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Na corda bamba -Francisco Tomás (nome fictício) AUTO-RELATO Anônimo. Na corda bamba (auto-relato). Casos Clin Psiquiatria [online]. Jan-dez. 2003, vol.5, no.1-2. www.medicina.ufmg.br/ccp Há mais ou menos 16 anos tive meu primeiro surto: fumei um baseado com um colega de trabalho e saí para um restaurante, para tomar whisky. Conversava tranquilamente com o companheiro, quando comecei a escutar vozes que diziam que iriam me matar, me seqüestrar. A ligação que fiz foi a seguinte: meu pai, homem de bem, era candidato a deputado, iriam me seqüestrar e pedir o resgate. A minha primeira atitude foi fingir que estava ligando para a Polícia Federal, entregando a quadrilha, e, depois disso, saí pelas ruas de Curitiba desesperado, fui parar na Praça Tiradentes. Em um restaurante, tentei ligar para casa, para avisar algum dos meus familiares. O telefone estava desligado. Uma nova tentativa e dessa vez funcionou; conversei com meu irmão e pedi que viesse me buscar, mas antes avisei o gerente do restaurante que toda a polícia do Paraná estava sabendo do meu seqüestro. Meu irmão chegou e pulei dentro do taxi. Fui a um psiquiatra, que me atendeu e depois recebeu meu pai em separado. Falta de ética. Queria fazer lobotomia e me impregnou de medicamentos. Porém, antes de ir a esse psiquiatra, minha família pensou que eu estivesse envolvido com traficantes, pois eu usava drogas e eles desconfiavam disso: que eu pudesse ser usuário. E era verdade. Depois de estar medicado e sedado, lembro-me que ficava no portão de minha casa, “doido babando” literalmente. Aos poucos, os amigos desapareceram, e fiquei só no meu deserto. Nesse período, comecei a ler muito a bíblia, “devorava-a” e minha mãe ficou preocupada, pensando que eu estivesse fanático. Ia à igreja, chorava, ria. Um grupo de irmãos da Igreja Evangélica me visitou e me incentivou “a combater o bom combate, como um bom soldado, arregimentado, e a ser fiel”. Passei por fases dificílimas em minha vida, a ponto de me desesperar com a própria vida. Nessa caminhada, já tive três internações e, se for necessário, serei internado quantas vezes for necessário. Sei que, se for inevitável e eu me tornar perigoso para mim e para a sociedade, eu mesmo serei o primeiro a sugerir a minha amada família, que tem me apoiado, a me internar. Mas tenho evitado ao máximo o surto, pois já era hora: a gente aprende caindo. Eu já tive muitas quedas, mas sete vezes cai o justo e sete vezes se levanta. Tenho aprendido na escola da vida e gostaria de compartilhar com vocês alguns mecanismos de defesa que tenho usado. Em 1o lugar – Mudança de Pensamento. Quando me vem um pensamento negativo, ou pensamento obstinado, e parece que vou enlouquecer, uso a repetição e digo em voz alta ou em pensamento, conforme o lugar em que eu esteja: “Porque se enlouquecemos é para Deus e se conservamos o juízo é para vós outros.” Repito quantas vezes for necessário. Em 2o lugar – Mudança de Ambiente. Quando não me sinto bem em algum lugar, retiro-me. Procuro evitar ficar no meio de muitas pessoas, apesar de ser teólogo, filósofo, escritor e conferencista. Quando sinto que perco o chão, vou para lugares ermos e solitários, para contemplar Cristo, na beleza de sua santidade. Procuro estar com meus amigos, em contato com a natureza, nunca em meio a ambientes opressores e hostis. Em 3o lugar – Evitar o Estresse. Quando sinto que vou me estressar, procuro tomar banho gelado para relaxar, e dormir tanto quanto necessário, de acordo com meu relógio biológico, o máximo de horas necessárias para repor o sono. Em 4o lugar – A Religião. A palavra religião vem do latim e significa ligar-se a Deus. O nosso grupo de auto-juda, os Psicóticos Anônimos, nos aconselha a crer no poder superior, assim como o concebemos. A Bíblia Sagrada é o meu manual, minha estrutura e alicerce, e até mesmo nos meus livros me inspiro nestes documentos da Bíblia. Ler, reler, decorar, degustar, ruminar, e a oração é um ponto de apoio. Temos duas opções: orar ou enlouquecer. Quando lemos a Bíblia escutamos a Deus; quando oramos, Deus nos escuta. Em 5o lugar – A Intuição e a Medicação. Quando estou nervoso e prestes a surtar, tomo um bromazepam adiantado. Além de ser um ansiolítico, ele me seda e quando chega a noite durmo com mais facilidade. Quando sinto efeito extra-piramidal colateral – o fenômeno chama-se crises oculógiras – tomo um biperideno ou dois, conforme a necessidade, senão o globo ocular se desloca. A olanzapina tira o surto em 15 minutos e a risperidona é um remédio potente contra efeitos negativos e positivos, contra o embotamento afetivo, o isolamento social e também contra delírios e alucinações, a que tenho maior tendência. A pipotiazina, que tomo de 21 em 21 dias – às vezes adianto esse medicamento – é o carro-chefe, o que segura o rojão, é o amansa-leão. E quando eu mesmo me aplico no músculo da coxa, pois é injetável, em 30 minutos fico relaxado e com um leve efeito sedativo. Por fim, o que me faz dormir é a levomepromazina. E um outro santo remédio que tomo todos os dias ao acordar, porque a associação de medicamentos me deixa muito sedado, é o café, três ou quatro xícaras, quando o sol se levanta. Faz mais ou menos quatro anos que não sou internado, e estou bastante estável. Às vezes deliro e tenho alucinações, surto, mas nada melhor do que tomar meu medicamento e dormir tranqüilamente, para acordarrenovado e pronto para outra. Pois a vida é difícil nos 100 primeiros anos, e dias maus virão, e muitos. Se os “normais” passam por lutas, quanto mais nós, psicóticos, que temos que enfrentar o estigma, a sociedade e, o pior de tudo, nós mesmos.
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