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para apresentacao 2 sobre a rainha Ginga

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Nzinga Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola nos sécu-
los XVI-XVII (1587-1663), foi uma das mulheres e heroínas afri-
canas cuja memória mais tem desafiado o processo diluidor da
amnésia, dando origem a um imaginário cultural na diáspora tal
como no folclore brasileiro com o nome de Ginga; despertou o
interesse dos iluministas como a criação de um romance inspirado
nos seus feitos (Castilhon, 1769) e citação na Histoire Universelle
(1765); é cultuada como a heroína angolana das primeiras resistên-
cias pelos modernos movimentos nacionalistas de Angola; e tem
despertado um crescente interesse dos historiadores e antropólo-
gos para a compreensão daquele momento histórico que caracte-
rizou a destreza política e de armas desta rainha africana na resis
Ginga, a rainha
quilombola
de Matamba
e Angola
C A R L O S M. H. S E R R A N O
CARLOS M. H.
SERRANO é
professor do
Departamento de
Antropologia da USP
e vice-diretor do
Centro de Estudos
Africanos da USP.
À memória de Beatriz do
Nascimento,estudiosa dos
quilombos e quilombola tam-
bém.
A RAINHA
GINGA, NO
DESTAQUE;
ESTATUETA
EM MADEIRA
DE
ANCESTRAL,
EM
CAMARÕES;
QUILOMBO
ETÍPIOPE
OCIDENTAL,
GRAVURA
DE 1732
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tência à ocupação dos portugueses do terri-
tório angolano e conseqüente tráfico de es-
cravos.
Contemporânea de Zumbi dos Palmares,
este outro herói afro-brasileiro (?-1695),
ambos parecem compartilhar de um tempo e
de um espaço comum de resistência: o
quilombo.
Ao refletirmos sobre a rainha Nzinga
Mbandi Ngola pensamos contribuir para a com-
preensão da inserção dos espaços políticos
africanos na economia mercantil européia e
das resistências criadas à sua dominação.
Um grande número de reinos africanos da
costa ocidental e central do continente pos-
suía uma concepção de organização político-
espacial semelhante. Suas economias, antes
da presença européia, estabeleciam-se em
função de uma relação complementar com os
espaços do hinterland através de comércio a
longa distância. Desse modo, o poder
centralizador desses reinos situava-se não no
litoral mas no interior, com o fim de melhor
controlar as rotas comerciais. Normalmente
o litoral constituía-se como espaço de produ-
ção de sal, peixe seco ou outros produtos
necessários ao interior.
As transformações que emergem no seio
dessas sociedades, em termos do poder polí-
tico, surgem por interveniências de elemen-
tos exógenos, neste caso, os traficantes euro-
peus, e identificam-se na deslocação do po-
der político de linhagens detentoras tradicio-
nais desse poder para linhagens “novas”.
Estamos pensando no contato sucessivo que
os chefes tradicionais do litoral entabulavam
com os navegantes que procuravam estabele-
cer um comércio efetivo com os povos da
costa ocidental africana.
Esta dualidade do poder espacial pode-
mos encontrar no reino do Dahomey (K.
Polanyi, 1966), no Loango, (Philippe Rey,
1971), no Ngoyo (Serrano, 1983), no Congo
(Pirenne, 1959). Em todos eles o tráfico de
mercadorias e escravos era tributado e con-
trolado por representantes do poder central.
Os traficantes portugueses tentam esta-
belecer portos de tráfico no litoral angolano
para a comercialização e captura direta de
escravos no litoral. Em 1578, Paulo Dias de
Novais funda a cidade fortificada de São Paulo
de Assumpção de Luanda que se tornará a
futura capital de Angola em território mbundu.
Era rei dos mbundus no território ndongo
(Angola) e Matamba, Ngola Kiluanji, pai de
Nzinga Mbandi Ngola, que nasce em Cabassa,
interior de Matamba, em 1581.
Ngola Kiluanji resiste à ocupação portu-
guesa até a sua morte. No entanto, uma parte
do território é tomada, constituindo o primei-
ro espaço colonial na região. O rei Kiluanji
refugia-se em Cabassa, no interior de Matamba,
e consegue reter o avanço dos portugueses.
Após a morte de Kiluanji sucede seu filho Ngola
Mbandi, meio irmão de Nzinga.
Os portugueses há algum tempo trafican-
do com os jagas do litoral, guerreiros vindos
do leste, também conhecidos por imbangalas,
estão agora impedidos de fazê-lo, pois a rota
para o interior é controlada pelo Ngola Mbandi.
Este envia sua irmã Nzinga a Luanda para
negociar com os portugueses. Recebida em
Luanda com grande pompa pelo governador
geral ela negocia sem ceder algum território e
pede a devolução de territórios que obtém pela
sua conversão política ao cristianismo, rece-
bendo o nome de Dona Anna de Sousa. Mais
tarde suas irmãs Cambi e Fungi também se
convertem, passando a se chamar Dona Bár-
bara e Dona Garcia respectivamente.
Os portugueses, no desejo de estabelece-
rem o comércio com o jaga de Cassanje no
interior, não respeitam o tratado de paz. A re-
belião de alguns sobas (chefes), que se aliam
ao jaga de Cassange e aos portugueses, cria
uma situação de desordem no reino de Ngola.
Nzinga, ao encontrar um dos sobas, seu
tio, que se dirigia a Luanda para se submeter
aos portugueses, manda decapitá-lo, e dando
conta da hesitação de seu irmão manda
envenená-lo abrindo assim caminho ao po-
der e ao comando da resistência à ocupação
das terras de Ngola e Matamba.
Os portugueses elegem um chefe mbundu,
Aiidi Kiluanji (Kiluanji II), como novo Ngola
das terras do Ndongo.
Nzinga, não conseguindo a paz com os
portugueses em troca de seu reconhecimento
como rainha de Matamba, renega a fé católi-
ca e se alia aos guerreiros jagas de Oeste se
fazendo iniciar nos ritos da máquina de guer-
ra que constituía o quilombo.
O QUILOMBO E O RITO
DE PASSAGEM
Para melhor compreender este rito de ini-
ciação deste grupo guerreiro, os jagas, será
NA PÁGINA
AO LADO,
MÁSCARA
QUE
REPRESENTA
O ESPÍRITO
DE UMA
DEFUNTA, EM
PUNU,
GABÃO
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melhor dar a palavra a uma testemunha ocu-
lar da época, que a descreve com minúcias:
“A cerimônia de receber os meninos no
quilombo pratica-se ainda hoje com sole-
nidade, e eu, que a presenciei muitas ve-
zes, posso descrevê-la exatamente.
Quando o chefe do quilombo, que é ordi-
nariamente o comandante militar, quer
conceder este privilégio, determina o dia
da função. No intervalo de tempo prece-
dente à data, os pais, que são sempre nu-
merosos, suplicam insistentemente a con-
cessão desta graça, persuadidos de que
seus filhinhos, antes da admissão, são
abominados pela autora da lei, e só depois
de purificados serão benzidos por ela. O
dia é de grande festa, com o concurso de
muitos homens armados e enfeitados o
melhor possível. Aparecem na praça em
boa ordem e com muito decoro os cofres
em que se conservam os ossos de algumas
pessoas principais e que são guardados
nas suas casas por pessoas qualificadas.
Depois aparecem os cofres com os ossos
dos antigos chefes do quilombo e de seus
parentes. Todos são colocados sobre
montões de terra, na presença do povo,
rodeados por guardas e por uma multidão
de tocadores e de dançadores, que feste-
jam e honram os ossos daqueles faleci-
dos. Por fim chega o comandante com a
sua favorita, chamada tembanza, ou ‘se-
nhora da casa’, ambos festejados pela
música e pela comitiva dos seus familia-
res. Ambos untam os seus corpos e as suas
armas e se sentam, ela à esquerda e ele à
direita dos ditos cofres. Então, todos os
presentes, divididos em grupos, fingemuma batalha, acometendo-se furiosamen-
te. Acabada a batalha e as danças, que são
bastante demoradas, até todos perderem o
fôlego, saem, de algumas moitas predis-
postas, as mães que nelas estavam escon-
didas, com os meninos, e, mostrando-se
muito preocupadas, com mil gestos vão
ao encontro dos maridos, indicando-lhes
o lugar em que cada menino está escondi-
ASSENTO EM
MADEIRA, EM
FORMA DE
PÁSSARO, DA
REGIÃO DE
KAMACILU, NO
LUANDA
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SOROMENHO, Castro. “Portrait: Jinga, Reine de Ngola et de Matamba”, in Presence Africaine,
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do. Então eles correm para lá com os ar-
cos flechados e, descobrindo a criatura,
tocam levemente nela com a seta, para
demonstrar que não a consideram como
filho, mas como preso de guerra, e que,
portanto, a lei não fica violada. Depois,
usando uma perna de galinha (nunca
pude descobrir a razão disso), untam a
criança com aquele ungüento no peito,
nos lombos e no braço direito. Dessa
maneira, os pequenos são julgados e
purificados e podem ser introduzidos
pelas mães no quilombo na noite seguin-
te” (Cavazzi, p. 182).
A versão que nos chega dos ritos
antropofágicos dos jagas parece prender-se a
uma falsa tradução da palavra que significa-
ria retirá-las das famílias (linhagens) e não
“comê-las” (Miller,1976).
Tal como a instituição das classes de ida-
de, o quilombo é o que se denomina cross-
cutting institutions’ pois cortava transversal-
mente as estruturas de linhagem e estabelecia
uma nova centralidade de poder, baseada
sobretudo na máquina de guerra necessária
para fazer guerra aos prováveis inimigos
(Miller, p. 27).
Esse era um processo de recrutamento
militar necessário a Nzinga para fazer face
aos valores particularistas da estrutura de
parentesco, ou pelo menos colocar uma in-
serção mínima (Balandier, 1969:78).
Em 1640, a rainha Nzinga e seus guerrei-
ros atacam o forte Massangano, onde suas
duas irmãs, Cambu e Fungi, são aprisiona-
das, sendo esta última executada. Aprovei-
tando a ocupação temporária de Luanda pe-
los holandeses, recupera alguns territórios
de Ngola com a adesão de alguns sobas (che-
fes). Salvador Correia de Sá y Benevides,
general brasileiro, restaura a soberania por-
tuguesa em Luanda e tenta restabelecer seu
poder no interior.
Numa incursão do exército de Nzinga são
aprisionados dois capuchinhos que a rainha
aproveita para convencê-los de sua vontade
de reconversão em troca do reconhecimento
de sua soberania nos reinos de Ngola e
Matamba e da libertação de sua irmã Cambu.
O governador geral aceita libertar Cambu se
Nzinga retificar um tratado limitando suas
reivindicações a Matamba e renunciando aos
territórios de Ngola, sendo o rio Lucala es-
colhido como fronteira. Este tratado, de 1656,
só vai ser posto em prática depois da ameaça
da rainha voltar à guerra. Só assim o governo
de Luanda libera sua irmã Cambu, mesmo
assim depois do pagamento de um resgate de
mais de uma centena de escravos. Cambu
tinha ficado retida em Luanda por cerca de
dez anos.
Há uma paz relativa no reino de Matamba
até a sua morte aos 82 anos em 17 de dezem-
bro de 1663. Sucede a Nzinga sua irmã
Cambu, continuadora da memória de sua
irmã, a rainha quilombola de Matamba e
Angola.
A resistência de Nzinga à ocupação colo-
nial e ao tráfico de escravos no seu reino por
cerca de quarenta anos, usando de várias tá-
ticas e estratégias que vão desde a conversão
ao cristianismo até as práticas jagas, é fonte
para a criação de um imaginário que se im-
pôs como símbolo de luta contra a opressão.
Memória de Ginga, memória de Zumbi.

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