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BEDIN, Gilmar. O Realismo Político e as Relações Internacionais

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63 Uma breve historia da ONU pode ser encontrada em Jorge MONTANO. Las
Naciones Unidas y el orden mundiaI1945-1992. Mexico: Fondo de Cultura
Economica, 1992; tambem em John STOESSINGER. 0 poder das nac:;;oes-
a politica internacional de nosso tempo. Sao Paulo: Editora Cultrix, 1978 e
Ricardo SEITENFUs, op. cit.
M Cf. Edward CARR. Vinte anos de crise 1919-1939. Brasilia: Editora da
Universidade de Brasilia, 1981.
65 Ver, por exemplo, os inumeros textos de Zbignew BRZEZINSKI. Tambem a
excelente coletanea organizada por Jose Flavio Sombra SARAIVA. Relac;;oes
Internacionais Contemporaneas de 1815 a nossos dias - Da constrw;;ao do
mundo liberal a globaliza<;ao. Brasilia : Paralelo 15 Editores, 1997; Eric
HOBSBAWN. A era dos extremos. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1995.
67 Ibidem, p. 1.
68 Cf., por exemplo, Jose Flavio Sombra SARAIVA, op. cit.
69 Cf. Thomas Hobbes, op. cit. Ver, ainda, C. BEITZ et alii (eds.) International
ethics. Princeton University Press, 1985; Kenneth W. THOMPSON (Eb.).
Ethics and international relations, vol. 2, New York: Transaction Books,
1985; Joel H. ROSENTHAL (ed.). Ethics & International Affairs -a reader,
Washington : Georgetown University, 1995.
70 Cf. Raymond ARON, op. cit., p. 158.
71 Cf. Ibidem, p. 158.
72 Ibidem, p. 158.
73 Cf., por exemplo, Willy BRANDT (Relator). Relat6rio Norte-Sur, un progra-
ma para la supervivencia. Bogota/Colombia: Ed. Pluma Uda, 1980; Gro
Harlem BRUNDTLAND (CNUMAD). Nosso futuro comum. Rio de Janei-
ro : Editora da Funda<;ao Getulio Vargas, 1988.
74 Cf. ATHERLEY, Leslie. "La culture de la paix". In: Symposium International
"Des 'inseeurites' partie/les a la securite globale". Paris: Maison de I'Unesco,
12-14 juin 1996, p. 53-57.
o Realismo Politico
e as Rela~6es Internacionais:
algumas reflex6es
sobre 0 paradigma tradicional
das re)a~6es internacionais
"A grandeza da historia reside no conflito perpetuo
entre na<;6es e e simplesmente insensato 0 desejo de
supera<;ao desta rivalidade."
Introdu~ao
As analises te6ricas dos fen6menos humanos designados pela
expressao "relac;;6es internacionais" tem sido formuladas, no decorrer
, da segunda metade do presente seculo, como um conjunto coerente e
.Istematico de proposic;;6es, conjecturas, hip6teses e construc;;6es
(,:1 Uma breve historia da ONU pode ser encontrada em Jorge MONTANO. Las
Naciones Unidas y el orden mundiaI1945-1992. Mexico: Fondo de Culturd
Economica, 1992; tambem em John STOESSINGER. 0 poder das nQ/;oes _.
a poIitica internacional de nosso tempo. Sao Paulo: Editora Cultrix, 1978 c
Ricardo SEITENFUs, op. cit.
64 Cf. Edward CARR. Vinte anos de crise 1919-1939. Brasilia: Editora da
Universidade de Brasilia, 1981.
65 Ver, por exemplo, os inumeros textos de Zbignew BRZEZINSKI. Tambem a
excelente coletanea organizada por Jose Flavio Sombra SARAIVA. Rela<;;6es
Internacionais Contemporaneas de 1815 a nossos dias - Da constru<;:aodo
mundo liberal a globaliza<;:ao. Brasilia: Paralelo 15 Editores, 1997; Eric
HOBSBAWN. A era dos extremos. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1995.
67 Ibidem, p. 1.
68 Cf., por exemplo, Jose Flavio Sombra SARAIVA, op. cit.
69 Cf. Thomas Hobbes, op. cit. Ver, ainda, C. BEITZ et alii (eds.) International
ethics. Princeton University Press, 1985; Kenneth W. THOMPSON (Eb.).
Ethics and international relations, vol. 2, New York: Transaction Books,
1985; Joel H. ROSENTHAL (ed.). Ethics & International Affairs - a reader,
Washington: Georgetown University, 1995.
70 Cf. Raymond ARON, op. cit., p. 158.
71 Cf. Ibidem, p. 158.
72 Ibidem, p. 158.
73 Cf., por exemplo, Willy BRANDT (Relator). Relatorio Norte-Sur, un progra-
ma para la supervivencia. Bogota/Colombia: Ed. Pluma Uda, 1980; Gro
Harlem BRUNDTLAND (CNUMAD). Nosso futuro comum. Rio de Janei-
ro : Editora da Funda<;:aoGetUlioVargas, 1988.
74 Cf. ATHERLEY, Leslie. "La culture de la paix". In: Symposium International
"Des 'insecurites' partielles a la securite globale". Paris: Maison de l'Unesco,
12-14 juin 1996, p. 53-57.
o Realismo Politico
e as Rela~6es Internacionais:
algumas reflex6es
sobre 0 paradigma tradicional
das rela~6es internacionais
Gilmar Antonio Bedin
"A grandeza da historia reside no conflito perpetuo
entre na<;:6ese e simplesmente insensato 0 desejo de
supera<;:aodesta rivalidade."
Introdu<.;;ao
As analises te6ricas dos fen6menos humanos designados pela
expressao "rela~6es internacionais" tem sido formuladas, no decorrer
cia segunda metade do presente seculo, como um conjunto coerente e
sistematico de proposi~6es, conjecturas, hip6teses e constru~6es
conceituais que permitem ao pesquisador atual afirmar que e possivel a
consolidac;:aodesta area do saber como uma disciplina especifica e como
uma esfera do conhecimento dotada de autonomia cientifica 1 - apesar
de nao existir, na opiniao de alguns especialistas da area, uma teoria
geral das relac;:6es internacionais2. Isto significa, em outras palavras,
que as relac;:6es internacionais adquiriram no periodo referido gran-,
de maturidade teorica e conquistaram um espac;:o proprio - como
Teoria das Relac;:6es Internacionais -, colocando-se ao lado da
Ciencia Politica, da Politica Internacional e do Direito InternacionaI
Publico.
A autonomia cientifica e a especificidade academica ha pouco
referida das relac;:6esinternacionais permitem, outrossim, que esta area
do conhecimento elabore modelos teoricos de analise ou tipos ideais3
que estruturam, esclarecem e dao significado as relac;:6es sociais que
sac denominadas de internacionais. Estes modelos teoricos ou tipos
ideais sac designados, normalmente, deparad~g~C\~~, que podem ser
definidos como sendo
"as suposi<;6es fundamentais que os especialistas fazem sobre 0
i mundo que estao estudando e que mostram 0 que e conhecido
. sobre este mundo, 0 que e desconhecido, como se deve enxergar
esse mundo se se quer conhecer 0 desconhecido e, finalmente, 0
que merece ser conhecido."5
"um paradigma das rela<;6es internacionais e entao uma visao,
uma interpreta<;ao, uma perspectiva dos fen6menos internacio-
nais ou mundiais, amparada em algum metodo, cuja pretensao e
explicar e dar sentido para os fatos que estao se desenrolando no
cenario internacional."6
Dito isto, pode-se perguntar agora quais sac os paradigmas das
relac;:6esinternacionais. Sao apontados, como regra, quatro7 modelos
teoricos:
Apesar da importancia dos quatro paradigmas relacionados, 0
objetivo deste trabalho e analisar 0 paradig~ad() r§aH?!!1()_QQljtic()e
refletir sobre seus pr_El?supostosfundamentais9. Neste sentido, a pri-
meira observac;:ao importante a ser feita e que este paradigma tambem
e conhecido como 0 modelo teorico tradicional ou classico da teoria
__ ., •• .~ .• _._ - _.~,. ••• _ ••• ,_"" __ 0" •. __ .• _.~"
das relac;:6es internacionais. Esta caracterizac;:ao do paradigma do rea-
lismo politico como tradicional ou classico ja indica por si mesma que e
a c~nstruc;:~()_t~oricadas relac;:6esinternacionais mais a[ltiga - pois sur-
giu juntamente com 0 estado moderno - e que provavelmente foi 0
paradigma que mais se difundiu nos ultimos cinqilenta an os e 0 que
teve 0 maior numero de adeptos no decorrer do ample periodo histo-
rico designado de mundo moderno10.
Assim, e importante observar que desde as primeiras constru-
c;:6esteoricas de Nicolau Maquiavelll - em pleno seculo XVI - ate a
sofisticac;:ao conceitual de Kenneth Waltz12 e Robert Gilpin13 e a
contemporaneidade teorica de Samuel P. Huntington 14 - no final do
seculo XX - 0 paradigma do realismo politico foi a perspectiva predo-
minante e a forma por excelencia utilizada pelos especialistas da area
para organizar os fenomenos designados de relac;:6es internacionais.
por isso, pode-se afirmar que OP9~Clc:li9ID£JLQr?aJismop0i_t~co e 0
modelo te6rico "forjado para enfrentar uma situac;ao novada qual a
vEdhate;ria do direito natural nao conseguia mais dar conta"15 e que
tem na descoberta da especificidade da esfera politica ou do discurso
politico 0 seu nucleo fundamental.
No entanto, apesar dessa longa tradic;ao, foi _som~~ 0
final da Segunda Guerra Mundial - com a analise de suas causas e de
suas consequencias humanas e politicas, em especial pela constata<;ao
feita por alguns estudiosos do periodo de que as ideias idealistas, pre-
dominantes no entre-guerras, impediram uma ac;ao mais firme e obje-
tiva que evitasse uma nova guerra de propor<;6es mundiais16 e a confi-
gura<;ao da polariza<;ao ideol6gica entre Estados Unidos e Uniao Sovie-
tica no p6s-segunda guerra - que 0 paradigma do realismo politico
.-..~--~_..-
se impos como 0 modelo teorico hegemonico e quase que exclusi-
vo das relac;6es internacionais. Por isso, "a partir de entao, durante
to do 0 periodo da Guerra Fria, a concepc;ao realista predominou
praticamente incontestavel e foi responsavel pela formula<;ao dos
mais importantes quadros de analises e explicac;6es dos eventos
internacionais. "17
Por outro lado, e justamente essa presen<;a mais marcante do
paradigma do realismo politico no pos-segunda guerra que 0 caracteri-
za, muitas vezes, como uma especie de reac;ao a presen<;a do paradigma
do idealismo politico, predominante no periodo historico do entre-guer-
ras - 1919 a 1939 -, apesar de ter-se configurado como uma solida
estrutura teorica de analise das rela<;6es internacionais em momento
historico cronologicamente anterior. Essa percep<;ao pode ser consta-
tada, por exemplo, na seguinte afirma<;ao de Philippe Braillard: "a abor-
~m_re~~~~ClE~~~'_Ct~~i_r:r1,serc;onsiderada como uma rea<;ao directa
a perspectiva idealista que mar f t ' .------------ -- cou or emente a po!Jtlca americana du-
r~n~_C1primeira metade deste seculo" 18. Ou ainda nesta outra afirma-
c;ao do mesmo autor:
~sta eoneep.;:ao de relayoes internacionais [realista] foi, desde 0
flm da. Segunda guerra mundial, largamente difundida pela co _
te reahsta' _ rren
I ' ameneana que eombaha a visao wilsoniana 19 idealista
e deg~hsta de _uma soeiedade internacional em vias de paeifiea.;:ao
e e Integra.;:ao sob 0 efeito de um proeesso de demo t' _o 'd . era Iza.;:ao,
r~ves a Soeledade das Na.;:oes e 0 segundo eonflito mundial
segumdo do desenvolvimento da guerra fria d _ ', , eram um peso In-
eo~testaveJ a esta abordagem [realistal das rela.;:oes internaeio-
naIs, qu,e oe,upou uma posi<;:aodominante ate os anos sessenta e
que esta hOJe ainda largamente representada, 20
Alem da opiniao do autor ha pouco referido, essa percepc;a.o
pode ser identificada tambem no trabalho de t 'ou ros escntores, Entre
esses merece destaque 0 seguinte comentario feito pela professora
~te Maria de Oliveira:
E de se notar ainda que R J' P J"------- __co:' .' 0 ea Ismo olheo apresentou-se como
lima r:aya~ ao penodo denominado de idealista d;s relayoes in-
ternaClonals, caracterizado depois da Primeira Guerra M d' I
com 'n' - d un la,
a ms I uI<;:ao as Sociedades das Nayoes e 0 apoio do Presi-
dente Woodrow Wilson dos EVA b- t' d '-l ' 0 Je Ivan 0 reumr as nacoes
Clvl.lzada~, ocupando-as com os problemas internaeionais . Tal
penodo, ]ustamente tornou-se eonheeido como -d I' t '
t b I - '" - , I ea ISa porque
es a e eCla Inlelahvas mspiradas em regras eticas que t fd - " , , rans or-
~a a_sem p~mcI_PlOsjuridicos, serviram como padroes as reIa-
yoes mternac~o,nals, as quais passaram a se apresentar mais aber-
t~s e democratIcas, ou seja: a) as praticas tradicionais de diploma-
~Ja dos bashdores e que negociavam alian.;:as militares secretas
oram _afastadas; b) consolidou-se a determina<;:ao internacional
d~ obngator~edade do registro e publiea<;:aodos tratados multi/ate-
rals; c), sur~lram as primeiras catedras de rela.;:oes internacionais
em umversldades briti'micas,21
Em sintese, pode-se perceber que 0 realismo politico - enquanto
paradigma das relac;:oesintemacionais - teve sua origem nos primeiros
desc:lobramentos do mundo modemo, mas que e somente no segundo
pas-guerra que ele se toma incontestavel e pass a a fundamentar as
estrategias politicas e a dirigir as praticas diplomaticas das principais
nac;:oesdo planeta. Oai, portanto, tambem 0 prestigio politico que muitos
teoricos do realismo politico - como Hans Morgenthau22 e Raymond
Aron23 - adquiriram como assess ores de govemos para assuntos in-
temacionais nos ultimos cinqilenta anos.
Oito isso, e importante, outrossim, chamar a atenc;:ao para 0
fato de que, alem dos autores ja citados - Hans Morgenthau, Nicolau
Maquiavel, Kenneth Waltz, Raymond Aron, Robert Gilpin e Samuel P.
Huntington - pode-se colocar, por ordem alfabetica, entre os aCleptos
do realismo politico ou entre os autores que contribuiram para que
esse paradigma das relac;:oesintemacionais fosse formulado e aperfei-
c;:oado,os seguintes te6ricos: Arnold Wolfers, Edward H. Carr, George
Schwarze.nberg.er,Henne±bThQmpson, Henry Kissinger, Martin Wight-------- '.
~ Thomas Hobbes24 . Relac;:aode autores, como se pode ver, bastante
complexa. Por isso, a pergunta que imediatamente se coloca e a se-
guinte: e possivel, diante desta grande diversidade, identiHcar urn nu-
cleo basico de todas as diferentes versoes do realismo politico, possibi-
litando a sua aplicac;:ao nos diversos momentos hist6ricos? Apesar das
dificuldades, a resposta e afirmativa.
E aHrmativa uma vez que - como nos diz Philippe Braillard -
todos os autores que podemos classificar com a etiqueta de realistas
tem em comum
uma concep<;:ao da politica internacional fundada na vontade de
considerar 0 homem e as rela<;:6es sociais - neste caso, mais
particularmente, as rela<;:6es politicas - tal como elas sac e nao
.&.
~
como eles gostariam que elas fossem, em nome de qualquer ideal.
Sem negar a necessidade de trabalhar em prol de urn sistema
internacional universal, pacifico e harmonioso, estes autores re-
cusam adoptar a conclusao ut6pica, segundo a qual as condi<;:6es
para a instaura<;:ao de urn tal sistema estao efetivamente reunidasj
sao, nomeadamente, muito cepticos face a pretensao daqueles
que eles qualificam de idealist as e que se referem ao papel das
organiza<;:6es internacionais no que concer~e ao estabelecimento
e manuten<;:ao da paz. Nao partilham, tambem, as reservas dos
idealistas a respeito de qualquer politica de poder. 25
Alem deste pressuposto comum, OS adeptos do paradigma do
realismo politico possuem tambem, como elementos de seu nucleo
comum e que ajudam a estabelecer entre eles um elo de ligac;:ao, as
seguintes caract~Xisticasfundamentai~2~ :
a) possuem uma concepc;:ao estadocentrica das relac;:oesintemacionais,
~~ sej~~para os representantes do realismo politico apenas os esta-
dos sao atoresdas relac;:oes intemacionais, pois sao as unicas pes-
_. ,_<._h .. ·_"·_··_~· ., .. ---
soas internacionais que possu~rrl_p()c:lersoberano;
b) defend em uma concepc;:ao raciongldi'lsrelac;:oesinteIDQcionais, ou
seja, pressupoem os seus adeptos que a politica mundial po de ser
analisada como se ?S estados fossem atores racionais, que calculam
coerentemente os custos e os beneficios de todas as suas ac;:oes.
Sendo isto verdadeiro, estaria a. disposic;:ao do Estado uma
ampla e variada gama de atitudes: em certas ocasi6es, a linha
correta de a<;:aosera aguerraj. em outras, a alian<;:ae a coopera-
<;:ao.0 realismo [seguridCieSte pressupost;;rpod~ acons~lh~r-~
participa<;:ao ativa nos neg6cios da vizinhan<;:a ou a absten<;:ao
cuidadosa. Decidira 0 melhor caminho a perspectiva do exito:
vence a ideia que prometer mais ganhos C:QJIl.lT.Ie.I!Q.Lcusto"nao
aquela que for mais eqUitativ~, ~a;~'-juSt~~mais humana27
c) afirmam uma concepc;:ao baseada na busca do poder e no uso da
-_.-.--- ..__ .
forc;:a,ou seja, que todos os estados podem e definem seusinteres-
ses em termos de poder,~el?_C:()ITlQumHmem si mesmo ou como
um meio para atingir outro fim, e que nesta busca 0 uso da forc;a e
. le~itim~-,-_~~cll1sivecom a possibilidade de declarac;aocfe-guerra.~EClue
na perspectiva realista a guerra
e um direito soberano.c19 Estado, uma 'contingencia norrrl_Cil~do
jogo-d;;-p~d~~,q~~-ci~ve ser examinada essencialmente do angulo
de sua oportunidade. E 0 primeiro dever do principe estar prep a-
rado para empreende-la, justamente porque e 0 recurso de que
disp6e quando esta diante de ameac;:as a integridade de seus
dominios e, se tiver ambic;:6es expansionistas, 0 instrumento para
realiza-lo.28 ;
impossivel qualquer reformismo "institucional sob a forma de arran-
jos que apelem a etica ou ao direito, e nem e aceitavel uma psicana-
lise coletiva que dome os instintos agressivos da formac;ao estatal"32 .
Feitos todos estes esclarecimentos preliminares sobre os
paradigmas das relac;6es internacionais e, principalmente, sobre 0
paradigma do realismo politico, tradicional ou classico, pode-se revelar
agora 0 plano de trabalho seguido ao longo do artigo. A analise do
paradigma do realismo politico foi iniciada atraves da verificac;ao das
principais contribuic;6es de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes - res-
pectivamente nos seculos XVI e XVII - para a formulac;:ao do modelo
teorico ora sob estudo. D~_Q~rade Ni.colauMaquiQ.~LretirariLfD::S~eds>is~~~~~~=-er1sit1amentQ~:Q.)a demonstrac;:aQ c:laautonomia da esfera da
politica ou do discursopoliti<:;o; e b) a afirmac;:aode que, no exercicio do
poder, os fins justificam os meios. Por outro lado, das li~6esde Thomas
li~~§~~?~~_:~?_l1=se duas contribuiS:<3~sfundament~i~: ~)-~~~~c~ito de
estado de natureza; e b) que a constituic;ao do ~S)n2P_~lig~9yjQl~D<:;ig.-
li!1ida-de-aopo(fer - ["0 elemento constituti;;- da sociedade politica.
.----.,--_ .._._-_ .•...,_ .... _. -- --- --~- -~ .. _-
d) defendem uma concepc;a() gu§ distingue a politica interng. dapolitica
externa, ou ~~~, ~ep~;~~ estas ~s da atividade politica,
tornando-as indepenc!eDt~_~!Jmi:Lernrelac;ao aoutra. Esta distin<;:~_c:
os permite d;sc~rtar que os principios morais (incluidos os princi-
pios democraticos) que norteiam a politica interna (baixa political E()=
dem ser aplicados as relac;6es internacionais, nas quais prevalece -
segundo eles - as quest6es de poder e de seguranc;a (alta political;
e) assumem uma concepc;:ao que configura .Q.!?tst~maintmng.c:iQ!J9.L<;;.Qmo
uma estrutura al1arguica~.£gl}flit!ya, qu seja,que, nao existindo um
~od;;~~1:;~l~om 0 ~~nopolio da violencia29 , ha, na verdade, um
estado de natureza - um estado de violencia e de ausencia de regras
e principios eticos e juridicos universalmente aceitos, o~~_QQriga
cada Estado a prover os seus propriosrecursos para sobreviver, re-
c-()rre~d()~-se-for 0 caso, inclusive ao uso da forc;a ou da violencia.
Alem disso, nao existindo um poder central "nao ~xiste qualquer
autoridade em condic;6es de determinar ao Estado como agir; nao
existe nenhum ator com autoridade legitima para dizer a um Estado
o que deve fazer"30, pois todos sao soberanos e nenhum "tem 0
direito de mandar e ninguem tem 0 dever de obedecer"31 . Dessa
combinac;ao, nasce 0 conflito necessario entre os estados e torna
Foi analisado, a seguir, 0 momento da formac;ao - a partir da
Paz de Westfalia - da sociedade internacional moderna, 0 predominio
das ideias idealistas no entre-guerras mundiais e a principal obra de
Edward H. Carr, denominada Vinte Anos de Crise: 1919-193933 . Da
analise desta obra percebe-se que ela, por um lade, elabora uma con-
tundente critica as ideias idealistas e que, por outro, foi fundamental
para 0 process'o de hegemonizac;ao do paradigma realista e para a
construc;ao de um sistema mundial, no pos-segunda guerra, baseado
no equilibrio de poder.
Analisou-se, na sequencia, as ideias de Hans Morgenthau - pre-
sentes na obra Polftica entre as Nar;;6es: a Luta pelo Poder e pela
Paz.34 Este autor e 0 maior representante do paradigma do realismo
politico nas rela<;:oesintemacionais35 e da analise de sua obra foi pos-
sivel extrair uma visao atualizada dos ensinamentos do paradigma do
realismo politico e verificar os verdadeiros motivos que tomaram 0 au-
tor conhecido como 0 "novo Maquiavel". Finalmente, fez-se urn con-
junto de considera<;:oes sobre a atualidade - neo-realismo - e os limites
do realismo politico como urn dos grandes paradigmas das rela<;:oes
intemacionais.
tes pelos humanistas e nao mais atraves da transmissao crista.
Mas, no sentido amplo da palavra, 0 Renascimento e muito mais:
e 0 fato considenivel da majestosa construc;:ao medieval, fundada
sobre a dupla autoridade do Papa, no ambito espiritual, e do Im-
perador no temporal, desabar definitivamente.40
au seja, 0 Renascimento e urn momento historico que provoca I
uma ruptura entre 0 mundo antigo e medieval, por urn lado, e 0 mundo
modemo, por outro - 0 mundo este do predominio da especificidade
do discurso politico, da temporalidade da ana.lise historica e da afirma-
<;:aodo poder terre no e dos estados mona.rquicos unificados.
Nicolau MaQuiave! e a Especificidade
do Discurso Politico
se inicia no seculo xv, florescendo no primeiro quarto do seculo
XVI, e visa livrar-se das disciplinas inteleetuais da Idade Media,
para voltar a Antigliidade Classica, estudada diretamente nas fon-
Por isso, pode-se dizer que - com 0 Renascimento - surgiu uma
nova etapa da caminhada da humanidade e que por mais forte que
sejam algumas linhas de continuidade existentes entre os mundos anti-
go e medieval eo mundo modemo, 0 Renascimento representa, em
termos politicos, 0 momento de declinio das teorias da sociabilidade
natural, dos ensinamentos da revela<;:aoe da teologia e 0 inicio do pro-
ce?so de supera<;:ao da fragmenta<;:ao do poder - policentrismo - e a
conseqliente afirma<;:ao do poder central soberano, que aos poucos
adquire 0 monopolio institucional da violencia e a exclusividade do po-
der de legislar, "sem compartilhar esse poder com ninguem, sobre as
questoes tanto exteriores quanto intemas de uma comLinidade; ou seja,
de poder realizar a laiciza<;:aoda plenitudo potestatis. "41
Isto significa, em outras palavras, que, com 0 Renascim~nto,
abandona-se a concep<;:ao de que a condi<;:a.opolitic a do ser humano e
uma propriedade natural ou que e uma ordem imposta por Deus aos
mortais, passando 0 homem a percebe-la como uma condi<;:aoinevita-
velmente constitutiva da existencia coletiva. Por isso Maquiavel em, ,
momento algum de sua obra, por exemplo, aborda a questao da ori-
gem do ~stad~ do poder, observando-o, por meio de sua experien-
cia, c_omoumar~Cllida<:h~p()§ta, urn fato,llmfg,IQPolitico real, que,
MaQuiavel: um Personagem Hist6rico Complexo
a autor de 0 Prfncipe36 , d'A Arte da Guerra37 e dos Comen-
tarios Sobre a Primeira Decada de Tito Lfvio38, Nicolau Maquiavel,
e, mais do que imediatamente poderia imaginar-se, urn personagem
historico complexo. Isso porque
Maquiavel - nome proprio universalmente conhecido, que devia
fornecer a lingua um substantivo, 'maquiavelismo', e um adjetivo,
'maquiavelico' - evoca uma epoca, 0 Renascimento; uma nac;:ao,
a Italia; uma cidade, Florenc;:a; e, enfim, 0 proprio homem, 0
bom funcionario florentino que, na maior ingenuidade, na total
ignor@mciado estranho futuro, trazia 0 nome de Maquiavel, desti-
nado a mais ruidosa e equivoca reputac;:ao.39
a Renascimento - invocado por Maquiavel- e, no sentido estri-
to da palavra, urn movimento inteleetual que
e tudo menOS9.i')Li.uO.....QU.Jl?'it':lEa142.Assim, el~c<:J!1_~!r§i_.£~_~eu:
e~~~~~;~t~~--;'r meio da observa<;:ao dos homen~gue fundaram os
"n()vC;~pri~ip~-d~~~~~do estudo profundo de seus metodos. Por isso,
para 0 autor de 0 Prfncipe - como um dos melhores representantes
do Renascimento -, pensar que 0 poder
"desses novos principados provinha de Deus nao erasorngDle
abs~~do como ate blasfemo. Como um politico realista que era,
Maquiavel tinha de abandonar definitivamente toda a base_dosis=
tema politico medieval. A pretensa orig~m divina do direito_~~s __
reis parecia-lhe inteiramente fantastica. E umprodutoda-imaQ.i::
na<;:ao e nao um pensamento politico"43.
de Maquiavel sao obras militantes, que pretendem intervir na realidade
e prescrever formas de a<;:aopara 0 principe. Neste sentido, 0 ultimo
capitulo de sua obra classica - 0 Prfncipe - e absolutamente claro,
pois exorta 0 novo principe a livrar a Italia das maos dos barbaros e
espera que ele nao perea esta ocasiao a fim de fazer com que a Italia,
depois de tanto tempo, encontre um redentor> e seja finalmente unificada.
Por outro lado, 0 pais e a cidade - invocados por Maquiavel -
sac a bela Italia - das pequenas republicas e efemeros principados,
depositaria do legado romano e das grandes virtudes dvicas - e a in-
comparavel Floren<;:a- na primavera tao suave, de atmosfera seca e
leve, propicia as ideias claws e aos juizos lucidos44 . Italia e Floren<;:ado
ber<;:odo Renascimento, do florescimento das artes e do desenvolvi-
mento do comercio, mas tambem - paradoxalmente - de guerras in-
ternas violentas, de obscuros jogos de poder, crimes terriveis, de
condottieri, muitas vezes mercenarios, e de invasoes estrangeiras.
Portanto, uma Italia e uma Floren<;:a paradoxalmente desenvolvidas
economica e artisticamente, mas arcaicas politicamente.
E justamente esse cenario - ideias renascentistas, desenvolvi-
mento economico e patria politicamente fragmentada - que constitui 0
pane de fundo em que VaG ser desenvolvidas as obras de Nicolau
Maquiavel. Por isso, elas sao, ao mesmo tempo, 0 resultado deste
processo e tambem um de seus elementos constitutivos. Sao 0 resulta-
do deste processo a medida que Maquiavel e um dos melhores repre-
sentantes das ideias renascentistas - da politica mundana e da politica
enquanto arte - e tambem um destes elementos, uma vez que os livros
Alem de invocar uma epoca, um pais e uma cidade, Maquiavel
designa tambem, como nao poderia deixar de ser, um ser humane, um
habil funcionario publico e um profundo conhecedor da hist6ria e da
natureza humana. Alem disso, pessoalmente
Maquiavel era homem de costumes simples, de habitos plebeus e
anticonvencionais. Gostava de boa conversa e sentava-se com
desembara<;:o com qualquer tipo de gente: desde 0 povo da taverna
ate papas e potentados, 0 que sem duvida 0 tornou bom observa-
dor da natureza humana e das rela<;:6esde poder.46
Sua familia, cuja origem remonta ao seculo XII, era - como nos
diz Livio Xavier - uma tradicional familia
da regiao da Toscana e purtencia ao partido guelfo ou pontifical.
Os membros de sua familia haviam abandonado Floren<;:aem 1260,
depois da queda de Monteperti; mas voltaram mais tarde e parti-
ciparam largamente dos cargos politicos, num periodo de mais de
tres seculos.47
o pai de Nicolau, Bernardo Maquiavel, era advogado estudioso
das humanidades e Tesoureiro da Marca de Ancona. Sua mae,
Bartolonesa Nelli, tambem de origem de familia antiga, ligava-se as
mais ilustres familias de Floren<;:a. Mas a fortuna dos dois nao
correspondia a antigliidade de sua tradi<;:elO.Portanto, Maquiavel era
um homem de poucas posses.
Nascido em 3 de maio de 1469, casou-se, em 1502, com Marietta
Corsini, com quem teve seis filhos, quatro homens e duas mulheres. A
sua juventude nao deixou trac;o digno de memoria. Neste sentido,
Nesse periodo de sua vida, ocupou-se Maquiavel, alem dos deve-
res do cargo, de I:?studoshistoricos, de poesias e da organizac;ao politi-
ca e militar da republica florentina. Assim, em 1505, concebia 0 proje-
to de milicia nacional para substituir as tropas mercenarias. Aprovado
pelo governo, 0 projeto foi executado e as instruc;oes para institui-Ia
foram por ele mesmo redigidas. No entanto, em 1512, no primeiro
confronto efetivo com tropas espanholas, a nao-tao-corajosa milicia
florentina bateu em retirada em lastimavel fuga, sendo um grande de-
sapontamento para 0 autor do projeto.
Este incidente, aliado a outros tantos, provocou a queda de
Soderini e a reintegrac;ao dos Medici ao governo de Florenc;a, em 8 de
novembro de 1512. Por isto, Maquiavel foi privado de seu cargo de
secretario da senhoria. A situac;ao se agravou no ana seguinte (1513),
quando Maquiavel foi presQ e torturado, acusado de participar de uma
conspirac;ao para eliminar 0 Cardeal Giovanni de Medici. Libertado,
provavelmente por intervenc;ao de Juliano de Medici, e expulso da cida-
de. No entanto, e beneficiado poucos dias depois pela anistia com que
Leao X celebrou a inaugurac;ao de seu pontificado, permanecendo,
porem, por mais alguns an os exilado nos arredores de Florenc;a: ao
todo foram mais de dez anos de exilio.
sabe-se somente que em 1494 foi copista de Marcelo Virgilio
Adriani, professor de literatura grega e latina e Secretario da Re-
publica de Floren<;:a.Mais tarde, tinha ele vinte e nove anos com-
pletos, Maquiavel foi nome ado Chanceler da Segunda Chancela-
ria e, enfim, Secretario dos Dez Magistrados da Liberdade e da
Paz, oficio que constituia 0 Governo da Republica. Ocupou este
posta durante catorze anos e cinco meses, e nesse espa<;:o de
tempo the foram confiadas vinte e tres lega<;:6es no exterior.48
Essas missoes, no entanto, em sua maior parte, tinham objeti-
vos - ao contrario do que se poderia imaginar pela qualidades do escri-
tor florentino - apenas secundarios. :E que ele estava, constantemente,
envolvido num grande numero de neg6cios publicos, mas sempre
fora da dire<;:ao suprema. Por isso, ele nunca chegou a ser um
grande diplomata, mas sim foi mais um simples funcionario de
categoria. Por isso, a sua influencia era muito restrita e, nas lega-
<;:6es,nao era senao modesto encarregado de neg6cios da repu-
blica e, nesta qualidade, 56 tinha que executar as ordens do Go-
verno dos Dez Magistrados49
Das. varias missoes de Maquiavel, a mais importante foi, sem
duvida, a legac;ao junto a Cesar Borgia (1502). No entanto, aceitou ele,
inicialmente, de mau grado 0 encargo, pois tal tarefa 0 obrigava a viajar
e a mudar a sua modesta vida e a tratar com 0 Duque em nome do
governo de Florenc;a. A sua ac;ao, no desempenho da missao, nao
mudou em nada 0 curso dos acontecimentos politicos, mas 0 encontro
com 0 Duque Valentino - apelido de Cesar Borgia - foi importante
para 0 desenvolvimento de seu pensamento e a legac;ao a Romanha
decidiu 0 seu destino de escritor politico. :E que Maquiavel viu no Duque
o principe com todas as qualidade de um grande lider e de um com-
batente suficientemente forte para unificar a sua amada Italia, 0 que
historicamente nao se confirmou.
Este 10ngo periodo de repouso forc;ado - apesar da tristeza que
causou ao homem destituido das func;oes publicas importantes - aca-
bou favorecendo a sua atividade literaria, que, na maior parte, data
deste periodo de sua vida. Em plena forc;a intelectual dos seus 43 anos,
Maquiavel escreve neste periodo: 0 Prfncipe, Comentarios sobre a
Primeira Decada de Tito Uvia, A Arte da Guerra, A vida de
Castruccio Castracani e Mandragora. Alem dessas obras Maquiavel e
autor de varias comedias e de varios relatorios sobre as suas atividades
como secretario dos Dez Magistrados - chamados de escritos menores
ou breves 50 •
Em 1520, voltando as gra<;;asdos Medici, e contratado - de for-
ma remunerada - pelo
Cardeal Giulio de Medici para escrever a hist6ria de Floren<;a e, a
seguir, e encarregado de inspecionar as fortifica<;oes de Floren<;a
e designado para negociar com 0 Governador da Romanha,
Francesco Guicciardini. 0 seu ultimo ato oficial foi uma missao
junto ao exercito da Liga contra Carlos V,51
nada ha que desabone a conduta de Maquiavel, podendo ser visto pcs-
soalmente como um homem honesto e justo, um patriota fervoroso,-----_._--.......-'--- ..•.~_.•._- .
um amigo leal, um bom marido e um bom funcionario. E justamcntQ
esta honestidade e credibilidadepessoal que da as obras do autor 1.'\
for<;;aque conhecemos, pois, como nos lembram Gaetano Mosca e
Gaston Bouthoul, este homem, queteve a pretensaoEm tomo de 1526, os Medici sac novamente expulsos de Flo-
ren<;;a e Maquiavel, que lutara para provar sua lealdade aqueles
govemantes, com esta "nova reviravolta politica, se encontrou nova-
mente 'do lado de fora', visto com desconfian<;;a por aqueles que assu-
miram 0 poder."52.
Em 1527, de volta de uma viagem a Ciuitta Vecchia, Maquiavel
adoece e mone a 21 de junho do mesmo ano, aos 58 anos de idade,
"depois de ter confessado os seus pecados ao irmao Mateus, que ficou
ao pe dele ate que cessasse de viver, como diz 0 seu filho Pero em carta
a Francesco Melli. Os despojos de Maquiavel foram sepultados na Igre-
ja de Santa Cruz. "53 Foi 0 fim do ilustre florentino.
de ensinar a seus semelhantes a arte de enganar, de lhes demons- "!
trar as vantagens e a necessidade da mentira, foi, ele mesmo, ,
enquanto escritor, um dos homens mais sinceros que jamais exis-
tiram. A honestidade profissional do escritor, que consiste em
expor aos leitores somente seu pensamento sem se preocupar do
sucesso ou insucesso do livro, nem das vantagens ou dos perigos
que possa trazer ao seu autor, essa virtude Maquiavel a possuia em
grau excepcional, e por esta vez a sinceridade contribuiu para 0
seu sucesso, pois fez com que fosse mais bem apreciado 0 con-
teudo do Principe. 55
Alem disso, lembram OS autores referidos que se Maquiavel fos-
se realmente
um patife e um arrivista, teria, gra<;as a seus dons, feito uma
carreira muito brilhante e nao teria morrido na pobreza. Sobretu-
do teria se abstido de escrever 0 principe, pois os verdadeiros
velhacos de todos os tempos e de todas as partes sabem muito
bem que a primeira regra da sua arte consiste em nao revelar a
outrem os segredos de sua atividade56
Alem de ser um personagem hist6rico complexo, como vimos,
Maquiavel possui tambem uma reputa<;;ao absolutamente ruidosa e
polemica. Possui a fama de ser, ao mesmo tempo, um
"oportunista, carreirista, bajulador, plagiador dos autores classi-
cos, funcionario mesquinho e interesseiro que, para conquistar as
benesses dos senhores, redige uma obra cheia de imprecisoes,
gafes, aforismos e imita<;oes grosseiras adaptadas apressadamen-
te as circunst~mcias" e um "brilhante escritor renascentista, divi-
no patriota e fundador cia ciencia politica moderna"54.
Mas, porque, sendo esta a sua postura, Maquiavel possui uma
reputa<;;ao tao polemica, em especial tao desabonadora? E dificil dizer,
mas algumas causas podem ser apontadas. Entre essas podem-se des-
tacar:Esta contradi<;;ao de sua reputa<;;ao, obviamente, nao e porque
tenha sido um homem de conduta imoral ou inadequada aos padr6es
de sua epoca. Ao contrario, salvo alguns casos amorosos extraconjugais,
a) as polemicas entre protestantes e cat6licos, na segunda metade do
seculo XVI, que se acusavam mutuamente de serem maquiavelicos;
b) a frieza com que Maquiavel descreveu um rosario de miserias e de
engodos da alma humana, e a coragem com que soube par em
evidencia, sem hesitac;:ao e meias medidas, as faltas e os defeitos do
ser humano;
c) a paixao e a convicc;:ao com que Maquiavel exp6e suas ideias e a
espontaneidade com que escreve, despertando no leitor uma grande
repugnancia;
d) a utilizac;:ao- em alguns casos terriveis - de seus ensinamentos como
forma de justificar a ac;:aopolitica de govemantes tiranos. 57
As reflex6es de Maquiavel sao, como ja tivemos a oportunidade
de verificar acima, importantes e de grande profundidade. Alem dos
ensinamentos anteriormente referidos, outros serao abordados no pro-
ximo item. No entanto, outras reflex6es ainda merecem ser destaca-
das, mesmo que pontualmente e de forma que as vezes pode tomar-se
um tanto superficial. Estas reflex6es SaGas seguintes:
• Todos os estados, todos os domini os que tem havido e que ha sobre
os homens, foram e· saG republicas ou principados58 .
f' .:('\:! )"(,,, '" ) !
• As principJis bases que os estados tem, sejam novos, velhos ou mis-
tos, SaGboas leis e boas armas; nao podem existir boas leis onde
nao ha armas boas e onde ha armas convem que existam boas leis59 .
• Como demonstram todos os que escreveram sobre politica, bem como
numerosos exemplos historicos, e necessario que quem estabelece a
forma do estado e promulga as suas leis parta do principio de que
todos os homens SaGmaus, estando dispostos a agir com perversi-
dade sempre que haja ocasia060 .
• Onde 0 desregramento e universal, nao ha leis nem instituic;:6es que
possam reprimir a corrupc;:ao; de fato, os bons costumes so podem
ser conservados com 0 apoio de boas leis e a observac;:ao de boas leis
exige bons costumes61 .
b) Sobre as Formas de Tomar-se Principe
• Os homens podem tomar-se principes de varias formas, sendo que
aqueles que, por suas virtudes62, se tomam principes, conquistam 0
principado com dificuldades, mas se mantem facilmente63 .
• Aqueles homens que, por fortuna, se tomam principes, conquistam
o principado com grande facilidade, mas se mantem com grandes
dificuldades64. Esses principes estao na dependencia exclusiva da von-
tade e da boa fortuna de quem Ihes concedeu 0 Estado isto e de, ,
duas coisas extremamente voluveis e instaveis, e nao sabem ou nao
podem manter 0 principado. Nao sabem porque, se nao SaG ho-
mens de grande engenho e virtude, nao e razoavel que, tendo vivido
sempre em condic;:6es diferentes, saibam comandar; nao podem,
porque nao contam com forc;:asque Ihes sejam amigas e fieis65.
•0 principe que adquiriu 0 principado por fortuna podera, no entanto,
contomar as dificuldades desde que tenha grande capacidade, ainda
que com aborrecimento para 0 arquiteto (principe) e perigo para 0
edificio (Estado)66.
• Quando alguem e causa do poder de outrem, arruina-se, pois aquele
poder vem da astucia ou forc;:ae qualquer dessas e suspeita ao novo
poderos067 .
c) Sobre as Formas de Adquirir os Principados
• Os principados SaGconquistados, normalmente, por meio da virtude
e da fortuna do principe, mas tambem pode ser pela maldade, por
vias celeradas e por favor de seus conterraneos68.
•0 principe nao sera celebrado como um ilustre homem da historia
quando adquirir 0 principado pela maldade, pois nao se pode atribuir
fortuna ou valor aquilo que ele conseguiu sem uma e sem outra69.
•0 principe pode adquirir 0 principado por favor de seus conterraneos
- formando um governo civil - de duas maneiras: ou pelo favor do
povo ou pelo favor dos poderosos. E que todas as cidades encon-
tram-se divididas entre povo e poderosos e isso nasce do fato de que
o povo nao deseja ser governado nem oprimido pelos grandes e
estes desejam governar e oprimir 0 pova7°.
• Ha tres coisas essenciais a guerra: tropas numerosas e valentes, ge-
nerais experimentados e boa sorte 79.
• As for<;:ascom que um principe mantem 0 seu Estado SaGproprias ou
mercenarias, auxiliares ou mistas. As for<;:asmercenarias e as auxilia-
res sao inuteis e perigosas80; os soldados que combatem pela propria
gloria sao bravos e leais81.
• Aquele principe que ascender ao poder com a ajuda dos poderosos
se mantera no poder com mais dificuldades do que aquele que e elei-
to pelo povo71. Os poderosos nao poderao ser satisfeitos sem injuria
para os outros, mas 0 povo pode ser satisfeito, porque 0 objetivo do
povo e mais honesto do que 0 dos poderosos: so quer nao ser opri-
mido72; por isso, 0 principe deve sempre manter-se amigo do pOV073;
• Os principes prudentes repeliram sempre as for<;:asmercenarias e as
auxiliares, para valer-se das suas proprias, prefer indo antes perder
com essas a veneer com 0 auxilio daquelas, considerando falsa a
vitoria conquistada com as for<;:asalheias82.
• Um principe nao deve nunca deixar de preocupar-se com a arte da
guerra e pratica-Ia na paz ainda mais que na guerra83. Um principe
sabio nuncadeve Hear ocioso nos tempos de paz; deve, sim, inteli-
gentemente, ir formando cabedal de que se possa valer nas adversi-
dades, para estar sempre preparado a resistir-Ihes84.
~)Todo Estado bem-ordenado deseja que a arte da guerra seja, em
tempo de paz, empregada apenas como exercici085.
/~Quem na guerra observar com maior vigilancia as inten<;:oesdo inimi-
go, e mais exercitar seu exercito correra menos perigos e tera maiar
probabilidade de vitorias86.
• Nao devemos jamais conduzir os soldados a batalha se antes nao nos
certificarmos de que seu animo e disciplinado e isento de medo. Nao
se deve combater senao quando se ve que esperam a vitoria87. A
conHan<;:agera quase sempre a vitoria88.
• Os homens devem ser mimados ou exterminados, pois se vingam
das ofens as leves, das graves ja nao podem faze-Io. Assim, a injuria
que se faz deve ser tal, que nao se tema a vingan<;:a74.
~)Os homens ofend em ou por medo ou por odi075.
• Raramente os homens sabem ser inteiramente bons ou inteiramente
maus76.
• Os homens sao geralmente ingratos, voluveis, simuladores, covardes
e ambiciosos de dinheir078.
• Os homens, 0 ferro, 0 dinheiro e 0 pao constituem os pontos
nevralgicos da guerra, desses, os mais necessarios SaG os dois pri-
meiros, porque os homens e 0 ferro produzem pao e dinheiro, mas
pao e dinheiro nao fazem os homens e 0 ferro89.
• As pessoas normalmente imaginam que um principe deve possuir
somente boas qualidades, mas a condi<;:ao humana e tal, que nao
consente a posse completa de todas elas, nem ao menos a sua pra-
tica consistente. E necessario que 0 principe seja tao prudente que
saiba evitar os defeitos que the arrebatariam 0 governo e praticar as
qualidades proprias para the assegurar a sua posse90.
nunca96. 0 principe, no entanto, deve evitar 0 odio, pois e facil ser ao
mesmo tempo temido e nao odiado, 0 que sucedera uma vez que se
abstenha de apoderar-se dos bens e das mulheres dos seus cidadaos
e de seus suditos97.
•0 principe pode apoiar-se na virtude ou na fortuna, mas ao apoiar-se
totalmente na fortuna arruina-se segundo as varia<;:oesdaquela93.
•0 principe deve evitar ser considerado desprezivel, 0 que acontecera
quando for visto como voluvel, leviano, efeminado, pusilanime,
irresoluto. Deve procurar, portanto, que suas a<;:oessejam reconheci-
das como dotadas de grandeza, coragem, gravidade e for<;:a98.
•0 principe deve ter duas razoes de receio: uma de ordem interna, por
parte de seus suditos, outra de ordem externa, por parte dos podero-
sos de fora. Defender-se-a desses ultimos com boas armas e com
bons aliados; e se tiver armas tera sempre bons amigos. As coisas
internas, por sua vez, estarao sempre estabilizadas se estabilizadas
estiverem as de fora, salvo se aquelas estiverem perturbadas por uma
conspirac;:a099.
•0 principe deve sempre manter a palavra empenhada? Nao, apenas
quando the convier100.
• Um principe e estimado quando realiza grandes empreendimentos e
quando da de si raros exemploslOl. Alem disso, e estimado quando
sabe ser verdadeiro amigo e verdadeiro inimigo, isto e, quando, sem
qualquer preocupa<;:ao, age abertamente em favor de alguem contra
terceiro102. Finalmente, 0 principe sera estimado tambem se souber
mostrar-se como amante da virtude e homar os que se revelam gran-
de numa arte qualquer103.
• Os governos fracos so tomam delibera<;:oes ambiguas e decidir com
lentidao e sempre prejudiciapo4.
• As republic as vigorosas e os homens de carMer forte - bons princi-
pes - mantem a dignidade e a firmeza interiores em qualquer situa-
<;:a0105.
•'0 principe nao precisa possuir muitas qualidades, basta que aparente
possui-Ias91. E que os homens julgam mais pelos olhos do que pelas
maos, pois todos pod em ver, mas poucos podem sentir. Todos veem
o que tu pareces, mas poucos, 0 que es realmente92.
• Os homens prudentes - bons principes - sabem tirar proveito de
todas as suas ac;:oes,mesmo aquelas a que a necessidade os obriga94.
• 0 principe deve ser mais impetuoso ou circunspeeto? Deve ser mais
impetuoso do que circunspeeto, porque a sorte - fortuna - e mulher
e, para domina-la, e preciso bater-Ihe e contraria-Ia. E reconhecido
que ela se deixa dominar mais por esses do que por aqueles que
precedem friamente. A sorte, como mulher, e sempre amiga dos
jovens, porque sao menos circunspeetos, mais ferozes e com maior
audacia a dominam95.
() Para 0 principe e melhor ser amado ou temido? 0 bom e ser as duas
coisas. No entanto, como isso e dificil, e melhor ser temido, pois
sendo os homens geralmente ingratos, voluveis, simuladores, covar-
des e ambiciosos de dinheiro, somente sabem respeitar 0 que te-
mem: 0 medo do castigo, que e um sentimento que nao se abandon a
• Urn principe que nao pune quem se afasta do born caminho, de
modo que nao possa errar outra vez, e ignorante ou covarde106.
• Aos principes e governos sabios, a vitoria deve bastar; os que exigem
mais, geralmente preparam urn desastre107.
~)Existem duas formas de combater: uma, pelas leis, outra, pela for<;:a.
A primeira e propria do homem; a segunda, dos animais. Ao princi-
pe torna-se necessario, porem, saber empregar convenientemente 0
animal e 0 homem. Uma sem a outra e a origem da instabilidade. 0
principe precisa, pois, ser raposa para conhecer os la<;:ose leao para
aterrorizar os lobos108.
• As injurias devem ser feitas todas de uma vez, a fim de que, tomando-
se-Ihes menos 0 gosto, ofend em menos109; os beneficios devem ser
realizados pouco a pouco, para que sejam melhor saboreadosllO.
• As republicas e os principes verdadeiramente poderosos nao adqui-
rem amizades com dinheiro, mas com suas qualidades e a reputa<;:ao
de sua for<;:a111.
• 0 principe nao tera seguran<;:a enquanto viverem os que foram des-
pojados do poderll2.
• Todos os conspiradores saG homens poderosos, que gozam de fami-
liaridade do principe 113.
• Quando se ve 0 inimigo cometer urn erro muito grande, deve-se crer
que ele esconde alguma armadilha114.
Alem das observa<;:6es ate aqui feitas, e oportuno retomar e
aprofundar uma das principais contribui<;:6esformulada por Maquiavel:
o seu trabalho de constru<;:aodo alicerce da reflexao politica moderna,
isto e, 0 seu trabalho no sentido da emancipas:_~<:)_<iCi.e~§raJ2ol~
considera<;:6eslnorais e do?prec~ito:sn:oligio:SQ.sC:Qrlstrl;liclosao longo
den;~i~'~~'~e~os mil anos. Em outras palavras, e interessante reto-
mar e profundar 0 seu ensinamento de que 0 sistema politico possui
uma especificidade que per mite afirmar que, no eX~~~ici;d;p;d~~, os
fIni;justHicam os meios eque, portanto, "e necessario a urn principe,
para se manter [no poder], que aprenda a ser mau e que se valha ou
deixe de valer-se disso segundo a necessidade"1l5.
Alem disso, lembra Maquiavel que
"quando e necessario deliberar sobre uma situac;:ao da qual depen-
de a salvac;:ao do Estado nao se deve deixar de agir por considera-
c;:oes de justic;:a ou injustic;:a, humanidade e crueldade, gl6ria e ig-
no:ninia. Deve:se seguir ~ caminho qu~ leva a salvac;:ao do Estado 7.
e a manutenc;:ao de sua hberdade, re)eltando-se 0 tudo mais"116 \
Por isso, "embora seja condenavel empregar a fraudena vida
ordinaria, durante a guerra [ou no jogo politico] ela e louvavel e glorio-
sa"117. Temos, assim, a afirma<;:aoda especificidade da esfera politica
em toda a sua extensao, que, ao afastar os juizos eticos ou morais
correntes, e articulada a partir de uma visao absolutamente realista das
rela<;:6esde poder e concretizada por meio da seculariza<;:aoe da racio-
naliza<;:aodos argumentos politicos. Dai, portanto, a preocupa<;:ao do
autor em afirmar que
ha uma diferenc;:a [essencial] entre como se vive e 0 modo por que
se deveria viver, que quem se preocupar com 0 que se deveria
fazer em vez do que se faz, aprende antes a ruina pr6pria, do que
o modo de se preservar; e urn homem que quiser fazer profissao
de bondade, e naturalque se arruine entre tantos que sao maus,118
Com isso, temos, entao, a separa<;:ao radical, tao importante
para Maquiavel e para todo 0 pensamento politico moderno, entre
politica e moral corrente e a prioriza<;:aoda autonomia da politica como
a arte de governar, como a arte do possivel, como a arte de conquista
e de manuten<;:ao do poder. Por isso,
trata-se, indubitavelmente, como se percebe da 'proeminencia da
politica', em substituic;:ao a tradicional 'proeminencia da moral'.
Nada de mais novo, de mais ins6lito, no crepusculo da Idade
Media, do que essa vontade de isolar a politic a de tudo 0 que ela
nao e, de tudo 0 que nao constitui seu objeto pr6prio, isto e, a
fundac;:ao, a conservac;:ao e a ampliac;:ao do Estado, do que essa
recusa em julga-la em func;:aodos valores morais estranhos a esse
objeto, do que esse modo de examina-Ia com toda a liberdade de
espirito e de tom, com toda a sua lucidez, com 0 desapego do
sabio e a frieza do tecnico1l9.
Com essa constatayao fica claro que, com Maquiavel e suas for-
mulayoes, pode-se perceber objetivamente que 0mundo esta mudado,
como 0 diriam com tanta enfase as seguintes palavras de A. Koyre:
com Nicolau Maquiavel, estamos de fato num mundo completa-
mente diverso. A Idade Media est€! morta; mais do que isso, e
como se ela nunca tivesse existido. Todos seus problemas: Deus,
salvac;:ao, ligac;:oes entre 0 la em cima e 0 ca embaixo, justic;:a,
fundamento divino do poder, nada disso tudo existe para Maquiavel.
Ha uma unica realidade, a do Estado, um unico fato, 0 do poder.
E um problema: como se afirma e se conserva 0 poder do Estado.
Ll...] 0 imoralismo de Maquiavel e simplesmente 16gica120
A l6gica de afirmayao da esfera politica e do Estado moderno
nascente passa a ser, a partir de sse momenta, 0 n6cleo politico funda-
mental do viver humano e a unidade politica estruturadora das relayoes
internacionais. Portanto, com Maquiavel, 0 Estado moderno adguire a
l~ltirmaaae e se afirma como grande invenyao humana. Alem disso,
COrll as liyoes de Maquiavel construiu-se uma nova moral:
a moral que e a do cidadao, do homem que constr6i 0 Estado;
,uma moral imanente, mundana, que vive do relacionamento en-
tre homens e do pressuposto de que em politica os fins justificam
os meios. Nao e, portanto, em sintese, mais uma moral da alma
individual, que deveria apresentar-se ao julgamento divino 'for-
mosa' e limpa12\
mas sim uma moral socialmente objetiva e centrada na especifi-
cidade do mundo politico. Essa e, portanto, a grande liyao de
Maquiavel.
Thomas Hobbes
e 0 Estado de Natureza
Thomas Hobbes foi, a exemplo de Nicolau Maquiavel, um per-
sonagem hist6rico complexo e uma figura human a muito singular. A
complexidade do personagem hist6rico alicerya-se no fato de que ele
foi, ao mesmo tempo, 0 mais surpreendente te6rico do Estado moder-
.~-_.,,-_."_.~,--~..-..-
no nascente - um contratualista absolutista122 -, um simbolo do abso-
,-----,.- ...•
lutismo politico - "a soberania e una, indivisivel e ilimitada"123 -, 0
inventor de um novo modelo de sociedade - 0 modelo individualista124
- e um autor polemico e fascinante. Foi um autor polemico e fascinan-
te po is elaborou
uma teoria do Estado que deveria agradar aos conservadores, va-
lendo-se de argumentos caros aos liberais: foi combatido com
igual dureza por uns e por outros. Pelos primeiros, por causa do
modo como utilizava desenvoltamente os textos sagrados; pelos
segundos, em func;:ao das conclusoes contrarias aos principios do
governo constitucional. Foi defensor de um governo autoritario,
tal como os tradicionalistas, ao mesmo tempo em que sustentava
a teoria do contrato, a semelhanc;:a dos inovadores: foi rechac;:ado
por uns por ser irreligioso e por outros, por ser absolutista. Como
racionalista lucido e conseqilente ate a temeridade, combateu ao
lado dos absolutistas, mas estes recusaram a alianc;:a, com medo
de se comprometerem; enquanto isso, os constitucionalistas tive-
ram de recorrer a tradic;:ao da monarquia inglesa para refuta-lo. 0
que os contemporaneos nao puderam compreender foi que 0
Leviata era 0 grande Estado moderno, que nascia das cinzas da
sociedade medieval. Tomaram seu autor por um ceptico, um cini-
co, quando ele na verdade era, antes de mais nada, um observa-
dor despreconceituoso, que assistia - humanamente horrorizado,
mas filosoficamente impassivel - ao nascimento de um grande
evento, do qual buscou compreender as causas e a finalidade.1?h
E 0 fez convencido da exatidao geometrica de suas constru<;oes
tearicas e com uma perspectiva realista tipica daqueles pensadores que
nao estao preocupados em trocar a realidade mais cruel- por pior que
ela se apresente - por uma que seja mais desejavel ou que possa ser
explicitada de forma ideal. Por isso, 0 autor ora sob estudo nao escon-
deu 0 fato de que 0 homem nao possui uma sociabilidade naturEL=-9Q
contrario, a vida sem a sociedade politica e, em sua opiniao, "solitaria,
pobre, sardida, embrutecida e curta"126 - e que a luta pela estrutura<;ao
do Estado e pela unidade do poder constituem-se de long as e sangren-
tas batalhas e tem no recurso a.violencia e no uso da for<;a instrumen-
tos legitimos do exercicio do poder. Alem disso, nao deixou de explicitar
que e necessario - para 0 estabelecimento da sociedade politica - que
cada individuo renuncie ao direito natural que possui a todas as coisas,
reprima as suas paixoes mais profundas e transfira, de forma definiti-
va, os seus direitos a um terceiro chamado de soberano. Finalmente,
nao deixa de apontar Hobbes que a convivencia human a - p~!_a~se.:
segura - pressupoe a aceita<;ao do principio da obediencia ao soberano
e a.s leis por ele estabelecidas127 .
Esses ensinamentos revelam a nosso ver, a importancia das obras
de Thomas Hobbes para a compreensao do fen6meno politico mo-
demo e a complexidade de suas constru<;oes tearicas, que criticos im-
pacientes confundem hoje com incoerencia e a atribuem a uma incons-
ciente falta de clareza. Essa suposta falta de clareza, obviamente, nao e
verdadeira, sendo possivel desvendar - desde que tenhamos paciencia
e persistencia -, por meio de suas obras, os exatos contomos, 0 funda-
mento tea rico e as principais prerrogativas politicas do Estado moder-
no em forma<;ao. Isso tudo apesar do autor nunca ter sido um politico
pratico, um funcionario do Estado ou mesmo alguem que procurasse
t
os eventuais beneficios de ser amigo do rei, como aconteceu, circuns-
tancialmente, com Nicolau Maquiavel. Ao contrario, 0 autor do
LeviatCi128 - como nos diz Noberto Bobbio - jamais
se ocupou ativamente de politica, nem como homem de partido
nem como conselheiro de principes. Portanto, foi um filosofo
politico no mais pleno e tambem no mais estrito sentido da pala-
vra. Em compara<;:a.o com Maquiavel, ele foi apenas - como es-
creveu um historiador Ingles - um erudito129.
Ou seja, alguem que refletiu profunda mente sobre 0 politico, so-
bre 0 fen6meno do poder e sobre 0 Estado, mas que nunca passou da
posi<;ao de um espectador engajado130, de um homem que, apesar de
participar dos debates politicos, preferiu permanecer, de forma surpre-
endente e paradoxal, distante dos acontecimentos politicos concretos.
Esse ~~~C\cl0_)«(J,ldistanciamento dos fatos politicos concretosnao
foi, no entanto, a unica e exclusiva singularidade desse destacado teari-
codoEstadomodemo absOll.1tista.A ele deve ser acrescentado 0 fato
de que Thomas Hobbes foi um homem demasiadamente medroso -
"0 medo e eu somos irmaos gemeos", costumava afirmar 0 autor - e
anormalmente sensivel ao temor que provocam, muitas vezes, os acon-
tecimentos politicos violentos e as mudan<;as abruptas no exercicio do
poder. Por isso, pode-se dizer que a sua obra e fruto desse curio so
"consarcio entre um cora<;ao sequioso de seguran<;a, para quem a paz
e um bem supremo, e um espiritoindomavel, de surpreendente enver-
gadura e de intransigente originalidade"131.
Esse medo exagerado - segundo alguns autores132 - pode estar
relacionado com 0 seu nascimento, que aconteceu em 1588, em
Westport, perto da cidade de Melmesbury, no momento em que a fro-
ta espanhola, a Invencivel Armada, como se intitulava, punha em so-
bressalto as costas da Inglaterra contra Elizabeth, a rainha heretica, c
assustava a sua mae de forma tao forte que fizera com que 0 cmtao
menino viesse ao mundo de forma prematura. Assim, desde 0 seu
nascimento ate 0 final de sua vida, 0 medo jamais deixou de acompa-
nha-lo, uma vez que 0 destino quis que ele "vivesse em uma epoca da
historia inglesa pouco propicia a um amante da tranqUilidade e da paz,
a quem os fantasmas assustavam e, com maior razao, os homens
reais, bastante selvagens, desse tempo agitado."133
De familia pobre, filho de um clerigo semiletrado, muito cedo
deixou de contar com a assistencia paterna. Seus estudos passaram a
ser custeados por urn tio, luveiro relativamente prospera em
Malmesbury. Aos sete anos, Hobbes foi recebido como pupilo por
Robert Latiner, preceptor versado na cultura classica e que the propor-
cionou conhecimentos de latim e grego. Assim,
pode-se dizer que esta forma<;:ao inicial constituiu 0 fundo sobre 0
qual se destacariam mais tarde seus pendores literarios e sua fami-
liaridade com os classicos. Em 1603 ingressou na Magdalen Hall,
em Oxford. Tinha entao catorze anos. De um ponto de vista
convencional, sua passagem pela universidade nao revelou um
estudante que pudesse ser considerado dos mais brilhantes. a
curriculo escolar, marc ado pela Escolastica, era estreito e rigido,
exercendo pouca atra<;:ao sobre Hobbes. Sem muito entusiasmo,
estudou vagarosamente a L6gica e a Fisica, chegou a gostar de
Astronomia e de Geografia - por 'aliviar a imagina<;:ao' - e dei-
xou-se impressionar pela Ret6rica.134
Apesar de concluir 0 bacharelado sem muito brilhantismo, em
1608, Hobbes foi indicado pela dire<;ao de seu College para preceptor
do filho de Willian Cavendish, que, depois, seria 0 primeiro Conde de
Devonshire. A indica<;:ao foi decisiva para a sua trajetoria historica,
marcando 0 inicio de uma convivencia e amizade conservadas durante
toda a sua vida. Alem disso, esse emprego permitiu-lhe evitar a humi-
lhante situa<;ao de pobreza em que geralmente viviam os preceptores
do seculo XVII. Essa presen<;:a de Hobbes
na casa dos Cavendish foi extremamente importante para seu
desenvolvimento inteleetual. Encontrou tempo e tranqUilidade para
dedicar-se it leitura e it reflexao, e uma grande biblioteca permitia-
lhe 0 acesso a centenas de obras literarias, garantindo a continui-
dade e 0 aprofundamento de seu contato com os classicos.I:\"
A primeira viagem a Fran<;:ae a Italia data de 1610, quando acom-
panhou 0 futuro Conde de Devonshire ao continente. Esse primeiro
cantato com essas culturas agu<;:aseu interesse intelectual e 0 obriga a
dedicar-se ao aprendizado de idiomas estrangeiros. De volta a Inglater-
ra, prossegue em sua forma<;ao, lendo sobretudo os poetas gregos e
latinos e os historiadores, com especial dedica<;:aoa Tucidides, cuja obra,
Guerra do Peloponeso, ele traduziria para 0 ingles anos depois. A
tradu<;:aodessa obra foi importante para a sua forma<;:ao, pois apesar
de ser uma obra de carMer literario,
apresenta antecipa<;:6es do Leviatd, sua principal obra. Essas an-
tecipa<;:6es aparecem tanto nas insinua<;:6es que Hobbes faz no
prefacio, quanto em vigorosas frases da tradu<;:ao. Desde esta epoca
ja manifestava sua aversao it democracia e por isso recomendava
a leitura de Tucidides: 'um rei e mais capaz que uma republica' .136
Em 1631, passa a ocupar-se do primogenito da casa dos
Devonshire. Dessa epoca, data a sua pesquisa "sobre a natureza hu-
mana, assim como sobre 0 modo de aborda-la por int~rmedio do me-
todo matematico, 0 que the dara enfim urn conhecimento certo e segu-
ro do direito, da justi<;ae da moral, enfim elevadas a dignidade da cien-
cia."137Alguns anos depois, volta a Paris e encontra 0 padre Marsenne,
de quem se tornara amigo e de quem sofrera grande influencia. Nesse
circulo, conhecera Gessendi, Descartes e tantos outros. Indo a Italia,
entra igualmente em contato com Galileu, a quem comunica 0 seu
projeto de tratar a moral e 0 direito de modo geometrico.
Concluida essa viagem, retoma Hobbes novamente a Inglaterra.
No entanto, apos alguns anos de estada na Inglaterra, ele come<;:a,
novamente, a tomar-se apreensivo diante das profundas transforma-
<;:oesdo periodo e das violentas persegui<;:oes politicas desencadeadas a
partir dessas mudan<;:as. Temendo - talvez de forma exagerada - par
sua vida138 , decide refugiar-se na Fran<;:a,passando a viver - durante
um longo exilio - em Paris: de 1640 a 1651. Esse exilio em Paris foi
fundamental para a desenvolvimento de sua obra, pais ele pass au a ter
mais tempo livre para amadurecer, aprofundar e consolidar as suas
reflexoes a respeito da natureza humana e sabre a origem, a funda-
menta e a estrutura da sociedade politica modema nascente. Nesse
sentido, publica, ja em 1642, uma de suas obras fundamentais, De
Cive: Elementos Filosoficos a Respeito do CidadCio139, e prepara
lentamente a Leviata au a Materia, a Forma e Fader de um Estado
Ec1esiastico e Civil140 , que sera a sua obra mais conhecida e na qual
estao formulados, de maneira mais objetiva, as seus principais
ensinamentos. Par isso, nos diz Jean~Jacques Chevallier:
o Leviata e a sintese do hobbismo. E fruto da curiosa combina-
<;:aode um potente e rigoroso espirito, fanaticamente mecanicista,
com as obsessoes de um cora<;:ao cheio de temor, avido de paz
para si proprio como para 0 seu pais. 5e ali se encontram inespe-
radas infiltra<;:oes (de origem medieval) de escolastica, teologia e
ate de demonologia, nao chegam a quebrar a impressionante li-
nha intelectual de sse 'livro absolutamente notavel, uma das Bi-
blias da Inglaterra ... original e criador ... tesouro da sabedoria moral
e politica' (Graham), 'da maior, talvez da unica obra prima da
filosofia politica em ingles' (Oakeshott).
Apesar da importancia historica desta obra, a publica<;:ao do
Leviata, em 1651, trouxe ao autor mais dissabores do que gloria, ten-
do deixado a seu autor em uma situa<;:aomuito dificil, pais, alem de
incompatibiliza-lo com a clero catolico frances, provocou nos demais
exilados ingleses na Fran<;:aum certo desconforto, uma vez que a obra
rompia coma heran<;:aaristotelica da sociabilidade natural do homem e
"------
com a tradi<;:aomedieval da concessao divina do poder do rei e estabe-
lecia um novo e surpreendente fundamento do poder: a consenso dos
individuos, formalizado atraves de um contrato. Par isso, e acusado de
ser ateu, traidor das ideias inglesas e de inimigo da religiao e da monar-
quia, sendo, em consequencia, banido da corte inglesa exilada em Pa-
ris e abandonado pel as membros da realeza. Assim, banido e abando-
nado, cabe somente a ele, como a sua obra formula, ocupar-se de sua
vida e, par isso, decide retomar a Inglaterra. De volta a Inglaterra, con-
segue Hobbes, apesar das grandes mudan<;:as ocorridas, se adaptar as
novas condi<;:oesde vida de seu pais. Alem disso, continua a avan<;:ar
em suas atividades intelectuais141, tendo voltado, em seguida, a Casa
dos Cavendish e a leitura dos classicos, a que a afastou - nao sem
participar ainda de alguma eventual e esporadica polemica - definitiva-
mente dos problemas politicos imediatos e permitiu-lhe iniciar a tradu-
<;:aode parte da Ilfada e da Odisseia. Assim, "depois de uma velhice
tranquila, durante a qual escreveu uma autobiografia em versos latinos,
Hobbes faleceu em Hardwick, 1679, dez anos antes do triunfo das
ideias liberais das quais fora ferrenho adversario" 142 .
Tanto quanta para Maquiavel a luta pel a unifica<;:aoda Italia foi a
referenciafundamental de suas elabora<;:oes - a seu segredo mais pro-
funda -, e evitar a dissolu<;:aoau fragmenta<;:ao da Inglaterra, um tanto
dilacerada e dividida pelas diversas lutas historicas entl"<?j~c<;:oes,a grande
objetivo das formula<;:oes teoricas de Thomas Hobbes. Par isso, a sua
afirma<;:aode que a luta suprema cia e pela unidade do poder e uma
condi<;:aoindispensavel para a vida em sociedade, que estava - no caso
da Inglaterra - constantemente "amea<;:ada, por um lado, pelas discor-
dias religiosas e pelo contraste entre dois poderes [poder da Igreja e do
Estado] e, por outro, pelo dissenso entre a Coroa e Parlamento e pela
disputa da divisao dos poderes."143 Alem disso, Thomas Hobbes sabe
que os vinculos que unem a na<;:aoinglesa ainda saG muito frageis e
que, se eles forem rompidos, nao poderia haver mais seguran<;:a sufi-
ciente para todos aqueles que, mediante seu proprio labor e gra<;:asaos
frutos da terra, buscam alimentar-se e viver satisfeitos no interior do
Estado.
Com isso fica claro que Thomas Hobbes faz, de forma imediata
e explicita, uma op<;:aoentre as duas antlteses fundamentais da historia
do pensamento politico - referimo-nos a dicotomia anarquia-unidade,
deixando de lado a antitese liberdade-opressao - e escolhe a alternati-
va da unidade do poder como a questao fundamental. Por isso, ~()ideal
que ele defende nao e a liberdade contra a opressao, mas a unidade
co~tra-aa.narquia"144 eo mal que mais 0 assusta
nao e a opressao que deriva do excesso de poder, mas a insegu-
ranc;:a que resulta, ao contrario, da escassez de poder. Inseguran-
ca antes de mais nada, da vida, que e 0 primum bonum, depois
ci;s bensmateriais, e, finalmente, tambem daquela pouca liberda-
de que um homem vivendo em sociedade e consentido desfru-
tar. 145
E justamente esse apego a unidade do Estado que justifica 0 seu
temor da generaliza<;:ao dos conflitos, mesmo que de ideias, e demons-
tra a sua preocupa<;:ao com as implica<;:6espoliticas mais profundas da
existencia de fac<;:6ese de corpos politicos intermediarios no interior
do Estado. Por isso,
Hobbes nao permite que, entre 0 individuo e 0 poder absoluto do
Estado, venham a interferir, de modo significativo, nem a familia,
nem a Igreja, nem um outro sistema de autoridade; ou, em outras
palavras, para Hobbes, sac apenas dois os elementos essenciais
_~ociedade civil: 0 individuo e 0 Estado.146
Essa redu<;:aoda complexidade das rela<;:6espoliticas cleve-se ao
fato de que para ele a discordia e 0 germe da ruina do Estado e que nao
existe outra op<;:aoa anarquia derivada dos conflitos de uma sociedaclc
alem da autoridade do soberano. Alem disso, acreditava Hobbes que a
divisao tipica da organiza<;:ao politica medieval - policentrismo - e da
guerra civil de alguns Estados modernos em forma<;:ao somente podia
ser combatida por um poder monolitico e indivisivel: 0 poder do Estado
moderno nascente, um poder soberano, centralizado e absoluto.
Ess~Iuta pelo unidade do poder revela, outrossim, 0 drama mais
profundo da luta pel a constitui<;:aodo Estado moderno, que e, na verda-
de, uma longa e sangrenta luta pela unidade do poder. Essa unidade e
o resultado de um
processo simultEmeo de libertac;:ao e de unificac;:ao: de libertac;:ao
em face de uma autoridade tendencialmente universal, que, por
ser de ordem espiritual, proclamava-se superior a todo 0 poder
civil; e de unificac;:ao em face das instituic;:6es menores, associa-
c;:6es, corporac;:6es, cidades, que constituiam, na sociedade me-
,dieval, um perigo permanente de anarquia. Em decorrencia destes
dois process os , a formac;:ao do Estado moderno coincide com 0
reconhecimento e com a consolidac;:ao da supremacia absoluta
do poder politico sobre qualquer outro poder humano. Esta supre-
:. macia absoluta se chama soberania. E esta significa, diante do
'-exterior, em relac;:ao ao processo de libertac;:ao, independencia;
diante do interior, em relac;:ao ao processo de unificac;:ao, supe-
rioridade do poder estatal sobre qualquer outro centro de poder
existente num determinado territorio. Desse modo, a luta que 0
Estado moderno travou em duas frentes corresponde 0 duplo atri-
buto de seu poder soberano, que e original, no sentido de que nao
depende de qualquer outro poder superior, e indivisivel [uno], no
sentido de que nao pode ser partilhado com nenhum outro poder
inferior. 147
Este e, portanto, 0 grande pressuposto - em certo sentido 0
segredo mais guardado - da obra de Thomas Hobbes: a unidade do
poder e uma condi<;:aoindisp~l}?~vel para a vida em sociedade e para
.-.~--_._---_ .._-~----_._----~------'---~._--
uma existencia segura, uma vez que a unidade do poder e a condi<;ao
minima para a vida human a na.o ser, como mencionamos anterior-
mente, solitaria, pobre, sordidaLemQrlJte~idaeC1Jlta. Por isso, para
Hobbes fora da Cidad~ ou do Estado - e da unidade do poder por ele,
proporcionada - campeia
a for<;:adas paixoes, a guerra, 0 medo, a pobreza, a vergonha, a
solidao, a barbarie, a ignorimcia, a brutalidade. Na Cidade [ou
Estado - com a unidade do poder -] reina 0 poder da razao, a paz,
a seguran<;:a, a riqueza, a beleza, a convivencia, a compostura, a
ciencia, a amizade.!48
A unidade do poder e, em sintese, 0 objetivo a ser alca..n<;adoe a.._~_.,_.- _,'-",._,.- ..... ", ..
condi<;ao primeira da civilidade humana.
Assim, diferentemente, por exempl(),de Aristoteles, para 0 au~
tor do Leviata;;-~'h;-~~~~flao sao animais que ja nascem aptos para, . ., .... "._ .. -.. _-_.~~.,
a vida em sociedacle, ou seja, nao sao, por natureza, animais politicos,
animais naturalmente vocacionados para a convivencia coletivcL.b2
contrario, 0 estabelecimento da sociabilidade humana exige uma op-
<;aode todos os individuos pela elabora<;ao de um pacto, conven<;ao ou
contrato que institua a sociedade politica e os retire do estado pre-
estatal- chamado de estado da natureza - em que vivem. Isso porque
a natureza nao colocou no homem 0 instinto de sociabilidade, 0 qual
"so busca companheiros por interesse, por necessidade; a sociedade
politica e 0 fruto artificial de um pacto voluntario, de um calculo interes-
seiro"149. Em outras palavras, a sociabilidade humana e um artHicio ou
uma constru<;ao humana e nao 0 resultado de um longo desdobramen-
to historico ou de uma suposta concessao divina.
Com esse ensinamento, estamos distantes de todos os orna-
mentos produzidos pela longa tradi<;ao etica da escolastica em rela<;ao
a natureza humana e libertos do pensamento filosofico tradicional, que
inclinava-se ao gosto pela retorica e pela idealiza<;ao otimista da nature-
za humana e pela tendencia ao esquematismo em materia de valores
morais. Desse modo, seguindo os me?rl1()s passos de Maquiavel,
T~()~~~. Hobbes aprofundou uma concep<;ao realista da natureza hu-
mana, demonstrando que os homens nao sao naturalmente bons e
justos e que, sem a presen<;a do Estado, eles encontram-se absoluta-
mente livres para realizar todas as suas paixoes mais profundas e satis-
--------
tazer plenamente aos seus instintos, mesmos os mais violentos. Com
isso, torna-se "manifesto que, durante 0 tempo em que os homens
---_.-
vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito,
eles se encontram naquela condi<;ao a que se chama guerra; e uma
guerra que e de todos os homens contra todos os homens"150 .
valido para um tempo de guerra, em que todo 0 homem e inimigo
de todo 0 homem, 0 mesmo e valido tambem para 0 tempo
durante 0 qual os homens vivem sem outra seguran<;:a senao a que
lhes possa ser oferecida por sua propria for<;:ae sua propria in-
ven<;:ao. Assim, numa tal situa<;:ao nao ha lugar para a industria,
pois 0 seu fruto e incerto; conseqtientemente nao ha cultivo da
terra, nem navega<;:ao, nem uso das mercadorias que podem ser
importadas pelo mar; nao ha constru<;:6es confortaveis, nem ins-
trumentos para mover e remover as coisas que precisam de gran-
de for<;:a;naoha conhecimento da face da Terra, nem c6mputo
do tempo, nem artes, nem letras; nao ha sociedade; e 0 que e
pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta.
E a vida do homem e solitaria, pobre, sordida, embrutecida e
curta.!5!
E assim 0 e porque, alem de um estado de absoluta liberdade-
talvez licenciosidade seria 0 termo mais adequado -,0 estado natural e
uma condi<;ao de plena igualdade, pois a natureza fez os homens tao
semelhantes,
quanto as faculdades do corpo e do espirito que, embora por
vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de cor-
po, ou de espirito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando
se considera isto em conjunto, a diferenyaentre ume outro nao
e suficientemente consideravel para que qualquer um possa com
base nela reclamar qualquer beneficio a queoutro nao possa tam-
bem aspirar, tal como ele.152
a igualdade quanto a esperanya de atingirmos nossos fins. Assim,
se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que e
impossivel ela ser gozada por ambos, eles tomam-se inimigos. E
no caminho para 0 seu fim (que e principalmente sua propria
conservayao, eas vezes apenas seu deleite) esforyam-se por se
destruir ou subjugar um ao outro. Edisto se segue que, quando um
invasor nada mais tem a recear do que 0 poder de um unico outro
homem, se alguem planta, semeia, constroi ou possui um lugar
conveniente, e provavelmente de esperar que outros venham pre-
parados com foryas conjugadas, para desapossa-lo e priva-lo, nao
apenas do fruto de seu trabalho, mas tambem de sua vida e de sua
liberdade. Por sua vez, 0 invasor Hcara no mesmo perigo em
relayao aos outros153
Portanto, 0 estado pre-politico e, como se pode ver, um estado
de absoluta inseguran<;a e de grande precariedade para a efetiva exis-
t~~cia humana, pois nao ha ninguem que possa garantir 0 respeito aos
limites da a<;ao dos homens, que SaG indispensaveis para uma vida
tranquila e produtiva. Por isso, cada homem - no estado de natureza -
eo responsavel pela sua propria seguran<;a e manuten<;ao, que e ga-
rantida por sua for<;a e por sua astucia, por seus recursos pessoais, e
nao por uma estrutura politica coletiva, alicer<;ada sobre a for<;a da es-
pada e 0 designio do soberano.
Alem disso, os homens, nesse estado de natureza, SaGos juizes
de suas proprias razoes, pois - nao existindo um poder comum que
estabele<;a um criterio de justi<;a- nada pode ser injusto e as no<;oes de
bem e mal ede certo ~. errado nao pQc:lem.sere.stabelecic:las. E que
~---_.,-~--- ,- - -------.
onde nao ha poder comum nao ha lei e onde nao ha lei nao ha justi<;:a
e injusti<;:a.Portanto, a nox:ao de justi<;a ou injusti<;a e uma qualidade
pertencente ao homem em sociedade e nao na solidao do estado de
natureza, em que ha uma guerra de todos contra todos e 0 homem e 0
lobo do proprio homem. Alem disso,
outra conseqliencia dessa me sma condiyao e que nao ha proprie-
dade, nem dominio, nem distinyao entre 0 meu e 0 teu; so per-
tence a cada homem aquilo que ele e capaz de conserva-lo. E
pois esta a miseravel condiyao em que 0 homem realmente se
encontra, por obra da simples natureza154.
A condi<;ao miseravel e de amea<;a constante de destrui<;ao da
_._,~. --"'-----
especie humana exige a ruptura com esse mundo desagradavel e 0
estaoeleclmento da sociedade politica, unica estrutura capaz de superar
omedo da morte violenta, garantir as coisas que SaGnecessarias para
uma\lida confortavel e segura e manter a esperan<;a de uma vida me-
lhor pela dedica<;ao ao trabalho. Por isso, 0$ homens devem sair do
estado de natureza, sob pena de extin<;ao da especie e essa possibilida-
"creesta a seu a1cance, gra<;as a algumas de suas paixoes e tambem a
sua razao.
Algumas de suas paixoes de fato 0 inclinam a paz, em primeiro
lugar, 0 temor da morte violenta; tambem 0 desejo das coisas necessa-____ •.. _.r
rias a uma vida agradavel; e a esperan<;a de obte-las por sua indLlstria.
Quanto a sua razao, ela the sugere convenientes artigos de convivencia---_.__ ....-_.----
pacifica, as leis da natureza, sobre as quais todos podem ser levados a
se entender. Justi<;a, eqUidade, modera<;ao, misericordia e, de uma for-
ma geral, fazer aos outros 0 que gostariamos que nos fizessem [sao
algumas condi<;oes e algumas leis da natureza155 que levam 0 homem
a construir a hipotese de viver em sociedade].156
Esta e, portanto, uma grande oportunidade para os homens
sairem do estado de natureza e constituirem a sociedade politica, com
todas as prerrogativas a ela inerentes, principalmente uma vida em paz
e com seguranc;:a. Mas ainda resta, para encerrar este item, uma per-
gunta: 0 estado de natureza pode verificar-se, para 0 autor do Leviata,
em que situac;:oes?Parece-nos - juntamente com Norberto Bobbio157 -
que 0 estado de natureza pode configurar-se em tres oportunidades:
a) nj:\s sociedades primitivas, sejam as dos povos selvagens da epoca,
como os indigenas de algumas regioes da America, sejam as dos
povos barbaros da Antigilidade agora civilizados, ou, em outras pala-
vras, numa situac;:ao que sendo anterior a passagem da sociedade
natural a sociedade civil, pode ser chamada de pre-estatal;
@no caso da guerra civil, ou seja, quando 0 Estado ja existe, mas se
dissolve por variadas razoes, ocorrendo a passagem da sociedade
civila anarquia, situac;:aoque poderia ser chamada de antiestatal;
C9Jna sociedade internacional, onde as relac;:oes entre os estados nao
saG regulamentadas por um poder comum, numa situac;:ao que po-
deria ser chamada de interestatal. 158
Apresentado 0 estado de natureza, com as caracteristicas anali-
sadas no item anterior, e indicado que e possivel e, principalmente,
desejavel que os homens saiam daquela condic;:ao- pois a vida, naquele
estado, e solitaria, pobre, sordida, embrutecida e curta, e 0 perigo de
morte violenta e constante -, deve-se agora indagar como e possivel
substituir a desordem natural pela ordem civil ou politica. Ou, dito de
outra forma, como e possivel substituir a barbarie da horda - do estado
natural - pela ordem da civilizac;:aodo Estado e das prerrogativas de
uma ordem1l!.::L~5.<::9jJ:2?tit\Jid9.Sesundo Thomas Hobbes, essa substitui-
c;:aoe possivel a partir da construc;:ao de um artificio ou artefato da sabia
engenhosidade humana, que se concretiza atraves da celebrac;:ao de
um pacto, de uma convenc;:ao ou de um contrato entre um grupo de
individuos que habitam determinada regiao.
Por isso, a unica maneira de instituir este poder comum, esta
nova ordem - capaz de defender os homens das invasoes e das injurias
uns dos outros, garantindo-lhes assim seguranc;:a e tranqililidade sufi-
cientes para que, mediante seu proprio labor e grac;:as aos frutos da
terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos - e conferir
toda a sua fon;:a e poder para um homem, ou uma assembleia de
homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade
de votos, a uma s6 vontade. 0 que eqUivale a dizer: designar um
homem ou uma assembleia de homens como representantes de
suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como
autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa pra-
ticar ou levar a praticar, em tudo 0 que disser respeito a paz e
seguranya comuns; todos submetendo assim suas vontades a von-
tade do representante, e suas decis6es a sua decisao. Isto e mais
do que consentimehto, ou concordia, e uma verdadeira unidade
de todos eles, numa s6 e mesma pessoa, realizada por um pacta
de cada homem com todos os homens, de um modo que e como
se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu
direito de gouerngr-mggmim meSilloQ este home~oua esta
assembleia -d; Y;omens, com a condir;ao de transferires a ele teu
direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ar;oes
(grifo do autor). Feito isto, a multidao assim unida numa s6 pes-
soa se chama Estado, em latim ciuitas.159
Este artificio - pacto,

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