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profissional de saúde, é militante da luta anti- manicomial. Alguns meses depois de seu nascimento, sua mãe foi internada em um hospital psiquiátrico. A causa foi relatada por uma vizinha como tentativa de assassinato da filha, já que a mãe apresen- tava sensação de perseguição, delirium, agitação psicomotora. Era a primeira vez que Odete fora internada, iniciando, assim, sua trajetória psiquiátrica. Negava-se a realizar o tratamento, o que cronificou seu quadro psíquico, prejudicando não só sua saúde mental, mas também sua vida social. A relação com a vizinhança era dura, já que era internada pelo menos duas vezes por mês. Foram longos anos convivendo com essa questão, sendo Ruth a irmã mais velha de duas. O marido de Odete não aguentava por muito tempo esse sofrimento, o que fazia com que saísse de casa e deixasse as crianças com a mãe em crise. Ruth cresceu vendo a mãe ser internada nos diversos hospitais do Rio de Janeiro. Era doloroso e incompreensível para ela entender aquela situação que vivenciava. Por ser a filha mais velha, foi pressionada pela família de Odete que, depois de algum tempo, nem mesmo quis ter mais notícia dela, levando Ruth a 7 Nome fictício para preservar identidade da usuária e dos familiares. Os demais nomes aqui destacados tam- bém serão fictícios. Rachel gouveia Passos “De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo de desinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico. 117 responsabilizar-se pela mãe, já que o pai também não mais conseguia sustentar o quadro psiquiátrico de Odete. Era Ruth quem cuidava das responsabilidades da mãe quando esta era internada; aos cinco anos, já ia ao banco efetuar pagamentos. E, assim, cresceu, assumindo a responsabilidade da organização da casa. Coube a ela, diversas vezes, organizar a vida financeira da mãe, já que a mesma, em várias ocasiões, embaraçava-se pela suces- são de crises psíquicas. Nos momentos em que se sentia senhora de si, encontrava organizada a vida. Era Odete quem cuidava de Ruth e de sua outra filha, exercendo seu papel de cuidadora e de mãe, papel de que se orgulhava e a fazia feliz. Entretanto, quando tomada pelas crises, era Ruth quem exercia o papel de cuidadora, quem tentava cui- dar dela, tendo, muitas vezes, na sua infância e adolescência, que internar Odete para que fosse cuidada, já que a mãe se negava a submeter-se a tratamento e cuidado. Diversas vezes, Ruth teve que contar com o auxílio do corpo de bombeiros e/ou da polícia para poder levar a mãe para internação, já que não dispunha do auxilio de mais ninguém, e Odete negava-se a ir para o hospital. Situações complicadas como essa se repetiram em várias ocasiões. Apenas uma vez, houve um suporte para Odete de um psicólogo, profissional de referência no Hospital Manfredini, o que não durou muito tempo, vendo-se a família so- zinha com esse cuidado. Assim sendo, durante 26 anos da vida de Ruth, não houve nenhum acompanhamento familiar por parte dos serviços de saúde mental para Odete, ficando o cuidado à mercê, inúmeras vezes, da criança de outrora, agora uma jovem mulher. Tais circunstâncias só começam a alterar-se a partir do momento em que Ruth ingressa na universidade e inicia o estágio. O primeiro foi na antiga Colônia Juliano Moreira, onde passara quase a vida inteira, vivenciando as internações de sua mãe; esse vai ser no início de sua carreira profissional e, nesse mesmo lugar, enxergará a loucura de outra forma. Então, aprofunda-se em estudos acerca da loucura, compreendendo o que ela e sua identidade social, incorporando a questão do transtorno mental, tanto em sua luta ideológica, como na sua carreira acadêmica e na sua militância. Ruth, nessa experiência, encontrará saídas para o cuidado de sua mãe, que, aos poucos, inicia seu tratamento ambulatorial, não passando mais por internações. Numa nova construção da rede familiar, todos os seus membros se conscientizam da necessidade do tratamento com medicação; isso se faz e fortalece o cuidado com Odete. Odete deixa de ser cuidadora por ser louca? Nesse caso, a loucura a distancia, por períodos de sua vida, para oferecer cuidado à suas filhas ainda crianças. Embora para tentar manter uma organização familiar, a filha mais velha vá procurar assumir, nas fases em que essa mãe fica “ausente”, pelas crises, das responsabilidades maternas. Rachel gouveia Passos “De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo de desinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico. 118 Artigo E sempre que retorna das internações, a mãe assume seu papel de cuidadora, e a filha volta a seu papel de filha a ser cuidada. Como o anseio pelo cui- dado fez com que esta família se reorganizasse, a fim de delegar a cada membro o desvelo que fosse possível? Isso se deu assim porque, talvez, fosse a única alterna- tiva de sobrevivência grupal. E, dando-se dessa forma, talvez já não houvesse outra maneira. Nessa experiência, a filha mais nova era quem cuidava da casa, enquanto a mais velha organizava as responsabilidades de rua da mãe, no período das internações, traduzindo que essa de- legação de cuidados efetivava a maternidade transferida, modo de cobrir a deficiência dessas estruturas assistenciais (Costa, 2002:206). O caso de Ruth traduz uma regularidade de práticas sociais de longa duração histórica. As ações de desinstitucionalização têm recriado a tradição dos cuidados femininos, e são muitos os exemplos existentes no país. Por tudo isso, reafirmo que a rede de saúde mental tem deixado muito a desejar, quando fixa responsabilidades para famílias e, principalmente, para mulheres, por vezes ainda crian- ças, não importa em que situações de precariedades existenciais, quando restringe prestação de cuidados ou mesmo se exime de prestá-los. Ampliam-se, assim, os sofrimentos dos doentes e dos familiares pela ausência de cuidados e tratamento dos usuários de saúde mental. Deixo aqui indagações iniciais para pensar a importância da avaliação do processo de implantação da RPB, nas circunstâncias que estabelecem tanto a ausência de investi- mento por parte do Estado em serviços substitutivos e comunitários e de profissionais capacitados, como também a falta de cuidados ao familiares/cuidadores e a sobrecarga subsequente. Além disso, desvenda-se, nessa experiência, a atualização de novas formas de opressão das mulheres. Nota: As opiniões expressas neste artigo são da inteira respon- sabilidade da autora. 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