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136 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 8 ) : 1 3 6 - 1 4 1, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6 P O V O Ne gro 137 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 8 ) : 1 3 6 - 1 4 1, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6 Nzinga Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola nos sécu- los XVI-XVII (1587-1663), foi uma das mulheres e heroínas afri- canas cuja memória mais tem desafiado o processo diluidor da amnésia, dando origem a um imaginário cultural na diáspora tal como no folclore brasileiro com o nome de Ginga; despertou o interesse dos iluministas como a criação de um romance inspirado nos seus feitos (Castilhon, 1769) e citação na Histoire Universelle (1765); é cultuada como a heroína angolana das primeiras resistên- cias pelos modernos movimentos nacionalistas de Angola; e tem despertado um crescente interesse dos historiadores e antropólo- gos para a compreensão daquele momento histórico que caracte- rizou a destreza política e de armas desta rainha africana na resis Ginga, a rainha quilombola de Matamba e Angola C A R L O S M. H. S E R R A N O CARLOS M. H. SERRANO é professor do Departamento de Antropologia da USP e vice-diretor do Centro de Estudos Africanos da USP. À memória de Beatriz do Nascimento,estudiosa dos quilombos e quilombola tam- bém. A RAINHA GINGA, NO DESTAQUE; ESTATUETA EM MADEIRA DE ANCESTRAL, EM CAMARÕES; QUILOMBO ETÍPIOPE OCIDENTAL, GRAVURA DE 1732 138 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 8 ) : 1 3 6 - 1 4 1, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6 tência à ocupação dos portugueses do terri- tório angolano e conseqüente tráfico de es- cravos. Contemporânea de Zumbi dos Palmares, este outro herói afro-brasileiro (?-1695), ambos parecem compartilhar de um tempo e de um espaço comum de resistência: o quilombo. Ao refletirmos sobre a rainha Nzinga Mbandi Ngola pensamos contribuir para a com- preensão da inserção dos espaços políticos africanos na economia mercantil européia e das resistências criadas à sua dominação. Um grande número de reinos africanos da costa ocidental e central do continente pos- suía uma concepção de organização político- espacial semelhante. Suas economias, antes da presença européia, estabeleciam-se em função de uma relação complementar com os espaços do hinterland através de comércio a longa distância. Desse modo, o poder centralizador desses reinos situava-se não no litoral mas no interior, com o fim de melhor controlar as rotas comerciais. Normalmente o litoral constituía-se como espaço de produ- ção de sal, peixe seco ou outros produtos necessários ao interior. As transformações que emergem no seio dessas sociedades, em termos do poder polí- tico, surgem por interveniências de elemen- tos exógenos, neste caso, os traficantes euro- peus, e identificam-se na deslocação do po- der político de linhagens detentoras tradicio- nais desse poder para linhagens “novas”. Estamos pensando no contato sucessivo que os chefes tradicionais do litoral entabulavam com os navegantes que procuravam estabele- cer um comércio efetivo com os povos da costa ocidental africana. Esta dualidade do poder espacial pode- mos encontrar no reino do Dahomey (K. Polanyi, 1966), no Loango, (Philippe Rey, 1971), no Ngoyo (Serrano, 1983), no Congo (Pirenne, 1959). Em todos eles o tráfico de mercadorias e escravos era tributado e con- trolado por representantes do poder central. Os traficantes portugueses tentam esta- belecer portos de tráfico no litoral angolano para a comercialização e captura direta de escravos no litoral. Em 1578, Paulo Dias de Novais funda a cidade fortificada de São Paulo de Assumpção de Luanda que se tornará a futura capital de Angola em território mbundu. Era rei dos mbundus no território ndongo (Angola) e Matamba, Ngola Kiluanji, pai de Nzinga Mbandi Ngola, que nasce em Cabassa, interior de Matamba, em 1581. Ngola Kiluanji resiste à ocupação portu- guesa até a sua morte. No entanto, uma parte do território é tomada, constituindo o primei- ro espaço colonial na região. O rei Kiluanji refugia-se em Cabassa, no interior de Matamba, e consegue reter o avanço dos portugueses. Após a morte de Kiluanji sucede seu filho Ngola Mbandi, meio irmão de Nzinga. Os portugueses há algum tempo trafican- do com os jagas do litoral, guerreiros vindos do leste, também conhecidos por imbangalas, estão agora impedidos de fazê-lo, pois a rota para o interior é controlada pelo Ngola Mbandi. Este envia sua irmã Nzinga a Luanda para negociar com os portugueses. Recebida em Luanda com grande pompa pelo governador geral ela negocia sem ceder algum território e pede a devolução de territórios que obtém pela sua conversão política ao cristianismo, rece- bendo o nome de Dona Anna de Sousa. Mais tarde suas irmãs Cambi e Fungi também se convertem, passando a se chamar Dona Bár- bara e Dona Garcia respectivamente. Os portugueses, no desejo de estabelece- rem o comércio com o jaga de Cassanje no interior, não respeitam o tratado de paz. A re- belião de alguns sobas (chefes), que se aliam ao jaga de Cassange e aos portugueses, cria uma situação de desordem no reino de Ngola. Nzinga, ao encontrar um dos sobas, seu tio, que se dirigia a Luanda para se submeter aos portugueses, manda decapitá-lo, e dando conta da hesitação de seu irmão manda envenená-lo abrindo assim caminho ao po- der e ao comando da resistência à ocupação das terras de Ngola e Matamba. Os portugueses elegem um chefe mbundu, Aiidi Kiluanji (Kiluanji II), como novo Ngola das terras do Ndongo. Nzinga, não conseguindo a paz com os portugueses em troca de seu reconhecimento como rainha de Matamba, renega a fé católi- ca e se alia aos guerreiros jagas de Oeste se fazendo iniciar nos ritos da máquina de guer- ra que constituía o quilombo. O QUILOMBO E O RITO DE PASSAGEM Para melhor compreender este rito de ini- ciação deste grupo guerreiro, os jagas, será NA PÁGINA AO LADO, MÁSCARA QUE REPRESENTA O ESPÍRITO DE UMA DEFUNTA, EM PUNU, GABÃO 139 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 8 ) : 1 3 6 - 1 4 1, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6 140 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 8 ) : 1 3 6 - 1 4 1, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6 melhor dar a palavra a uma testemunha ocu- lar da época, que a descreve com minúcias: “A cerimônia de receber os meninos no quilombo pratica-se ainda hoje com sole- nidade, e eu, que a presenciei muitas ve- zes, posso descrevê-la exatamente. Quando o chefe do quilombo, que é ordi- nariamente o comandante militar, quer conceder este privilégio, determina o dia da função. No intervalo de tempo prece- dente à data, os pais, que são sempre nu- merosos, suplicam insistentemente a con- cessão desta graça, persuadidos de que seus filhinhos, antes da admissão, são abominados pela autora da lei, e só depois de purificados serão benzidos por ela. O dia é de grande festa, com o concurso de muitos homens armados e enfeitados o melhor possível. Aparecem na praça em boa ordem e com muito decoro os cofres em que se conservam os ossos de algumas pessoas principais e que são guardados nas suas casas por pessoas qualificadas. Depois aparecem os cofres com os ossos dos antigos chefes do quilombo e de seus parentes. Todos são colocados sobre montões de terra, na presença do povo, rodeados por guardas e por uma multidão de tocadores e de dançadores, que feste- jam e honram os ossos daqueles faleci- dos. Por fim chega o comandante com a sua favorita, chamada tembanza, ou ‘se- nhora da casa’, ambos festejados pela música e pela comitiva dos seus familia- res. Ambos untam os seus corpos e as suas armas e se sentam, ela à esquerda e ele à direita dos ditos cofres. Então, todos os presentes, divididos em grupos, fingemuma batalha, acometendo-se furiosamen- te. Acabada a batalha e as danças, que são bastante demoradas, até todos perderem o fôlego, saem, de algumas moitas predis- postas, as mães que nelas estavam escon- didas, com os meninos, e, mostrando-se muito preocupadas, com mil gestos vão ao encontro dos maridos, indicando-lhes o lugar em que cada menino está escondi- ASSENTO EM MADEIRA, EM FORMA DE PÁSSARO, DA REGIÃO DE KAMACILU, NO LUANDA 141 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 8 ) : 1 3 6 - 1 4 1, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6 BIBLIOGRAFIA BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1969. BIRMINGHAM, David. A Conquista Portuguesa de Angola. Lisboa, A Regra de Jogo, 1974. CASTILHON, J.-L. Zingha, Reine D’Angola. Histoire Africaine. Bourges, Ganymede, 1993. CAVAZZI, Pe. João Antonio (de Montecúccolo). Descrição Histórica dosTrês Reinos Congo, Matamba e Angola (1687). Lisboa, Edição da Junta de Investigações do Ultramar, 1965, 2 volumes. MILLER, Joseph C. “Nzinga of Matamba in a New Perspective”, in Journal of African History, XVI 2 (1975), pp. 201-16. ———. Kings and Kinsmen, Early Mbundu States in Angola. Oxford, Clarendon Press,1976. SERRANO, Carlos. “História e Antropologia na Pesquisa do mesmo Espaço: a Afro-América”, in África: Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, 5, 1982, pp. 124-8. ———. Os Senhores da Terra e os Homens do Mar: Antropologia Política de um Reino Africano. FFLCH-USP, 1983. SOROMENHO, Castro. “Portrait: Jinga, Reine de Ngola et de Matamba”, in Presence Africaine, 3e. trimestre 1962, pp. 47-53. do. Então eles correm para lá com os ar- cos flechados e, descobrindo a criatura, tocam levemente nela com a seta, para demonstrar que não a consideram como filho, mas como preso de guerra, e que, portanto, a lei não fica violada. Depois, usando uma perna de galinha (nunca pude descobrir a razão disso), untam a criança com aquele ungüento no peito, nos lombos e no braço direito. Dessa maneira, os pequenos são julgados e purificados e podem ser introduzidos pelas mães no quilombo na noite seguin- te” (Cavazzi, p. 182). A versão que nos chega dos ritos antropofágicos dos jagas parece prender-se a uma falsa tradução da palavra que significa- ria retirá-las das famílias (linhagens) e não “comê-las” (Miller,1976). Tal como a instituição das classes de ida- de, o quilombo é o que se denomina cross- cutting institutions’ pois cortava transversal- mente as estruturas de linhagem e estabelecia uma nova centralidade de poder, baseada sobretudo na máquina de guerra necessária para fazer guerra aos prováveis inimigos (Miller, p. 27). Esse era um processo de recrutamento militar necessário a Nzinga para fazer face aos valores particularistas da estrutura de parentesco, ou pelo menos colocar uma in- serção mínima (Balandier, 1969:78). Em 1640, a rainha Nzinga e seus guerrei- ros atacam o forte Massangano, onde suas duas irmãs, Cambu e Fungi, são aprisiona- das, sendo esta última executada. Aprovei- tando a ocupação temporária de Luanda pe- los holandeses, recupera alguns territórios de Ngola com a adesão de alguns sobas (che- fes). Salvador Correia de Sá y Benevides, general brasileiro, restaura a soberania por- tuguesa em Luanda e tenta restabelecer seu poder no interior. Numa incursão do exército de Nzinga são aprisionados dois capuchinhos que a rainha aproveita para convencê-los de sua vontade de reconversão em troca do reconhecimento de sua soberania nos reinos de Ngola e Matamba e da libertação de sua irmã Cambu. O governador geral aceita libertar Cambu se Nzinga retificar um tratado limitando suas reivindicações a Matamba e renunciando aos territórios de Ngola, sendo o rio Lucala es- colhido como fronteira. Este tratado, de 1656, só vai ser posto em prática depois da ameaça da rainha voltar à guerra. Só assim o governo de Luanda libera sua irmã Cambu, mesmo assim depois do pagamento de um resgate de mais de uma centena de escravos. Cambu tinha ficado retida em Luanda por cerca de dez anos. Há uma paz relativa no reino de Matamba até a sua morte aos 82 anos em 17 de dezem- bro de 1663. Sucede a Nzinga sua irmã Cambu, continuadora da memória de sua irmã, a rainha quilombola de Matamba e Angola. A resistência de Nzinga à ocupação colo- nial e ao tráfico de escravos no seu reino por cerca de quarenta anos, usando de várias tá- ticas e estratégias que vão desde a conversão ao cristianismo até as práticas jagas, é fonte para a criação de um imaginário que se im- pôs como símbolo de luta contra a opressão. Memória de Ginga, memória de Zumbi.
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