortais, não existiram desde sempre. O devir surge 19 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA do apeíron como ordem temporal das coisas que, ao fim, a ele retornam. Essa ordem temporal é entendida como uma lei necessária, sob o jugo da justiça e injustiça. Conceitos que se desprendem do vocabulário da polis e integram as cosmologias. 3.2 A escola pitagórica ou itálica A existência histórica de Pitágoras de Samos (cerca de 580/78-497/6 a.C.) não foi comprovada. Costuma-se atribuir a ele a própria composição da palavra filosofia (philia+sophia). O filósofo seria um frequentador de jogos públicos que não se deixaria levar pela emoção, mas pela observação distanciada. Essa definição bem como a “paternidade” do teorema de Pitágoras nãosão comprováveis e se misturam à figura lendária do filósofo que teria nascido na ilha de Samos, ao lado da Ásia Menor. Já o pitagorismo existiu como movimento, no outro extremo do mapa, na Magna Grécia, atualmente, sul da Itália e Sicília. FIGURA 3 - Detalhe da pintura em ânfora, mostrando o ataque das mulheres trácias a Orfeu, com a lira erguida. Fonte:http://br.geocities.com/filo_cinema/orfeu_e_medeia.html 3.2.1 Ensinamentos, contribuições e decadência do pitagorismo Com base no orfismo, a doutrina pitagórica acreditava na reencarnação da alma e propunha um processo de purificação através da vida contemplativa ou theoria, isto é, contemplar com os olhos do espírito, examinar para conhecer. Cultivava-se 20 Volume 2 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA uma prática de purificação por meio do silêncio, do isolamento e da abstinência de sexo, carnes e bebidas alcoólicas. Buscava- se a alma de tipo contemplativa, evitando as de tipo cúpida e mundana, limitadas às esferas da paixão e da vaidade. Esse aspecto moral jamais desapareceu do pitagorismo, compondo um grupo em seu interior conhecido como acústicos ou acusmáticos. O outro grupo era o dos matemáticos, que, segundo Aristóteles, muito contribuíram para o avanço da matemática, criando a geometria e estabelecendo a relação entre geometria e aritmética. Definiram pela primeira vez a ideia de unidade, de sequência ordenada de números, distinguiram o número par (divisível e ilimitado) e o número ímpar (indivisível e limitado), definiram campos, limites e pontos. Quando falamos em matemática, é bom lembrarmos que se trata de um conhecimento que possui diferenças fundamentais com o que hoje entendemos por essa matéria. Em primeiro lugar porque os números não são algarismos, uma abstração inventada pelos árabes, mas palavras, sendo que a ideia de zero não existe. O número um, por exemplo, representa para o pitagorismo esse princípio ou arkhé de todas as coisas, a harmonia e proporção, a unidade primeira, na qual existe a totalidade de todos os números. Todo o conhecimento depende dessa unidade e do movimento que se estabelece a partir dela. O início do desenvolvimento da matemática foi o estudo da lira tetracorde, a lira de quatro cordas de Orfeu, utilizada nos rituais de purificação. Desse estudo surgiu uma figura geométrica composta por 10 pontos, distribuídos em forma de SA IB A M A IS R AAC a F U V MK O orfismo: movimento religioso com base no culto a Orfeu. Hoje em dia, sabe-se que Orfeu pode ter existido de fato, conhecido como poeta divino. Sabe-se do mito ou narrativa, que se conta em diferentes versões, sobre o belo poeta que seduzia com seu canto e com a lira as pessoas e que, tendo falecido sua amada Eurídice, desceu ao Hades para tentar retirá-la dos mundos dos mortos. Terminou por ser punido pelos deuses, que o haviam proibido de olhar para trás no trajeto que fazia para fora do Hades, seguido por Eurídice, que desapareceu assim que ele a olhou. Ao sair sozinho e desesperado da morada dos mortos, foi trucidado pelas mulheres trácias que se sentiram, por ele, rejeitadas. De seu corpo mutilado, sobrou inteira a cabeça que desceu o rio, ainda clamando por Eurídice. No leito do rio onde ela foi encontrada, fundou-se o primeiro templo a Orfeu. Essa narrativa se confunde com as divindades de Apolo e Dioniso. O orfismo existiu por séculos como religião. Descobertas arqueológicas comprovaram, por meio de documentos - textos, testemunhos e as plaquinhas de ouro, com as quais seus discípulos eram enterrados – a existência dessa religião. O orfismo é importante para a história da filosofia pela relação de proximidade com o pitagorismo e pela direta influência na filosofia de Platão. As características da religião, segundo intérpretes, teriam favorecido à filosofia, por negarem certos aspectos exotéricos da religião oficial em Atenas, tais como o sacrifício público de humanos e animais, por cultivarem o pensamento por meio de rituais de purificação, de uma dieta vegetariana, negação de sacrifícios sanguinolentos, ascese moral e espiritual e a introspecção. Entre as crenças órficas, há a ideia de uma potência divina no homem chamada daimon, traduzida com dificuldade para nossa língua como gênio ou demônio. Não há nele nada de maléfico, ao contrário, o daímon habita o corpo para lembrá-lo de uma culpa ou escolha. Eles acreditavam na reencarnação e transmigração da alma (metempsicose). A purificação da alma reconduziria o homem ao divino. 21 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA triângulo, com quatro pontos de cada lado e um no centro. A figura foi chamada de tetráktys da década, ou seja, o número dez (década), constituído por quatro (tetra) pontos, com um ponto no centro. O resultado é uma figura perfeita que combina a unidade, a díade, a tríade e a quadra e resulta em uma harmonia perfeita entre números pares e ímpares: Dessa figura, resultam outras, que os pitagóricos intitulam de número quadrado e o número retângulo. A continuidade dos estudos matemáticos revelou outras figuras geométricas, o pentágono e a estrela de cinco vértices nele contida, mas conduziu também à ruptura dos pitagóricos, que se deu entre o grupo dos matemáticos e os que prezavam os ensinamentos morais e as práticas ascéticas. O famoso teorema de Pitágoras, isto é, que se atribui a Pitágoras, mostra o descaminho do ideal que buscava a unidade no número, pois não se pode mais representar um número inteiro nem por uma fracção de números inteiros. Ascese: do grego áskesis, significa exercício de meditação religiosa. Práticas ascéticas são práticas de exercício de meditação e purificação religiosa. Derivam dessa palavra: asceta e ascetismo. O Teorema de Pitágoras resulta do seguinte raciocínio matemático: O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Se c designar o comprimento da hipotenusa e a e b os comprimentos dos catetos, a fórmula é: c² = a² + b² . Cateto Hipotenusa Ângulo de 90º C at et o Teorema atribuído a Pitágoras Fonte: www.brasilescola.com/ matematica/teorema.pitagoras.htm SA IB A M A IS R AAC a F U V MK FIGURA 4: tetráktys da década 22 Volume 2 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA 3.3 Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.) Heráclito de Éfeso é considerado, ao lado de Parmênides, o fundador de preocupações centrais da filosofia e do conhecimento. Você pode perceber a presença do orfismo no fragmento abaixo, transcrito em seu contexto e a ênfase dada ao movimento: Fragmento XXXVI: Orfeu poetou: “para o vapor é água mutação, para as águas, morte; da água, terra, e, da terra, novamente água: desta, então, vapor, todo éter modificando-se” (Fonte: Clemente de Alexandria, Stromata, VI, 17). Heráclito daí colhe suas palavras, quandoassim escreve: “para os vapores, tornar-se água é morte; para a água, tornar- se terra é morte; mas da terra nasce a água, da água, vapor” (COSTA, 2002, p.93). Essa transformação das coisas, que é incessante, transparece nos famosos fragmentos abaixo citados, (idem, p. 205): Fragmento XLIX: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos” . Fragmento L: “Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”. Esses fragmentos refletem a questão do movimento e a transformação constante, na qual estamos imersos. Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, pois as águas não são mais as mesmas e nós não somos os mesmos, estamos todos em constante estado de mutação. Essa mudança, no entanto, ocorre de maneira equilibrada ou como equilíbrio de opostos, resultando em harmonia por meio do conflito. Heráclito nomeia dois princípios para expressar esse movimento e o conflito que existe dentro de uma medida: o lógos e o fogo primordial. Eles são arkhé como princípios organizadores e explicativos de todas as coisas. O fogo que nunca se apaga não corresponde exatamente ao elemento natural, mas simboliza a medida equilibrada de todo movimento. O lógos é uma espécie de lei que comanda a multiplicidade aparente das coisas, conferindo-lhe unidade e harmonia. O mundo é um eterno devir para Heráclito, mas não 23 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA como movimento desordenado, não há caos e particularidades, mas há o lógos que ordena e equilibra a realidade aparente. Heráclito critica veementemente todo conhecimento que se baseia na opinião (dóxa), critica também os poetas Homero, Hesíodo e os pitagóricos. Como Parmênides e Platão, Heráclito funda seu pensamento na oposição entre aparência e essência. 3.4 A escola eleata O principal eleata é Parmênides (cerca de 530-460 a.C.). Quando lemos o fragmento do belo poema intitulado “Sobre a natureza”, imaginamos tratar-se de um poeta e não daquele que inicia a lógica, fundando os princípios de identidade e de não-contradição. Parmênides funda igualmente a ontologia, ao utilizar a palavra Ser para expressar a arkhé de todas as coisas. No poema, após evocar as musas, que mostram o caminho à carruagem conduzida por aquele que quer saber, abrindo as portas do céu e ultrapassando umbrais, ele e as musas chegam à Deusa (a razão) que se dirige desta forma ao aprendiz: Pois bem, eu te direi, e tu recebes a palavra que ouviste, os únicos caminhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e portanto que não é não ser, de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha); o outro, que não é e portanto que é preciso não ser, este então, eu te digo, é atalho de todo incrível (*no qual não se deve crer); pois nem conhecerias o que não é, nem o dirias. (In: PRÉ-SOCRÁTICOS, 1978, p.142). Só aquilo que é (o Ser) pode ser pensado e dito. O que não é (o não-Ser) não pode ser pensado, nem dito. Parmênides cria, portanto, uma identidade entre ser, pensar e dizer que elimina o seu oposto como via de investigação impossível. O primeiro caminho, o único que deve ser percorrido por aquele que quer conhecer, é o caminho da verdade (alétheia). O caminho a ser evitado é o da opinião (dóxa). O Ser, possível de ser conhecido por meio do primeiro caminho, é entendido por Parmênides com base nas seguintes características: não Ontologia - palavra composta pela palavra grega ón, óntos (ser) e lógos. Significa ciência do ser, conhecimento voltado para o ser, metafísica. 24 Volume 2 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA foi gerado e não perece, isto é, é eterno, fixo, imóvel, uno, contínuo, inteiro, sem fim, indivisível, idêntico a si mesmo, pleno, encontra-se em limites como o de uma esfera. Aparência e essência, novamente, são os polos estruturais da oposição entre opinião, como uma falsa ou aparente verdade, e essência, a que é verdadeira e alcançável apenas pelo pensamento. Nesse sentido, Parmênides concorda com Heráclito e ambos criticam a dóxa. A grande divergência entre os dois filósofos ocorre em função do movimento e da imobilidade do Ser. Zenão de Eléa (cerca de 504/1-? a.C.), discípulo de Parmênides, não escreveu uma cosmologia, mas se empenhou em criar raciocínios lógicos complicados, chamados aporias, para defender seu mestre, submetido a verdadeiras pilhérias ao não aceitar o movimento como hipótese para o conhecimento verdadeiro. Podemos afirmar que jamais a filosofia nascente será a mesma diante desse confronto Parmênides-Heráclito, pois como explicar o movimento e a multiplicidade que enxergamos no mundo como resultado de um princípio imóvel e completo que não admite o movimento? Ou como pensarmos o mundo como devir/movimento constante, sem precisar um princípio de identidade que se separa da realidade transformadora? 3.5 A escola da pluralidade Esta escola é justamente caracterizada por teorias que multiplicam o princípio ou ser parmenediano e buscam conciliá- lo com o movimento heraclitiano. Vamos conhecer os princípios nomeados pelos filósofos dessa escola? Empédocles de Agrigento (cerca de 490-435 a.C.): compõe sua cosmologia com base na combinação do ser parmenidiano, dividido em quatro raízes (rizómata) e duas forças de movimento: philia e neikos, amor ou amizade e ódio. As quatro raízes correspondem aos quatro elementos naturais: terra, água, ar e fogo. Elas, embora separadas, guardam as características do ser de Parmênides. A diferença é que para Parmênides o ser era indivisível. A solução para o conflito, originado pela oposição Heráclito-Parmênides, é admitir o movimento de união e separação. No início de tudo, as raízes estavam misturadas, foi necessária a ação de neikos para separá-las. Separadas, contudo, elas não geram, nem reciclam 25 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA suas características próprias. Philia vem, portanto, reuni- las novamente, até o momento em que se faz necessária a intervenção de neikos. Desse movimento de união e separação, surgem todas as coisas e a ordenação da natureza. Anaxágoras de Clazômena (cerca de 500-428 a.C.): Se as raízes multiplicam o ser de Parmênides, as sementes (spérmata) pensadas por Anaxágoras, com as mesmas características do ser parmenediano, fragmentam mais ainda o ser. Elas não são visíveis ao olho humano. Em relação ao movimento, Anaxágoras, diferentemente de Empédocles, nomeia uma só força: noûs (inteligência cósmica). No início havia uma indissociação de elementos, misturados em um magma primitivo. O noûs criou, de fora dessa mistura, um movimento turbilhonante que separou as sementes de maneira múltipla e originou tudo o que existe. Leucipo de Abdera (outras fontes se referem a Mileto ou Eleia) (cerca de 500-? a.C.) e Demócrito de Abdera (cerca de 469-360 a.C.): esses atomistas, além de radicalizarem a multiplicação do ser parmediano, criam emsua teoria uma compreensão inédita: a admissão do não-ser como vácuo. Átomo, que literalmente quer dizer o não-cortável, corresponde ao ser de Parmênides, à diferença que são múltiplos, infinitos e automoventes. Se eles correspondem ao ser, o espaço, no qual se movem, não pode coincidir com a ideia de ser. Logo, o espaço vazio, no qual os átomos se movem, chocando-se uns contra os outros e originando todas as coisas existentes no universo, é o vácuo ou o não-ser. Nessa teoria, que não descarta a ideia central de ser em Parmênides e não nega o movimento do qual tudo se origina de Heráclito, encontramos a variação mais ousada das teorias pluralistas e que exercerá forte influência em seus sucessores. 26 Volume 2 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA Você estudou, nesta unidade: • Os problemas em torno do surgimento da filosofia: - a origem na Grécia Antiga; - empréstimos do mundo oriental, bases materiais, culturais e científicas do seu surgimento. • Também estudou as cosmologias dos pré-socráticos e a oposição entre o pensamento de Heráclito e Parmênides. RESUMINDO ATIVIDADE 2) A oposição entre o pensamento de Heráclito e Parmênides é fundamental para entender o problema do conhecimento ao longo da história da filosofia. Heráclito afirma a mudança, o devir no qual se inclui o ser; Parmênides afirma o contrário: há imobilidade, fixidez, eternidade do ser. Heráclito fala em conflito dos opostos; Parmênides em identidade e princípio da não-contradição. Em comum, eles criticam a dóxa (opinião), como um conhecimento aparente e concordam, portanto, com a distinção aparência e essência. Com base nisso, identifique, nos exemplos abaixo, aquele que se relaciona de maneira mais próxima a Heráclito ou a Parmênides: a) Se Marlene é bonita, ela não pode, ao mesmo tempo, ser feia; b) O ser é; o não-ser não é; c) Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Tudo passa, tudo sempre passará ... (Lulu Santos/ Nelson Motta); d) Ninguém é o que é, mas aquilo que veio a ser. 27 Módulo 1 U N ID A D E I Fi lo so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA r E f E r Ê N C IA s CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2002. COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. 3. ed. Tradução de Federico Carotti. Campinas: Editora Unicamp,1996. CORNFORD, Francis M. Principium sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Tradução de Maria M. R. dos Santos. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. COSTA, Alexandre. Heráclito: Fragmentos contextualizados. São Paulo: Difel, 2002. ERLER, Michael/GRAESER, Andreas. Filósofos da Antiguidade: dos primórdios ao período clássico. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. São Paulo: Mestre Jou, 1971. PETERS, F.E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. PRÉ-SOCRÁTICOS. “Coleção os Pensadores”. 2. ed, Vol.1. São Paulo: Abril Cultural, 1978. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 3. ed. Tradução de Ísis B. B. da Fonseca. São Paulo: Difel, 1981. Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ M et a O bj et iv os Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: distinguir os papéis conferidos • historicamente ao poeta, ao sofista e ao filósofo; identificar a ironia e a maiêutica como • procedimento socrático; relacionar a definição de filosofia, em • O Banquete, ao aprendizado que se funda no mundo sensível e se direciona gradativamente ao mundo das Ideias. Apresentar o contexto no qual a figura de Sócrates foi concebida em oposição às figuras do sofista e do poeta, bem como destacar partes do diálogo, O Banquete de Platão, que caracterizam a filosofia como busca e aprendizado. 2 unidadePORQUE SÓCRATES É FILÓSOFO E PORQUE A FILOSOFIA NÃO É UM SABER 31 Módulo 1 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA UNIDADE II INTRODUÇÃO1 Para você compreender o que seja a filosofia de Sócrates e Platão, nosso roteiro de estudo dessa unidade é o seguinte: Tipos de sábios na Antiguidade Grega;•Sócrates e sua proposição: “sei que nada sei”;• Platão e a busca pelo saber.• 32 Volume 2 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA SA IB A M A IS R AAC a F U V MK TIPOS DE SÁBIOS NA ANTIGUIDADE GREGA 2 A palavra filosofia, em grego, resulta da união entre duas palavras: philia, que quer dizer amor ou amizade, e sophia, traduzida por saber ou sabedoria. Quando afirmamos que a filosofia não é um saber, precisamos procurar entender o que era considerado “saber” na época que antecede o surgimento da filosofia no século V a.C. e você pode então perguntar: quem eram os sábios na Antiguidade Grega? O primeiro tipo de sábio nos remete à figura do poeta ou poeta rapsodo. Os sábios (sóphos), em geral, eram reconhecidos como poetas ou políticos, capazes de transmitir uma sabedoria religiosa ou moral. As pessoas acreditavam que os poetas, inspirados pelas musas, eram portadores de mensagens divinas e, por meio de suas narrativas orais e escritas, contavam ao público como o mundo veio a ser o que é, como os deuses o criaram, quais foram as primeiras gerações de divindades, quais são as histórias dessas gerações e de cada divindade e uma série de consequências, geradas por meio das ordens que davam, e que determinavam a vida dos humanos. São histórias ou mitos de relações sexuais e amorosas, intrigas, vinganças entre os deuses, bem como de atos de ousadia dos humanos contra as divindades, geralmente punidos com castigos ou agraciados com recompensas. Essas divindades eram múltiplas e imperfeitas. Nas narrativas dos poetas, vemos que elas são feitas à imagem e semelhança dos homens, com todos os defeitos e emoções que caracterizam as ações humanas. A proximidade entre as divindades e os homens é tão grande nessas narrativas que existe a possibilidade de um deus copular com uma humana e, da união, nascer um semideus. Os textos escritos que guardam esse tipo de narrativa são: As epopeias de Homero1. : Ilíada e Odisseia; A 2. Teogonia de Hesíodo. A Ilíada: A autoria da epopeia Ilíada é atribuída a Homero, poeta lendário, que teria vivido na Grécia, no século X a.C. O tema dessa epopeia é a guerra de Troia. Divide-se a obra em 24 cantos, contendo 15.000 versos hexâmetros. As personagens dessa obra são: o guerreiro mais veloz, chamado Aquiles, e seu amigo Pátroclo, ambos gregos. Entre os troianos, estão Príamo, Agamenon e Heitor, rei e filhos. Segundo narra a mitologia, o motivo da disputa seria a bela Helena, entregue aos troianos por Atena Rapsodo (en grego clássico ραψῳδός / rhapsôidós) é o nome dado a um artista popular ou cantor que, na Grécia antiga, ia de cidade em cidade recitando poemas (principalmente epo- peias). 33 Módulo 1 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA Assim narra Hesíodo, na Teogonia, a origem dos deuses, o início do mundo: Os Deuses primordiais Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, E Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, E Eros: o mais belo entre Deuses imortais, Solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. (HESÍODO, 1992, 115-120). O segundo tipo de sábio é descrito na lenda dos Sete Sábios. Entre eles, encontramos nomeado o primeiro filósofo ou físico Tales de Mileto, e Sólon, o governante que inicia a democracia em Atenas. Eles seriam responsáveis por escrever máximas ou leis morais, entre as quais se encontra o famoso “Conhece-te a ti mesmo”, atribuído a Tales. Junto a esta, outras máximas foram escritas no portal do famoso Oráculo de Delfos, templo de Apolo, como por exemplo: “A maioria é perversa”; “O cargo revela o homem”; “Indaga as palavras a partir das coisas e não as coisas a partir da palavra”; “Nada em excesso”. Essas leis morais eram conhecidas e respeitadas por todos, inclusive a que guia Sócrates, o “conhece-te a ti mesmo”. SA IB A M A IScomo vingança por ter sido preterida ao disputar com Afrodite a escolha entre as deusas mais belas. Além da disputa entre as divindades, a Ilíada representa a vida guerreira no auge da Grécia. A Odisseia: É também atribuída a Homero. Trata da representação da vida doméstica, entremeada de narrações de viagens e de aventuras maravilhosas. Divide-se também em 24 cantos e contém 12.000 versos hexâmetros. Seu herói é Ulisses, que havia deixado Ítaca e sua esposa Penélope e empreendido uma aventura durante 20 anos, na qual se depara com seres da mitologia, entre eles os ciclopes (monstros de um olho só no meio da testa), enfrenta o canto sedutor das sereias (monstros marítimos que conduziam os homens a uma morte indigna), entre outros. A sagacidade de Ulisses faz com que muitos autores enxerguem, na obra, uma passagem do poder religioso do mito à razão humana. A Teogonia: Também conhecida por Genealogia dos Deuses, é um poema mitológico de Hesíodo (séc. VIII a.C.). Trata da origem dos deuses na Grécia, descrevendo a origem do mundo a partir da Terra e do Céu. Segue-se a formação de disnatias quando Cronos destrona o pai, Urano, e reina até seu filho Zeus o destronar. 34 Volume 2 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA O Oráculo de Delfos: Escavações arqueológicas datam a existência inicial do Oráculo em torno dos séculos XIV e XI a.C., sua “apolinização” no fim do século VIII. a.C., seu apogeu entre os séculos VI e V a.C. e decadência no século II d.C. Em seu apogeu, Delfos era uma Cidade-Estado, na qual se encontrava o Oráculo de Apolo. Apolo, filho de Zeus e Leto, era a divindade, entre outros atributos, da música e da poesia. A “apolinização” do Oráculo, que pertencia antes à Gaia (a Terra primordial), ocorreu, segundo o mito, quando Apolo matou o guardião do Oráculo: um dragão ou serpente de nome Píton. Segundo Brandão (2002, p. 94-95): As cinzas do dragão foram colocadas num sarcófago e enterradas sob o omphalós, o umbigo, o Centro de Delfos, aliás o Centro do Mundo, porque, segundo o mito, Zeus, tendo soltado duas águias nas duas extremidades da terra, elas se encontraram sobre o omphalós. A pele de Píton cobria o banco de três pernas (trípode) sobre o que se sentava a sacerdotisa de Apolo, denominada, por essa razão, Pítia ou Pitonisa. Embora ainda se ignore a etimologia de Delfos, os gregos sempre a relacionaram com delphýs, útero, a cavidade misteriosa, para onde descia a Pítia, para tocar o omphalós, antes de responder às perguntas dos consulentes. Cavidade se diz em grego stómion, que significa tanto cavidade quanto vagina, daí ser o omphalós tão carregado de sentido genital. A descida ao útero de Delfos, à ‘cavidade’, onde profetizava a Pítia e o fato de a mesma tocar o omphalós, ali representado por uma pedra, configuram uma ‘união física’ da sacerdotisa com Apolo. Para celebrar o triunfo de Apolo sobre o dragão Píton, celebravam-se, de quatro em quatro anos, os JogosPíticos. As festas e os jogos se uniam à importância política e social de Delfos. Dado o aspecto religioso, Delfos gozava de uma neutralidade política, isto é, não era atacada pelas demais Cidades-Estado que viviam em permanente conflito. Para Delfos, ao contrário, convergiam reis, guerreiros e políticos e, da consulta ao Oráculo, foram tomadas muitas decisões importantes, seja em relação à guerra ou em relação aos assuntos internos das cidades. Além do poeta, dos Sete Sábios, há um terceiro tipo tido como “sábio”: o sofista. Para alguns comentadores do período, a palavra sofista tem sua raiz em sóphos, para outros, seria uma derivação de outra palavra, sophistés. A primeira quer dizer sábio, a segunda quer dizer habilidade de falar bem e convencer os outros. Esse segundo sentido é mais adequado ao papel, exercido FIGURA 1 - Portal do Oráculo de Delfos. Fonte: www.mestradodaviz.blogspot.com/ SA IB A M A IS R AAC a F U V MK 35 Módulo 1 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA pelos sofistas, de “professor” dos jovens atenienses que queriam aprender a falar e convencer os outros nas assembleias políticas. Mas os sofistas diziam mesmo tudo saber e serem capazes de falar sobre tudo. Julgavam-se sóphos, embora não tivessem a autoridade religiosa, moral e política dos poetas e dos Sete Sábios. Há, finalmente, um tipo de sabedoria prática, daqueles que sabem como fazer ou produzir algo, mas ignoram a essência de seu fazer. Trata-se de um saber técnico. Os poetas e os sofistas são os exemplos que servem para Platão caracterizar a figura do filósofo. O poeta era um sábio no contexto do mito, e o sofista se apresenta como sábio. O filósofo é apresentado como distinto desses porque não afirma deter o saber, mas, sim, como aquele que busca o saber verdadeiro. SÓCRATES: “SÓ SEI QUE NADA SEI”3 Sócrates é considerado o primeiro filósofo. Os que vieram antes dele, entre os quais Tales de Mileto, Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Demócrito e vários outros são chamados de pré- socráticos. O que sabemos de Sócrates e o que ele disse vem de seus discípulos, pois ele não deixou nada escrito. Platão é seu discípulo mais importante e responsável pela caracterização da figura de Sócrates unida à própria definição de filósofo. Sócrates é descrito nos diálogos como uma pessoa racional, que sabia como dominar as emoções, bravo guerreiro, pai de três filhos, casado com Xantipa, rodeado de muitos jovens discípulos, amigos com quem bebe vinho, sem jamais se embriagar. Segundo o discurso de Alcebíades: (...) seu exterior dá a impressão de se estar em presença de um ignorantão, de um tolo. Ora, tal não é o aspecto do Sileno? Exatamente. Atentai, porém: este exterior o envolve como uma estátua do Sileno – e se a abrirdes, e contemplardes o seu interior, quanta sabedoria, companheiros, havereis de lá encontrar! (PLATÃO, 1970, 216e). SA IB A M A IS Apesar das críticas de Platão aos sofistas, é necessário considerar a importância desses no contexto da polis (cidade com a característica de Estado), pois de seus ensinamentos resultou a transformação do sentido de virtude (areté). A virtude, anteriormente ao surgimento da pólis ateniense, dependia do fator hereditário, isto é, era virtuoso quem fosse parte das famílias que compunham a aristocracia rural. Com a constituição democrática de Atenas, supunha-se que todo cidadão – adulto, homem, nascido em Atenas e livre, poderia, com ajuda do ensino dos sofistas, aprender a ser virtuoso, independentemente de seus laços consanguíneos. Contribuíram também para o estudo e desenvolvimento da retórica. Os sofistas mais citados são: Protágoras de Abdera, Górgias de Leontini, Hípias de Élis, Pródico de Ceos. Retórica: significa a arte de falar bem e o conjunto de regras que delimita essa capacidade. R AAC a F U V MK 36 Volume 2 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA SAI BA M A IS R AAC a F U V MK FIGURA 2 Imagem de Sileno com a flauta de Pan Fonte: http://3bp.blogspot.com No diálogo O banquete de Platão, encontramos, no discurso de Alcebíades, várias dessas descrições, às quais acrescentamos duas passagens que versam sobre a aparência física feia de Sócrates e sua forma de falar, ambas comparadas à figura mítica de Sileno. Sileno (do grego Seilēnós) era um dos seguidores de Dioniso. Era um grande consumidor de vinho, sua bebedeira encerrava um tipo de sabedoria e sempre se encontrava amparado por sátiros (gr. sáturos,ou ‘sátiro’, primitivamente um semideus rústico, dotado de orelhas grandes e pontiagudas, nariz achatado, chifres pequenos, com rabo e pernas de cabra). A palavra sátira possui essa origem e diz respeito a uma técnica literária que ridiculariza um determinado tema ou pessoa. Quanto ao discurso de Sócrates, Alcebíades continua a tecer a semelhança com os de Sileno, ao dizer: De fato: uma coisa que me esqueceu dizer, ao começar esse louvor, é que os discursos de Sócrates são muito semelhantes aos dos silenos. Se alguém se dispõe a ouvir-lhe os discursos, o primeiro impulso, com efeito, é considerá-los ridículos, tais são as palavras e as expressões que os envolvem, que se tem a impressão de ver a pele de uma sátiro cômico. Fala em burros de carga, em ferreiros, em sapateiros e em curtidores, e assim dá a impressão de estar sempre a repetir as mesmas coisas, com as mesmas palavras, - e a tal ponto, que desses discursos se rirão os homens incultos e levianos. Mas, que se abra o armário e se olhe o seu interior – e ver- se –á que são os únicos discursos providos de profunda significação; e também que são os mais divinos e os mais ricos em imagens da virtude, e que abrangem muito, ou, melhor, abrangem tudo o que deve observar um homem desejoso de se tornar perfeito (PLATÃO, 1970, 221e- 222a). Sócrates viveu no período de glória de Atenas e viu a decadência da democracia ateniense. Neste período, Atenas vivia problemas internos, como a peste que assolou a cidade e matou Péricles, seu governante, e problemas externos, como a Guerra contra Esparta. Ele já era um homem de 71 anos quando, em 399 a.C., foi condenado por um tribunal formado por um júri composto por quinhentos cidadãos atenienses, baseado 37 Módulo 1 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA na acusação de três cidadãos – Meleto (acusador principal), Ânito e Lícon. A acusação era de “subverter a juventude” e “não honrar os deuses da cidade”. Diante da proposta de fuga e do exílio ou da proposta de uma alternativa à pena, Sócrates prefere acatar a pena de morte e beber cicuta, uma planta venenosa. Teria feito sua própria defesa no tribunal e, do que disse lá, resultaram dois textos, um de Platão e outro de Xenofonte, também discípulo de Sócrates. No texto de Platão, a Apologia de Sócrates, constam duas informações importantes sobreeste assunto: a) Sócrates afirma não ser mestre de ninguém e nada saber; b) Chama o irmão de Querofonte para testemunhar no tribunal o que este teria ouvido como mensagem do Oráculo de Delfos: que Sócrates era o mais sábio de todos. Você pode notar que algo não combina nessas duas afirmações. Sócrates, que não despreza a mensagem do Oráculo, mas que dizia nada saber, resolveu pôr à prova a verdade da mensagem. É desta forma que ele passou a incomodar os chamados “sábios” da cidade, com o objetivo de verificar se eles de fato sabiam o que diziam saber. Com base em uma forma interrogativa, imitada por Platão em seus diálogos, Sócrates põe abaixo falsas certezas e sabedorias apenas aparentes, ao formular a questão “o que é (algo)?” e não “como se faz” ou “para que serve (algo)”. A resposta à questão “o que é?” não é fácil. Tente responder, por exemplo, à questão “o que é o amor?”. Não é o mesmo que responder “como é?”,“como se faz?” ou “para que serve?” A conclusão foi a de que o Oráculo estava certo, pois Sócrates, que dizia nada saber, sabia mais do que os outros, ao provar que os que diziam saber, poderiam até saber como fazer algo, mas não o que faziam. ATIVIDADE 1) Leia o argumento de Sócrates, escrito por Platão, na Apologia, e reconheça a missão atribuída a Sócrates pelo Oráculo: Para testemunhar a minha ciência, se é uma ciência, e qual é ela, vos trarei o deus de Delfos. Conhecestes 38 Volume 2 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA Querofonte, decerto. Era meu amigo do partido do povo e seu companheiro naquele exílio de que voltou conosco. Sabeis que o temperamento de Querofonte, quão tenaz nos seus empreendimentos. Ora, certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta ao oráculo – repito, senhores; não vos amotineis – ele perguntou se havia alguém mais sábio do que eu; respondeu a Pítia que não havia ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque ele já morreu. Examinai por que vos conto eu esse fato; é para explicar a procedência da calúnia. Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: ‘Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente não está mentindo, porque isso lhe é impossível’. Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigação, que passo a expor. Fui ter com um dos que passam por sábio, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: ‘Eis aqui um mais sábio que eu, quando tu disseste que era eu!’ Submeti a exame essa pessoa – é escusado dizer o seu nome; era um dos políticos. Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes. Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: ‘Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei’. (21 a-e, tradução de JAIME BRUNA). Em relação a Sócrates, podemos encaminhar as seguintes conclusões intermediárias: a) A figura de Sócrates, construída por Platão, coincide com a caracterização do filósofo como aquele que duvida de verdades aparentes ou opiniões falsas e investiga, por meio do diálogo, o alcance dessas até demonstrar sua parcialidade e, portanto, falsidade, pois a verdade não 39 Módulo 1 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA varia e nem possui um caráter particular. A verdade é universal. b) Sócrates, que afirma nada saber, é mais sábio do que os que ignoram que nada sabem e afirmam saber. Ao mesmo tempo, Sócrates, ao admitir que nada saber, pode empreender a busca do saber e, por isso, Platão define como filósofo aquele que não detém a verdade, mas a busca. c) Ao investigar a “verdade” do Oráculo, Sócrates se indispôs com muitas pessoas. Essa conduta teria favorecido seus acusadores. As acusações encontraram suporte e foram aceitas em vista da desagregação política vivida nesse período decadente de Atenas. PLATÃO E A BUSCA DO SABER 4 Platão se empenhou em destruir os falsos saberes e, por outro lado, orientar o jovem discípulo na construção do saber verdadeiro. O primeiro movimento se caracteriza pela dialética aporética. Esse movimento se relaciona fortemente com o sentido de ironia socrática e seu efeito de refutação ou contradição. SA IB A M A IS R AAC a F U V MK Dialética aporética: Essa expressão reúne dois significados importantes da origem e história da filosofia, mas possui um sentido estrito quando relacionada a Sócrates. Significa que, por meio do diálogo, Sócrates combate as ideias que tomam casos particulares como regra geral, contradizendo-as e mostrando que não servem para todos os casos e não são verdadeiras. Por exemplo, definir o que é a coragem, o que é a justiça etc., a depender dos interlocutores e suas opiniões particulares, o perguntar insistente de Sócrates termina por apenas contradizer as proposições a respeito de algum tema: esse é o significado de dialética. Por não chegar a lugar algum, a resposta esperada é aporética. Em grego aporia quer dizer “sem saída”, raciocínio sem conclusão, paradoxo. 40 Volume 2 U N ID A D E II F il o so fi a e E d u ca çã o P ED A G O G IA O segundo movimento diz respeito à técnica da maiêutica ou parturição de ideias. O jovem discípulo “prenhe” de ideias, como uma mulher grávida de seus filhos, é auxiliado por Sócrates a dar a luz às ideias verdadeiras. Sócrates, como a parteira, que geralmente é uma mulher mais velha e incapaz de gerar filhos, é também estéril de saber. Sua função, portanto, é daquele que, por um lado, conduz o suposto sábio a um beco sem saída, sem dar-lhe respostas e, por outro, é também o que auxilia o jovem a pensar corretamente, sem, contudo, doutriná-lo sobre a verdade. 2) Leia a passagem do diálogo Eutífron, de Platão, e verifique tanto a função da ironia, quanto a sensação de esvaziamento das certezas, na qual o interlocutor de Sócrates é posto: Eutífron: Sócrates, não sei mais como dizer-te o que tenho em mente: qualquer definição que propomos nos gira, não sei como, sempre ao redor, e não quer permanecer firme no lugar em que a colocamos. Sócrates: As definições que deste, Eutífron, parecem assemelhar-se às tais definições do meu progenitor Dédalo. E, caso eu formulasse e propusesse tais definições, talvez pudesses ridicularizar-me, como se, por causa do parentesco que tenho com ele, minhas obras feitas de palavras escapassem e não quisessem permanecer firmes no lugar em que as colocamos. Ora, ao contrário, as definições
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