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Patrística vol. 22 Santo Hilário de Poitiers

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Índice
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
TRATADO SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE
LIVRO PRIMEIRO
LIVRO SEGUNDO
LIVRO TERCEIRO
LIVRO QUARTO
LIVRO QUINTO
LIVRO SEXTO
LIVRO SÉTIMO
LIVRO OITAVO
LIVRO NONO
LIVRO DÉCIMO
LIVRO ONZE
LIVRO DOZE
APRESENTAÇÃO
Surgiu, pelos anos 40, na Europa, especialmente na França, um movimento de interesse voltado
para os antigos escritores cristãos, conhecidos tradicionalmente como “Padres da Igreja”, ou
“santos Padres”, e suas obras. Esse movimento, liderado por Henri de Lubac e Jean Daniélou, deu
origem à coleção “Sources Chrétiennes”, hoje com mais de 400 títulos, alguns dos quais com várias
edições. Com o Concílio Vaticano II, ativou-se em toda a Igreja o desejo e a necessidade de
renovação da liturgia, da exegese, da espiritualidade e da teologia a partir das fontes primitivas.
Surgiu a necessidade de “voltar às fontes” do cristianismo.
No Brasil, em termos de publicação das obras destes autores antigos, pouco se fez. A Paulus
Editora procura, agora, preencher esse vazio existente em língua portuguesa. Nunca é tarde ou fora
de época para rever as fontes da fé cristã, os fundamentos da doutrina da Igreja, especialmente no
sentido de buscar nelas a inspiração atuante, transformadora do presente. Não se propõe uma volta
ao passado através da leitura e estudo dos textos primitivos como remédio ao saudosismo. Ao
contrário, procura-se oferecer aquilo que constitui as “fontes” do cristianismo para que o leitor as
examine, as avalie e colha o essencial, o espírito que as produziu. Cabe ao leitor, portanto, a tarefa
do discernimento. Paulus Editora quer, assim, oferecer ao público de língua portuguesa, leigos,
clérigos, religiosos, aos estudiosos do cristianismo primevo, uma série de títulos, não exaustiva,
cuidadosamente traduzida e preparada, dessa vasta literatura cristã do período patrístico.
Para não sobrecarregar o texto e retardar a leitura, procurou-se evitar anotações excessivas, as
longas introduções estabelecendo paralelismos de versões diferentes, com referências aos
empréstimos da literatura pagã, filosófica, religiosa, jurídica, às infindas controvérsias sobre
determinados textos e sua autenticidade. Procurou-se fazer com que o resultado desta pesquisa
original se traduzisse numa edição despojada, porém, séria.
Cada autor e cada obra terão uma introdução breve com os dados biográficos essenciais do autor e
um comentário sucinto dos aspectos literários e do conteúdo da obra suficientes para uma boa
compreensão do texto. O que interessa é colocar o leitor diretamente em contato com o texto. O leitor
deverá ter em mente as enormes diferenças de gêneros literários, de estilos em que estas obras foram
redigidas: cartas, sermões, comentários bíblicos, paráfrases, exortações, disputas com os heréticos,
tratados teológicos vazados em esquemas e categorias filosóficas de tendências diversas, hinos
litúrgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade de tratamento e de esforço de
compreensão a um mesmo tema. As constantes, e por vezes longas, citações bíblicas ou simples
transcrições de textos escriturísticos devem-se ao fato de que os Padres escreviam suas reflexões
sempre com a Bíblia numa das mãos.
Julgamos necessário um esclarecimento a respeito dos termos patrologia, patrística e padres ou
pais da Igreja. O termo patrologia designa, propriamente, o estudo sobre a vida, as obras e a doutrina
dos pais da Igreja. Ela se interessa mais pela história antiga, incluindo também obras de escritores
leigos. Por patrística se entende o estudo da doutrina, das origens dessa doutrina, suas dependências
e empréstimos do meio cultural, filosófico, e da evolução do pensamento teológico dos pais da Igreja.
Foi no século XVII que se criou a expressão “teologia patrística” para indicar a doutrina dos padres
da Igreja distinguindo-a da “teologia bíblica”, da “teologia escolástica”, da “teologia simbólica” e
da “teologia especulativa”. Finalmente, “Padre ou Pai da Igreja” se refere a escritor leigo,
sacerdote ou bispo, da antigüidade cristã, considerado pela tradição posterior como testemunho
particularmente autorizado da fé. Na tentativa de eliminar as ambigüidades em torno desta expressão,
os estudiosos convencionaram em receber como “Pai da Igreja” quem tivesse estas qualificações:
ortodoxia de doutrina, santidade de vida, aprovação eclesiástica e antigüidade. Mas os próprios
conceitos de ortodoxia, santidade e antigüidade são ambíguos. Não se espere encontrar neles
doutrinas acabadas, buriladas, irrefutáveis. Tudo estava ainda em ebulição, fermentando. O conceito
de ortodoxia é, portanto, bastante largo. O mesmo vale para o conceito de santidade. Para o conceito
de antigüidade, podemos admitir, sem prejuízo para a compreensão, a opinião de muitos especialistas
que estabelece, para o Ocidente, Igreja latina, o período que, a partir da geração apostólica, se
estende até Isidoro de Sevilha (560-636). Para o Oriente, Igreja grega, a antigüidade se estende um
pouco mais, até a morte de S. João Damasceno (675-749).
Os “Pais da Igreja” são, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos, foram
forjando, construindo e defendendo a fé, a liturgia, a disciplina, os costumes, e os dogmas cristãos,
decidindo, assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussões, de inspirações, de
referências obrigatórias ao longo de toda tradição posterior. O valor dessas obras que agora Paulus
Editora oferece ao público pode ser avaliado neste texto: “Além de sua importância no ambiente
eclesiástico, os Padres da Igreja ocupam lugar proeminente na literatura e, particularmente, na
literatura greco-romana. São eles os últimos representantes da Antigüidade, cuja arte literária, não
raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores.
Formados pelos melhores mestres da Antigüidade clássica, põem suas palavras e seus escritos a
serviço do pensamento cristão. Se excetuarmos algumas obras retóricas de caráter apologético,
oratório ou apuradamente epistolar, os Padres, por certo, não queriam ser, em primeira linha,
literatos, e sim, arautos da doutrina e moral cristãs. A arte adquirida, não obstante, vem a ser para
eles meio para alcançar este fim. (…) Há de se lhes aproximar o leitor com o coração aberto, cheio de
boa vontade e bem disposto à verdade cristã. As obras dos Padres se lhe reverterão, assim, em fonte
de luz, alegria e edificação espiritual” (B. Altaner e A. Stuiber, Patrologia, S. Paulo, Paulus, 1988,
pp. 21-22).
A Editora
INTRODUÇÃO
A obra de Santo Hilário de Poitiers é pouco estudada e pouco conhecida em nosso meio, o que
constitui, sem dúvida, uma grave lacuna. Sua importância no conjunto da Teologia Patrística e de toda
a Teologia é inquestionável, embora nem sempre tenha sido reconhecida. Isto pode ser atribuído em
parte às dificuldades que oferece um estilo elíptico, freqüentemente obscuro, que, no dizer de
Hamman, chega a deixar desesperados os seus tradutores, pois o autor força a sintaxe, abusa da elipse,
economiza o mais possível as palavras no interior das sentenças, prejudicando em certos momentos a
compreensão de seus textos.
O fato de não ser este um autor de fácil leitura não nos desanimou em nosso empreendimento.
Atrevemo-nos a publicar esta edição em língua portuguesa esperando que, apesar de suas limitações,
ela possa servir como um estímulo para os estudiosos da Teologia. Pensamos principalmente naqueles
que se sentem atraídos pela doutrina dos Padres e, possuindo já algum conhecimento de Patrologia,
procuram complementá-lo.
Para ajudar a entender esta obra talvez seria útil lembrar que, sempre que nos defrontamos com os
escritos dos Santos Padres, temos de levar em consideração a enorme distância que medeia entre nós,
modernos, e os escritores dos primórdios do cristianismo, quanto à mentalidade, condicionamento
histórico, vivências. Daquela época até hoje a Teologia percorreuum longo caminho, semeado de
percalços, sobretudo no que se refere à formulação do dogma da Trindade. A busca da verdade levou-a
a defrontar-se com o erro, pois, como bem lembra Congar, uma expressão convincente do mistério
trinitário não foi obtida sem longas tentativas, sem que mesmo os espíritos mais argutos e mais
cristãos incorressem em impasses, erros ou semiverdades.
É fácil perceber que, neste particular, Hilário não foge à regra geral, com alguns agravantes, até, e
seus escritos não raro desencorajaram ou afugentaram leitores mais apressados. Na raiz desta rejeição
encontra-se principalmente o problema de um estilo caracterizado por repetições constantes,
numerosas explicações, nem sempre necessárias, digressões cansativas para muitos, além de
parecerem pouco pertinentes certos argumentos e mal escolhidos certos exemplos. A obscuridade,
devida ao recurso à elipse, quando talvez fosse necessário ser mais explícito, também dificulta a sua
leitura, e o modo de raciocinar de alguém distante muitos séculos de nós e influenciado pelas
filosofias e pela mentalidade da sua época pode tornar pouco convidativa a abordagem de sua obra.
Não bastassem os problemas devidos ao seu estilo e mentalidade, vemo-nos diante de mais um
obstáculo: sua agressividade contra os hereges, expressa com palavras extremamente duras, que
podem escandalizar. Não podemos negar, sem mais, tais objeções de seus leitores, mas é preciso
considerar as circunstâncias em que Hilário escreveu e o contexto em que foi elaborada a Teologia no
século IV. Trata-se de um período conturbado, quando a Igreja, ameaçada pela heresia ariana, via-se
ainda obrigada a enfrentar outras doutrinas heterodoxas e a defender-se também diante do poder
temporal.
No exercício de sua missão de bispo Santo Hilário viu-se envolvido nas controvérsias que abalaram
o século IV, quando se achava em jogo a verdade mais central da nossa fé, defendida apaixonadamente
por ele, contra toda sorte de doutrinas heréticas. Isto influiu na redação de seus livros, levando-o a
exagerar nos termos usados ao dirigir-se aos seguidores dos movimentos contrários à ortodoxia. Sua
obra reflete a luta travada pela Igreja contra as falsas interpretações das verdades da fé e também traz
à mente a perseguição sofrida pelo autor na defesa ardorosa da sua crença, num contexto histórico
marcado pela intolerância, quando o poder imperial se exercia sem misericórdia contra os defensores
da doutrina católica que, além da tortura moral, sofriam com as violências físicas e a condenação ao
exílio.
Refletir sobre esses fatos pode tornar mais fácil para quem vive em outra época, compreender o
motivo da veemência de suas apóstrofes contra os adversários e entender, se não desculpar, certas
expressões e certos destemperos de linguagem, dificilmente aceitáveis em nosso tempo.
A leitura do seu Tratado sobre a Trindade permite perceber claramente o imenso esforço que
representa para o Santo Padre lutar com as palavras em busca da expressão adequada, da fórmula
apropriada, do vocábulo correto, na tentativa de expressar as suas convicções mais profundas e
exprimir aquilo que a Igreja crê sem contar ainda com o vocabulário preciso que só ao longo dos anos
foi sendo aperfeiçoado por quem, como ele, se dedicou à formulação da verdade. Foi um processo de
criação que constituiu um trabalho gigantesco da Igreja em sua totalidade, do qual hoje nós nos
beneficiamos sem pensar o quanto custou a nossos pais na fé enunciar, com as palavras adequadas,
ainda que sempre insuficientes, os mistérios revelados. Faltam-lhe expressões que ainda não tinham
sido buriladas, aceitas, canonizadas; não possui ainda aquela precisão de vocabulário que seria, no
futuro, o fruto de um trabalho conjunto dos grandes teólogos e grandes santos, seus sucessores, e para
o qual ele também ofereceu uma importantíssima contribuição.
Se nesta introdução fizemos questão de apontar, logo de início, as dificuldades que oferece o
Tratado, não foi com o intuito de desencorajar os eventuais leitores. Desejamos, sim, que elas se
transformem em estímulo e desafio para que possam extrair da leitura o maior proveito possível. Pois,
quem se dedicar com empenho ao estudo deste autor, distante de nós no tempo e diferente pela
mentalidade, certamente descobrirá a alegria de beber numa fonte viva e pura, tão próxima ainda dos
inícios. Deverá concordar com os estudiosos da teologia do Bispo de Poitiers e reconhecer que, tendo
superado os obstáculos, acabamos por encontrar um tesouro escondido e sentimo-nos seduzidos pelo
espírito, pelas idéias e pela originalidade de Hilário, apaixonando-nos por uma obra inicialmente
difícil, mas plena de conteúdo e sabor. Que todos os que se aproximarem do Tratado da Trindade com
a paciência necessária possam enriquecer-se com a leitura de um livro válido, sem dúvida, também
para os dias de hoje, e sintam-se recompensados pelo seu esforço. É o que desejamos.
Santo Hilário e sua época
Santo Hilário, Bispo de Poitiers, Padre da Igreja, valoroso defensor da fé cristã contra as heresias
no século IV, nasceu na Gália, ao que parece por volta de 320. A cronologia é um tanto incerta, mas
sabe-se que por ocasião do concílio de Béziers (356) já era bispo da cidade de Poitiers. Acredita-se
que tenha sido eleito bispo em 350, aproximadamente. Dispomos de poucas informações sobre sua
vida. O mais provável é que se tenha convertido ao cristianismo já adulto, abraçando a fé com grande
fervor. É o que dão a entender certas páginas de tom autobiográfico no início do tratado da Trindade.
Foi casado, e, ao que parece, teve uma filha, Abra, a quem dirigiu uma epístola, Ad filiam Abram,
sobre cuja autenticidade pairam dúvidas.
O início do seu episcopado foi relativamente tranqüilo. Neste período de sua vida, dedicado à
pregação e aos encargos do ministério, escreveu o seu comentário ao Evangelho segundo Mateus. O
arianismo que ameaçava a Igreja do Oriente ainda não causava perturbação na Gália; porém, durante o
sínodo de Milão, em 355, quando o Imperador obrigou os bispos a confirmar a condenação de Santo
Atanásio e enviou para o exílio os que se opuseram a sua vontade, Hilário viu-se envolvido na
controvérsia ariana, rompendo, juntamente com os demais bispos da Gália, com os partidários do
imperador. No sínodo de Béziers (356), seus argumentos em favor da doutrina católica não foram
ouvidos, e os bispos inimigos pediram sua condenação, sendo ele, então, exilado na Frígia pelo
Imperador. O exílio, motivado pelo zelo na defesa da fé, veio a ser benéfico, pois seu pensamento se
enriqueceu em contato com a teologia do Oriente, mais desenvolvida que a ocidental. Data desta época
o início do seu livro Adversum Valentem et Ursacium . Também redigiu o Tratado sobre a Trindade ,
que antes foi chamado Da fé contra os arianos, e o livro De Synodis. Enquanto permaneceu no exílio
procurou desenvolver um trabalho em prol da unidade. Os bispos orientais, em grande parte, não
aceitavam a definição de Nicéia porque julgavam ser próximo do sabelianismo o termo homousios.
Hilário tentou realizar uma obra de reconciliação procurando nas fórmulas de fé proclamadas por eles
o que pudesse haver de válido. Tentou um acordo com os partidários do termo homoiousios, atribuído
ao Filho, pois poderia ter um sentido ortodoxo. Também no concílio de Selêucia defendeu o uso
daquele termo, pois acreditava que este uso não implicava adesão à heresia sabeliana. Sua obra Contra
Constantium fala dos debates que ali tiveram lugar. Após este concílio Hilário liderou a resistência
contra a fórmula de transição proposta aos Padres, segundo a qual o Filho era apenas semelhante ao
Pai. Também nesta época teve conhecimento de que os bispos da Gália tinham chegado a um
entendimento com os adversários da fé, o que o levou a escrever o segundo livro, Adversum Valentem
et Ursacium. Procurou ter contato com o Imperador em Constantinopla para defender diante dele suas
posições,porém, não foi bem-sucedido. Em protesto contra o símbolo de fé promulgado pelo concílio
de Rímini, que propunha uma profissão de fé inaceitável, escreveu o Contra Constantium. Em 360 ou
361 voltou ao Ocidente, onde trabalhou para restabelecer a ortodoxia. Em 361 obteve a condenação, no
sínodo de Paris, dos bispos arianos de Arles e Périgueux. Manteve no cargo os outros bispos arianos
que reconheceram o erro, mesmo tendo desagradado com isso os defensores mais severos da
ortodoxia. Em 364, por ocasião do advento do novo Imperador, Valentiniano, reuniu-se com outros
bispos, tentando afastar o bispo ariano de Milão, Auxêncio, mas foi obrigado a voltar a Poitiers.
Escreveu então sua obra Contra Auxencium. Na Gália retomou seu trabalho de escritor e pastor.
Redigiu obras exegéticas, o Tratactus super Psalmos, o Tratactus Mysteriorum e a terceira parte do
livro Contra Valentem et Ursacium. Compôs também hinos litúrgicos. Morreu em 367, talvez em 13
de janeiro, ou então em 368; a data permanece incerta.
O Tratado sobre a Trindade e as heresias trinitárias
Uma introdução como esta não pretende, evidentemente, esgotar o conteúdo tão rico e cheio de
nuanças do Tratado sobre a Santíssima Trindade, de Santo Hilário. Procura apenas ser uma breve
iniciação, apontando os aspectos doutrinários mais importantes, visando principalmente à situação dos
cristãos que, vivendo num ambiente de pluralismo religioso, sentem-se chamados a “dar as razões da
sua esperança”, não só aos outros, mas até a si mesmos. Apesar de toda a distância que nos separa
dele, temos muito em comum com Santo Hilário. Também nós, hoje, encontramo-nos em meio às
mais diversas expressões da religiosidade e às mais diferentes tentativas humanas para abordar o
mistério divino. Neste tempo, atravessado por diversas correntes de pensamento, quando as religiões
se multiplicam e novas crenças brotam a cada dia, nós, cristãos, somos chamados a dar testemunho, a
procurar fortalecer nossa fé e a aprofundar nosso conhecimento. Por isso, acreditamos que o que
ensina Hilário, dirigindo-se aos seus contemporâneos, deverá ser útil também para nós.
Procuramos destacar entre tantos temas desenvolvidos pelo Bispo de Poitiers de maneira prolixa,
numa redação nem sempre fácil de acompanhar, aquilo que é mais central na sua obra, como um
roteiro que auxilie a leitura e meditação dos leitores.
Sabemos que o século em que viveu este Santo Padre foi marcado pelas grandes controvérsias
trinitárias. Sua obra situa-se, portanto, no contexto da luta da ortodoxia contra a heresia ariana, que
quase chegou a comprometer a Igreja inteira. O tratado De Trinitate reflete o momento em que o
arianismo ameaçava a fé cristã em suas próprias raízes. Esta ameaça, Hilário a sentiu como poucos.
Trata-se de um tempo particularmente importante para a formação da teologia, quando a afirmação da
verdade era vital para uma Igreja que via sua fé questionada tanto pelo arianismo como pelo
ressurgimento das tendências sabelianas, pela gnose, sempre presente, e pelos diversos movimentos
que se opunham violentamente à ortodoxia. Hilário esteve no centro do conflito combatendo em duas
frentes: de um lado, contra o arianismo, quase triunfante; de outro contra o modalismo, que persistia,
reaparecendo sob novas formas; sem deixar de pôr-se em guarda contra outras heresias que, segundo
ele mesmo, venciam-se umas às outras com seus argumentos falaciosos, mas eram todas vencidas pela
fé da Igreja.
O Tratado da Trindade procura, primeiramente, repelir o arianismo, proclamando, contra os
seguidores de Ário, a divindade do Filho. Ário (280-336) foi presbítero em Alexandria. Sua doutrina,
que negava ser Cristo Deus verdadeiro, foi condenada pelo concílio de Nicéia de 325, que definiu a
consubstancialidade do Pai e do Filho. Mesmo depois da condenação, os arianos continuavam a pregar
a subordinação do Filho ao Pai, dizendo ser o Pai o único princípio ingênito sem origem, eterno e
imutável. O Verbo seria criatura, essencialmente diferente de Deus Pai, recebendo a sua divindade por
participação, por ter sido criado, não por geração. O Filho seria, para eles, mutável, fraco, sem as
prerrogativas divinas pertencentes apenas a Deus Pai. Sendo uma criatura, embora mais excelente que
todas as criaturas, não podia merecer a adoração, reservada somente ao Pai eterno.
Opondo-se ao subordinacionismo ariano, Santo Hilário via-se, por outro lado, obrigado a refutar
também os argumentos dos partidários de Sabélio, que, a pretexto de defender a unidade divina,
negavam a distinção de pessoas. Respondendo aos sabelianos, Hilário demonstra que a fé cristã não
somente não professa dois deuses, como também não nega a subsistência pessoal do Verbo. Segundo
Sabélio, que pretendia defender a divina monarquia, o próprio Deus Pai se encarnara na Virgem
Maria, não havendo Trindade, mas apenas modos diferentes de manifestação de Deus, para nós.
Semelhantes às idéias sabelianas são as defendidas por Práxeas, Noeto de Smirna e todos os mentores
e seguidores de movimentos de caráter modalista e monarquiano. O motivo que levou Hilário a
escrever também contra os partidários de Sabélio foi a necessidade de refutar as acusações dos arianos
de que o homoousios proclamado em Nicéia era uma forma de sabelianismo, por não estabelecer,
segundo eles, a distinção de pessoas entre o Pai e o Filho. Não se pode esquecer também que o
gnosticismo continuava a exercer sua influência na mente dos fiéis. Por isso Hilário incluiu as
doutrinas gnósticas na discussão contra os hereges, que procuravam justificar-se com base nelas. O
autor refere-se às doutrinas gnósticas dos maniqueus, seguidores das idéias de Mani, ou Maniqueu,
que ensinava haver dois princípios, o Bem e o Mal, e pregava a oposição radical entre o espírito bom e
a matéria má. Segundo o maniqueísmo, o homem, prisioneiro da matéria, só poderia libertar-se pela
gnose. A verdadeira gnose traria a libertação do espírito, que está aprisionado no corpo material,
sensível e essencialmente mau. Jesus seria o profeta que leva ao verdadeiro conhecimento, mas a
revelação definitiva seria dada por Mani, que se identificava a si mesmo com o Paráclito. Importante
figura do movimento gnóstico, citado pelo autor, foi Valentino, que pregava a doutrina dos trinta eons,
afirmando a transcendência absoluta do Deus invisível que produz as diversas emanações, sendo o
Logos aquele que traz a gnose pela qual os “espirituais” se salvam, e ao qual já se referiam Santo
Ireneu e Tertuliano. Em seu livro, Santo Hilário também faz referência a Hieracas, que não aceitava a
ressurreição da carne, e a Ebion, fundador da seita dos ebionitas, que negavam a divindade de Jesus.
Para os membros desta seita, que parece ter tido origem no primeiro século, mas reapareceu no século
IV, o Filho não é eterno. Foi gerado por uma ordem de Deus ( ex Verbum) e não tem subsistência
pessoal antes da encarnação. Fotino, discípulo de Marcelo de Ancira, é um partidário desta heresia.
Valendo-se dos textos tanto do Antigo como do Novo Testamento, o autor repele os argumentos dos
adversários e contradiz as idéias errôneas sobre o verdadeiro Deus. Não se detém, porém, apenas nessa
atitude negativa, de oposição, pois deseja sobretudo instruir os fiéis, mostrando a verdade revelada nas
Escrituras, e converter os hereges, levando-os a renunciar a seus erros e aderir à verdade.
É importante acentuar que, em todas as doutrinas heterodoxas enumeradas acima, encontra-se a
negação, expressa de diversas formas, da divindade de Cristo: seja pela afirmação de Ário, de que
somente o Pai seria realmente Deus, subordinando-se a Ele o Filho como um deus de segunda classe, a
quem se negava a plena divindade; seja pela defesa da doutrina monarquiana de um Deus único (como
o entendia Sabélio), que apenas se revestia de aparências distintas “para nós”, permanecendo em si
mesmo um (como uma única pessoa); seja pela afirmação de que o Filho (como tambémo Espírito)
consistia em uma força ou energia emanada do Deus único; ou pela tese de que o Filho o era apenas
por adoção.
Para a Igreja sempre foi essencial defender-se destas tentativas da razão humana para entender a
Deus. Elas ofereciam modelos de certo modo inteligíveis, mas, na realidade, atraiçoavam a verdade do
Mistério divino. O que Hilário e todos os Santos Padres proclamam é o fato da nossa salvação,
operada pela Trindade Santa, salvação esta entendida tradicionalmente como deificação. É o que se
acha em jogo na luta travada por Hilário e pelos outros Padres contra as heresias, tanto trinitárias
como cristológicas.
Idéias centrais do Tratado sobre a Trindade
Santo Hilário propõe-se a demonstrar a importância do conhecimento de Deus, distorcido pelos
opositores, sabelianos ou subordinacionistas. Afirmando a divindade do Filho e sua plena humanidade
e a unidade do sujeito, com base na noção-chave de geração, evita os dois extremos que constituem a
perene tentação daqueles que, usando o instrumental da razão humana, necessário, mas sempre
insuficiente, pretendem aproximar-se do Mistério inefável. Mostra que o Filho é gerado pelo Pai e é
Deus como o Pai é Deus. Não é, porém, a mesma Pessoa. Não se trata de um outro deus, não se trata
de aparência, de modo de falar, ou alguma forma de subordinação do Filho, mas sim da mesma
natureza. O Verbo é Filho, não é criatura; é Deus, consubstancial ao Pai.
A intenção de Hilário, como dos outros Padres, na defesa da ortodoxia da doutrina trinitária contra
as heresias, é basicamente soteriológica. Trata-se, em última análise, da nossa salvação, operada por
Deus que se revela como Trindade. Porque, se Cristo não é Deus, consubstancial ao Pai, então nós não
somos salvos, já que a salvação só pode ser obra divina. Sendo Deus de Deus, o Filho assumiu nossa
humanidade para dar-lhe sua vida divina, para fazê-la participar da sua glória e imortalidade. Com São
Paulo, Hilário mostra como Cristo, sendo Deus, despojou-se da sua glória, deixando a “forma de
Deus” para assumir a “forma de servo”, sem deixar de ser Deus. Tendo cumprido todo o mistério da
sua aniquilação, pela sua ressurreição retornou à glória que tinha junto do Pai “antes que o mundo
existisse”, e levou consigo a humanidade assumida. Pela ressurreição, a natureza humana de Cristo é
plenamente glorificada e, como pelo mistério da encarnação o Verbo assumiu nossa natureza, toda a
humanidade está, desde então, destinada a participar da sua glória; pois, pela encarnação, o Filho,
além de assumir a humanidade própria à qual se uniu hipostaticamente, também assumiu, embora de
maneira diversa, a humanidade inteira, e, pela assunção da nossa natureza, todos nós fomos
incorporados a Ele: “Humani enim generis causa Dei Filius natus ex Virgine est (...) ut homo factus ex
Virgine naturam in se carnis acciperet, perque huius admixtionis societatem santificatum in eo
universi generis humani corpus exsistet ut quemadmodum omnes in se per id quod corporeum se esse
voluit conderentur, ita rursum in omnes ipse per id quod eius est invisibile referretur” (II, 24).
A nossa “carne” (ao homem todo) foi concedida a participação na divindade do Verbo, que se
dignou assumir a “carne”: “Verbum caro factum est ut per Deum Verbum carnem factum caro
proficeret in Deum Verbum” (I, 14). Por esse “admirabile comercium”, a nós é dado receber a glória,
tendo nossa carne frágil revestida da incorruptibilidade gloriosa.
O Verbo se fez carne para restaurar no homem a imagem do verdadeiro Deus, a qual fora perdida
pelo pecado. Participando do Verbo, imagem do Pai, a cuja imagem foram feitos, os homens podem
conhecer a Deus, e esse conhecimento traz a bem-aventurança. Isso se realiza pelo Verbo feito carne,
que habitou entre nós, e que renova o homem segundo sua imagem.
Participação na divindade, conhecimento de Deus, salvação: é o que traz ao homem o Verbo,
revelação de Deus. A verdadeira fé declara que o Filho é Deus, que deve ser reconhecido na humildade
da carne e pelas obras realizadas, que dão testemunho da sua divindade. Se a vida eterna consiste em
conhecer a Deus, estarão afastados dela aqueles que não reconhecem o Filho como Deus.
O Bispo de Poitiers dedica seu livro quase exclusivamente ao mistério do Pai e do Filho, sendo
pouco numerosas no Tratado as referências à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Isto acontece
porque o autor ainda não dispunha de elementos que lhe permitissem elaborar uma teologia do
Espírito Santo mais desenvolvida. Afirma, no entanto, ser Ele “Dom” e ser “de Deus”, e isto indica
que possui a mesma natureza divina. Ele é o Espírito que vem a nós como Dom, é o Espírito de Deus,
é o Espírito do Pai e do Filho.
Em suma, a obra de Santo Hilário situa-se na grande corrente da Tradição, que defende o
pressuposto fundamental da experiência cristã da salvação como ação divina e divinizante,
proclamando com todo o vigor a verdade da divindade de Jesus Cristo, verdadeiro Deus, que se fez um
de nós para nos salvar, concedendo-nos participar de sua divindade.
Divisão do Tratado
O Tratado está dividido em 12 livros, subdivididos em capítulos. O livro I começa com alguns
traços biográficos, falando de sua busca de Deus e conversão. Refere-se às heresias e apresenta um
plano geral do trabalho. No livro II encontra-se um resumo da doutrina da Trindade. O livro III trata
do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho. No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a
Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo
Testamento. O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que
não é um outro Deus ao lado do Pai. O livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a
partir do Novo Testamento. O livro VII demonstra, também a partir do testemunho da Escritura, que o
Pai e o Filho são um só Deus porque têm a mesma natureza. O livro VIII trata da unidade do Pai e do
Filho. O Espírito Santo é demonstração e manifestação desta unidade. O livro IX refuta os argumentos
arianos sobre a inferioridade do Filho. É preciso distinguir em Cristo as duas naturezas e os diversos
estágios, antes da encarnação, na sua vida terrena e depois da ressurreição. O livro X apresenta uma
interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. O livro XI
fala da diferença entre a humanidade e a divindade de Cristo e da glorificação da humanidade de
Cristo e nossa glorificação juntamente com Ele. O livro XII fala do nascimento eterno do Verbo e
termina com a Oração que resume a sua fé na Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, e com a súplica
para que Deus conserve a sua fé.
Poucas traduções das obras deste Santo Padre apareceram entre nós, por isso julgamos útil
apresentar este trabalho, que, com todas as suas insuficiências, traduz o desejo de tornar mais
conhecido um autor de tamanha importância, o primeiro dos Padres do Ocidente a formular um De
Trinitate com tal amplidão. Esperamos que esta tradução possa beneficiar de alguma forma os
estudantes pouco familiarizados com o autor, pois esta é uma obra que faz refletir.
O texto em que se baseou a tradução foi o da edição da Patrologia Latina de Migne, volume 10.
Foram usados também os textos do Lecionário do Ofício das Leituras em Português, Liturgia das
Horas, Paulinas, as traduções de D. Cirilo Folch Gomes, OSB (Antologia dos Santos Padres...), de A.
Hamman (Os Padres da Igreja , São Paulo, Paulus, 1977) e, principalmente, da edição bilíngüe
preparada por L. Ladaria (BAC, 1986).
Maria Thais Robbe
TRATADO SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE
LIVRO PRIMEIRO
1. Procurando investigar o sentido propriamente religioso da vida humana que, ou provém da natureza,
ou é descoberto pelas investigações laboriosas dos sábios, para obter o que é concedido ao
conhecimento por dom divino, encontrei muitas coisas que, segundo a opinião corrente, parecem
tornara vida mais útil e desejável. Constatei, principalmente, que o ócio e a opulência são tidos pelos
mortais como os melhores e mais importantes de todos os bens. Um sem a outra seria, antes, causa de
mal do que de bem, pois o ócio na pobreza pode ser considerado quase como um exílio da vida, e a
inquietação na opulência traz tanto mais calamidades quanto, com maior preocupação, carece daquilo
que, mais do que tudo, é desejável e ambicionado. Embora a opulência traga consigo os maiores e
melhores encantos da vida, não parece estar muito longe dos deleites dos animais. Estes, de fato,
vagando pelos bosques repletos de alimentos, sossegados e sem trabalho, encontram a saciedade nos
campos. Se o melhor e o mais importante nesta vida fosse descansar e ter fartura, seria preciso que tal
gênero de vida fosse comum a nós e a todos os animais privados da razão. Para estes, a própria
natureza, com imensa prodigalidade, além de segurança, livre de cuidados, fornece com facilidade o
necessário.
2. Tenho para mim que a maior parte dos mortais considera absurdo e animal este modo de viver e o
rejeita. Censuram-no nos outros porque, levados pela própria natureza, julgam indigno do homem
imaginar que tenha nascido, como os irracionais, apenas para o ventre e a inércia, não tendo sidos
trazidos a esta vida para a realização de grandes feitos ou ótimas artes. A vida, pelo contrário, deve ter
sido concedida em vista de algum proveito eterno, porque não se poderia atribuir ao dom de Deus uma
existência atribulada por angústias, afligida por tantas moléstias e pela ignorância de si mesma e de
seu interior, desde a meninice até se consumar nos achaques da velhice. Por isso preferem exercer as
obras e virtudes da paciência, da continência e da benignidade, entendendo que viver bem consiste em
bem agir e bem compreender. Não pensam ter sido dada a vida pelo Deus imortal apenas para terminar
na morte, pois compreendem não provir do bom Doador a grande alegria de viver somente para o
tristíssimo medo de morrer.
3. Não considero inepto nem inútil o modo de pensar dos que procuram conservar a consciência livre
de toda culpa e, com prudência, dar um sentido a todas as dificuldades da vida humana, ou
deliberadamente pretendem evitá-las, ou pacientemente suportá-las. Contudo, não me parecem
bastante idôneos para ensinar como viver bem e com felicidade, pois apenas estabelecem os preceitos
comuns das doutrinas condizentes com o espírito humano. Não compreender estes ensinamentos é
coisa de animal, não exercer o que se compreendeu parece uma loucura que ultrapassa a ferocidade do
animal. Apresse-se, pois, a alma, não apenas em agir assim, porque se não o fizesse estaria cheia de
culpa e de sofrimento, mas em conhecer a Deus, Pai de tão grande dom, a quem se deve entregar
totalmente, por reconhecer que servi-lo é nobilitante, nele colocando toda a esperança, nele
descansando entre as calamidades das preocupações presentes, como em porto seguríssimo e familiar.
Por isso, meu espírito ardia de intenso desejo, não só de compreendê-lo, mas também de conhecê-lo.
4. Muitos afirmavam a existência de numerosas famílias de pretensos deuses e, julgando haver na
natureza divina o sexo masculino e o feminino, sustentavam haver nascimentos e sucessões de deuses.
Pregavam a existência de deuses, uns maiores, outros menores, diferentes quanto ao poder. Alguns
afirmavam não haver absolutamente um Deus e veneravam apenas a natureza constituída por
movimentos e encontros fortuitos. A maioria deles, em conformidade com a opinião popular, dizia
que Deus existe, sendo, no entanto, descuidado e negligente quanto às coisas humanas. Outros ainda
adoravam os corpos e formas visíveis das criaturas, nos elementos terrenos e celestes. Por fim,
colocavam seus deuses em imagens de homens, animais, feras, aves ou serpentes e encerravam em
metais, pedras ou troncos de árvores o Senhor do universo e Pai da imensidão. Não mereciam que se
cresse serem mestres da verdade aqueles que, seguindo ridículas e irreligiosas idéias, dissentiam, eles
próprios, entre si, por suas vãs opiniões. No meio de tudo isso, meu espírito solícito, esforçando-se por
seguir o caminho útil e necessário para o conhecimento de seu Senhor, não considerava digno de Deus
o descaso pelas coisas criadas por Ele e julgava também não competir à natureza forte e incorrupta o
sexo dos deuses e as sucessões de progenitores e nascidos. Também tinha por certo que, ao Divino e
Eterno, competia ser somente Um e sem diferença, porque, sendo Ele mesmo o fundamento de seu
próprio ser, não poderia deixar fora dele nada que fosse melhor do que aquilo que lhe é próprio. A
onipotência e a eternidade não poderiam estar senão em um mesmo ser, pois não teria sentido existir,
na onipotência, o mais forte e o mais fraco e, na eternidade, o antes e o depois, visto que em Deus não
se deve venerar nada que não seja eterno e poderoso.
5. Revolvendo no espírito estas e muitas outras coisas, deparei com aqueles livros escritos por Moisés
e os Profetas, que transmitiam a religião dos hebreus. Neles, o próprio Deus criador, dando
testemunho de si mesmo, assim se expressa: Eu sou o que sou.[...] Isto dirás aos filhos de Israel:
Enviou-me a vós aquele que é (Ex 3,14). Fiquei cheio de admiração por tão perfeita definição de Deus
que, de modo inteiramente apto, dava à inteligência humana o conhecimento da natureza divina e
incompreensível, pois entende-se que nada é mais próprio a Deus do que ser. O que é, não se diz de
alguém a quem falta algo, nem de quem teve começo, mas daquele que, com o poder da incorrupta
beatitude, é perpétuo e não pode nem poderia, em algum tempo, não ser. O Ser divino não está sujeito
à extinção nem ao começo e, como nada falta à eternidade de Deus, somente dele se deve afirmar a
incorrupta eternidade.
6. Com esta definição de sua infinidade, concorda aquela palavra: Eu sou o que sou. Para nós, porém, é
ainda necessário entender a obra de sua magnificência e poder. Sendo-lhe próprio o ser, pois
permanece sempre e não começa de modo algum, escuta-se a palavra digna do Deus eterno e
incorrupto: O que tem o céu nas palmas e a terra no côncavo da mão (Is 40,12), e também: O céu é
meu trono, e a terra, escabelo de meus pés. Que casa me edificareis, ou qual o lugar de meu repouso?
Não foi a minha mão que fez isto? (Is 66,1-2). O céu inteiro está na palma de Deus e toda a terra está
contida no côncavo da sua mão. Quanto à palavra de Deus, por mais que se aprofunde sua
compreensão, seu sentido íntimo contém sempre mais do que aquilo que o ouvido percebe. Pois o céu,
fechado nas palmas, é também o trono de Deus, e a terra, contida no côncavo da mão, é igualmente o
escabelo de seus pés. Trono e escabelo não se podem entender como uma extensão da forma do corpo,
segundo o modo de assentar-se, já que aquilo que é para si trono e escabelo é também aquilo que a
infinidade poderosa encerra segurando na palma da mão. Deve-se reconhecer, nestas comparações
tiradas das criaturas, que Deus está dentro e fora de todas as coisas, que transcende e está no mais
íntimo de tudo e mostra o seu poder sobre a natureza exterior, contendo-a na mão. O trono e o
escabelo, postos como base, manifestam que as coisas exteriores estão submetidas Àquele que está no
interior, pois Deus está dentro das coisas exteriores e encerra as interiores a partir do exterior. Ele
mesmo contém tudo o que está dentro e fora e, como é infinito, não está longe de nada, e nada deixa
de estar dentro daquele que é infinito. Demorando-se nestas afirmações tão religiosas, com muito
empenho, meu espírito se deleitava. Julgava que nenhum pensamento era digno de Deus, por estar Ele
além da compreensão das coisas. Quanto mais a mente finita se dilata para além dos limites do
pensamento, mais a infinidade da desmedida eternidade excede a infinidade do que procura atingi-la.
Aquilo que piedosamente chegamos a entender, o Profeta confirmava claramente ao dizer: Aonde ireilonge do teu espírito ou fugirei de tua face? Se subo aos céus, lá estás; se desço aos infernos, ali te
encontro. Se tomasse minhas asas, antes da luz, e fosse habitar nos confins dos mares, também ali tua
mão me conduziria e tua destra me seguraria (Sl 138,7-10). Nada existe sem Deus e não há lugar
algum em que Deus não esteja. Nos céus está, no inferno está, além dos mares está. Está dentro do que
é interior, transcende o que é exterior. Tal como contém, assim é contido. Não está em coisa alguma
sem que esteja em todas.
7. A alma se alegrava com a percepção desta excelente e inexplicável inteligência, porque adorava em
seu Pai e Criador a infinidade de imensa eternidade. Porém, com um empenho mais exigente,
procurava ao menos contemplar a beleza de seu infinito e eterno Senhor, como se a incircunscrita
imensidade da bela inteligência pudesse ser mostrada de modo que sua beleza fosse conhecida.
Quando a mente religiosa se via cercada pelo erro devido a sua fraqueza, encontrou nas vozes
proféticas esta belíssima sentença: Pela magnitude das obras e beleza das criaturas pode-se chegar a
contemplar, por analogia, seu Criador (Sb 13,5; LXX). O Criador daquilo que é grande está nas coisas
maiores e o Autor das coisas belíssimas está nas mais belas. Quando a obra excede o próprio
pensamento, necessariamente deve o autor superar em muito esse pensamento. Certamente belo é o
céu, o éter, a terra, os mares; e o conjunto de tudo existe com sua formosura, a ponto de escolherem os
gregos para nomeá-lo a palavra, apropriada, kosmos, que significa mundo. Nossa mente, por um
instinto natural, capta a beleza das coisas de tal modo que, como acontece com certas aves e animais,
não pode expressar com palavras o que entende, pois a palavra fica aquém do pensamento, enquanto,
por outro lado, toda palavra provém da mente e esta fala a si mesma com compreensão. Não se deve,
então, pensar que o Senhor de toda beleza seja necessariamente muitíssimo mais belo do que toda a
beleza? E se a beleza da eterna glória escapa a toda compreensão, será que ela não permite a nossa
inteligência uma intuição a seu respeito? Por conseguinte, Deus deve ser confessado como belíssimo,
pois, se não existe para a inteligência uma expressão adequada, contudo Ele não se acha fora da
possibilidade de compreensão.
8. O espírito imbuído pelo desejo despertado por estas piedosas sentenças e doutrinas descansava,
como em inacessível altura, na beleza desta idéia, compreendendo que não lhe fora dada, pela sua
natureza, outra coisa com que pudesse prestar ao seu Criador maior homenagem que esta: reconhecer
que seu ser é tão grande que nele se pode crer, mas não se pode entendê-lo, pois a fé aceita a
explicação necessária à religião, mas a infinidade do poder eterno a ultrapassa.
9. Em meio a todas estas coisas, permanecia latente o sentimento natural, alimentado pela esperança,
de que a santa idéia sobre Deus e os bons costumes mereceria uma incorrupta felicidade como
recompensa pela luta vitoriosa. Não traria fruto pensar bem sobre Deus se a morte fosse destruir todo
o sentido e se o ocaso da natureza falível o extinguisse. A própria razão nos persuadia de que não seria
digno de Deus fazer participar do conselho e da prudência, nesta vida, o homem, sujeito a falhar e
destinado a morrer para sempre, de tal sorte que aquele que não existia apenas seria trazido a este
mundo para deixar de existir. Pelo contrário, deve-se entender que a única razão de ser de nossa
criação está em que o que não era começasse a ser, e não em que o que começou a ser deixasse de
existir.
10. O espírito se fatigava, temendo em parte por si mesmo, em parte pelo medo do corpo. Conservava
firmemente, pela piedosa profissão da fé, seu modo de pensar a respeito de Deus, mas preocupava-se
por si e pelo declínio de seu habitáculo, pois, cheio de ansiedade e incerteza, julgava que o corpo
haveria de perecer juntamente com ele. Contudo, depois do conhecimento da Lei e dos Profetas, veio a
conhecer também as palavras da doutrina evangélica e apostólica: No princípio era o Verbo, e o Verbo
estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por Ele
e, sem Ele, nada foi feito. O que foi feito, nele é a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha
nas trevas, e as trevas não a compreenderam. Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era
João. Este veio para dar testemunho da luz. Era a luz verdadeira, que ilumina todo o homem que vem
a este mundo. Estava no mundo e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não o conheceu. Veio para o
que era seu, e os seus não o receberam. A todos quantos o receberam deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus, àqueles que crêem em seu nome; que não nasceram do sangue, nem da vontade do
homem, nem da vontade da carne, mas de Deus. E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e vimos
sua glória, glória como do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade (Jo 1,1-4). A mente
ultrapassa a razão natural e entende mais sobre Deus do que imaginava. Reconhece ser seu Criador o
Deus de Deus e ouve que o Deus Verbo, no princípio, estava junto de Deus. Compreende que a luz do
mundo, estando no mundo, pelo mundo não foi reconhecida. O que veio ao que era seu, pelos seus não
foi recebido. Mas, sabe também que aqueles que o receberam, como recompensa de sua fé, se
tornaram filhos de Deus. E apreende que não nasceram da união da carne nem foram concebidos pelo
sangue nem pela vontade dos corpos, mas nasceram de Deus. Em seguida conhece o Verbo feito carne,
que habitou entre nós, e reconhece que foi vista a sua glória que, sendo a do Unigênito do Pai, é
perfeita com a graça e a verdade.
11. Aqui, a mente trêmula e ansiosa já encontra mais esperança do que pensava. Em primeiro lugar, é
imbuída do conhecimento de Deus Pai. Aquilo que anteriormente, pelo senso natural, afirmava sobre a
eternidade, infinidade e beleza de seu Criador, agora aceita como ser próprio também do Deus
Unigênito. Não estende a fé a vários deuses, por ouvir que Deus vem de Deus. Não admite a
diversidade de natureza que separaria Deus de Deus, porque reconhece ser cheio de graça e de verdade
o Deus de Deus. Não pensa ser posterior o Deus de Deus, porque reconhece que no princípio estava
junto de Deus. Reconhece que é muitíssimo extraordinária a fé neste conhecimento salutar, mas sabe
que traz consigo um imenso prêmio, porque, se os seus não o receberam, os que o receberam foram
elevados à filiação de Deus, não pelo nascimento da carne, mas pela fé. Ser filhos de Deus não vem da
necessidade, mas do poder, pois o dom de Deus, proposto a todos, não é dado aos que nasceram
simplesmente pela natureza, mas é alcançado como prêmio da aceitação. Embora cada um tenha o
poder de se tornar filho de Deus, a fraqueza de uma fé vacilante pode constituir um impedimento para
isto. Devido a esta dificuldade é levado a esperar com relutância, desejando mais, porém acreditando
menos. Por isso o Deus Verbo se fez carne, para que, pelo Deus Verbo feito carne, a carne fosse
elevada, até ser Deus Verbo. Para que se conhecesse que o Verbo feito carne não era outro senão o
Deus Verbo e que não deixava de ter a carne de nosso corpo, habitou entre nós, e o que habitou entre
nós não é outro, senão o mesmo Deus. Ao se fazer carne de nossa carne, por condescendência, assumiu
nossa carne, e não ficou privado do que é seu, porque, como Unigênito de Deus, é cheio de graça e de
verdade, perfeito no que é seu, e verdadeiro no que é nosso.
12. Com alegria a mente acolheu esta doutrina do divino mistério. Elevando-se até Deus por meio da
carne, foi chamada ao nascimento pela fé e à posse da celeste e nova geração concedida pelo poder.
Reconheceu o cuidado que tem por ela o seu Pai e Criador, tendo por certo que não será reduzida a
nada por Aquele, no qual tudo subsiste, vindo do nada. Tudo isso ultrapassa os limites da inteligência
humana, incapaz de entender os desígnios celestes apenascom o senso comum, que julga haver na
natureza das coisas somente aquilo que compreende ou pode provar por si mesmo. Mas as virtudes de
Deus, segundo a magnificência do poder eterno, não são avaliadas pela inteligência, mas pela
infinidade da fé. Pelo fato de não entender, não deixava de crer que no princípio Deus estivesse junto
de Deus e que o Verbo feito carne tivesse habitado entre nós, e lembrava-se de que poderia entender se
acreditasse.
13. Para que algum erro nascido da prudência humana não impeça que se creia com total confiança
nestes mistérios da nossa fé, temos ainda o Apóstolo que ensina com palavras divinas: Tomai cuidado
para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas especulações da “filosofia”, segundo a tradição
dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo, porque nele habita a plenitude da
divindade corporalmente e nele fostes levados à plenitude. Ele é a Cabeça de todo Principado e de
toda a Autoridade. Nele fostes circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem, mas
pelo despojamento de vossa natureza carnal, pela circuncisão de Cristo, sepultados com Ele no
batismo, no qual também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos. E vós
estáveis mortos pelas vossas faltas e pela incircuncisão da carne, Ele vos vivificou juntamente com
Ele; perdoou todos os nossos delitos, apagou o quirógrafo que existia contra nós nas ordens legais, e
o suprimiu, pregando-o na cruz, despojando nesta os Principados e as Autoridades, expondo-os em
espetáculo diante do mundo, deles triunfando em público com a confiança em si mesmo (Cl 2,8-15). A
firmeza da fé rejeita as capciosas e inúteis questões da filosofia e não se sujeita às falácias das
humanas inépcias. Não se oferece a verdade como espólio à falsidade. A fé não considera Deus
segundo o senso comum da inteligência, nem julga, de acordo com os elementos do mundo, a Cristo,
em quem a plenitude da divindade habita corporalmente, pois, já que nele está a infinidade do eterno
poder, este poder eterno da infinidade supera toda a compreensão da mente terrena. Atraindo-nos para
a natureza de sua infinidade, não nos ligou à observância dos preceitos, nem nos instruiu pela sombra
da Lei para o rito do corte da carne (isto é, a circuncisão), mas quis que o espírito circunciso dos
vícios pela purificação dos pecados nos libertasse de toda exigência natural do corpo. Por sua morte
seremos, no batismo, sepultados juntamente com Ele, para voltarmos à vida da eternidade. Visto que a
regeneração para a vida eterna é a morte para esta vida e que, morrendo para os vícios, renasceremos
para a imortalidade, Ele, imortal, morreu por nós, para que ressuscitássemos juntamente com Ele para
a imortalidade. Assumiu a carne do pecado a fim de conceder-nos, pela assunção de nossa carne, o
perdão das culpas, enquanto se tornou participante do que foi assumido, com exceção do pecado.
Apagou, pela morte, a sentença de morte e, pela nova criação do gênero humano, destruiu em si
mesmo o decreto de condenação. Permitiu ser pregado na cruz para que, destruída a maldição da cruz,
nela pregasse toda a condenação terrena. Por último, padeceu como Homem para desonrar as
Potestades. Morrendo como Deus, segundo as Escrituras, deveria triunfar com confiança de vencedor,
pois sendo imortal e não podendo ser vencido pela morte, quis morrer para conceder a imortalidade
aos que morrem. Estas coisas vão além da compreensão humana, são feitas por Deus e não caem sob o
julgamento natural de nossa mente, porque a obra da infinita eternidade exige um julgamento infinito
para julgá-la. Que Deus se faça Homem, que o imortal possa morrer, que o eterno seja sepultado, não
pode ser entendido pela inteligência, mas constitui exceção, vinda do poder. Não pertence aos
sentidos, mas ao poder divino, que Deus venha do homem, o imortal do morto, o eterno do sepultado.
Pela sua morte ressuscitamos para Deus juntamente com Cristo e, como em Cristo está a plenitude da
divindade, devemos reconhecer que o Pai nos ressuscita juntamente com o que morreu e confessar que
Cristo Jesus é Deus na plenitude da divindade.
14. Minha mente repousava feliz, numa segurança tranqüila, por causa da sua esperança. Já não temia
a iminência da morte, por considerá-la como o caminho para a vida eterna. Não julgava molesta ou
dura a vida do corpo, mas acreditava ser ela o que são as letras na meninice, o remédio para os
doentes, a natação para os náufragos, a disciplina para os adolescentes, a obediência para os militares.
Compreendia que a tolerância das coisas presentes traz como prêmio a bem-aventurada imortalidade.
Pregava aos outros aquilo que acreditava ser verdadeiro para si mesma e, pelo ministério do
sacerdócio recebido, estendia seu múnus a serviço da salvação do povo.
15. Entrementes, surgiram invenções imprudentes de homens desesperados de si mesmos, maus, sem
piedade para com todos, que medem o poder da natureza de Deus pela fraqueza da sua própria
natureza. Não pretendiam elevar-se até o infinito, a ponto de opinar sobre a imensidão do que é
infinito, mas queriam encerrar o Ilimitado dentro dos limites de sua inteligência e ser, para si
mesmos, os árbitros da religião, quando, ao contrário, a obediência é necessária para a religião.
Esquecidos do que lhes compete, negligentes das coisas divinas, põem-se a corrigir os preceitos.
16. Passamos em silêncio as estultíssimas razões dos outros hereges, sobre as quais, no entanto, se
houver ocasião no discurso, diremos algo. Alguns corrompem de tal forma o mistério da fé evangélica
que, sob a única pia profissão de um só Deus, renegam o nascimento do Deus Unigênito, dizendo
tratar-se antes de uma extensão até o homem do que de uma descida. Negam que Aquele que foi Filho
do Homem, tendo no tempo assumido a carne, tenha sido sempre e seja agora o mesmo Filho de Deus.
Dizem que não há nele o nascimento de Deus, mas que é o mesmo que procede de si mesmo.
Pretendem que o Pai se tenha estendido a si mesmo, como Filho, até a Virgem, de modo que a
sucessão que leva de Deus, tal como é em si mesmo, até a carne, permita guardar a inviolável fé no
único Deus. Outros ainda (porque não há salvação alguma a não ser em Cristo, Deus Verbo, que no
princípio estava junto de Deus), negando a natividade, professam somente a criação, já que professar o
nascimento significa aceitar que Cristo é verdadeiro Deus, enquanto afirmar a criação faz supor que
não seja Deus. Simulam com isso uma fé verdadeira, ao afirmar um só Deus em sua essência,
enquanto não excluem a Cristo do mistério. Substituem, porém, o verdadeiro nascimento pela palavra
e pela fé na criação e assim o separam do único Deus verdadeiro, já que uma criatura subordinada não
pode pretender para si a perfeição da divindade que não lhe foi concedida pelo verdadeiro nascimento.
17. O espírito se inflama ao responder à sua loucura, recordando como foi salutar para si mesmo não
apenas crer em um só Deus, mas crer também que Deus é Pai e, não apenas esperar em Cristo, mas no
Cristo que é Deus, que não é criatura, mas é Deus criador, nascido de Deus. Apressamo-nos, a partir
dos precônios proféticos e evangélicos, em confundir o delírio e a ignorância daqueles que,
pretextando a pregação de um só Deus, a única e verdadeiramente útil pregação religiosa, ou negam
que Cristo seja Deus Filho, ou se opõem a que seja verdadeiro Deus, de tal modo que a criação de uma
criatura poderosa faça parte do mistério da fé no único Deus, porque, para eles, confessar a natividade
de Deus seria afastar-se da fé no único Deus. Quanto a nós, instruídos por Deus a não pregarmos dois
deuses nem um solitário, apoiamos a razão desta afirmação nos precônios evangélicos e proféticos,
sobre Deus Pai e Deus Filho. Para nossa fé, um e outro são um só, mas não são uma só pessoa.
Professamos que um e outro não são o mesmo e também que, entre o verdadeiro e o falso, não há
algum outro. O nascimento não permite que Deus nascidode Deus seja o mesmo que este nem permite
que seja algo diferente.
18. Vós, que fostes chamados a estudar estes assuntos pelo fervor da fé e desejo da verdade que o
mundo e os sábios deste mundo não conhecem, será preciso que vos lembreis de que as fracas e tolas
opiniões devem ser rejeitadas e as mentes estreitas e imperfeitas devem abrir-se em religiosa
expectativa. Os espíritos regenerados precisam de novas maneiras de compreender, para que cada um
seja iluminado por sua consciência de acordo com o dom de origem celeste. Em primeiro lugar, ao
refletir sobre a essência de Deus, deixe-se guiar, pela fé, como adverte o santo Jeremias (cf. Jr 23,22;
LXX). Ao ouvir e falar sobre a substância de Deus, regule sua mente por aquilo que é digno de Deus e
não procure entender, a não ser na medida, sua infinidade. Consciente de ter sido feito participante da
natureza divina, como diz o santo Apóstolo Pedro, em sua Segunda Epístola (cf. 2Pd 1,4), não medirá
a natureza de Deus pelas leis da natureza, mas considerará as divinas afirmações de acordo com a
magnificência da palavra de Deus sobre si mesmo. O melhor leitor é o que espera compreender a
partir das palavras e não o que lhes impõe um sentido; é o que reflete sobre elas, mais do que as força;
é o que não atribui aos ditos o que imagina conterem, é o que não presume, antes da leitura, a sua
compreensão. Portanto, ao tratar das coisas de Deus, concedamos a Deus o conhecimento de si
mesmo, submetendo-nos com piedosa veneração a suas palavras, pois só é idônea testemunha de si
mesmo quem só por si mesmo é conhecido.
19. Se, ao tratarmos da natureza de Deus e do nascimento, apresentamos exemplos e comparações,
ninguém os considere como absolutamente perfeitos, pois, quando se trata de Deus, a comparação com
o que é terreno é nula, não tem valor. Todavia a fraqueza de nossa inteligência busca nas coisas
inferiores alguma figura, procurando como que indícios das coisas superiores, para que, com o auxílio
do que é corriqueiro e familiar, a partir das provas de nossa experiência, sejamos conduzidos à idéia
do que não costumamos experimentar. Toda comparação é mais útil ao homem do que adaptada a
Deus, porque é sobretudo um sinal para a inteligência sem que possa satisfazê-la. Não se pense que
aquilo que se deduz sobre a natureza da carne e a do espírito possa equiparar-se, e que as coisas
invisíveis possam ser comparadas às palpáveis. Afirmamos, no entanto, serem necessárias as
comparações, por causa da fraqueza humana, para nos vermos livres da acusação de serem estes
exemplos insatisfatórios. Vamos então continuar falando de Deus com as palavras de Deus,
impregnando, porém, nossa mente com a imagem do que conhecemos.
20. Em primeiro lugar, dispusemos o plano de toda a obra, para que a ordem bem escolhida mostre ao
leitor a progressão e conexão dos livros. Nada de desordenado ou confuso quisemos apresentar, para
que o acúmulo sem ordem da obra não desse azo a alguma reclamação indignada. Porque não há
subida por uma escarpa que dispense os poucos degraus que levam os passos até o cume, preparando o
início da caminhada, suavizamos este árduo caminho da encosta, tornando-a branda para a
inteligência, não mais por degraus, mas por um plano insensivelmente inclinado, de modo que, sem
sentir a subida, se chegue ao alto.
21. Depois do primeiro livro, o seguinte ensina o mistério da divina geração, a fim de que aqueles que
serão batizados no Pai, no Filho e no Espírito Santo não ignorem o sentido destes nomes, nem
confundam com palavras a sua inteligência, mas concebam no espírito a cada um e como é e como se
chama, e conheçam claramente que sua realidade não é de um nome, assim como o nome não deixa de
expressar a verdade.
22. Depois deste discurso breve e simples, no qual se demonstra o que é a Trindade, o terceiro livro já
vai um pouco mais longe e adapta o mais possível, por meio de muitos exemplos, à inteligência da fé,
aquilo que ultrapassa a compreensão da mente humana e que Deus revelou a respeito de si mesmo
quando disse: Eu estou no Pai, e o Pai, em mim (Jo 10,38). O que o homem, fraco por natureza, por si
mesmo não entende, a fé consegue pelo conhecimento esclarecido, porque não se deve deixar de crer
no que Deus ensina sobre si mesmo nem se deve pensar que a compreensão do seu poder esteja fora do
alcance da fé.
23. O quarto livro tem como ponto de partida as doutrinas dos hereges e rejeita os vícios que
desdouram a fé da Igreja. Apresenta a exposição da infidelidade declarada por muitos até bem pouco
tempo, e mostra com que finura e ardil aqueles ímpios defendiam haver, pela Lei, um só Deus e
demonstra, por meio de todos os testemunhos da Lei e dos Profetas, que confessar um só Deus, sem o
Deus Cristo, é irreligião, e pregar o Deus Unigênito, Cristo, sem confessar a existência de um só Deus,
é falta de fé.
24. O quinto livro contém, em ordem, as respostas à profissão de fé estabelecida pelos hereges. Pois
enganam-se ao pregar um único Deus segundo a Lei e também se iludem ao declarar ser um só o Deus
verdadeiro pela mesma Lei, de modo que, pela aceitação do único Deus verdadeiro, negam a
natividade do Senhor Cristo, porque só onde há nascimento há conhecimento da verdade. Seguimos,
em nosso ensinamento, a mesma ordem que eles usaram para negar a verdade. Não pregamos dois
deuses, nem um só Deus como solitário, mas o Pai, verdadeiro Deus, tanto pela Lei como pelos
Profetas, e não corrompemos a fé no único Deus nem negamos a natividade. Segundo eles, o Senhor
Jesus Cristo é criado, não gerado, por isso o nome de Deus lhe foi imputado, mas não lhe pertence
propriamente. A realidade da divindade é demonstrada de tal modo pelas autoridades proféticas que
nós, pregando ser Deus verdadeiro o Senhor Jesus Cristo, mostramos que a verdade de sua divindade,
que Ele possui por geração, é compatível com a verdade de um só Deus.
25. O sexto livro põe às claras toda a fraudulência das afirmações heréticas. Para que se desse crédito
a suas odiosas afirmações, os hereges roubaram as pias pregações da Igreja, para disfarçar suas ímpias
doutrinas sob o manto da fé. Condenando as idéias e os vícios dos hereges, a saber, de Valentino e de
Sabélio, de Maniqueu e de Hieracas, abrandando suas palavras irreligiosas e moderando os
significados ambíguos a pretexto da condenação da impiedade, extinguiam a doutrina da piedade. Nós,
examinando cada uma das suas palavras e declarações, libertamos as santas pregações da Igreja e não
permitimos haver algo de comum com as condenadas heresias. Condenando o que deve ser condenado,
seguimos apenas o que deve ser venerado. Ensinamos que o Senhor Jesus Cristo é Filho de Deus (o
que por eles é principalmente negado), como o Pai atesta sobre Ele, como a respeito de si mesmo o
declara, como os apóstolos pregam, como os religiosos crêem, como os demônios gritam, como os
judeus confessam ao negarem, como os povos ignorantes compreendem, para que não haja lugar para
hesitação e nada fique ignorado.
26. O livro sétimo dá continuidade à discussão, propondo as normas da perfeita fé. Em primeiro lugar,
com uma sadia e incorrupta demonstração da fé inviolável, toma parte na contenda entre Sabélio,
Ebion e todos os que não pregavam Jesus como verdadeiro Deus. Sabélio negava que subsistisse antes
dos séculos Aquele que os outros confessavam ser criatura. Sabélio ignorava o Filho subsistente, mas
não duvidava de que o Deus verdadeiro agisse, estando no corpo de Cristo. Outros negavam a
natividade e afirmavam ser Ele criatura, por não entenderem que suas obras eram obras do Deus
verdadeiro. Nossa fé é o objeto de sua contenda. Pois, enquanto nega o Filho (e por isso erra), Sabélio
vence, porque foi o Deus verdadeiro (como bem prova) que agiu. A Igreja vence aqueles que negam
que Cristo seja verdadeiro Deus. Os outros, ao demonstrarem que Cristo subsiste antes dos séculos e
que sempre atua, triunfam conosco, condenando Sabélio, que conhece o verdadeiro Deus,mas
desconhece o Filho de Deus. Ebion é vencido por ambos, pois um (Ário) afirma ser Ele subsistente
antes dos séculos, e o outro (Sabélio) convence quanto ao verdadeiro Deus que age. Uns e outros,
todos vencem-se e são vencidos, porque a Igreja, não só contra Sabélio e contra os que pregam ser Ele
criatura, mas ainda contra Ebion, atesta ser Deus verdadeiro de Deus verdadeiro o Senhor Jesus Cristo,
nascido antes dos séculos e depois gerado como Homem.
27. Ninguém duvida convir plenamente à doutrina sagrada que anunciemos primeiro o Filho de Deus,
com base na Lei e nos Profetas, depois, também o Deus Verdadeiro em relação com o mistério da
unidade (do Pai e do Filho). Em seguida, confirmando a Lei e os Profetas pelos Evangelhos,
ensinaremos por meio destes que Cristo é Filho de Deus e que é Deus verdadeiro. Muitíssimo justo
foi, portanto, depois do nome do Filho, demonstrar sua verdade. Aliás, de acordo com o senso comum,
dizer: Filho já indica a sua realidade. Mas, para que não subsista ocasião de engano e de ilusão para os
adversários da verdadeira divindade do Deus Unigênito, apoiamos esta mesma fé (pela qual se crê ser
Ele o próprio Filho de Deus) na natureza da verdadeira divindade. Ensinamos ser Deus Aquele que não
se nega ser Filho de Deus, provando por estes meios: nome, natividade, natureza, poder, confissão, que
não é diferente do nome que lhe é dado, que o nome não deixa de fazer referência ao nascimento, que,
pelo nascimento, não perde sua natureza, que a natureza não perde seu poder e que o poder não deixa
de ser reconhecido na confissão consciente da verdade do seu ser. Baseamo-nos nos argumentos
tirados dos Evangelhos, segundo seus diversos gêneros, para mostrar que sua confissão não ocultou
seu poder, seu poder não ocultou a natureza, a natureza é a que lhe corresponde pelo nascimento, e o
nascimento não deixa de ser o que corresponde ao nome de Filho. Deste modo, não há lugar para a
ímpia calúnia, já que Nosso Senhor Jesus Cristo, quando ensinou a verdade de sua natureza,
demonstrou a divindade do Deus verdadeiro que procede do Deus verdadeiro, pelo nome, nascimento,
natureza e poder.
28. O livro oitavo, bem como os dois anteriores, muito proveitosos para a fé dos que crêem no Filho
de Deus, que é o Deus verdadeiro, agora se detém na demonstração de um só Deus, sem negar a
natividade do Filho de Deus nem introduzir, por este nascimento, a divindade de dois deuses. Em
primeiro lugar, ensina com que meios os hereges se esforçam por não levar a sério a verdade de Deus
Pai e de Deus Filho, que não podem negar. Desfaz os ineptos e ridículos pretextos segundo os quais
afirmam que a união do Pai e do Filho se dá pela vontade e unanimidade, mais que pela natureza,
porque foi dito: A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma (At 4,82) e Aquele que planta e
aquele que rega são um (1Cor 3,8), e ainda: Não rogo somente por eles, mas, por aqueles que, pela sua
palavra, crerão em mim, a fim de que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti, para que
eles estejam em nós (Jo 17,20-21). Nós, porém, examinando estas mesmas palavras segundo sua
própria força (isto é, segundo a autoridade delas), mostramos conterem em si a fé na divina
natividade. Estudando atentamente todas as afirmações do Senhor, ensinamos, segundo os precônios
apostólicos e as palavras do Espírito Santo, o íntegro e perfeito mistério da majestade do Pai e do
Unigênito. Pois o Filho compreendido no Pai e o Pai conhecido no Filho demonstram o nascimento do
Deus Unigênito e a verdade de sua perfeita divindade.
29. Nas questões mais necessárias relativas à salvação, é pouco apresentar somente argumentos
próprios à satisfação da fé, porque muitas vezes as afirmações não completamente entendidas de nossa
exposição enganam e mudam de sentido. No entanto, os argumentos apresentados pelos nossos
adversários são tão ridículos que, por si mesmos, confirmam a nossa fé. Por isso, todo o nono livro se
ocupa em repelir os argumentos usados pelos ímpios, que intentam tirar a força da natividade do Deus
Unigênito, esquecidos do mistério da Economia oculto há séculos, e não se lembram de pregar,
conforme a fé evangélica, o Deus e Homem. Negam que Nosso Senhor Jesus Cristo seja Deus e, como
Deus Filho, igual a Deus Pai. Negam que tenha nascido de Deus, subsistindo em virtude da geração
eterna, na verdade do Espírito (isto é, da divindade). Costumam apoiar-se nestas palavras do Senhor:
Por que me chamas bom? Ninguém é bom a não ser o único Deus (Lc 18,19). Dizem que, respondendo
ao ser chamado de bom, que, a não ser o único Deus, ninguém é bom, demonstra que está fora da
bondade de Deus, que é o bom, e também que não está na verdade de Deus, que é um. A estas palavras
também acrescentam mais argumentos para a impiedade: É esta a vida eterna, que te conheçam a ti,
único e verdadeiro Deus, e a quem enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3). Argumentam que, se declara ser o
Pai o único Deus verdadeiro, não é nem verdadeiro, nem Deus, porque a unicidade do único Deus
verdadeiro não pode estender-se para além daquele que possui tal propriedade. Não se entenda ter dito
isto de maneira ambígua, dizem eles, visto que Ele mesmo declarou: O Filho por si mesmo nada pode
fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer (Jo 5,19). Não poder fazer nada sem um exemplo revela a
fraqueza da natureza, e de modo algum se pode igualar à onipotência a submissão de alguém que
depende da ação de outrem. A própria razão mostra que existe uma grande diferença entre poder todas
as coisas e não poder. Esta diferença existe a ponto de ter Ele mesmo declarado: O Pai é maior do que
eu (Jo 14,28). Querem que cesse toda ocasião de contradizer esta confissão, dada a sua clareza, pois
seria impiedade atribuir a natureza e a honra devidas a Deus a quem as recusa. Além disso, dizem
estar tão longe dele a natureza do verdadeiro Deus que chega a atestar: Quanto ao dia e à hora
ninguém conhece, nem os anjos nos céus, nem o Filho, mas somente o Pai (Mc 13,32). Que o Filho não
saiba o que somente o Pai sabe mostra estar longe do que sabe Aquele que não sabe, porque na
natureza submetida à ignorância não podem existir a força e o poder, que estão proibidos a quem é
dominado pela ignorância.
30. Mostramos que estas coisas foram entendidas de modo ímpio, com um sentido corrupto e
depravado. Apresentamos todas as causas de suas afirmações, segundo o gênero das questões, os
tempos e a economia da salvação, antepondo as causas às palavras, ao invés de atribuirmos as causas
às palavras. Há diferença entre: o Pai é maior do que eu (Jo 14,20) e Eu e o Pai somos um (Jo 10,30),
como não é o mesmo dizer: Ninguém é bom, a não ser o único Deus (Lc 18,19), e: Quem me vê, vê
também o Pai (Jo 14,9). Sem dúvida, há grande diversidade entre estas afirmações contrárias: Pai,
tudo o que é teu é meu, e o que é meu é teu (Jo 17,10), e: Para que te conheçam, a ti, único e
verdadeiro Deus ( Jo 17,3), ou entre: Eu estou no Pai, e o Pai em mim (Jo 14,11), e: Quanto ao dia e a
hora ninguém conhece, nem os anjos nos céus, nem o Filho, mas somente o Pai (Mc 13,31). É preciso
entender, em cada uma destas afirmações, o que se refere à economia e o que se refere ao poder da
natureza consciente de si mesma. Como o autor de todos os ditos é o mesmo, ficando demonstrado o
valor de cada gênero de declaração (das diferentes naturezas que existem em Cristo), não se pode
dizer que seja desconhecimento da verdadeira divindade aquilo que é pregado a respeito do mistério
da fé evangélica, no que se refere à manifestação da causa, do tempo, da natividade e do nome.
31. O livro décimo tem o mesmo teor que a fé. Tendo eles roubado algumas declarações sobre os
sofrimentos do Senhor, tomando-as, de modo estulto, como injúria à natureza divina de Jesus Cristo
Senhor e a seu poder, foi preciso provar terem sido entendidas por eles com toda a impiedade e
lembrar que o Senhor as pronunciou a fim de dar testemunho da verdadeira e perfeitamajestade nele
existente. Para ocultar sua impiedade sob uma aparente religiosidade servem-se de maneira enganosa
destas palavras: Minha alma está triste até a morte (Mt 26,38). Querem mostrar, assim, como está
longe da bem-aventurança e incorruptibilidade de Deus Aquele cuja alma é dominada pelo medo da
tristeza iminente e que chega a suplicar, aterrorizado pela necessidade da Paixão: Pai, se for possível,
que se afaste de mim este cálice (Mt 26,39). Pareceria, sem dúvida, temer o sofrimento, por ter orado
para se ver livre dele, porque a ansiedade diante da dor foi a causa do pedido e a violência do
sofrimento venceu de tal modo sua fraqueza, que chegou a dizer quando padecia na cruz: Meu Deus,
meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27,46) e, queixando-se de sua desolação, comovido pela
amargura, privado do auxílio paterno, entregou o espírito dizendo: Pai, em tuas mãos entrego meu
espírito (Lc 23,46). Ao exalar o espírito, perturbado pelo temor, entregou-o a Deus Pai para guardá-lo,
porque o desespero de não ter segurança exigiu a entrega.
32. Estes estultíssimos e ímpios homens, sem compreenderem que nada nas ações era contrário às
palavras, apegando-se somente a elas, puseram de lado as causas pelas quais foram ditas. É muito
diferente: Minha alma está triste até a morte (Mt 26,38), de: Logo vereis o Filho do Homem assentado
à direita do poder de Deus (Mt 26, 64), e não é o mesmo: Pai, se possível, passe de mim este cálice,
que: O cálice que meu Pai me deu, não o beberei? (Jo 18,11). Grande diferença existe entre: Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27,43), e: Em verdade eu te digo, hoje estarás comigo
no paraíso (Lc 23,43); muito divergem: Pai, em tuas mãos entrego meu espírito (Lc 23,46), e: Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (Lc 23, 34). Recaíram na impiedade, incapazes de
entender as palavras divinas. Já que não combinam temor e liberdade, prontidão e escusa, queixa e
advertência, desconfiança e intercessão, sem se lembrarem do que foi dito sobre a natureza divina,
mantiveram como provas de sua impiedade os fatos e as palavras da economia. Por isso, tendo
demostrado tudo o que pertence ao mistério, tanto da alma quanto do corpo do Senhor Jesus Cristo,
não deixamos nada sem ser explorado, nada foi passado em silêncio. Combinando a explicação de
todas as palavras segundo seu gênero, demonstramos que a confiança não temeu e a vontade não
hesitou e que Ele não procurou segurança nem orou para recomendar-se a si mesmo, mas desejou o
perdão para os outros. Confirmamos, pela pregação absoluta do mistério evangélico, a fé em todas as
suas palavras.
33. A estes homens sem esperança, nem mesmo a própria glória da ressurreição pôde manter dentro
dos limites da fé, pelo conhecimento da verdadeira religião e compreensão da verdade. Da confissão
da divina condescendência tiraram armas para sua impiedade. A revelação do mistério serviu-lhes
para desprezar a Deus. Por ter dito: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus (Jo 20,17),
excluem-no da natureza do Deus verdadeiro já que também é comum, a nós e a Ele, que o Pai seja Pai,
e que Deus seja Deus. Afirmam estar, como nós, submetido a Deus criador e ser Filho por adoção.
Baseiam-se nas palavras do Apóstolo: Ao dizer que tudo lhe está submetido, excetua-se sem dúvida
Aquele que lhe sujeitou todas as coisas. E, quando tudo lhe estiver submetido, então ainda o próprio
Filho estará submetido Àquele que lhe submeteu todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos
(1Cor 1,15.27-28), para não querer admitir que haja nele a natureza divina, porque a submissão
implica fraqueza do que é dominado e significa poder do que domina. Destas questões, que devem ser
estudadas com grande reverência, ocupa-se o livro undécimo, que demostra, pelas próprias palavras
apostólicas, que a submissão não prova a fraqueza da divindade, mas, justamente, mostra a verdade de
Deus, nascido de Deus. Que o Pai seja Pai para Ele e para nós, e Deus para Ele e para nós, muito nos
enriquece e dele nada retira, pois, tendo nascido Homem e possuindo todas as limitações de nossa
carne, subiu para Deus, a fim de que nossa humanidade fosse elevada até Deus, nosso Pai, e fosse
glorificada em Deus.
34. Conforme observamos, todo gênero de estudos sempre começa pelos exercícios elementares.
Depois de longo tempo, os que foram formados por muita dedicação ao seu ofício tornam-se capazes
de passar para a experiência daquilo em que se exercitaram. Após militar nos exercícios bélicos,
passa-se para o exército; os que foram formados para tomar parte nos debates forenses pelo estudo das
leis, finalmente são enviados aos debates dos tribunais; quando o nauta intrépido já se exercitou em
lagos pequenos e conhece bem a nave, é então que enfrenta os grandes e desconhecidos mares com
suas procelas. O mesmo acontece com esta máxima e gravíssima compreensão de toda a fé. Foi o que
procuramos fazer. Antes, por breves indícios sobre o nascimento, o nome, a divindade, a verdade,
educamos a fé incipiente e, progredindo lentamente, chegamos a extirpar todos os pretextos dos
hereges. Quisemos aumentar assim o desejo de aprender dos que nos lêem. Só então os levamos a
participar das grandes e gloriosas competições, porque, na medida em que falha a mente humana em
querer abarcar, só com a opinião do senso comum, a idéia do eterno nascimento, na mesma medida
deverá ser despertado o interesse pelas questões divinas, para que seja possível perceber o que
ultrapassa nossa compreensão natural. Procuramos principalmente refutar a opinião que, alimentada
pela estupidez da sabedoria secular, julga-se no direito de dizer a respeito do Senhor Jesus: Houve
tempo em que não existia, e: Não era antes de nascer, e: Foi feito do não existente, porque o
nascimento pareceria fazer ser o que não era e nascer o que ainda não existia. Os hereges também
submetem o Deus Unigênito à idéia de tempo, como se a fé e o nascimento indicassem que não existiu
em algum tempo. Dizem ter nascido do que não existia, porque o nascimento concede o ser ao que não
era. Nós, porém, de acordo com os testemunhos apostólicos e evangélicos, pregamos existir sempre o
Pai e sempre o Filho, mostrando que o Deus de todas as coisas não existiu depois de nenhuma, mas é
antes de tudo. Sem cair na temeridade irreligiosa da idéia de que tenha nascido do não existente e de
que não tenha sido antes de ter nascido, pregamos que nasceu, tendo existido sempre, e proclamamos
que sempre existiu tendo nascido. Nele não se trata de uma exceção de inascibilidade, mas da
eternidade do nascimento, porque o nascimento supõe o Pai, mas a divindade não deixa de ser eterna.
35. Por ignorarem os ditos proféticos e não compreenderem as doutrinas celestes, para afirmarem ser
Deus criado, em vez de nascido, apóiam-se no sentido atribuído erroneamente a esta sentença: O
Senhor me criou para o início de seus caminhos e para suas obras (Pr 8,22). Dizem, por isso, que
pertence à natureza comum da criação, embora seja mais excelente o gênero de sua criação. Nele,
portanto, não há a glória do nascimento divino, mas a força da criatura poderosa. Nós, porém, sem
apresentar nada de novo, nada que seja deduzido a partir de argumentos exteriores, daremos, pelo
testemunho da própria Sabedoria, a verdadeira interpretação desta palavra. Não se pode eliminar o
nascimento divino e eterno, a partir da afirmação de ter sido a Sabedoria criada para o início dos
caminhos de Deus e suas obras. Não é a mesma coisa ser ela criada para, e ter nascido antes de todas
as coisas, pois onde se fala de natividade, só se declara a natividade; onde, porém, há a palavra
criação, aí a causa da mesma criação é anterior. Se a Sabedoria nasceu antes de tudo, embora também
tenha sido criada para algumas coisas, não é a mesma coisa existir antes de tudo e ter começado a
existir depois de algumas coisas.
36. Depois de eliminar a palavra criação da fé que temos no Deus Unigênito, pareceu justo

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