Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 A preocupação com o conhecimento O conhecimento e os primeiros filósofos Quando estudamos o nascimento da filosofia na Grécia, vimos que os primeiros filó- sofos — os pré-socráticos — dedicavam-se a um conjunto de indagações principais: "Por que e como as coisas existem?" "O que é o mundo?", "Qual a origem da natureza e quais as causas de sua transformação?". Essas indagações colocavam no centro a pergunta: "O que são as coisas?" Pouco a pouco essa pergunta passou a ser assim formulada: "O que é o Ser?". Os primeiros filósofos ocupavam-se com a origem e a ordem do mundo, o kósmos, e a filosofia nascente era uma cosmologia. Pouco a pouco, passou-se a indagar o que era o próprio kósmos, qual era o princípio eterno que ordenava todas as coisas e que permanecia imutável sob a multiplicidade e transformação delas. Esse princípio era concebido como o fundo imperecível presente em todas as coisas, fazendo-as existir tais como são. Esse fundo presente em todas as coisas é o Ser. Assim, passou-se a perguntar qual era e o que era o Ser, tò ón, subjacente a todos os seres. Com isso, a filosofia nascente tornou-se ontologia, isto é, conhecimento ou saber sobre o Ser. Por esse mesmo motivo, alguns estudiosos consideram que os primeiros filósofos não tinham uma preocupação principal com o conhecimento como conhecimento, isto é, não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser, mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer, pois a verdade, sendo alétheia, isto é, presença e manifestação das coisas para os nossos sentidos e para o nosso pensamento, significa que o Ser está manifesto e presente para nós e, portanto, nós o podemos conhecer. Todavia, a opinião de que os primeiros filósofos não se preocupavam com nossa capacidade e possibilidade de conhecimento não é exata. Para tanto, basta levarmos em conta o fato de afirmarem que a realidade (o Ser, a natureza) é racional e que a podemos conhecer porque também somos racionais; nossa razão é parte da racionalidade do mundo, dela participando. 2 Heráclito, Parmênides e Demócrito Alguns exemplos indicam a existência da preocupação dos primeiros filósofos com o conhecimento e, aqui, tomaremos três: Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eleia e Demócrito de Abdera. Heráclito de Éfeso considerava a natureza (o mundo, a realidade) um "fluxo perpétuo", o escoamento continuo dos seres em mudança perpétua. Dizia: "Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mes¬mos". Comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar, transformando a cera em fogo, o fogo em fumaça e a fumaça em ar. O dia se torna noite, o verão se torna outono, o novo fica velho, o quente esfria, o úmido seca, tudo se transforma no seu contrário. O mundo é um processo incessante de transformação em que cada ser é um movimento em direção ao seu contrário. A realidade, para Heráclito, é a harmonia dos contrários, que não cessam de se transfor¬mar uns nos outros. Se tudo não cessa de se transformar perenemente, como explicar que nossa percepção nos ofereça as coisas como se fossem estáveis, duradouras e permanentes? Com essa pergunta o filósofo indicava a diferença entre o conhecimento que nossos senti¬dos nos oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcança, pois nossos sentidos nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como mu¬dança contínua. Parmênides de Eleia colocava-se na posição oposta à de Heráclito. Dizia que só podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, isto é, que o pensamento não pode pensar sobre coisas que são e não são, que ora são de um modo e ora são de outro, que são contrárias a si mesmas e contraditórias. Conhecer é alcançar o idêntico, imutável. Nossos sentidos nos oferecem a imagem de um mundo em incessante mudança, num fluxo perpétuo, onde nada permanece idêntico a si mesmo, onde tudo se torna o contrário de si mesmo: o dia vira noite, o inverno vira pri¬mavera, o doce se torna amargo, o pequeno vira grande, o grande diminui, o doce amarga, o quente esfria, o frio se aquece, o líquido vira vapor ou vira sólido. Como pensar o que é e não é ao mesmo tempo? Como pensar o instável? Como pensar o que se torna oposto e contrário a si mesmo? Não é possível, dizia Parmênides. Pensar é apreender um ser em sua identidade profunda e permanente. Com isso, afirmava o mesmo que Heráclito — perceber e pensar são diferentes —, mas o dizia no sentido oposto ao de Herácli¬to, isto é, percebemos mudanças impensáveis e devemos pensar identidades imutáveis. Demócrito de Abdera desenvolveu uma teoria sobre o Ser ou sobre a natureza conhe¬cida com o nome de atomismo a realidade é constituída por átomos. Os seres surgem por composição dos átomos, transformam-se por novos arranjos dos átomos e morrem por se-paração dos átomos. Os átomos, para Demócrito, possuem formas e consistências diferentes (redon¬dos, triangulares, lisos, duros, moles, rugo-sos, pontiagudos, etc.) e essas diferenças e os diferentes modos de combinação entre eles produzem a variedade de seres, suas mu- danças e desaparições. Por meio de nossos órgãos dos sentidos, percebemos o quente e o frio, o doce e o amargo, o seco e o úmido, o grande e o pequeno, o duro e o mole, sa¬bores, odores, texturas, o agradável e o de¬sagradável, sentimos prazer e dor, porque percebemos os efeitos das combinações dos átomos que, em si mesmos, não possuem tais qualidades (isto é, não são doces nem amargos, nem azuis nem verdes, nem gran¬des nem pequenos, pois são as menores par¬tículas materiais 3 existentes). Somente o pensamento pode conhecer os átomos, que são invisíveis para nossa percep¬ção sensorial. Dessa maneira, Demócrito concordava com Heráclito e Parmênides em que há uma diferença entre o que conhecemos por meio de nossa percepção e o que conhecemos apenas pelo pensamento; porém, diversamente dos outros dois filósofos, não considerava a percepção ilusória, mas apenas um efeito da realidade sobre nós. O conhecimento sensorial ou sensível é tão verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro alcança, embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do que aquela alcançada pelo puro pensamento. Esses três exemplos nos mostram que, desde os seus começos, a filosofia preocupou- se com o problema do conhecimento, pois sempre esteve voltada para a questão do verdadeiro. Desde o início, os filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece seguir certas leis ou regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e pensar. Pensa¬mos com base no que percebemos ou pensamos negando o que percebemos? O pensamen¬to continua, nega ou corrige a percepção? O modo como os seres nos aparecem é o modo como os seres realmente são? Sócrates e os sofistas Preocupações como essas levaram, na Grécia clássica, a duas atitudes filosóficas: a dos sofistas e a de Sócrates — com eles, os problemas do conhecimento tornaram-se centrais. Diante da pluralidade e dos antagonismos das filosofias anteriores, ou dos conflitos entre as várias ontologias, os sofistas concluíram que não podemos conhecer o Ser, pois, se pudés¬semos, pensaríamos todos da mesma maneira e haveria uma única filosofia, uma vez que a verdade é universal e a mesma para todos os humanos. Consequentemente, só podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade. Por isso, para se relacionarem com o mundo e com os outros humanos, os homens devem valer-se de um instrumento a linguagem para persuadir os outros de suas pró¬prias ideias e opiniões. A verdade é uma questão de opinião e de persuasão, e a linguagem é mais importante do que a percepção e o pensamento. Em contrapartida, Sócrates, distanciando-sedos primeiros filósofos que se ocupavam em conhecer a natureza, propunha começar pelo oráculo de Delfos, isto é, pelo conhece-te a ti mesmo", e, opondo-se aos sofistas, afirmava que a verdade pode ser conhecida desde que compreendamos que precisamos começar afastando as ilusões dos sentidos, as imposições das palavras e a multiplicidade das opiniões. Possuímos uma alma racional e que nos assegura que podemos alcançar a verdade e que a alcançamos apenas pelo pensamento, isto é, pela atividade de nossa razão. Como as ideias são inatas em nossa alma racional, conhecer-se a si mesmo é fazer o trabalho para o parto ou nascimento das ideias e auxiliar os demais a realizar parto: em grego, parto se esse parto. Os órgãos dos sentidos, diz Sócrates, nos dão somente as aparências das coisas e as pala¬vras, meras opiniões sobre elas. A marca da aparência e da opinião é sua variabilidade: varia de pessoa para pessoa e varia num mesmo indivíduo. Mas não só varia: também se contradiz. Conhecer é começar a examinar as contradições das aparências e das opiniões para poder abandoná-las e passar da aparência à essência, da opinião ao conceito. O exame das opiniões é aquele procedimento que Sócrates chamava de ironia, com o qual o filósofo conseguia que seus interlocutores reconhecessem que não sabiam o que imaginavam saber; o parto das ideias era a maiêutica, com a qual, graças a perguntas adequadas feitas pelo filósofo, o interlocutor encontrava em sua alma racional a ideia verdadeira ou a essência da coisa procurada. 4 Platão e Aristóteles Sócrates fez a filosofia voltar-se para nossa capacidade de conhecer e indagar quais as causas das ilusões, dos erros, do falso e da mentira. Platão e Aristóteles herdaram de Sócrates o procedimento filosófico de abordar uma questão começando pela discussão e pelo debate das opiniões contrárias sobre ela. Além disso, passaram a definir as formas de conhecer e as diferenças entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão, introduzindo na filosofia a ideia de que existem diferentes maneiras de conhecer ou graus de conhecimento. Platão distingue quatro formas ou graus de conhecimento, que vão do grau inferior ao superior: crença, opinião, raciocínio e intuição intelectual. Os dois primeiros graus formam o que ele chama de conhecimento sensível, enquanto os dois últimos formam o conhecimento inteligível. A crença é nossa confiança no conhecimento sensorial: cremos que as coisas são tais como as percebemos em nossas sensações. A opinião é nossa aceitação do que nos ensinaram sobre as coisas ou o que delas pensamos conforme nossas sensações e lembranças. Esses dois primeiros graus de conhecimento nos oferecem apenas a aparência das coisas ou suas imagens (são as sombras das coisas verdadeiras) e correspondem à situação dos prisioneiros da caverna. Por serem ilusórios, esses dois graus devem ser afastados pelas pessoas que buscam o conhecimento verdadeiro, pois este diz respeito às essências das coisas, portanto, somente os dois últimos graus devem ser considerados válidos. O raciocínio que, para Platão, se realiza de maneira perfeita na matemática treina e exercita nosso pensamento, purifica-o das sensações e opiniões e o prepara para a intuição intelectual, que conhece as essências das coisas ou o que Platão denomina com a palavra ideia. A ironia e a maiêutica socráticas são transformadas por Platão num procedimento denominado por ele de dialética, que consiste em trabalhar expondo e examinando teses con-trárias sobre um mesmo assunto ou sobre uma mesma coisa, de maneira a descobrir qual das teses é falsa e deve ser abandonada e qual é verdadeira e deve ser conservada. A finalidade do percurso dialético ou do exercício dialético é proporcionar, ao seu término, a intuição intelectual de uma essência ou ideia. Aristóteles distingue sete formas ou graus de conhecimento: sensação, percepção, ima-ginação, memória, linguagem, raciocínio e intuição. Enquanto Platão concebia o conheci¬mento como abandono de um grau inferior por um superior, para Aristóteles, nosso conhe-cimento vai sendo formado e enriquecido por acumulação das informações trazidas por todos os graus, de modo que, em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o intelectual, há continuidade entre eles. Assim, as informações trazidas pelas sensações se organizam e permitem a percepção. As percepções se organizam e permitem a imaginação. Juntas, percepção e imaginação conduzem à memória, à linguagem e ao raciocínio. Aristóteles concebe, porém, uma separação entre os seis primeiros graus e o último, a intuição intelectual, que é um ato do pensamento puro e não depende dos graus anteriores. Essa separação, porém, não significa que os outros graus ofereçam conhecimentos ilusórios ou falsos e sim que oferecem tipos de conhecimentos diferentes, que vão de um grau menor a um grau maior de verdade. 5 Em cada um deles temos acesso a um aspecto do Ser ou da realidade e, na intuição intelectual, temos o conhecimento dos princípios universais e necessários do pensamento (identidade, não contradição, terceiro excluído) e dos primeiros princípios e das primeiras causas da realidade ou do Ser. A diferença entre os seis primeiros graus e o último decorre da diferença do objeto do conhecimento, isto é, os seis primeiros graus conhecem objetos que se oferecem a nós na sensação, na imaginação, no raciocínio, enquanto o sétimo lida com princípios e causas primeiras, isto é, com o que só pode ser alcançado pelo pensamento puro. Ou seja, nos outros graus, o conhecimento é obtido por indução ou por dedução, por demonstrações e provas, mas no último grau conhecemos o que é indemonstrável (princípios) porque é condição de todas as demonstrações e raciocínios. Princípios gerais Com os filósofos gregos, estabeleceram-se alguns princípios gerais do conhecimento verdadeiro: a determinação das fontes e formas do conhecimento: sensação, percepção, imagina-ção, memória, linguagem, raciocínio e intuição intelectual; a distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual; o papel da linguagem no conhecimento; a diferença entre opinião e saber ou conhecimento verdadeiro; a diferença entre aparência e essência; a definição dos princípios do pensamento verdadeiro (identidade, não contradição, ter-ceiro excluído), da forma do conhecimento verdadeiro (ideias, conceitos e juízos) e dos procedimentos para alcançar o conhecimento verdadeiro (indução, dedução, intuição); o estabelecimento de procedimentos corretos que orientam a razão na busca do conhecimento e asseguram sua chegada a conhecimentos verdadeiros (em Platão, esse procedimento é a dialética, em Aristóteles, a lógica ou o que ele chama de analítica); a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro segundo os objetos conhecidos em cada um deles, distinção que foi sistematizada por Aristóteles em três ramos: - teorético (referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar, sem agir sobre eles ou neles interferir); - prático (referente às ações humanas: ética, política e econo¬mia); - técnico (referente à fabricação de instrumentos e de objetos e ao trabalho humano, o qual pode interferir no curso da natureza como a agricultura e a medicina, e fabricar instrumentos ou artefatos como os artesanatos, a arquitetura, a escultura, a poesia, a retórica, etc). O ato de conhecer O campo de investigação filosófica que abarca as questões sobre o conhecer chama- se teoria do conhecimento. Tradicionalmente costuma-se definir conhecimento como o modo pelo qual o sujeito se •própria intelectualmente do objeto. Entendemos por conhecimento o ato ou o produto do conhecimento. • O ato do conhecimento diz respeito à relação que se estabelece entre o sujeitocognoscente eo objeto a ser conhecido. O objeto é algo fora da mente, mas também a 6 própria mente, quando percebemos nossos afetos, desejos e ideias. • O produto do conhecimento é o que resulta do ato de conhecer, ou seja, o conjunto de saberes acumulados e recebidos pela cultura, bem como os saberes que cada um de nós acrescenta à tradição: as crenças, os valores, as ciências, as religiões, as técnicas, as artes, a filosofia etc. Os modos de conhecer De que maneiras o sujeito cognoscente apreende o real? Geralmente consideramos o conhecimento como um ato da razão, pelo qual encadeamos ideias e juízos, para chegar a uma conclusão. Essas etapas compõem o nosso raciocínio. No entanto, conhecemos o real também pela intuição. Vejamos a diferença entre intuição e conhecimento discursivo. A intuição A intuição é um conhecimento imediato alcançado sem intermediários, um tipo de pensamento direto, uma visão súbita. Por isso é inexprimível: - como poderíamos explicar em palavras a sensação do vermelho? Ou a intensidade do meu amor ou ódio? É também um tipo de conhecimento impossível de ser provado ou demonstrado. No entanto, a intuição é importante por possibilitar a invenção, a descoberta, os grandes saltos do saber humano. A intuição expressa-se de diversas maneiras, entre as quais destacamos a empírica, a inventiva e a intelectual. a) A intuição empírica é o conhecimento imediato baseado em uma experiência que independe de qualquer conceito. Ela pode ser: • sensível, quando percebemos pelos órgãos dos sentidos: o calor do verão, as cores da primavera, o som do violino, o odor do café, o sabor doce; • psicológica, quando temos a experiência interna imediata de nossas percepções, emoções, sentimentos e desejos. b) A intuição inventiva é a intuição do sábio, do artista, do cientista, ao descobrirem soluções súbitas, como uma hipótese fecunda ou uma inspiração inovadora. Na vida diária também enfrentamos situações que exigem verdadeiras invenções súbitas, desde o diagnóstico de um médico até a solução prática de um problema caseiro. Segundo o matemático e filósofo Henri Poincaré, enquanto a lógica nos ajuda a demonstrar, a invenção só é possível pela intuição. c) A intuição intelectual procura captar diretamente a essência do objeto. Descartes, quando chegou à consciência do cogito — o eu pensante —, considerou tratar-se de uma primeira verdade que não podia ser provada, mas da qual não se poderia duvidar: Cogito, ergo sum, que em latim significa "penso, logo existo". A partir dessa intuição primeira (a existência do ser como pensamento), estabeleceu o ponto de partida para o método da filosofia e das ciências modernas. Outros filósofos posteriores, como Kant e Bergson, embora sob ângulos diferentes, recorreram a intuições. 7 Conhecimento discursivo Para compreender o mundo, a razão supera as informações concretas e imediatas recebidas por intuição e organiza-as em conceitos ou ideias gerais que, devidamente articulados pelo encadeamento de juízos e raciocínios, levam à demonstração e a conclusões. Portanto, o conhecimento discursivo, ao contrário da intuição, precisa da palavra, da linguagem. Por ser mediado pelo conceito, o conhecimento discursivo é abstrato. Abstrair significa "isolar", "separar de". Fazemos abstração quando isolamos um elemento que não é dado separadamente na realidade. Quando vemos um copo, temos a imagem dele, uma representação mental de natureza sensível, concreta e particular: um copo de cristal verde lapidado. A ideia abstraía, porém, despreza as características secundárias para obter a representação intelectual do objeto, que é imaterial e geral. Ou seja, a ideia de copo não se refere àquele copo particular, mas a todos os copos existentes. Quando dizemos "2", não importa se nos referimos a duas pessoas ou duas frutas. A matemática faz abstração ao reduzir as coisas, que têm peso, dureza e cor, apura quantidade. As ciências em geral baseiam-se em abstrações para estabelecer as leis: -ao concluir que o calor dilata os corpos, são abstraídas as características que distinguem cada corpo para considerar apenas os aspectos comuns àqueles corpos, ou seja, o "corpo em geral", enquanto submetido à ação do calor. Quanto mais abstrato o conceito, mais se distancia da realidade concreta. Esse artifício da razão é importante para a superação das particularidades do real e a elaboração de leis gerais explicativas. Como se dá então o conhecimento? Ao afastar-se do vivido, a razão enriquece o conhecimento pela interpretação e pela crítica. Esse distanciamento, porém, como enfatizam alguns filósofos, pode representar um empobrecimento da experiência intuitiva que temos do mundo e de nós mesmos. Por isso, o conhecimento se faz pela relação continua entre intuição e razão, vivência e teoria, concreto e abstrato. A verdade O que é a verdade? O que alguém quer dizer quando afirma que uma proposição é verdadeira? Primeiro, vamos comparar o conceito de verdade com o de veracidade e o de realidade. • Verdade e veracidade: suponhamos que alguém me diz que há um lado da Lua que nunca é visto da Terra. Se eu lhe perguntar: "Isto é verdade?", a indagação pode ter dois sentidos. O primeiro é se meu interlocutor está me dizendo uma verdade ou se está mentindo. Nesse caso, trata-se da veracidade, que nos coloca diante de uma questão moral: o indivíduo veraz é o que não mente. O segundo sentido é propriamente epistemológico: quero saber se a afirmação de meu interlocutor é verdadeira ou falsa. Para tanto, indago se a proposição corresponde à realidade, seja foi comprovada, se a fonte de informação é digna de crédito ou não. É esse tipo de verdade que iremos discutir neste capítulo. • Verdade e realidade: embora diferentes, esses dois conceitos são frequentemente confundidos na linguagem cotidiana. A verdade do conhecimento diz respeito a uma 8 proposição que pode ser verdadeira ou falsa. Assim, quando afirmamos "Este colar é de ouro", a proposição é falsa caso se trate de uma bijuteria. Mas se nos referimos a coisas (um colar, um quadro, um dente) só podemos afirmar que são reais, e não verdadeiras ou falsas. Portanto, o falso ou o verdadeiro não estão na coisa mesma, mas no juízo, no valor de verdade ou falsidade de uma proposição. Ao beber o líquido escuro que me parecia café, emito os juízos: "Este líquido não é café" e "Este líquido é cevada". Portanto, a verdade ou falsidade existe apenas quando afirmamos ou negamos aígo sobre uma coisa, e esses juízos correspondem à realidade. Estamos diante de um primeiro sentido de verdade: - um juízo verdadeiro é aquele que corresponde aos fatos. Mas seria assim tão simples? A definição parece óbvia, concorda com o senso comum, mas a questão é muito mais complexa. Será que podemos conhecer as coisas como elas são de fato?. Podemos alcançar a certeza? A certeza é o resultado de nossa adesão ao que consideramos verdadeiro. Para entendermos as mudanças ocorridas ao longo da história da filosofia sobre a possibilidade de conhecermos a verdade, vamos distinguir duas tendências principais: o dogmatismo filosófico e o ceticismo. O dogmatismo Há vários significados para o conceito de dogmatismo. Vejamos o sentido do senso comum e o sentido filosófico do termo. a) O dogmatismo do senso comum No senso comum, o dogmatismo designa as certezas não questionadas do nosso cotidiano: de posse do que supõe verdadeiro, a pessoa fixa-se na certeza e abdica da dúvida. O mundo muda, os acontecimentos se sucedem e o dogmático permanece petrificado nos conhecimentos dados de uma vez por todas. Resistindo ao diálogo, teme o novo e não raro tenta impor aos outros seu ponto de vista, sucumbindo à intransigência eà prepotência. Quando esse tipo de dogmatismo atinge a política, assume um caráter ideológico que nega o pluralismo e abre caminho para a doutrina oficial do Estado ou do partido único, com todas as decorrências, como censura e repressão. Foi o caso dos totalitarismos de esquerda, na União Soviética, e de direita, na Alemanha nazista. PARA REFLETIR Do ponto de vista religioso, chamamos dogma à verdade fundamental e indiscutível de uma doutrina. Na religião cristã, de acordo com o dogma da Santíssima Trindade, as três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) não são três deuses, mas apenas um. Não importa se a razão não consiga entender que Deus é ao mesmo tempo uno e trino, porque esse princípio tem como fundamento a revelação divina e, portanto, deve ser aceito pela fé. 9 ETIMOLOGIA Dogma. Dogma, em grego,significa "doutrina", "ensinamento". Dogmatikós,"o que se funda em princípios" ou aquilo que é "relativo a uma doutrina". b) O dogmatismo filosófico Se desde sempre a filosofia exerceu uma função crítica das opiniões não refletidas que dão suporte aos preconceitos de toda ordem, como então falar de filosofias dogmáticas? O dogmatismo filosófico, porém, não tem o sentido pejorativo atribuído ao dogmatismo sem crítica do senso comum. A filosofia dogmática serve para identificar os filósofos que estão convencidos de que a razão pode alcançar a certeza absoluta. O primeiro a colocar em questão a capacidade de atingir certezas absolutas foi o filósofo escocês David Hume, conforme veremos no próximo tópico, sobre ceticismo. Sua influência foi decisiva para Kant, que, na obra Crítica da razão pura, põe a razão em um tribunal a fim de definir os limites e as possibilidades do conhecimento. Por isso a filosofia kantiana chama-se criticismo. Kant chega à conclusão de que não se pode conhecer as coisas tal como são em si, mas apenas os fenómenos. Embora fosse um homem religioso, Kant concluiu que não somos capazes de conhecer pela razão as verdades metafísicas, que estão além da experiência sensível, tais como Deus, a alma, a liberdade. Vale observar que não se trata propriamente de ceticismo, ainda que o criticismo kantiano tenha aberto caminho para posturas céticas posteriores. PARA SABER MAIS As ideias de Deus, alma e liberdade às quais Kant negara a possibilidade de conhecer pela razão são recuperadas como postulados em outra obra, A crítica da razão prática. À luz dessas conclusões, Kant chama de dogmáticos os filósofos anteriores a ele por não terem proposto, como discussão primeira, a crítica da faculdade de conhecer. Ou seja, aqueles filósofos "não acordaram do sono dogmático", no sentido de ainda manterem a confiança não questionada no poder que a razão tem de conhecer. Nesse rol estaria incluído Descartes, que, como vimos, tinha em vista alcançar a verdade indubitável. O ceticismo O cético tanto observa e pondera que conclui, nos casos mais radicais de ceticismo, que o conhecimento é impossível. Nas tendências moderadas, o cético suspende provisoriamente qualquer juízo ou admite apenas uma forma relativa de conhecimento, reconhecendo os limites para a apreensão da verdade. Para alguns, mesmo que seja impossível encontrar a certeza, não se deve abandonar a busca da verdade. 10 Na Antiguidade grega, o filósofo sofista Górgias de Leontini (séc. IV a.C), um mestre da retórica, desenvolveu três teses: a) o Ser não existe; b) se existisse alguma coisa, não poderíamos conhecê-la; c) se a conhecêssemos, não poderíamos comunicá-la aos outros. O que parece um jogo de palavras significa a separação entre o ser, o pensar e o dizer, aspectos que os filósofos anteriores (e muitos dos que vieram depois) costumam de certo modo entrelaçar, ao identificar o pensamento do real com a realidade das coisas. Portanto, Górgias critica o conceito de verdade como aletheia, como o Ser que se deixa desvelar pelo pensamento. O grande representante do ceticismo foi outro rego, Pirro de Elida (séc. IV-III a.C). Pirro acompanhou o imperador macedónio Alexandre Magno em suas expedições de conquista, quando teve oportunidade de conhecer povos com valores e crenças diferentes. Como geralmente fazem os céticos, confrontou a diversidade de convicções, bem como as filosofias contraditórias, abstendo-se, to entanto, de aderir a qualquer certeza. Para Pirro, a atitude coerente do sábio é a suspenão do juízo e, como consequência prática, a aceitação com serenidade do fato de não poder discernir o verdadeiro do falso. Além do aspecto epistemológico, ssa postura tem um caráter ético, porque aqueles que se prendem a verdades indiscutíveis estão fadados à infelicidade, já que tudo é incerto e fugaz. No Renascimento, o filósofo francês Michel de Montaigne retoma o ceticismo ao contrapor-se às certezas da escolástica e à intolerância, atitude que marcara o período de lutas religiosas. Analisa em Ensaios e em outras obras a influência de fatores pessoais, sociais e culturais na formação das opiniões, sempre tão instáveis e diversificadas. A perspectiva de Montaigne denota uma característica da modernidade em vias de se estabelecer: a valorização da subjetividade, do "eu" que reage à imposição cega da tradição. Ao examinar as mais diversas possibilidades, a consciência prefere a dúvida à certeza. É notável a posição de Montaigne, que, em pleno período pós-descoberta do Novo Mundo, discorda das opiniões daqueles que, numa visão etnocêntrica, chamam os povos nativos de bárbaros e selvagens por praticarem o canibalismo: Cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemo. Escolástica. Designa os filósofos e teólogos medievais que ministravam cursos nas escolas eclesiásticas e nas universidades entre os séculos IX e XVI. A Academia de Platão foi a primeira instituição grega de nível superior, reunindo intelectuais de diversas áreas para intensos debates filosóficos. Essas discussões serviram de base aos Diálogos de Platão, entre eles Górgias, que trata de retórica, a arte de bem falar. Sabemos das críticas que Sócrates e Platão faziam aos sofistas, por entenderem que eles usavam a retórica como instrumento não só de persuasão, mas de manipulação da verdade, defendendo inclusive o que era falso. Outros 11 historiadores da filosofia veem em Górgias, no entanto, um crítico da noção de verdade como desvelamento do real. Como para Górgias o ser não se deixa desvelar pelo pensamento, resta-lhe o caminho pelo qual a razão busca iluminar os fatos, sem chegar a uma conclusão definitiva. QUEM É? David Hume (1711-1776), filósofo e historiador escocês, foi um estudioso precoce, leitor de obras dos mais diversos teores. Ensaísta brilhante, seu pensamento crítico e naturalista é representativo do Iluminismo, sobretudo pela sua significativa presença na França, onde teve contato com os Enciclopedistas. Empirista convicto e conhecedor da evolução científica de sua época, insiste sobre a impossibilidade do conhecimento de ir além da experiência. Acrítica à religião e a postura cética lhe valeram a acusação de ateísmo. A novidade do seu pensamento influenciou decisivamente os filósofos posteriores, seja para rejeitá-lo, seja para levarem conta sua crítica à metafísica. Suas principais obras são: Tratado da natureza humana, Investigação sobre o entendimento humano, História da Inglaterra e A história natural da religião, entre outras. David Hume (séc. XVIII) admite o ceticismo ao reconhecer os limites muito estreitos do entendimento humano. Mais que isso, pondera que estamos subjugados pelos sentidos e pelos hábitos, o quereduz as nossas certezas a simples probabilidades. Recusa a metafísica e portanto os princípios a priori que tentem justificar nosso conhecimento. Hume, porém, não se diz cético à maneira de Pirro, porque ele critica apenas o poder da razão de conhecer, e prefere se referir às crenças teóricas e práticas, que podem ser corretas ou incorretas e nos orientam no cotidiano. Assim, quando uma bola de bilhar bate em outra e a movimenta, tendemos a aceitar o princípio da causalidade: uma bola é a causa do movimento da outra (que é seu efeito). Trata-se, porém, de uma crença, que resulta da conjunção habitual entre um objeto e outro: ..após descobrir, pela observação de muitos exemplos, que duas espécies de objetos, como a chama e o calor, a neve e o frio, aparecem sempre ligadas, se a chama ou a neve se apresenta novamente aos sentidos, a mente é levada pelo hábito a esperar o calor ou o frio e a acreditar que tal qualidade realmente existe e se manifestará a quem lhe chegar mais perto. Metafísica. Campo da filosofia que trata do "ser enquanto ser", isto é, do ser independentemente de suas determinações particulares, do ser absoluto e dos primeiros princípios Dentre os brasileiros, o filósofo Oswaldo Porchat Pereira é um representante do neopirronismo. Para ele, nossa visão do mundo não passa de uma racionalização precária, provisória, relativa. E continua: Visão de mundo que se reconhece sujeita a uma evolução permanente, que exigirá por isso mesmo uma revisão constante. [...] A natureza mesma de um tal empreendimento, que certamente visa a obtenção de resultados relativamente consensuais, se acomoda sem maior problema ao pluralismo de pontos de vista e de perspectivas fenomênicas diferentes. Ao 12 antigo conflito das verdades se substitui agora o diálogo desses pontos de vista e dessas perspectivas. Mantém-se a aposta no caráter intersubjetivo da racionalidade. Mercê de sua postura cética, a filosofia se pode pensar sob o prisma da comunicação, da conversa, do diálogo, do consenso e... da relatividade. E, assim pensada, ela pode contribuir — e muito — para favorecer o entendimento entre os homens: tendo destruído as verdades, ela poderá eventualmente ensiná-los a conviver com as suas diferenças Fenomênico. Relativo ao fenómeno: o cético adere não à realidade mesma, que ele julga ser inacessível, mas ao fenómeno. Consenso. Acordo de opiniões após discussão sobre divergências. Anton imo: d issenso. PARA REFLETIR Não confundir a crença humeana com a crença religiosa. Para Hume, a crença é o conhecimento que não se pode comprovar racionalmente, mas é aceito com base na probabilidade. Já a crença religiosa depende de uma verdade Os filósofos modernos e o nascimento da teoria do conhecimento Quando se diz que a teoria do conhecimento tornou-se uma disciplina específica da filosofia somente com os filósofos modernos (a partir do século XVII), não se pre¬tende dizer que antes deles o problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos, e sim que, para os modernos, a questão do conhecimento foi considerada anterior à da ontologia e precondição ou pré-requisito para a filosofia e as ciências. Por que essa mudança de perspectiva dos gregos para os modernos? Porque a filosofia moderna pressupõe a presença do cristianismo, o qual trouxe questões e problemas que os antigos filósofos desconheciam. A perspectiva cristã introduziu algumas distinções que romperam com a ideia grega de uma participação direta e harmoniosa entre o nosso inte¬lecto e a verdade, nosso ser e o mundo, pois os filósofos antigos consideravam que éramos entes participantes de todas as formas de realidade: por nosso corpo, participamos da natu¬reza; por nossa alma, participamos da inteligência divina. O cristianismo, porém, parte da concepção judaica de uma separação entre o homem e Deus, causada pelo pecado original ou pela queda do primeiro homem e da primeira mu¬lher; pelo pecado, os humanos ficaram separados da inteligência divina e perderam os laços harmoniosos com a natureza. Dessa maneira o cristianismo afirmou que o erro e a ilusão são parte da natureza humana em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade, após o pecado original. Criados com uma inteligência perfeita e uma vontade livre, o primeiro homem e a primeira mulher usaram a liberdade para transgredir a ordem de Deus, que lhes proibia o conhecimento do bem e do mal. Por orgulho, Adão e Eva infringiram a lei 13 divina e, ao fazê-lo, foram punidos, perdendo o contato direto com Deus e a verdade, a imortalidade de seus corpos, a perfeição da inteligência e da vontade, caindo para sempre no erro e na ilusão. Em consequência da concepção cristã do ser humano, a filosofia precisou enfrentar problemas novos: 1. Como, sendo seres decaídos e pervertidos, podemos conhecer a verdade? 2. Ao introduzir a noção de pecado original, o cristianismo introduziu a separação radical entre os humanos (pervertidos e finitos) e a divindade (perfeita e infinita). Com isso, fez surgir a pergunta: como o finito (humano) pode conhecer a verdade (infinita e divina)? Eis por que, durante toda a Idade Média, a fé tornou-se central para a filosofia, pois era por meio dela que essas perguntas eram respondidas. Misericordioso, Deus prometeu aos homens a redenção e para isso enviou seu Filho para salvá-los. Crer no Filho é ter a suprema virtude, a fé, que ilumina nosso intelecto e guia nossa vontade, permitindo à nossa razão o conhecimento do que está ao seu alcance, ao mesmo tempo que nossa alma aceita as verdades superiores, reveladas por Deus e contidas nas Escrituras Sagradas. Com isso, o cristia nismo introduziu uma distinção impensável para os filósofos antigos, qual seja, a distinção entre verdades de razão e verdades de fé, ou entre o conhecimento que nossa razão pode alcançar por si mesma e o conhecimento que só alcançamos por meio de uma revelação divina. As verdades que dependem de revelação divina são aquelas que nossa razão finita e imperfeita não só não pode alcançar sozinha como são, sobretudo, aquelas que só podemos aceitar sem compreender (como é o caso, por exemplo, da Encarnação do Filho de Deus, ou a Santíssima Trindade, ou a Eucaristia). Em outras palavras, as verdades da fé são mistérios. Há, portanto, duas maneiras de conhecer: pela atividade da razão ou luz natural e pela aceitação da revelação ou luz sobrenatural. Visto que a verdade, tanto de razão como de fé, tem sua origem na sabedoria e inteligência de Deus (pois este é o criador de todas as coisas), a verdade, dividida para nós, é indivisa e uma em si mesma. Isso significa, em primeiro lugar, que não pode haver contradição entre verdades da fé e da razão, pois a verdade não pode contradizer a verdade, e, em segundo, se houver alguma contradição, as verdades de razão devem ser abandonadas em proveito das verdades da fé, uma vez que a razão humana está sujeita ao erro e ao falso. O conhecimento racional, mesmo que não dependa da fé, subordina-se a ela. Além da distinção das verdades, o cristianismo trouxe a ideia de que a causa da verdade é a inteligência divina enquanto a causa do erro e do falso é a vontade humana, cuja liberdade perversa polui nossa inteligência ou razão. Essa ideia cristã foi fundamentada particularmente com Santo Agostinho na ideia de pessoa, vinda do Direito Romano, que define a pessoa como um sujeito de direitos e deveres. Se somos pessoas, dizem os cristãos, somos responsáveis por nossos atos e pensamentos. Nossa pessoa é nossa consciência, que é nossa alma dotada de vontade, imaginação, memória e inteligência. A verdade se torna, portanto, uma questão de consciência. 14 A vontade é livre e, aprisionada num corpo passional e fraco,pode mergulhar nossa alma na ilusão e no erro. Estar no erro ou na verdade dependerá, portanto, de nós mesmos, de nossa consciência, e por isso precisamos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal conhecimento é possível. Os primeiros filósofos cristãos e os medievais afirmaram que podemos conhecer a verdade, desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no tocante às verdades últimas e principais. Os filósofos modernos, porém, não aceitaram essas respostas e por esse motivo a ques¬tão do conhecimento tornou-se central para eles. Os filósofos gregos se surpreendiam que pudesse haver erro, ilusão e mentira. Como a verdade alétheia era concebida como presença e manifestação do verdadeiro aos nos¬sos sentidos ou ao nosso intelecto, isto é, como presença do Ser à nossa experiência sensível e/ou ao puro pensamento, a pergunta filosófica só podia ser: "Como é possível o erro ou a ilusão?". Ou seja, se o verdadeiro é o próprio Ser fazendo-se ver em todas as coisas, presente em nossas percepções, em nossas palavras, em nossos pensamentos, como o falso é possível se o falso é dizer e pensar que existe o que não existe? Como é possível ver o que não é, dizer o que não é, pensar o que não é? Para os modernos, a situação é exatamente contrária. Perguntam: "Como o conhecimento da verdade é possível?" De fato, se a verdade é o que está no intelecto infinito de Deus, então está escondida de nossa razão finita e não temos acesso a ela. A verdade, portanto, não é o que está manifesto na realidade, mas depende da revelação divina. Ora, a revelação só é conhecida pela fé e para esta a verdade é emunah, a confiança que nos leva a dizer "assim seja" e que nossa razão não pode entender. Por outro lado, visto que nosso intelecto limitado foi pervertido pela nossa vontade pecadora, como podemos conhecer até mesmo as verdades de razão, isto é, as que estariam ao nosso alcance sem o auxílio da revelação e da fé? Ou seja, até que ponto podemos admitir que nossa razão ou luz natural é capaz de um saber verdadeiro? Por isso mesmo, os filósofos modernos observaram que as verdades de fé haviam in- fluenciado a própria maneira de conceber as verdades de razão. De fato, uma verdade de fé é algo proferido e proclamado por uma autoridade inquestionável (Deus, anjos, santos) e esse aspecto como que "contaminou" as verdades de razão, fazendo com que os filósofos só aceitassem uma ideia se esta viesse com o selo de alguma autoridade reconhecida pela Igreja. Assim, mesmo uma verdade que podia ser alcançada por nossa razão só era aceita se fosse autorizada por alguém considerado superior (um filósofo antigo, um santo, um papa, um concílio eclesiástico, etc). E essa autoridade era ainda maior se estivesse situada no passado distante e suas ideias conhecidas pela leitura de livros ou por lições de escola. A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de recusar o poder de autoridades sobre a razão, seja a autoridade das Igrejas, seja a das escolas e dos livros. Começam, por isso, separando fé de razão, considerando cada uma delas voltada para conhecimentos diferen¬tes e sem que uma deva subordinar-se à outra. Prosseguem fazendo a crítica da autoridade atribuída à tradição, aos livros dos antigos e ao ensinamento das escolas. E passam a explicar como a razão e o pensamento podem tornar-se mais fortes do que a vontade e controlá-la para que se evite o erro. 15 O problema do conhecimento torna-se, portanto, crucial e a filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de conhecer, pelo entendimento, o estudo da própria razão humana ou de nosso intelecto ou entendimento. Com isso, o ponto de partida dos modernos é o sujeito do conhecimento. Os dois filósofos que, no século XVII, iniciam esse trabalho são o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes. O filósofo que propõe, pela primeira vez, uma teoria do conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke. Pode¬mos dizer que a partir do século XVII, portanto, a teoria do conhecimento torna-se uma disciplina crucial da filosofia. Bacon e Descartes Como dissemos, os gregos indagavam: "Como o erro é possível?". Os modernos per¬guntaram: "Como a verdade é possível?" Para os gregos, a verdade era alétheia, para os modernos, veritas. Em outras palavras, para os modernos trata-se de compreender e explicar como os relatos mentais nossas ideias correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade. Apesar dessas diferenças, os modernos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles, qual seja, começar pelo exame das opiniões contrárias e ilusórias para ultrapassá-las em direção à verdade. Antes de abordar o conhecimento verdadeiro, Bacon e Descartes examinaram exausti- vamente as causas e as formas do erro, inaugurando um estilo filosófico que permanecerá na filosofia, isto é, a análise das causas e formas dos nossos preconceitos. Bacon Bacon elaborou uma teoria conhecida como a crítica dos ídolos. De acordo com Bacon, existem quatro tipos de ídolos ou de imagens que formam opiniões cristalizadas e precon¬ceitos, que impedem o conhecimento da verdade: 1. .ídolos da caverna (a caverna de que fala Bacon é a do Mito da Caverna, de Platão): as opiniões que se formam em nós por erros e defeitos de nossos órgãos dos sentidos. São os mais fáceis de serem corrigidos por nosso intelecto; 2. ídolos do fórum (o fórum era o lugar das discussões e dos debates públicos na Roma antiga): são as opiniões que se formam em nós como consequência da linguagem e de nossas relações com os outros. São difíceis de serem vencidos, mas o intelecto tem poder sobre eles; 3. ídolos do teatro (o teatro é o lugar em que ficamos passivos, onde somos apenas espec-tadores e receptores de mensagens): são as opiniões formadas em nós em decorrência dos poderes das autoridades que nos impõem seus pontos de vista e os transformam em decretos e leis inquestionáveis. Só podem ser desfeitos se houver uma mudança social e política; 4. ídolos da tribo (a tribo é um agrupamento humano em que todos possuem a mesma origem, o mesmo destino, as mesmas características e os mesmos comportamentos): são as opiniões que se formam em nós em decorrência da natureza humana. São pró¬prios da espécie humana e só podem ser vencidos se houver uma reforma da própria natureza humana. 16 O então presidente ios Estados Unidos, George W. Bush, com sua mãe Barbara Bush e seu pai, o ei-presidente George Bush, durante um discurso numa universidade do Texas, em dezembro de 2008. Cena exemplar do que Bacon chama de "ídolo de teatro". A demolição dos ídolos é, portanto, uma reforma do intelecto, dos conhecimentos e da sociedade. Para os dois primeiros, Bacon propõe a instauração de um método, definido como o modo seguro de "aplicar a razão à experiência", isto é, de aplicar o pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível. O método deve tornar possível: 1. organizar e controlar os dados recebidos da experiência sensível, graças a procedimen-tos adequados de observação e de experimentação; 2. organizar e controlar os resultados observacionais e experimentais para chegar a co-nhecimentos novos ou à formulação de teorias verdadeiras; 3. desenvolver procedimentos adequados para a aplicação prática dos resultados teóricos, pois para ele o homem é "ministro da natureza" e, se souber conhecê-la (obedecer-lhe, diz Bacon), poderá comandá-la. O método, diz Bacon, é o modo seguro e certo de "apli¬car a razão à experiência", isto é, de aplicar o pensamento verdadeiro aos dados ofereci¬dos pelo conhecimento sensível. Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas, as mudanças sociais e políticas e o desenvolvimento dasciências e da filosofia propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano, que seria também uma grande reforma da vida humana. Tanto assim que, ao lado de suas obras filosóficas, escreveu uma obra filosófico-política, a Nova Atlântida, na qual descreve e narra uma sociedade ideal e perfeita, nascida do conhecimento verdadeiro e do desenvolvimento das técnicas. 17 Descartes Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes que chamou de atitudes infantis ou preconceitos da infância: 1. a prevenção, que é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões e ideias alheias, sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras. São as opiniões que se cristalizam em nós na forma de preconceitos (colocados em nós por pais, pro¬fessores, livros, autoridades) e que escravizam nosso pensamento, impedindo-nos de pensar e de investigar; 2. a precipitação, que é a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos se nossas ideias são ou não são verdadei¬ras. São opiniões que emitimos em consequência de nossa vontade ser mais forte e poderosa que nosso intelecto. Originam-se no conhecimento sensível, na imaginação, na linguagem e na memória. Essas duas atitudes indicam que, para Descartes, o erro situa-se no conhecimento sensível (ou seja, sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem), de maneira que o co-nhecimento verdadeiro é puramente intelectual, ou seja, fundado apenas nas operações de nosso intelecto ou entendimento e tem como ponto de partida ou ideias inatas (existentes em nossa razão) ou observações que foram inteiramente controladas pelo pensamento. Como Bacon, Descartes também está convencido de que é possível vencer os defeitos no conhecimento, por meio de uma reforma do entendimento e das ciências. (Diferente¬mente de Bacon, Descartes não vê a necessidade de essa reforma também exigir mudanças sociais e políticas.) Essa reforma deve ser feita pelo sujeito do conhecimento quando este compreende a necessidade de encontrar fundamentos seguros para o saber e se, para tanto, instituir um método. Os objetivos principais do método são: 1. assegurar a reforma do intelecto para que este siga o caminho seguro da verdade (por-tanto, afastar a prevenção e a precipitação); 2. oferecer procedimentos pelos quais a razão possa controlar-se a si mesma durante o processo de conhecimento sabendo que caminho percorrer e sabendo reconhecer se um resultado obtido é verdadeiro ou não; 3. permitir a ampliação ou o aumento dos conhecimentos graças a procedimentos segu¬ros que permitam passar do já conhecido ao desconhecido; 4. oferecer os meios para que os novos conhecimentos possam ser aplicados, pois o saber deve, no dizer de Descartes, tornar o homem "senhor da natureza". Por que o método se torna necessário? Feitas as críticas à autoridade das escolas e dos livros, da tradição e dos preconceitos, o sujeito do conhecimento descobre-se como uma consciência que parece não poder contar com o auxílio do mundo para guiá-lo, desconfia dos 18 conhecimentos sensíveis e dos conhecimentos herdados. Está só. Conta apenas com seu próprio pensamento. Sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros e distingui-los dos falsos. Eis por que Descartes escreve Discurso do método e Regras para a direção do espírito. Sobre o método, diz ele, na regra IV das Regras. Por método, entendo regras certas efáceis, graças às quais todos os que as observem exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que éfalso e chegarão, sem se can¬sar com esforços inúteis e aumentando progressivamente sua Ciência, ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes épossível esperar. Descartes, portanto, define o método como um conjunto de regras cujas características principais são três: 1. certas (o método dá segurança ao pensamento); 2. fáceis (o método evita complicações e esforços inúteis); 3. amplas (o método deve permitir que se alcance todos os conhecimentos possíveis para o entendimento humano). Descartes elabora quatro grandes regras do método: 1. regra da evidência-, só admitir como verdadeiro um conhecimento evidente, isto é, no qual e sobre o qual não caiba a menor dúvida. Para isso Descartes criou um procedi¬mento, a dúvida metódica, pelo qual o sujeito do conhecimento, analisando cada um de seus conhecimentos, conhece e avalia as fontes e as causas de cada um, a forma e o conteúdo de cada um, a falsidade e a verdade de cada um e encontra meios para livrar-se de tudo quanto seja duvidoso perante o pensamento; 2. regra da divisão-, para conhecermos realidades complexas precisamos dividir as dificul¬dades e os problemas em suas parcelas mais simples, examinando cada uma delas em conformidade com a regra da evidência; 3. regra da ordem-, os pensamentos devem ser ordenados em séries que vão dos mais sim-ples aos mais complexos, dos mais fáceis aos mais difíceis, pois a ordem consiste em distribuir os conhecimentos de tal maneira que possamos passar do conhecido ao desconhecido; 4. regra da enumeração-, a cada conhecimento novo obtido, fazer a revisão completa dos passos dados, dos resultados parciais e dos encadeamentos que permitiram chegar ao novo conhecimento. Locke John Locke é o iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita porque se propõe a analisar cada uma das formas de conhecimento que possuímos, a origem de nossas ideias e nossos discursos, a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com os objetos que ele pode conhecer. Logo na abertura de sua obra Ensaio sobre o entendimento humano, Locke escreve: Visto que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e 19 dá-lhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre eles, seu estudo consiste certamente num tópico que, por sua nobreza, é merecedor de nosso trabalho de investigá-lo. O entendi¬mento, como o olho, que nos faz ver e perceber todas as outras coisas, não se observa a si mesmo; requer arte e esforço situá- lo a distância efazê-lo seu próprio objeto. Assim como o olho, que faz ver e não se vê a si mesmo, o entendimento humano faz conhecer, mas não se conhece a si mesmo. Para conhecer-se, isto é, para que o entendimento torne-se um objeto de conhecimento para si mesmo, "requer arte e esforço". Como Descartes e Bacon, Locke afirma a necessidade do entendimento examinar a si mesmo. Como Bacon e Descartes, Locke também considera que é necessário esforço, trabalho, decisão para fazer o entendimento tomar-se a si mesmo como objeto de investigação. Porém, assim como Aris-tóteles diferia de Platão, Locke difere de Descartes. Platão e Descartes separam, de um lado, a experiência sensível, que pode estar sujeita ao erro, e, de outro, o conhecimento verdadeiro, que é puramente intelectual. Descartes, porém, difere de Platão, porque considera que o conhecimento sensível pode e deve ser empregado por nós, desde que submetido ao método e controlado pelo entendimento. Aristóteles e Locke consideram que o conhecimento se realiza por graus contínuos, partindo da sensação até chegar às ideias. No entanto, Locke difere de Aristóteles porque, para este, os princípios do pensamento e da realidade não são conhecidos por experiência sensível nem procedem da experiência sensível, mas são conhecidos apenas pelo puro pensamento ou pela intuição intelectual. Para Locke, porém, todas as ideias e todos os princípios do conhecimento deri¬vam da experiência sensível. Em outras palavras, o intelecto recebe da experiência sensível todo o material do conhecimento e por esse motivo pode-se dizer que não há nada em nosso entendimentoque não tenha vindo das sensações. Suponhamos que o espírito seja, por assim dizer, uma folha em branco, sem nenhuma letra, sem nenhuma ideia. Como estas chegaram ali? (...) De onde procede todo o material da razão e do conhecimento? Respondo com uma só palavra: da experiência. Todo nosso conhecimento se baseia nela e dela provém em última instância. Como se formam os conhecimentos? Por um processo de combinação e associação dos dados da experiência. Por meio das sensações, recebemos as impressões das coisas externas; essas impressões formam o que Locke chama de ideias simples. Por sua vez, nas percep¬ções, essas impressões ou ideias simples se associam por semelhanças e diferenças, formando ideias complexas ou compostas. Por intermédio de novas combinações e associações, essas ideias se tornarão mais complexas na razão, que forma as ideias abstratas ou gerais, como as ideias de substância, corpo, alma, Deus, natureza, etc, bem como as ideias das relações entre essas ideias complexas, como as ideias de identidade, causalidade, finalidade, etc. A formação das ideias na sensação, na percepção e na razão se faz por um processo de gene¬ralização pelo qual, a cada passo, eliminamos as diferenças para ficar com as semelhanças e os traços comuns, cujo conjunto forma uma ideia complexa geral ou universal. Tudo o que sabemos existir nos é dado pelas sensações e percepções, portanto, pela 20 experiência. Visto que a experiência nos mostra e nos dá a conhecer apenas coisas particulares ou singulares, somente elas existem. Por conseguinte, as ideias gerais ou universais não correspondem a realidades ou a essências existentes, mas são nomes que instituímos por convenção para organizar nossos pensamentos e nossos discursos. Assim, por exemplo, nossos olhos sentem ou percebem objetos coloridos e não a cor (isto é, percebemos cores de-terminadas que existem nos objetos particulares da visão). Da mesma forma, nossos olhos percebem objetos luminosos ou com luminosidades diferentes, mas não percebem a luz. Nossa razão, recebendo as percepções singulares dos objetos coloridos e dos objetos lumi¬nosos, combina e organiza essas sensações e percepções, abstrai dos objetos (isto é, separa) as qualidades coloridas e luminosas e com elas forma as ideias universais de "cor" e de "luz". Não existe "a cor", mas objetos singulares coloridos tais como os percebemos "a cor" é um nome geral com que nossa razão organiza nossas sensações visuais. Do mesmo modo, não existe "a luz" e sim objetos singulares luminosos tais como os percebemos "a luz" é um nome geral com que nossa razão organiza nossas sensações visuais. Por isso se diz que Locke é nominalista. Racionalismo e empirismo Na história da filosofia e da epistemologia, a diferença de perspectiva entre Descartes e Locke levou a distinguir as duas grandes orientações da teoria do conhecimento: o racionalismo e o empirismo. Para o racionalismo, a razão, tomada em si mesma e sem apoio da experiência sensível, é o fundamento e a fonte do conhecimento verdadeiro. O valor e o sentido da experiência sensível, bem como seu uso na produção de conhecimentos dependem de princípios, re¬gras e normas estabelecidos pela razão. Em outras palavras, a razão controla a experiência sensível para que esta possa participar do conhecimento verdadeiro. Para o racionalismo, o modelo perfeito de conhecimento verdadeiro é a matemática, que depende exclusivamente do uso da razão e que usa a percepção sensível (por exemplo, para construir figuras geomé¬tricas) sob o controle da atividade do intelecto. Para o empirismo, o fundamento e a fonte de todo e qualquer conhecimento é a expe- riência sensível, responsável pela existência das ideias na razão e controlando o trabalho da própria razão, pois o valor e o sentido da atividade racional dependem do que é determinado pela experiência sensível. Para os empiristas, o modelo do conhecimento verdadeiro é dado pelas ciências naturais ou ciências experimentais, como a física e a química. Empirismo é um movimento que acredita nas experiências como únicas, e são essas experiências que formam idéias. O empirismo é caracterizado pelo conhecimento científico, quando a sabedoria é adquirida por percepções; pela origem das idéias por onde se percebe as coisas, independente de seus objetivos e significados O que é Epistemologia: Epistemologia significa ciência, conhecimento, é o estudo científico que trata dos problemas relacionados com a crença e o conhecimento, sua 21 natureza e limitações. É uma palavra que vem do grego. A epistemologia estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade do conhecimento, e também é conhecida como teoria do conhecimento e relaciona-se com a metafísica, a lógica e a filosofia da ciência. É uma das principais áreas da filosofia, compreende a possibilidade do conhecimento, ou seja, se é possível o ser humano alcançar o conhecimento total e genuíno, e da origem do conhecimento. A epistemologia também pode ser vista como a filosofia da ciência. A epistemologia trata da natureza, da origem e validade do conhecimento, e estuda também o grau de certeza do conhecimento cientifico nas suas diferentes áreas, com o objetivo principal de estimar a sua importância para o espírito humano. A epistemologia surgiu com Platão, onde ele se opunha à crença ou opinião ao conhecimento. A crença é um ponto de vista subjetivo e o conhecimento é crença verdadeira e justificada. A teoria de Platão diz que conhecimento é o conjunto de todas as informações que descrevem e explicam o mundo natural e social que nos rodeia. A epistemologia provoca duas posições, uma empirista que diz que o conhecimento deve ser baseado na experiência, ou seja, no que for apreendido durante a vida, e a posição racionalista, que prega que a fonte do conhecimento se encontra na razão, e não na experiência. A consciência: o sujeito, o eu, a pessoa e o cidadão As diferenças entre racionalismo e empirismo não impedem que haja um elemento comum a todos os filósofos a partir da modernidade, qual seja, tomar o entendimen¬to humano como objeto da investigação filosófica. Tomar o entendimento objeto para si próprio, tomar o sujeito do conhecimento objeto de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade filosófica inaugura ao desenvolver a teoria do conhecimento. Como se trata da volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer- se, ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si mesmo, a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica. O pressuposto da teoria do conhecimento como reflexão filosófica é o de que somos seres racionais conscientes. O que a teoria do conhecimento entende por consciência? A capacidade humana para conhecer, para saber que conhece e para saber que sabe que conhece. A consciência é um conhecimento (das coisas e de si) e um conhecimento desse conhecimento (reflexão). Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a consciência é uma atividade sensível e intelectual dotada do poder de análise e síntese, de representação dos objetos por meio de ideias e de avaliação, compreensão e interpretação desses objetos por meio de juízos. É o sujeito do conhecimento. Este se reconhece como diferente dos objetos, cria e/ou descobre significações, institui sentidos, elabora conceitos, ideias, juízos e teorias. Por ser dotado de reflexão, isto é, da capacidade de conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento, o sujeito é um saber de si e um saber sobre o mundo, manifestando-se como sujeito percebedor, ima-ginante, memorioso, falante e pensante. É o entendimento propriamente dito, uma estrutu¬ra racional e uma capacidade de conhecimento que é a mesma em todos os seres humanos. Por sua 22 universalidade, o sujeitodo conhecimento distingue-se da consciência psicológica, pois esta é sempre individual. Que entendemos por "consciência psicológica"? Do ponto de vista psicológico, a consciência é o sentimento de nossa própria identidade: é o eu. O eu é o centro ou a unidade de todos os nossos estados psíquicos e corporais, ou aquela percepção que permite a alguém dizer "meu corpo", "minha razão", "minhas lembranças". A consciência psicológica ou o eu é formada por nossas vivências. O eu é a consciência de si como o ponto de identidade e de permanência de um fluxo temporal interior que retém o passado na memória, percebe o presente pela atenção e espera o futuro pela imagina¬ção e pelo pensamento. Por seu turno, a consciência de si reflexiva ou o sujeito do conhecimento forma-se como atividade de análise e síntese, de representação e de significação voltadas para a explicação, descrição e interpretação da realidade e das outras três esferas da vida consciente (vida psíquica, moral e política), isto é, da posição do mundo natural e cultural e de si mesma como objetos de conhecimento. Apoia-se em métodos de conhecer e buscar a verdade ou o verdadeiro. É o aspecto intelectual e teórico da consciência. Ao contrário do eu, o sujeito do conhecimento não é uma vivência individual, uma es- trutura cognitiva dotada de universalidade, ou seja, a capacidade de conhecimento é idêntica em todos os seres humanos e tem a mesma validade para todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, a ideia de círculo ou a de triângulo, elaboradas pelo geômetra enquanto sujeito do conhecimento, possuem o mesmo sentido, as mesmas características e propriedades, seguem as mesmas leis geométricas em todos os tempos e lu-gares, não dependendo de nossos gostos e desejos. Da mesma maneira, o princípio de identidade e o de não contradição exprimem a estrutura universal do modo de pensar do sujeito do conhecimento e são válidos em todos os tempos e lugares. O sujeito do conhecimento se ocupa com noções como as de espaço e tempo, causa e efeito, princípio e consequência, verdadeiro e falso, matéria e forma, signo e significação, etc, entendidas como condições universais e necessárias do conhecimento. Podemos compreender melhor a diferença entre o eu psicológico e o sujeito do conhe- cimento tomando alguns exemplos. João, por exemplo, pode gostar de geometria e Paula pode detestar essa matéria, mas o que ambos sentem não afeta os conceitos geométricos, nem os procedimentos matemáticos, cujo sentido e valor independem das vivências de ambos e são o objeto construído ou descoberto pelo sujeito do conhecimento. Maria pode não saber que existe a física quântica e pode, ao ser informada sobre ela, não acreditar nela e não gostar da ideia de que seu corpo seja apenas movimentos de partículas invisíveis. Isso, porém, não afeta a validade e o sentido da física quântica, descoberta e conhecida pelo sujei¬to do conhecimento. Luíza tem lembranças agradáveis quando vê rosas amarelas; Antônio, porém, tem péssimas lembranças quando vê rosas dessa cor. No entanto, a percepção de cores, de seres espaciais e temporais se realiza em nós não apenas segundo nossas vivências psicológicas individuais, mas também segundo 23 leis, normas, princípios de estruturação e organização que são os mesmos para todos na medida em que cada um de nós é um sujeito do conhecimento, mesmo quando não sabemos disso, ou seja, mesmo que não tenhamos passado à atitude reflexiva pela qual conhecemos que conhecemos. Além de sua dimensão epistemológica (sujeito do conhecimento ou entendimento) e de sua dimensão psicológica (o eu das vivências individuais), a consciência possui também uma dimensão ética. O que é a consciência moral ou ética? Do ponto de vista ético e moral, a consciência é a capacidade livre e racional para escolher, deliberar e agir conforme valores, normas e regras que dizem respeito ao bem e ao mal, ao justo e ao injusto, à virtude e ao vício. É a pessoa, dotada de vontade livre e de responsabilidade. É a capacidade de alguém para compreender e interpretar sua própria situação e condição (física, mental, social, cultural, histórica), viver na companhia de outros segundo as normas e os valores morais definidos por sua sociedade, agir tendo em vista fins escolhidos por deliberação e decisão próprias, comportar-se segundo o que julga o melhor para si e para os outros e, quando necessário, contrapor-se e opor-se aos valores estabelecidos, em nome de outros considerados mais adequados à liberdade e à responsabilidade. É a consciência de si como exercício racional e afetivo da liberdade e da responsabilidade, em vista da vida feliz e justa. A consciência moral pertence à esfera da vida privada, isto é, das relações interpessoais e intersubjetivas que transcorrem na família, nas amizades, no trabalho, na comunidade re¬ligiosa, na organização empresarial, etc. Além de nossa vida privada, participamos também da vida pública, isto é, da esfera política. O que é a consciência na esfera pública ou política? Do ponto de vista político, a consciência é o cidadão, isto é, o indivíduo situado no tecido das relações sociais como portador de direitos e deveres definidos na esfera pública, rela-cionando-se com o poder político e as leis; bem como o indivíduo na condição de membro de uma classe social, definido por sua situação e posição nessa classe, portador e defensor de interesses específicos de seu grupo ou de sua classe, relacionando-se com a esfera pública do poder e das leis. Em outras palavras, o cidadão é a consciência de si definida pela esfera pública dos direitos e deveres civis e sociais, das leis e do poder político. A consciência moral (a pessoa) e a consciência política (o cidadão) formam-se pelas relações entre as vivências do eu e os valores e as instituições de sua sociedade ou de sua cultura. São as maneiras pelas quais nos relacionamos com os outros por meio de comportamentos e de práticas determinados pelos códigos morais e políticos. Esses códigos dependem do modo como uma cultura e uma sociedade determinadas definem o bem e o mal, o justo e o injusto, o legítimo e o ilegítimo, o legal e o ilegal, o privado e o público. O eu é a consciência como uma vivência psíquica e uma experiência que se realiza na forma de comportamentos, a pessoa é a consciência como agente moral; e o cidadão é a consciência como agente político. A ação da pessoa e a do cidadão formam a praxis, palavra grega que significa "a ação na qual o agente, o ato realizado por ele e a finalidade do ato são idênticos". Em outras palavras, aquela prática na qual o agente é a ação que ele realiza bus¬cando um certo fim. 24 Sujeito, eu, pessoa e cidadão constituem a consciência como subjetividade ativa, sede da razão e do pensamento, capaz de identidade consigo mesma, de conhecimento verdadei¬ro, de decisões livres, de direitos e obrigações. Teorias sobre a verdade Que critério nos permite reconhecer a verdade e distingui-la do erro? Ou seja, que condições a verdade exige para ser aceita como tal? Quando afirmar que algo é verdadeiro? A resposta mais frequente está na evidência como critério da verdade, leremos os filósofos que são adeptos dessa teoria e eles que contemporaneamente a criticam. O critério da evidência Segundo a teoria da correspondência, representada filosofia desde Aristóteles, é verdadeira a proposição que corresponde a um fato da realidade, tal qual áe se mostra a nós. Sob esse prisma, a verdade é a manifestação para nosso intelecto daquilo que é, tal como é. O critério para identificar o verdadeiro é a aidência, que é a visão intelectual do real. Embora a teoria da correspondência tenha adeptos ainda hoje, recebeu muitas críticas por conta Cã dificuldadede explicar o que significa uma proposição corresponder a um fato. Em outras palavras, a verdade é a representação do mundo como de realmente é ou como nos aparece? Afinal, se temos acesso aos fatos apenas pelas nossas crenças, e essas não são verificadas por outros meios, a não ser por elas mesmas, como garantir que nosso pensamento corresponde aos fatos? Os mestres da suspeita O racionalismo confiante de que há um mundo objetivo a ser desvendado pela razão começou a sofrer abalos. Já sabemos que Hume e Kant colocaram em questão o critério de verdade dos antigos, mas foi na segunda metade do século XIX e no começo do XX que ersos filósofos intensificaram as críticas ao conceito de verdade como representação e correspondência. PARA REFLETIR Kant nos diz que o tempo não nos é dado pela sensação, mas é uma intuição pura: a noção de tempo é anterior à percepção das coisas e condição para percebê-las. Mas o enfoque dado por Dali em sua tela é outro: ele não indaga sobre a natureza do tempo, mas do tempo como condição da persistência da memória.Você saberia explicar porque o existir humano depende da memória? 25 A persistência da memória. Salvador Dali, 1931. Esta tela surrealista de Dali nos remete à indagação:"O que é o tempo?". Seria uma realidade externa a nós ou depende apenas do nosso entendimento. A expressão "mestres da suspeita" foi cunhada pelo filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) para designar os pensadores Marx, Nietzsche e Freud. Segundo Ricoeur, foram esses três pensadores que suspeitaram das ilusões da consciência. Por consequência, para descobrir a verdade, é preciso proceder à interpretação do que consideramos conhecer a fim de decifrar o sentido oculto no sentido aparente. a) Marx: a ideologia Karl Marx (1818-1883) viveu intensamente o período de confronto do proletariado com a elite económica de seu tempo. Quando esteve na Inglaterra, conheceu de perto a situação deplorável do operariado, obrigado a longas jornadas de trabalho em oficinas insalubres e com baixa remuneração. Elaborou então sua teoria materialista, segundo a qual as ideias devem ser compreendidas a partir do contexto histórico da comunidade em que se vive, porque elas derivam das condições materiais, no caso, das forças produtivas da sociedade. Percebeu também as contradições que surgem entre essas forças produtivas e as relações de produção. Nesse contexto, as ideias vigentes, que aparecem como universais e absolutas, são de fato parciais e relativas, porque representam as ideias da classe dominante. As concepções filosóficas, jurídicas, éticas, políticas, estéticas e religiosas da burguesia são estendidas para o proletariado, perpetuando os valores a elas subjacentes como verdades universais. Para Marx esse conhecimento que aparece de forma distorcida é a ideologia, ou seja, um conhecimento ilusório que tem por finalidade mascarar os conflitos sociais e garantir a dominação de uma classe, impedindo que a classe submetida desenvolva uma visão do mundo mais universal e lute pela autonomia de todos. b) Nietzsche: o critério da vida Friedrich Nietzsche (1844-1900) procedeu a um deslocamento do problema do conhecimento, alterando o papel da filosofia. Para ele, o conhecimento não passa de interpretação, de atribuição de sentidos, sem jamais ser uma explicação da realidade. Conferir sentidos é, também, conferir valores, ou seja, os sentidos são atribuídos a 26 partir de determinada escala de valores que se quer promover ou ocultar. Para Nietzsche, o conhecimento resulta de uma luta, do compromisso entre instintos. Ao compreender a avaliação que foi feita desses instintos, descobre que o único critério que se impõe é a vida. O critério da verdade, portanto, deixa de ser um valor racional para adquirir um valor de existência. O que Nietzsche quer dizer com "critério da vida"? Ao perguntar-se que sentidos atribuídos às coisas fortalecem nosso "querer viver" e quais o degeneram, questiona os valores para distinguir quais nos fortalecem vitalmente e quais nos enfraquecem. Outra teoria que destaca o caráter interpretativo de todo conhecimento é a do perspectivismo, que consiste em considerar uma ideia a partir de diferentes perspectivas. Essa pluralidade de ângulos não nos leva a conhecer o que as coisas são em si mesmas, mas é enriquecedora por nos aproximar mais da complexidade da vida em seu movimento. c) Freud e o inconsciente Sigmund Freud (1856-1939), fundador da psicanálise, desmente as crenças racionalistas de que a consciência humana é o centro das decisões e do controle dos desejos, ao levantar a hipótese do inconsciente. Diante de forças conflitantes, o indivíduo reage, mas desconhece os determinantes de sua ação. Caberá ao processo psicanalítico auxiliá-lo na busca do que foi silenciado pela repressão dos desejos. A hipótese do inconsciente tornou-se fecunda, ao permitir a compreensão de uma série de acontecimentos da vida psíquica. Para a psicanálise, todos os nossos atos trazem significados ocultos que podem ser interpretados. Usando de uma metáfora, poderíamos dizer que a vida consciente é apenas a ponta de um iceberg, cuja montanha submersa simboliza o inconsciente. Os sintomas que vêm do inconsciente devem ser decifrados na sua linguagem simbólica, já que o simbolismo é o modo de representação indireta e figurada de uma ideia, conflito ou desejo inconscientes. Há vários tipos de sondagem do inconsciente, mas, para Freud, os sonhos constituem o caminho privilegiado, que ele procura desvendar pelo método da associação livre. As críticas elaboradas por Marx, Nietszche e Freud repercutiram de maneira significativa nas reflexões posteriores sobre o sentido da verdade e o alcance do nosso conhecimento. Filósofos de correntes diferentes, como o pragmatismo, a filosofia da linguagem, o neopositivismo, o neomarxismo, enfim, das mais diversas tendências, se ocuparam com essa questão. A verdade como horizonte Vimos que, no correr da história humana, existiram diversas maneiras de compreender o que é a verdade. O critério da evidência prevaleceu na Antiguidade e na Idade Média e sofreu alterações na modernidade, com Descartes, que não renunciou à possibilidade do conhecimento. Posteriormente as posições conflitantes entre dogmáticos e céticos nos ensinam a desconfiar das certezas, postura que se tornou mais aguda na contemporaneidade. Se não sucumbirmos ao ceticismo radical que em última instância recusa a filosofia nem ao dogmatismo que se aloja na comodidade das verdade absolutas, poderemos melhor suportar o espante a admiração, a controvérsia e aceitar o movimente contínuo entre certeza e incerteza. Isso não significa renunciar à procura do conhecimento, 27 porque conhecer é dar sentido ao mundo, interpretar a realidade é descobrir a melhor maneira para agir. A verdade continua como um propósito humano necessário e vital, que exige a liberdade de pensamento e o diálogo, para que os indivíduos compartilhem as interpretações possíveis do real.
Compartilhar