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Medicina e Religião

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125125125125125Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
CIÊNCIA E RELIGIÃO:
A RELAÇÃO ENTRE MÉDICOS E RELIGIOSOS
NO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HCUSP
Luiza Maria de Assunção*
Resumo: A intenção dessa pesquisa é avaliar em que nível se dá a relação
entre ciência e religião na atualidade. Esta avaliação será feita por meio da
relação entre a medicina psiquiátrica e a capelania religiosa do Instituto de
Psiquiatria do HCUSP (composta pelo serviço religioso católico e evangélico).
Palavras-chave: Ciência, medicina psiquiátrica, capelania religiosa.
Abstract: The intention of this research is to evaluate on which level the relationship
between science and religion happens today. This assessment will be made through
the relationship between psychiatric medicine and religious chaplaincy in the Institute
of Psychiatry of the University Hospital of the Universidade de São Paulo (composed
by a catholic and an evangelical service).
Key words: ciency, psychiatric medicine, religioous capelany
Oque sabemos normalmente sobre a relação entre ciência e religião é que se tratade uma relação conflituosa e alarmante. Weber (1982) já havia tratado dessaquestão no trabalho Rejeições religiosas do mundo e suas direções, onde ele mostra
que com o advento da modernidade, as diversas esferas (intelectual, política, erótica,
econômica e estética) alcançaram legitimidade tal qual a esfera religiosa. A religião não é
mais o único referencial. Outras esferas de atuação deixam suas marcas e procuram se
auto-afirmar. Entretanto, o autor nos mostra também que, apesar do formato particular
assumido por cada uma delas, essas poderão, em alguns momentos, entrar em contato
entre si através de seus agentes.
Bourdieu (1987), inspirando-se em Max Weber, trata dessa questão através da no-
ção de campo, o qual para ele é o espaço onde as posições dos agentes estão a priori
126126126126126Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
fixadas. Além disso, ele é definido como o local em que acontece uma luta concorrencial
entre os agentes em função de interesses específicos que distinguem determinada área de
atuação.
Ciência e religião
Vemos, entretanto, que mesmo com essa separação de competências e demarcação
de territórios, no caso específico dos campos científico e religioso, pode ocorrer tanto um
diálogo (visto que na realidade brasileira ciência e religião são formas distintas, porém,
passíveis de convivência) quanto uma substituição de um pelo outro.
A busca de auxílio em dois mundos tão diferentes encontra explicação plausível no
fato de que o homem moderno, embora envolvido pela ciência e a sua promessa de um
bem-estar social durável, mostra-se cada vez mais insatisfeito. Essa insatisfação tem sua
origem na crença ilusória de que a ciência é, por um lado, acessível a todos e, por outro,
capaz de suprir qualquer tipo de necessidade humana. Ou seja, freqüentemente a reli-
gião é retomada como um recurso quando há falta de perspectivas, quando a ciência com
todos os seus “poderes reais” revela-se ineficaz. Cabe lembrar aqui que a religião consor-
ciada à ciência, pode ser entendida como uma segurança adicional, sem que a qualifica-
ção desta última seja posta em questão.
Medicina e religião
A mesma relação que abordamos nas linhas acima pode ser pensada em relação à
medicina, pois é muito provável que a associação entre essa e a religião siga a mesma linha
de raciocínio exposta anteriormente. Na medida em que a ciência médica não dá respostas
suficientes à questão do sofrimento, ela deixa em aberto uma questão que é elementar na
concepção do enfermo: “Por que eu estou doente?”. Em outras palavras, é possível afirmar
que enquanto o saber médico explica “o ´como` das moléstias”, as terapias religiosas “pro-
curam responder ao ´por quê` das enfermidades” (MONTERO, 1985). Sob essa perspecti-
va, a religião pode possibilitar que o enfermo resgate a questão do sentido último, da razão
pela qual uma determinada enfermidade recaiu sobre ele e não sobre uma outra pessoa.
A medicina psiquiátrica como objeto de estudo
Nesta pesquisa, a opção pela psiquiatria e não por outras especialidades da medici-
na deve-se ao fato da necessidade de delimitar tão vasto objeto de análise que é o Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Soma-se a isso a forte relação existente
entre psiquiatria e religião desde tempos remotos, quando os debates religiosos e metafí-
sicos substituíram as tradições médicas, fazendo com que a psiquiatria ficasse submetida
a idéias demonológicas (LOTUFO NETO, 1997, p. 324). Se voltarmos no tempo é possível
rememorar como a verdade religiosa era predominante, se não exclusiva, nos hospitais.
Foucault (1979) relembra-nos em Microfísica do Poder como funcionava o sistema de po-
der no interior dos hospitais. O autor evidencia que, até meados do século XVIII, o pesso-
al religioso era quem possuía a exclusividade dentro dos hospitais, nos quais tinham a
função de garantir a vida cotidiana, a salvação e a alimentação dos internos.
No decorrer da história o convívio entre psiquiatria e religião foi tumultuado, vari-
ando de alianças a disputas por poder, de tentativas de colaboração a afastamentos (LO-
TUFO-NETO, 1997, p. 309). A luta por poder é algo presente tanto no interior dos cam-
pos quanto na relação entre eles, já havia considerado Bourdieu (1987). Este autor, ao
introduzir a noção de “campo”, mostra de que forma se dá o seu funcionamento, eviden-
ciando uma dinâmica de disputas, imposições e coerções que é responsável pelo seu mo-
vimento constante.
127127127127127Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
Os sujeitos da pesquisa
Os sujeitos analisados nesse estudo são os especialistas de saúde mental (psiquia-
tras) e os especialistas religiosos (existem os serviços religioso católico e evangélico, os
quais compõem a capelania hospitalar) que atuam junto ao Instituto de Psiquiatria (IPQ)
do Hospital das Clínicas (HCUSP). Com estes sujeitos foram realizadas entrevistas semi-
estruturadas e gravadas.
De um lado, existem alguns médicos sensíveis à questão da importância da religio-
sidade no tratamento das doenças que fazem a ponte entre o discurso científico e o dis-
curso religioso. Em estudo feito recentemente Puttini (2004) apresenta-nos o que ele cha-
ma de “agente híbrido”, que seria o sujeito que faz a ponte entre medicina e religião
dentro do hospital. O Instituto de Psiquiatria - apesar da indiferença de alguns dos seus
especialistas em relação à religião - proporciona uma abertura maior para a atuação dos
religiosos, esforçando-se por estabelecer aproximações e diálogos.
De outro lado, parece ocorrer uma influência do discurso científico sobre o discurso
religioso. Os ministros religiosos mostram-se dispostos a trabalhar de acordo com as nor-
mas científicas, de modo que constroem um discurso, através do qual procuram colocar
de forma enfática a prioridade atual que as explicações científicas têm na área médica em
detrimento das religiosas. Ou seja, a religião e seus especialistas não andam tão desaten-
tos, como o foram em outros tempos, em relação aos saberes da ciência. No mundo mo-
derno, onde ela já não reina mais, parece acatar as opiniões mundanas e aceitar os diag-
nósticos que outros saberes fazem da experiência humana em sociedade.
Apoio teórico-metodológico
A orientação teórico-metodológica deste trabalho baseia-se na teoria de campo pro-
posta por Pierre Bourdieu que trata do funcionamento interno de diferentes campos de
saber e as relações de poder que se travam entre eles. Através dessa noção será possível
verificar qual a legitimidade que os agentes religiosos possuem para atuar dentro de um
campo estranho ao seu (no caso, o campo médico).
Existe em cada campo, pode-se perceber, uma lei fundamental, independente de
outros campos. Cada um deles avalia as questões que estão em jogo “de acordo com
princípiose critérios irredutíveis aos de outros universos” (BOURDIEU, 1996, p. 147-
148). Em sua análise, Bourdieu privilegia a autonomia dos diferentes campos, opondo-se
assim a um determinismo econômico, pois, segundo ele, o que conta para a dinâmica do
campo é - muito mais que o desenvolvimento econômico - o seu trabalho interno (BOUR-
DIEU, 1987, p. 37). Com uma teoria da economia dos campos é possível definir, segundo
o autor, “a forma específica” com que se revestem os mecanismos e conceitos gerais como
por exemplo capital, investimento, ganho sem cair necessariamente no economismo, uma
espécie de reducionismo.
O principal indicador do grau de autonomia de um campo é o seu poder de refra-
ção, de retradução (BOURDIEU, 2004a, p. 22). Isso significa a capacidade que ele tem de
recompor as pressões externas, talvez pudessémos dizer até, a capacidade que ele possui
de adequá-las à dinâmica do campo, sem que esse seja transfigurado no que ele possui de
genuíno.
Os campos científico e religioso
Na separação das competências de cada campo, coube à religião assumir uma fun-
ção ideológica a qual determinará o que merece ou não ser discutido, colocando em prá-
tica, segundo Bourdieu (1987), “a absolutização do relativo e a legitimação do arbitrá-
rio”, legalizando assim determinadas posições sociais existentes na sociedade e reprodu-
128128128128128Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
zindo a estrutura das relações econômicas e sociais. Ao cumprir funções sociais, a reli-
gião não apenas dá resposta às aflições existenciais do indivíduo, mas, além disso, lhe
fornece justificativas quanto à posição social ocupada.
Da mesma forma que no campo religioso, no campo científico ocorre também uma
luta por poder e reconhecimento: “não há ‘escolha’ científica (...) que não seja uma estra-
tégia política de investimento objetivamente orientada para a maximização do lucro pro-
priamente científico, isto é, a obtenção do reconhecimento dos pares-concorrentes” (BOUR-
DIEU, 1976, p. 126, 127).
A autonomia dos campos é um ponto importante e ao qual devemos estar atentos,
já nos alertou Bourdieu. Por isso, apesar de o poder ser a alavanca tanto do campo religi-
oso quanto do campo científico, é preciso lembrar que existe algo que é diferenciador
desses dois: enquanto a religião é movida pela moral, “o mercado dos bens científicos tem
suas leis, que nada têm a ver com a moral” (BOURDIEU, 1976, p. 133). Isso coloca-os em
pólos opostos.
Independente do tipo de diálogo que possa ocorrer entre estes dois campos, é neces-
sário verificarmos até que ponto ele pode ser e é mantido, de forma a não conduzir a
conflitos sobre o lugar que cada um ocupa e a sua especialidade, pois segundo Bourdieu
(1976) os produtores de um determinado campo só reconhecem como clientes seus pró-
prios concorrentes, o que faz com que o valor de um produto só seja reconhecido por
outro produtor do mesmo campo. Isso pode ser traduzido da seguinte forma: num cam-
po científico com uma forte autonomia um produtor só pode esperar o reconhecimento (e
com este reputação, prestígio, autoridade, competência ) do valor dos seus produtos dos
outros produtores que “sendo também seus concorrentes, são os menos inclinados a reco-
nhecê-lo sem discussão ou exame” (BOURDIEU, 1976, p. 127). Somente aqueles agentes
que estão jogando o mesmo jogo tem condições de se apropriar dos produtos de um
campo (no caso o científico) e de apreciar seus méritos. Nesse sentido, devemos lembrar
que aquele agente “que faz apelo a uma autoridade exterior ao campo só pode atrair
sobre si o descrédito” (BOURDIEU, 1976).
Hipótese
Ao estabelecerem pontes de contato, os campos médico e religioso podem estar co-
locando em risco o seu desenvolvimento e a sua legalidade enquanto áreas de atuação
autônomas. Tomando como ponto de partida o que diz Bourdieu (1987) ao afirmar que
“aquele que faz apelo a uma autoridade exterior ao campo só pode atrair sobre si o
descrédito” (BOURDIEU, 1976, p.127), é possível que os diferentes campos (religioso e
médico) estejam colocando em risco o seu bom funcionamento, a partir do momento em
que procuram valer-se de uma intimidade maior entre si.
Considerações preliminares
Desenvolvemos uma reflexão inicial a partir das entrevistas realizadas (a sigla M
acompanhada de números designa a fala de cada médico entrevistado). Algumas cate-
gorias de análise foram compostas. São elas: I. Modelo médico atual; II. Percepções no
interior do campo médico.
I - modelo médico atual: Instituto de Psiquiatria: organicista e biologicista
A visão, pactuada por grande parte dos médicos entrevistados, é a de que o HC, e
especificamente o Instituto de Psiquiatria, traz desde sempre no seu cerne um modelo
teórico e prático voltado para o biológico, descartando normalmente a utilização de con-
cepções diversas do ser humano que levariam em consideração todo o seu contexto cultu-
129129129129129Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
ral. Essa característica que marca a produção do conhecimento médico e a sua realização
prática faz com que o ser humano doente seja visto “como um imenso camundongo”
(M22). Nesse tipo de perspectiva apenas os sintomas são considerados [“a medicina atual
é muito superficial”- M16], descrevem-se as doenças e os seus respectivos tratamentos.
Pára-se por aí. O homem deixa de ser visto na sua totalidade, seu contexto cultural é
suprimido. A empiria torna-se o fundamento de tudo.
Saúde e doença não podem ser vistas de forma restrita, estão em jogo outras ques-
tões como o bem-estar do indivíduo relacionado à sua vida em sociedade. Por isso, enten-
der o ser humano e como ele vive, resumindo, sua cultura, é fundamental para a compre-
ensão do binômio saúde-doença. Para se fazer uma “boa psiquiatria” o médico “tem que
conhecer a fundo a vida do doente, de onde ele veio, como é que é a casa, que igreja ele
freqüenta, a família é da mesma religião ou não, qual é a religião” (M16). Entretanto, os
médicos são acusados, por vezes, de desinteresse, insegurança para lidar com essas ou-
tras questões que não a biológica. Por trás disso, parece estar ocultada uma defesa do
psiquiatra em relação ao doente [“Um certo medo, uma certa defesa do médico. Não
deixo ele (o paciente) falar, dou o remédio, peço o exame, pronto e acabou”-M22].
Formação médica: humanismo x super-especialização
Existem aqueles médicos que, no IPQ, defendem uma postura mais humanista por
parte da psiquiatria que veja “o homem inserido na sociedade dele, na cultura” (M22). Isso
quer dizer que “não adianta só a parte científica, não adianta só a parte medicamentosa ou
uma parte psicoterapêutica, muitas doenças precisam de uma visão pluridimensional”.
Acredita-se que seja dever do médico identificar no paciente o que é importante para ser
abordado. Parte do humanismo do médico reside nessa sensibilidade de “sacar um pouqui-
nho o que aquela pessoa está precisando, qual é o pão que ele está precisando” (M22).
Por outro lado, evidencia-se a falta dessa sensibilização na formação dos médicos, a
qual não coloca em foco questões que tratem do lado social, filosófico. Existe um déficit
quanto a isso no processo de formação dos médicos. Esse acontecimento pode estar rela-
cionado a diversas questões, dentre elas a complexidade do curso de medicina, devido a
qual não se tem tempo de realizar tarefas consideradas extras. Pode ser também devido a
uma tendência “mais cartesiana de encarar a medicina” (M2). Entretanto, uma forma-
ção humanista, alguns acreditam, faz com que o médico seja melhor do ponto de vista de
sua atuação profissional [“deixa você um médico melhor”- M6].
Portanto, uma formação geral em contraposição a uma super-especialização é o
que falta aos médicos na sua formação, opinião compartilhada por alguns profissionais.
A despeito disso, muitos médicos se identificam com esse modelo, eles “querem a super-
especialização (...)estão identificados com outro modelo de medicina” (M14), e para
romper com essa mentalidade acredita-se que é necessária uma mudança de paradigmas
do que é a medicina, do que é ser médico (M14). Trata-se de uma autocrítica (M17) feita
a fim de propor uma nova maneira de encarar a profissão de médico, a qual deve deixar
de ser vista unicamente do ponto de vista medicamentoso.
Estudos em saúde e espiritualidade: formação de massa crítica e fator anti-tenure
No interior de todo esse panorama de uma medicina super-especializada e sem um
lugar de destaque para o lado humano, um grupo de especialistas resolveram tomar uma
atitude de engajamento e mobilização na tentativa de abrir espaço para um dos aspectos
culturais que se fazem presentes na vida dos indivíduos: a espiritualidade. A maneira
pensada para se começar a trazer à tona essa outra perspectiva foi através da criação de
um Núcleo de Estudos sobre Saúde e Espiritualidade (NEPER) e o desenvolvimento de
130130130130130Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
pesquisas nessa área que mostrassem a importância desse aspecto na vida dos pacientes.
Como relata um dos seus fundadores, a idéia inicial para alavancar esse projeto é a for-
mação, primeiramente, de uma “massa crítica” (M1), relacionada a um rigor metodoló-
gico, deixando para posteriori a aplicação clínica. A idéia inicial do NEPER era trazer
pesquisadores da área e aprofundar a discussão na temática saúde/espiritualidade [“A
gente fechou para pesquisadores que estão, realmente, fazendo mestrado, doutorado ou
que já fizeram ou que têm interesse nessa área. Então, esse foi o foco”- M1] e a partir daí,
a intenção passa a ser então a de se formar multiplicadores/formadores nessa área (M1).
Os profissionais que se aventuram na temática saúde/espiritualidade correm o ris-
co normalmente de serem mal vistos, acabam sendo vítimas de preconceito dentro de sua
comunidade acadêmica, que não vê com bons olhos a “mistura” de questões que conside-
ram como sendo totalmente fora do contexto médico. Pertencer a um grupo profissional
segundo Bourdieu, “exerce um efeito de censura que vai muito além das coações institu-
cionais e pessoais: há questões que não são colocadas, que não podem ser colocadas,
porque tocam nas crenças fundamentais que estão na base da ciência e do funcionamen-
to do campo científico” (BOURDIEU, 2004b, p. 20). Tanto é assim que um dos entrevista-
dos a favor de pesquisas na área de saúde e espiritualidade afirma que estudar espiritua-
lidade “é um fator anti-tenure. O tenure é a estabilidade que o professor adquire” (M1).
Na verdade, quando esses “médicos religiosos” contestam o tipo de medicina psi-
quiátrica colocada em prática, eles reforçam essa mesma medicina, pois como nos alerta
Bourdieu “a ortodoxia necessita da heresia porque a oposição entre uma e outra implica
o reconhecimento do interesse que está em jogo, reconhecimento desconhecido (...)” (Idem,
2006, p.167). E a Illusio (investimento no jogo), é o acordo no desacordo, é a consideração
da importância, do valor do que está no campo mesmo estando em desacordo sobre vári-
os aspectos desse mesmo campo. Para delimitar o campo legítimo de discussão há uma
cumplicidade entre os adversários, que são, dentro do campo, os dominantes e os domi-
nados. Esse tipo de disputa ao invés de enfraquecer, fortalece o campo. Este se mantém
justamente por meio dessas disputas entre os concorrentes.
No campo médico, assim como no campo científico de um modo geral, a importân-
cia é dada àquilo “que tem chances de ser reconhecido como importante e interessante
pelos outros” (BOURDIEU, 1976, p.125). Normalmente os pesquisadores se concentram
em temas que são tidos como sendo os mais interessantes, pois serão estes que trarão “um
lucro simbólico mais importante” (BOURDIEU, 1976). Dessa forma, ao se debruçar num
tema espinhoso e delicado como religião/espiritualidade os “médicos religiosos” correm
o risco de não ter o seu objeto de análise reconhecido pelos seus pares-concorrentes.
II. Percepções no interior do campo médico: campo médico-científico:
Retradução no campo ou invasão do campo?
Na dinâmica do campo médico-científico algumas atitudes parecem ser comuns: o
desinteresse médico pelo paciente, o preconceito com relação às questões religiosas. Esta-
mos tratando aqui de um certo discurso hegemônico com poder, regras, códigos de com-
portamento, discurso específico. Esse campo, assim como os demais possui regras própri-
as, uma dinâmica interna. Sua constituição impõe o seguimento dessas normas internas,
a sua manutenção depende do rigor e do respeito a uma pureza dos seus mecanismos.
Quando as normas do campo são desrespeitadas, quando se quebra o protocolo,
conflitos são estabelecidos. Para jogar o jogo de um campo é necessário possuir o “habi-
tus do sentido do jogo” (BOURDIEU, 1996, p. 144). Os agentes que se aventuram a apro-
ximar-se de um campo desconhecido precisam falar a sua linguagem. Aqui especifica-
mente é necessário falar a linguagem do campo médico-científico. A participação de um
131131131131131Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
campo de saber na dinâmica de outro campo, como vimos, pode ser contestada. As
visões de mundo empunhadas por cada um dos campos não se coadunam.
Existem, por outro lado, aqueles que vêem com mais maleabilidade a questão da
aproximação dos dois campos e fazem uma autocrítica ao próprio campo ao qual são
pertencentes, dentro do qual existe muito preconceito (M7, M16, M22) contra a religião.
Entretanto, são formas diferentes de ver o mundo (M11). A medicina é pragmática, ime-
diatista, enquanto que a religião “dá uma outra dimensão” (M11). Naturalmente, o limi-
te acaba sendo estabelecido pela própria visão de mundo.
O campo médico-psiquiatra pode, por vezes, sofrer pressões externas, mas a elas
deve fazer frente, procurando eliminá-las ou, como afirma Bourdieu, refratá-las: “Uma
das manifestações mais visíveis da autonomia do campo é sua capacidade de refratar,
retraduzindo sob uma forma específica as pressões ou as demandas externas”. (BOUR-
DIEU, 2004a, p. 22 Grifos do autor). O campo científico possui suas imposições que são
relativamente independentes das pressões sociais que o envolve. Essas pressões só pode-
rão ser exercidas por intermédio do campo, “são mediatizadas pela lógica do campo”
(BOURDIEU, 2004a, p. 22). Ou seja, essa retradução é uma das evidências da autonomia
do campo. Um exemplo é a pressão externa sofrida pelos médicos quando do atendimen-
to dos Testemunhas de Jeová, que proíbem a transfusão de sangue. Essa é normalmente
uma situação delicada com a qual os médicos têm de lidar e que, em algumas situações,
eles podem relativizar, retraduzir.
Quando não há uma retradução, uma refração, os atritos e as discordâncias se
tornam mais visíveis. Daí pode ocorrer de a autonomia do campo ser temporariamente
desestabilizada e enfraquecida. Nota-se, então, que as regras de um outro campo de sa-
ber se fazem presentes e procuram determinar as regras do jogo: “A diferença maior
entre um campo e um jogo é que o campo é um jogo no qual as regras do jogo estão elas
próprias postas em jogo” (BOURDIEU, 2004a, p. 29). Como já dissemos, se o campo for
autônomo maior poder de refração, de retradução ele terá e “mais as imposições externas
serão transfiguradas, a ponto, freqüentemente, de se tornarem perfeitamente irreconhe-
cíveis” (BOURDIEU, 2004 a, p. 22). Ao contrário, a manifestação direta de problemas
externos põe em evidência a heteronomia do campo (BOURDIEU, 2004a ).
A interferência direta de religiões como a Testemunha de Jeová, o Judaísmo, o neo-
pentecostalismo, por exemplo, na dinâmica do campo médico pode também mostrar a
ausência de retradução. E então pode acontecer o que um entrevistado lembra-nos bem:
“eu acho que se um pisar no calo do outro sai briga”. (M25). Os depoentes apresentam a
dificuldade de trabalhar numasituação de interferência externa como essa, onde se “con-
some os recursos do hospital, frusta a equipe (M10), dificulta o trabalho do médico, impe-
de que o médico salve vidas (M3) [os testeunhas de Jeová].
A reivindicação de autonomia é retomada nesses momentos críticos em que o pro-
fissional se vê paralisado diante de algumas situações que se colocam apesar da sua su-
posta autonomia. Uma reivindicação que teve início há muito tempo e que prega “o
direito dos cientistas a decidir as questões científicas (‘a matemática aos matemáticos’)
em nome da legitimidade específica que lhes confere sua competência” (BOURDIEU,
1976, p. 142).
Retradução no campo
A retradução, nos parece, é uma forma de proporcionar um diálogo sem que haja
um embate direto entre os campos, afinal de contas não é sempre que é possível desban-
car o campo concorrente: “E aí você querer argumentar contra a religião é praticamente
impossível” (M11). A estratégia de sobrevivência do campo e sua autonomia estão nessa
capacidade que ele tem de não se curvar às pressões externas, sejam elas religiosas, polí-
132132132132132Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
ticas, etc, mas ao contrário, reformular o discurso utilizando de estratégias que joguem a
seu favor.
A partir do momento que alguns médicos se mostram abertos a entrar em contato
com a visão dos religiosos, a saber qual é o ponto de vista deles (M3), a aproveitar o
aspecto religioso como instrumento terapêutico (M6), a pensar na possibilidade de esta-
belecer uma aliança terapêutica entre médicos e religiosos (M14), a questionar a presun-
ção da psiquiatria em se colocar como um discurso hegemônico (M14), a partir desse
momento pode ocorrer a retradução. Retraduzir é estar aberto a uma multiplicidade de
discursos, buscar uma atitude mais conciliatória, não excluir as outras percepções que se
possa ter sobre a vida (M14). Mesmo que em alguns pontos o valor da ciência e da religião
entrem em choque, a opção por uma não invalida a outra (M18).
Entretanto, retraduzir não significa jogar o jogo duplo: “O que me preocupa é se a
pessoa excede e acaba confundindo discurso religioso com o discurso médico. Ou então,
por exemplo: lançando mão apenas de argumentos/proposições religiosos para tratar
um problema que eminentemente é um problema médico” (M14). Bourdieu diz que exis-
te uma possibilidade de se sair do campo sem se ter realmente saído dele, dá como exem-
plo os bispos sociólogos, mostrando assim que “a fronteira do campo religioso se tornou
imprecisa” (BOURDIEU, 2004b, p. 109). “Médicos religiosos” podem estar investidos
desse mesmo caráter ambíguo. Trata-se aí do jogo duplo e da dupla vantagem que possi-
bilita acumular as vantagens da “cientificidade (aparente)” e da religiosidade (IDEM,
Ibidem, p. 112). Por outro lado, jogar o jogo duplo de se pertencer a dois campos distintos
pode desacreditar aquele que o faz.
É necessário pensar sob o ponto de vista do perigo de o profissional jogar um jogo
duplo dentro do campo. Um profissional médico que é religioso corre o risco de viver
uma relação ambígua no campo científico, produzindo “uma espécie de ciência edifican-
te, destinada, a servir de fundamento a uma religiosidade científica, permitindo acumu-
lar as vantagens da lucidez científica e as vantagens da fidelidade religiosa” (BOUR-
DIEU, 2004b, p. 112-113). Trata-se da “tentação do jogo duplo e da dupla vantagem”,
que tem por trás de si a recusa da “objetivação das adesões” (IDEM, Ibidem).
A retradução feita pelo campo médico-científico talvez ocorra por conta de pessoas
que possuem visões específicas dentro dele. As tomadas de posição dentro do campo
possibilitam que haja um rearranjo nos jogos do campo, visto que também existem indiví-
duos que resistem às suas forças: “Os agentes sociais, evidentemente, não são partículas
passivamente conduzidas pelas forças do campo (...) eles têm disposições adquiridas que
chamo de habitus, isto é, maneiras de ser permanentes, duráveis que podem, em particu-
lar, levá-los a resistir, a opor-se às forças do campo” (IDEM, 2004a, p. 28). Ou seja, o
campo médico assim como o campo científico de um modo geral é elaborado a partir da
posição que os agentes nele ocupam. Esses agentes “fazem os fatos científicos” (IDEM,
Ibidem, p. 25) através de uma posição que ocupam, mas a qual não fizeram (IDEM,
Ibidem). E é essa posição que é, em última instância, responsável pela tomada de posição
(IDEM, Ibidem, p.23)
Esses profissionais que possuem visões específicas, ou seja, que tomam uma posição
dentro do campo, para conquistar “a palavra” precisam possuir um capital científico
considerável, este diz respeito a uma “espécie particular do capital simbólico que consiste
no reconhecimento (ou no crédito) atribuído pelo conjunto de pares-concorrentes no in-
terior do campo científico” (IDEM, Ibidem, p 26). Ou seja, os agentes que querem se opor
às regras do próprio campo do qual fazem parte, devem possuir forças dentro dele, isso
quer dizer que ele precisa ter um capital científico à altura. Caso contrário, dificilmente
ele será escutado ou minimamente respeitado em seus argumentos. Muito provavelmen-
te ele poderá ser questionado nas suas atitudes, descreditado por seus pares-concorren-
tes. É o caso do fator anti-tenure sobre o qual já falamos.
133133133133133Revista Mosaico, v.2, n.2, p.125-133, jul./dez., 2009
Uma outra questão pertinente a se fazer nesse momento é: com a “invasão”
do domínio religioso pelos médicos religiosos estaria a medicina se deslaicizando? Estaria
ocorrendo uma “redefinição das competências” (BOURDIEU, 2004b, p.121) no interior
do campo médico, o qual passa a ser composto por uma medicina científica e uma medi-
cina religiosa? Talvez uma outra pergunta pertinente a se fazer, fora aquela da entrada
de religiosos no campo médico, é a de porque os médicos entram no campo religioso.
Estaríamos verificando, na verdade, uma simbiose maior da psiquiatria em relação à
religião e não uma simbiose da religião em relação à psiquiatria, já que aquela não tem
legalidade na medicina?
Ou, ainda, estaremos falando de uma redefinição de competências no interior do
próprio campo religioso? Redefinição que vai acontecendo no decorrer dos tempos resul-
tado do fato de que “os próprios limites entre o campo religioso e os outros campos, e em
particular com a medicina, foram transformados” (IDEM, Ibidem).
Pode tratar-se de uma laicização da prática religiosa que se vale de discurso cientí-
fico para sobreviver. Estaríamos experenciando um outro formato do campo religioso?
Trata-se, quem sabe, de um outro estágio desse campo? Mudanças vem ocorrendo, po-
demos estar assistindo possivelmente à instauração de “um novo campo de lutas pela
manipulação simbólica da condução da vida privada e a orientação da visão de mundo”
(BOURDIEU, 2004b, p.121) .
Referências
BOURDIEU, P. Le champ scientifique. Actes de la Recherche em Sciences Sociales, n. 2/3, jun. 1976, p. 88-104 in
Pierre Bourdieu: sociologia/ Organizador da coletânea Renato Ortiz; tradução de Paula Montero. São Paulo:
Ática, 1983.
BOURDIEU, P.; MICELI, Sérgio A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987.
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_______. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: editora UNESP, 2004a.
_______. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 2004b.
_______. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre, RS: Zouk, 2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
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Ciências Médicas/UNICAMP, 2004.
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Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
_______. Sociologia da religião (tipos de relações comunitárias religiosas). In: WINCKELMANN, Johannes
(org.). Economia e sociedade - Fundamentos da sociologia compreensiva. vol.1, Brasília: UNB, 1994.
* Doutoranda em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Email:
luassun@usp.br

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