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Breve historia do corpo e de seus monstros

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BREVE HISTÓRIA DO CORPO 
E DE SEUS MONSTROS 
 
 
 
IEDA TUCHERMAN 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2 
 
 
 
 
 
 
 
 
para meu pai, Gregorio Vaisberg, in memorian 
 
para Fernanda, Guilherme, David e Marcela, 
“ventos do futuro” 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 3 
 
 
 
AGRADECIMENTOS: 
 
 
 Este livro é resultado de inquietações, curiosidades e diálogos. 
Nasceu sob o signo dos encontros e das amizades, surgindo como 
continuidade de uma viagem minha a Portugal em abril de 1997. Creio que 
estas três condições marcam seu estilo e a sua “errância”, pois é ainda um 
trajeto onde fez mais prazer o percurso do que a hipótese da chegada. 
 Sem algumas pessoas ele não teria sido possível, ou seria outro, e 
para elas vão os meus realmente sinceros agradecimentos. 
 
 a José Augusto Bragança de Miranda pelo convite para escrevê-lo, 
pela aposta de que eu o faria e pela amizade tão estimulante 
 a minha turma das quartas-feiras de manhã, meus alunos de pós-
graduação, adoráveis “sócios” na experiência de concebê-lo 
 a Carmem Gadelha pelo cuidado da primeira leitura 
 ao Cláudio pela paciência na digitação 
 
 No mais, aos meus amigos (que sorte que os tenha!) não faço 
dedicatórias. Prometo dedicação. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 4 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 “O maior apetite do homem é desejar ser. 
 Se os olhos vêem com amor o que não é, tem ser” 
 
(Padre Antonio Vieira - Paixões Humanas) 
 
 
 
 
 
 “Repetir, repetir, até ficar diferente 
 “Repetir é um dom do estilo” 
 
 
(Manoel de Barros - Livro das Ignorãnças) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 5 
 
 
 
 
SUMÁRIO: 
 
 
I - APRESENTAÇÃO, 6 
II - BREVE HISTÓRIA DO CORPO, 12 
 II.1 - A CRIAÇÃO DE UMA CATEGORIA: A FUNÇÃO - ESPELHO, 12 
 II.2 - O CORPO TRANSCENDENTE: O SEGUNDO PASSO, 22 
 II.3 - A IDEALIZAÇÃO DO CORPO: A EXPERIÊNCIA DO CORPO GREGO E 
A INVENÇÃO DO CORPO ROMANO, 25 
 II.4 - O CORPO CRISTÃO: UM CORPO SEM LUGAR, 31 
 II.5 - CORPO, ESPAÇO E NARRATIVA, 46 
 II.6 - A TRANSIÇÃO PARA O CORPO MODERNO, 52 
 II.7 - O NOVO CORPO E OS NOVOS PERSONAGENS, 55 
 II.8 - A CRISE DO CORPO, 68 
 
III - MONSTROS, FREAKS E CYBORGS: O OUTRO DO CORPO E O CORPO DO 
OUTRO, 72 
 III.1 - A CONSTRUÇÃO DOS MONSTROS E AS RAÇAS FABULOSAS, 72 
 III.2 - OS MONSTROS FANTÁSTICOS E OS FREAKS, 87 
 III.3 - OS FREAK-SHOWS, 98 
 III.4 - O MONSTRO IMAGINÁRIO DE MARY SHELLEY, 101 
 III.5 - DO FRANKENSTEIN AOS NOVOS FREAKS: UM PROCESSO DE 
ABSORÇÃO, 105 
 III.6 - ARTE, CULTURA E TECNOLOGIA, 113 
 III.7 - CYBORGS, UM DEVIR..., 120 
 III.8 - “MANIFESTO PARA OS CYBORGS”, 124 
 III.9 - CYBORGS E A CIBERCULTURA, 129 
 
 6 
IV - ENSAIO PARA UMA CONCLUSÃO, 137 
 
V - BIBLIOGRAFIA, 150 
 
 
I - APRESENTAÇÃO: 
 
 
 “Com pedaços de mim eu monto um ser atônito” 
(Manoel de Barros - Livro sobre Nada) 
 
 
 Perplexidade parece ser o sentimento mais comum que 
experimentamos em nossos dias. Divididos entre o assombro e o 
desassossego nos vemos incapazes ou, pelo menos, mal preparados para 
entendermos o que constituía nossa sensação de realidade. De certa forma 
perdemos o mundo e as mais caras idéias que tínhamos sobre nós mesmos. 
 Neste fim de milênio, sempre uma data muito grave, repetimos, 
sem nos darmos conta, as profecias milenaristas que no ano 1000 enchiam 
de pânico os habitantes da velha Europa, antecipando, naquele então, o 
fim dos tempos e o fim do Mundo. 
 Sabemos que eles estavam enganados. Nossa simples presença é a 
prova concreta do seu engano e, de há muito, nos pareceram ingênuas e 
fanáticas suas previsões. No entanto, alguns de nossos intelectuais mais 
festejados assim como a grande massa atingida pelos meios de 
comunicação não cessam de fazer voltar a saudade dos outros tempos 
referindo-se à nossa atualidade como o momento do fim da história, do 
esgarçamento do humanismo, da gravíssima ameaça ao nosso eco-sistema, 
da perda das identidades e do fim dos processos de subjetivação. Perda, 
fim, vazio, indiferenciação, desaparecimento são os termos e os 
diagnósticos mais freqüentes hoje. 
 7 
 Este pequeno livro nasceu deste e contra este ambiente. Pode ser 
pensado como um desejo de teimosia e de esperança. Que não se quer 
ingênua, pois não desconsidera que, como diz a canção, “nada será como 
ontem, amanhã”. Mas que assume algumas lições aprendidas com 
pensadores que, como faróis, iluminam parte do caminho a ser inventado e 
percorrido. Sem eles a tarefa seria impossível. Com eles não existem 
garantias totais já que lhes ser fiel significa também afastar-se deles, que 
já não estão presentes, em alguns casos como os de Nietzsche, Foucault e 
Deleuze, ou não desejam discípulos como Michel Serres, para citar apenas 
os companheiros mais constantes. 
 Algo há de fazer, ou melhor, a pensar. Pois o fim de um 
pensamento não é o fim da possibilidade de inventar; pois não temos o 
direito de desprezar o presente; pois precisamos conhecer os perigos e as 
estratégias que nos permitam resistir; pois devemos escolher o que 
queremos que permaneça e lutar por isto. Imperioso optar por um 
“ceticismo ativo” que nos proteja da falsa euforia como da improdutiva 
apatia. O resto é tentar, correndo o risco de encontros e encontrões, de 
muitos pequenos enganos e de algumas contradições que, esperamos, 
sejam perdoáveis. 
 A autora tem o vício, mais do que o estilo, de não saber conceber 
tratados. Não por ausência de rigor ou seriedade, mas por ser alérgica a 
verdades contumazes. Sendo assim este texto reapresenta uma escolha já 
antiga realizada para a sua tese de doutorado, que tinha como título: Ética 
e Modernidade: Diário de Bordo ou Contos de Amizade. Escrever no 
modelo grego dos “hypomnemata”, espécie de cadernos que constituíam 
uma memória material das coisas lidas, ouvidas e pensadas, para nós 
também vistas e simuladas, de modo a ajudar nos exercícios de reflexão 
mas também na arte de viver. 
 Este é o projeto. Que sorte o bafeje. 
 Onde estamos nós? poderia ser nossa primeira pergunta. Em que 
lugar  tempo realizamos nossa coexistência? A que cultura, afinal, 
pertencemos? Alguns nomeiam nossa época de pós-modernidade, num 
 8 
batismo que nos parece pouco definido: pós significa aí apenas depois de, 
tal como o prefixo pré em pré-socráticos junta no mesmo nome todos os 
que antecederam Sócrates, incluindo pensadores tão contrastantes como 
Anaximandro, Empédocles, Heráclito, Parmênides etc. E, se é o depois da 
Modernidade, como é, ou seja, é uma continuação no depois, uma 
evolução, ou é uma ruptura? Pós-modernidade seria o nome da crise da 
Modernidade, ou de sua total superação? Preferimos pensar em termos de 
atualidade, considerando que esta tem relações ambíguas com o seu 
passado imediato, ou seja, a Modernidade que talvez defina o que não 
somos mais, ao menos em termos absolutos, mas do que ainda 
manifestamos sintomas, e algo que ainda não somos mas que estamos 
devindo, isto é, vindo a ser. 
 Inegável no entanto é que neste nosso agora assistimos a uma 
espécie de reinvenção da cultura onde o ciberespaço e a realidade virtual 
põem em questão a própria existência do real e de seu sentido, 
experimentado por nós como ausência de existência já que a realidade, tal 
como nossa tradição cultural a concebeu, supõe uma efetuação material e 
uma presença tangível. Podemos viver afetivamente esta perda, mas é 
necessário evitar as armadilhas: o virtual não se opõe ao real; a relação 
que existeé entre o atual e o virtual, um modo próprio de ser do real que 
se associa a um processo de “desterritorialização” e a novos fenômenos 
espaço-temporais. 
 Ora, o que era a realidade pensada como presente e presença para a 
experiência moderna senão um contínuo deixar de ser? Sua aposta não foi 
a eleição do novo como o cultuado valor já que o que lhe parecia 
intolerável era que o futuro não fosse melhor e mais digno do que o 
passado? 
 O presente que aí foi desvelado, uma vez rompidas as ligações com 
a tradição, era uma questão apresentada pelo negativo, ou seja, como já o 
dissemos, pelo deixar de ser, cuja singularidade é a emergência do 
possível. Pontuou, ao mesmo tempo, o mágico momento do aflorar das 
utopias, este não-lugar do real que fala do desejo do que pode vir a ser, 
 9 
portanto do sonho, e da autonomia da razão que deve ser capaz de avaliar 
as condições possíveis do presente atual e preparar a chegada do novo. O 
novo era o lugar de confluência do sonho e da razão, era a radical 
promessa onde sopravam os ventos da liberdade e da realização. 
 Mas tinha os seus problemas, alguns dos quais constituem nossa 
herança. Para além da Revolução Francesa e no seu modelo, surgiram 
todos os movimentos libertários, buscando construir os novos mundos. 
Surgiram também, é bom não esquecermos, os movimentos totalitários, 
pretendendo produzir um novo pré-determinado e único, exterminador 
radical de todos os possíveis. 
 Ora, foi em busca do novo e do mais veloz, de introduzir uma 
separação entre cultura e natureza que o Ocidente investiu o melhor dos 
seus esforços. Paul Virilio menciona esta relação na fórmula “HOMO 
FABER”, o que é capaz de fazer melhor e mais rápido que a Natureza, 
sujeita às leis do comparecimento do acaso, que, desde o mito da Gênese 
já é um outro do Paraíso: o enunciado bíblico “Tu cultivarás a Terra com o 
suor do teu rosto e nem sempre ela te dará os melhores frutos”, mais do 
que uma condenação, produziu uma tarefa: a ação da cultura humana que, 
tendo a ciência e a tecnologia como suas apostas, deveria tentar controlar, 
por um lado, e antecipar por outro, a cultura dos frutos necessários. 
 Não é portanto tão espantoso que falemos hoje do desaparecimento 
do real, entendido como suporte material, relacionado, de certa forma, ao 
espaço e à natureza. Talvez a diferença se encontre, em primeiro nível, na 
aceleração da velocidade que desqualifica o espaço: mas este sempre foi 
transformado pelas tecnologias; enquanto suporte, sua existência se realiza 
a partir da possibilidade de percorrê-lo e esta deveria poder ser sempre 
mais segura e veloz. Hoje é a velocidade que nos confunde: é que 
parecemos estar atrasados não em relação ao nosso futuro, mas em relação 
ao nosso próprio presente. 
 Ao mesmo tempo em que o real faz questão, surge desta uma 
segundo pergunta, logicamente correlata. Quem somos nós, humanos? já 
as novas tecnologias biomédicas, as novas teorias de neurofisiologia 
 10 
cerebral, a profusão de próteses conectáveis ou implantáveis com as quais 
nos hibridizamos, as clonagens e as experiências que superaram as 
determinações da espécie só fazem por em questão as mais antigas noções 
de humanidade e nossas determinações mais radicais: a saber, 
mortalidade, singularidade e sexualidade. 
 Em relação à mortalidade, a nossa finitude constitutiva da 
experiência da Modernidade, cuja elaboração podemos reconhecer nas 
questões Kantianas a partir da radicalidade do limite como nosso princípio 
próprio: O que posso conhecer? O que devo desejar? O que posso esperar? 
parece estar sob suspeição. Assim como as intervenções protéticas e o 
processo de duplicação tornam possível o adiamento ou a superação da 
mortalidade, à condição que o homem perca suas pretensas características 
de ser natural, portador de singularidades próprias, pois para postular-se 
como imortal é preciso que o homem seja “em seu próprio corpo”, puro 
artefato, as questões que nos constituíam tornam-se anacrônicas ou 
obsoletas. Talvez não estejamos totalmente preparados mas é, sem dúvida 
preciso, conceber as novas questões que se fazem necessárias. Entre elas, 
talvez, a mais significativa seja: O que é ser um corpo? ou O que é ter um 
corpo? que possibilidades hoje nos são abertas e que experiências nos são 
possíveis? 
 Quanto à singularidade, ela se relacionava mediatamente com a 
experiência de finitude, de corpo e modo de ser próprios. E o processo de 
globalização, que configura o que chamamos de sociedade de controle, 
parece ter como premissa lógica para seu funcionamento a nossa des-
singularização. Somos agora senhas, que fala do nosso lugar no sistema, 
que é o que interessa para a operacionalidade do mundo que tem como 
alma a empresa, como somos conexões no regime da cibercultura. “Eu sou 
na medida das minhas conexões” parece ser o que hoje define nossa 
subjetividade, assim como nosso corpo. 
 No que se refere à nossa sexualidade, nós nos orgulhamos do 
movimento político que nos permitiu destacá-la da reprodução, a nossa tão 
festejada revolução sexual que afirmava em nós a liberdade de seres do 
 11 
desejo. Mas não estávamos, parece, preparados para não sermos mais 
responsáveis pela vida e pela continuidade da espécie. Tudo parece supor 
que a ordem mundial na sua mais intensa radicalidade não depende mais 
do homem, condenado então à “funções inúteis”. 
 Não é possível deter este processo. Não parece também sensato 
acreditar que conheçamos ou possamos determinar o seu desfecho. A 
única certeza que parece lógica é a da perda de tudo o que enquadrou 
nossos saberes, nossas confortáveis referências teóricas, nossas antigas 
seguras fronteiras que delimitavam humano e não-humano, e da 
articulação presente - passado - futuro que nos dotava ao menos 
imaginariamente, da capacidade de previsão, da diferença representada 
pelo novo que destacava real e possível entre outras. Logo, não perdemos 
a bússola, mas também o mapa e o território, o que para um viajante 
corresponde à experiência impossível de perder-se no não-lugar. 
 A Modernidade apostou no desejo de futuro, na antecipação de seus 
possíveis. Mas a atualização de um certo intolerável aconteceu para além 
de suas previsões. Não foram os acidentes singulares, lugares de um medo 
identificável que nos perturbaram mais profundamente, mas, de certa 
forma, as vitórias obtidas. As revoluções tecnológicas configuraram um 
tempo onde as coisas acontecem antes de terem sido desejadas. O novo, 
valor de investimento do nosso mais imediato ontem é também o nome da 
angústia do nosso hoje, já que nos inclui na pergunta: Que humanos somos 
nós? A que nova raça pertencemos? O que é hoje nossa corporeidade? 
 Modificam-se o ambiente, a questão e os afetos: agora não se trata 
apenas do que podemos ser ou fazer mas também, e principalmente, se 
podemos controlar aquilo que faremos e o resultado do que fizermos. 
Curiosamente nossos poderes escapam a nossos poderes. E, como um 
mote, atingem-nos diretamente na carne, isto é, naquilo que o corpo 
protegia. 
 É disto que tentaremos falar. Nossos personagens conceituais serão 
o corpo, sua história e seus outros: monstros, freaks, cyborgs, anjos. 
 12 
Tentaremos encontrá-los ouvindo os “ventos do futuro” que sopraram para 
Nietzsche: 
 
 “O que é grande no homem 
 é que ele é uma ponte 
 e não um fim 
 o que pode ser amado no homem 
 é que ele é um passar e um sucumbir” 
(F.Nietzsche - Assim falou Zaratustra, Primeira parte  4) 
 
CAPÍTULO II 
 
BREVE HISTÓRIA DO CORPO 
 
 
 Et puisque tous ces mystères nous dépassent 
 Feignons d’en être les organisateurs(Jean Cocteau - La Machine Infernale) 
 
 
II.1 - CRIAÇÃO DE UMA CATEGORIA - A FUNÇÃO ESPELHO 
 
 O “corpo” pertence ao conjunto de categorias mais persistentes na 
cultura ocidental. Fundamentalmente porque ele suporta, pela sua aparente 
evidência, todas as grandes questões que nos configuraram e permitiram que 
nós nos inventássemos, nos esquecêssemos e tornássemos a nos inventar na 
categoria mais radical que parecia definir a nossa humanidade ou seja, aquilo 
que pensadores como Clément Rosset (entre muitos outros) chamam de nossa 
fatalidade ontológica: a nossa finitude radical e a nossa necessária singularidade 
que “by all the ways”, ou seja, “always”, nos determina uma forma que 
 13 
reconhecemos no espelho, no cinema e mesmo na nossa sombra que nos faz 
presente na nossa ausência imediata.
1
 
 O recurso ao espelho, agora pensado no grande plano para além close-
up, parece alegoricamente sedutor. Pois apenas o que possui uma imagem atual 
e totalizada se permite capturar no espelho na presença de duas dimensões: 
altura e largura. “E quando nos vemos no espelho, o que vemos refletido é a 
imagem do Narciso que está em nós, mas não do vampiro que nos habita: este 
sempre escapa, mas escapa como viajante nômade [...]. O vampiro que somos 
torna possível a imagem do Narciso que vemos: mas o vampiro é o que não 
pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz a imagem de vampiro. 
Drácula contra Narciso. Drácula contra Édipo”.2 
 Lembrando também o que a nossa música popular através de Caetano 
Veloso enunciou definitivamente: “É que Narciso acha feio o que não é 
espelho”.3 
 O espelho é, em relação ao mundo, poderoso mas também específico. E 
parece que, desde a primeira possibilidade técnica do reflexo nas águas, a que o 
mito de Narciso faz menção, a grande aposta da tradição ocidental foi a de se 
constituir como o reino da visibilidade universal: ver é conhecer e a aposta é 
que uma pedagogia do olhar é o que constrói nossa relação com o mundo. A 
relação entre especulação filosófica e fenomenologia  Ser é Perceber  é a 
de um vínculo forte, como aponta, com argúcia, Umberto Eco.
4
 
 Speculum - espelho; spectabilis - o visível; specimem - a prova; o 
indício, o argumento e o presente; speculum é parente de spetaculum (a festa 
pública) que se oferece ao spectator (o que vê, o espectador) que não apenas se 
vê no espelho e vê o espetáculo, mas ainda pode voltar-se para o speculandus (a 
especular, a investigar, a examinar, a vigiar, a espiar) e ficar em speculatio 
(sentinela, vigia, estar de observação, pensar vendo) porque exerce a spectio (a 
 
1
 Clément Rosset, Le Réel - Traité de l’idiotie, Paris, Minuit, 1977. 
2
 E. L. de Souza, Theatrum do sentido, dissertação de mestrado apresentada na Escola de 
Comunicação da UFRJ, 1995, e orientada por mim. 
3
 Caetano Veloso, Sampa. 
4
 U. Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. 
 14 
vista, inspeção pelos olhos, leitura dos agouros) e é capaz de distinguir entre as 
species e o spectrum (espectro, fantasma, aparição, visão irreal). 
 Poderoso porque congela o tempo e define o espaço para que nele 
conquistemos uma forma e, assim, reflete o Narciso que ele mesmo produziu. 
Específico em outro sentido: se eu escrever um diário, gravar uma fita e enviá-
la a alguém na garrafa do náufrago das lendas ou através das modernas 
tecnologias de comunicação, o meu pedido de socorro ou as minhas reflexões 
serão apreendidas - assim diz a lenda - como assim acontece quando aciono 
meu netscape. No entanto, depois que eu desaparecer, a pessoa que me seja 
mais amada e a mais próxima, olhando no espelho em que eu me vi a cada 
manhã, só encontrará seu “próprio” corpo e minha perda. 
 O espelho é um agora absoluto ou, usando uma expressão mais 
filosófica, uma recusa do tempo.
5
 E todo e qualquer homem (na generalidade de 
humano onde ela ainda parece ser possível) do mais sábio ao menos cultivado, 
sabe que precisa esperar derreter o torrão de açúcar para que o café seja 
adoçado: ou seja, sabemos instintivamente que só existimos no tempo e em sua 
medida de duração, ainda que falemos sobre instantaneidade, ubiqüidade, 
virtualização e aceleração. Ao lado da INTERNET, acessada pelo meu 
computador, está a velha xícara talvez com a pequena fissura na porcelana 
familiar, esperando que o açúcar se misture a um café não-instantâneo, para 
permitir que o “meu corpo”, cansado de um dia de trabalho, se energize com a 
cafeína consumida e me permita continuar “plugada”. Mantendo a referência 
afetiva a Deleuze, a ela acrescentando Guattari, a máquina desejante pode 
muito, mas precisa ter qualquer espécie de combustível que, associado ao 
desejo, me permita, simplesmente estar acordada. De pé na “aldeia global”. 
 Voltando ao espelho para um re-conhecimento, seu agora absoluto é 
“mortal” ou, pelo menos, muito perigoso. Narciso apaixona-se por sua 
“própria” imagem e isto significa sua morte. Cecília Meireles, a mais conhecida 
poetisa brasileira, com a sutileza do olhar feminino, pergunta: “Em que espelho 
ficou perdida a minha face?”.6 
 
5
 Ferdinand Alquié, Le Désir d’Eternité, Paris, PUF, 1a. edição, 1943. 
6
 Cecília Meireles, Retrato - Flor de Poemas, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1972, p.63. 
 15 
 E a nossa cultura tem sido, refiro-me aí às duas matrizes que sustentam 
o nosso chamado pensamento ocidental  de Occidere  lugar onde o sol vem 
morrer  e portanto ficará sem luz, “cego” (talvez como Tirésias por saber 
demais), e a matriz grega e a judaico-cristã, uma poderosa construtora de 
espelhos e imagens legisladoras de princípios de inclusão e exclusão, natureza e 
cultura, mesmo e outro. Entre estas, talvez a mais radicalmente privilegiada 
tenha sido a imagem do corpo, o que parece explicar a sua longevidade, por um 
lado, e uma certa aflição por outro, já que não é difícil identificar nas queixas de 
alguns pensadores como Virilio e Baudrillard, apenas para citar exemplos, pois 
a lista seria bem maior, a associação de três conceitos: a hiperrealidade, a perda 
do suporte material e a morte da vida viva, isto é, do real e do corpo. O que tem 
justificado certas perguntas decorrentes desta associação: qual é hoje o campo 
da experiência possível? Ainda há um agir, para além do agir comunicativo? 
 Vamos tentar pensar de outra forma e isto vai significar pôr em questão 
cada uma da três evidências, ou melhor, compreender a que imagens elas ainda 
se referenciam. Mas há um tom imediatamente identificável e que é 
apocalíptico, retomando contemporaneamente, desde O Evangelho de São João, 
passando pelas profecias milenaristas, até certas propostas modernas e 
nostálgicas: a idéia da perda ou da morte do mundo e de tudo que nele vive e 
vigora. Tom que embora soe às vezes como melodioso, tem embutido nele um 
certo princípio messiânico e purista que atrapalha as cambalhotas do 
pensamento.
7
 
 Fizemos referência à longevidade da idéia de corpo. Para reforçar sua 
capacidade de impregnação é curioso lembrar que, depois da morte de Deus 
proclamada por ele e da noção associada da morte do homem e do advento do 
Super-Homem (ou o Além-Homem como preferem alguns preocupados talvez 
com a homonímia com o personagem das aventuras que é a metamorfose 
poderosa de Clark Kent), Nietzsche ainda enuncia assim nos aforismos de A 
vontade de potência sua relação com o corpo: “O corpo é um pensamento mais 
 
7
 Estamos apenas fazendo referência a alguns diagnósticos e sobretudo a leituras feitas a partir 
destes autores:ainda que não concordemos com todas as suas posições são dois pensadores 
próximos com os quais o diálogo é sempre enriquecedor. 
 16 
surpreendente do que a alma de antigamente,
8
 ou, “O que é mais 
surpreendente é bem mais que o corpo: não deixamos de nos maravilhar com a 
idéia de que o corpo humano tornou-se possível”.9 
 Idéia compartilhada pelos modernos físicos dedicados ao recente estudo 
da cosmologia científica diante de dados surpreendentes: os 4.600.000.000 de 
anos do universo, a existência de fósseis encontrados especialmente no Xisto de 
Burgess de mais de 16 espécies diferentes e o fato de que do período 
camboriano - de 600.000.000 de anos se tenha fixado uma espécie de vida, o 
Picabia, que, apesar de menor e menos forte do que outras espécies que lhe 
foram contemporâneas, pela estrutura rígida de sua formação deu origem à 
coluna vertical que nos tornou possíveis, e ao nosso corpo. Para tais físicos 
somos filhos do acaso no sentido mais científico que este termo possa ter. 
 Mas, a partir da coluna vertebral, surgiram várias espécies. Para nós 
interessa pensar em que medida ela sustentou para nossa civilização a idéia de 
corpo próprio e ideal que nos é rigorosamente peculiar e que, se podemos ver 
com tanta nitidez, é porque esta imagem na nossa contemporaneidade se mostra 
em crise a partir de uma série de sintomas dos quais podemos listar: o aumento 
das próteses, a criação do cyborg (um cyberbody), o surgimento da clonagem, a 
replicação como possibilidade técnica e as intervenções científicas viabilizadas 
pela engenharia genética, a biologia molecular e pelas novas técnicas cirúrgicas 
e de visualização. 
 É evidente que a crise do corpo é caudatária da crise dos fundamentos da 
nossa cultura e se articula com a crise do sujeito, a qual tinha como condição 
operatória sua diferença do objeto, que era, em primeira instância, o mundo, do 
qual nós aprendemos a nos destacar, primeiro pelas narrativas míticas e depois 
pela dualidade que impusemos entre logos e physis. Este foi um longo processo 
de constituição e invenção, rupturas e metamorfoses, o que nos permite dizer 
 
8
 F. Nietzsche, La volonté de puissance, Fragments Posthumes org. por Généviéve Bianquis, 
livro II aforisma 173, cit. por G. Deleuze, Nietzsche et La Philosophie, Paris, Ed. Minuit, 1963, 
p.45. 
9
 Idem Livro II aforisma, 226 - idem p.45. 
 17 
que o nosso corpo tem uma realidade lógica, ou seja, de “logos”, o que não 
corresponde à evidência, já que naturalmente somos “physis”, isto é, carne.10 
 Para compreendê-lo faremos contraste entre duas fábulas. A primeira, 
expressa num dos capítulos de Além das nuvens, filme dirigido por Antonioni e 
Win Wenders e relatada pela personagem num bar conta a seguinte história, 
transcrita de memória, pois sua exatidão não compromete a associação que vai 
possibilitar, e retoma a magia da tradição oral que encerrava esta prática 
narrativa: uma equipe de arqueólogos contratou um grupo de carregadores 
mexicanos para conduzir sua bagagem e seus instrumentos de trabalho por uma 
região montanhosa. Depois de um certo tempo, quando o ritmo vinha sendo 
bem ágil, os carregadores pararam sem que nada os convencesse a avançar. 
Perguntados pelo chefe da expedição da razão de tal comportamento, 
responderam que tinham ido muito rápido e suas almas tinham ficado para trás; 
era preciso parar para que elas os alcançassem. 
 A segunda nos foi fornecida por José Gil, no livro As metamorfoses do 
corpo
11
, referindo-se ao caledôneo cristianizado perguntado pelo missionário 
Leenhard:
12
 “Em suma é a noção de espírito que nós trouxemos para o vosso 
pensamento?” e que respondia: “O espírito? Oh! Vós não trouxestes o espírito. 
Já conhecíamos a existência do espírito [...] O que vós nos trouxestes foi o 
corpo.” 
 Aparentemente, elas relatam experiências opostas: aos primeiros faltava 
a alma, aos outros foi “oferecido” um corpo, o que nos fez lembrar que as 
expedições feitas no Brasil às tribos indígenas, das mais predatórias às mais 
sérias, tinham por hábito oferecer espelhos e outras coisas que brilhassem (e 
assim refletissem), o que, seguramente se ligava a este trazer o corpo ao qual o 
caledôneo se referia. Corpo como imagem de corpo próprio, como diferença dos 
elementos da natureza mas também dos “homens brancos”. 
 
10
 Este texto é extremamente devedor dos trabalhos de José Augusto Bragança de Miranda, 
especialmente da conferência entitulada As ligações do corpo realizada na Escola de 
Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 11 de setembro de 1977 e ainda 
não publicada, cujo texto ele gentilmente me cedeu para consulta. 
11
 José Gil, As metamorfoses do corpo, A Regra do Jogo Edições Lisboa, 1980. 
12
 M. Leenhard, Do Kamo, Gallimard, Paris, 1947, p.212 apud J. Gil op. cit., p.48. 
 18 
 Mas é possível ver algo que comparece às duas fábulas: uma certa 
existência diferente e algo autônoma entre o corpo e o espírito. O que elas 
parecem descrever fala de uma não apropriação de um pelo outro: o corpo dos 
carregadores “não sabe” aprisionar a alma e a marcha ou o ritmo dos dois não é 
o mesmo, o que demanda uma “orquestração” dos movimentos; o corpo dos 
cristianizados ainda não havia chegado quando eles já conheciam o espírito. 
 No entanto, é mais que óbvio, que ambos estavam vivos mesmo na 
constatação da não-sincronicidade. E que respiravam, se mexiam, falavam, 
comiam, dormiam, etc. É possível estar vivo sem um corpo? 
 Parece que sim, isto quer dizer sem o conceito de corpo que nós, 
ocidentais e cristãos (mesmo gregos) idealmente construímos, tendo como 
sustentação as idéias de corpo-perfeito no mundo grego e sua apropriação: de 
corpo feito à imagem e semelhança do seu Criador, Deus, que criou todas as 
coisas do mundo, todas as flores da terra e todas os pássaros do céu, todas as 
pedras e plantas e animais, todos os rios e florestas, mas só à sua última criação 
concedeu a sua própria forma, criando do barro (terra e não carne, mas aí se 
encontra a raiz mitológico-religiosa que as combinou em nosso imaginário), 
soprado pelo seu ar divino, o homem feito para ser diferença que se expressa no 
mito da Gênese: Deus fez desfilar diante de Adão todas os animais e a cada um 
este concedeu um nome diferente do seu. Então Deus viu que ele estava só e 
criou de uma de suas costelas aquela que destinou para sua companheira, a 
quem ele chamou de Virago, isto é, descendente de varão que, posteriormente, 
ganhou o nome de Eva. 
 Vale ressaltar que a civilização grega não incluía as mulheres na sua 
concepção de corpo perfeito, que era pensado e produzido nos rapazes aos quais 
se aplicava uma dietética e uma erótica
13
 e que elas eram proibidas de participar 
dos cultos dionisíacos e beber o sangue do touro sagrado que conferia VIR 
(força) e, portanto, excluídas de uma das experiências de transe, o permitido 
sendo àquele experimentado pelas pitonisas como mediadoras do oráculo. 
 
13
 Vejam-se os últimos trabalhos de Foucault a este respeito, a saber O uso dos prazeres e o 
cuidado de si, respectivamente o 2º e 3º volumes da História da Sexualidade. 
 19 
 Também o mundo judaico-cristão produziu um corpo feminino que só 
por mediação do corpo do homem da qual é imediatamente herdeira, 
mediatamente se aproxima da semelhança ao divino. Nela a carne surge no que 
sangra e morre todo mês, no que muda de forma e funciona na comunidade com 
o mundo animal. Virilio nos lembra que nas sociedades nômades a mulher foi o 
primeiro “animal de carga” sendoresponsável pelo transporte dos víveres e dos 
bens, antes que os homens se apossassem do corpo dos animais e fizessem “este 
estranho engate” de dois corpos de natureza distinta que permitiu a passagem da 
caça para a guerra, “caça homossexual”.14 
 Parece interessante contrastarmos esta fundação cultural que se deu em 
torno do corpo com algo que parece se constituir como nossa diferença e que, 
de certa forma, está presente nas duas fábulas apresentadas: uma outra 
experiência de corpo que, na oposição à noção de corpo próprio e privado, 
designa um corpo comunitário, que constitui o suporte de experiência das 
sociedades arcaicas ou tradicionais e funda uma forma própria de comunicação, 
respondendo de uma maneira particular aos processos de singularização, mas 
também às questões e às pressões sociais. É um corpo que comunica, mas de 
maneira própria. José Gil em Metamorfoses do corpo assim descreve: “Sempre 
que falamos de “comunicar” com a natureza; sempre que o xamane pretende 
compreender a linguagem dos animais; sempre que as técnicas artesanais 
primitivas se referem aos materiais (à madeira, aos metais) como se se tratasse 
de seres vivos que é preciso “entender” - encontramo-nos perante um tipo de 
comunicação diferente da linguagem articulada e de qualquer código explícito. 
E qual é o médium utilizado? É o corpo, mas o corpo que abarca e atravessa 
todos os corpos individuais, é um corpo que contém em si a herança dos mortos 
e a marca social dos ritos”.15 
 Este corpo que faz comunhão, oferece, neste processo e em sua 
dinâmica, todas as presenças deste universo primitivo pois, segundo a imagem 
do corpo humano, tudo são combinações metáforo-metonímicas em ação, o que 
permite pensar no corpo como uma árvore e na árvore como um corpo e, por 
 
14
 Paul Virilio, Guerra Pura - A militarização do cotidiano, São Paulo, Brasiliense, 1984. 
15
 José Gil, op. cit., p.43. 
 20 
esta sua possibilidade, o corpo e sua plasticidade constituem-se no modelo de 
representação do universo, ao qual o corpo se integra. Não é desrazoável dizer 
que nestas culturas de sociedades primitivas, assim como na maior parte das 
religiões orientais, por oposição à nossa tradição ocidental, produz-se uma 
cultura para o corpo.
16
 
 E o que seria, neste universo, uma tal realidade: seria o investimento 
num equilíbrio que salvaguarde cada corpo e sua singularidade, que não se 
afirma como separação dos outros corpos ou das forças cósmicas, mas, ao 
contrário, numa certa intensidade, num estilo de produzir as articulações ou 
seja, à sua capacidade de se descodificar e se recodificar. Ao lado e às margens 
das instituições normais e seu códigos, uma energia que circula sob outro 
regime será considerada e articulada por outras práticas de decodificação e 
recodificação, ao mesmo tempo, práticas periféricas, mas também situadas no 
interior do campo social. 
 O corpo recebe assim e os traduz na sua própria existência, dois tipos de 
forças, ambas compreendidas como pertencentes, de direito e de fato, à vida do 
próprio corpo. O primeiro conjunto de forças designa um funcionamento 
institucional, ao mesmo tempo social e individual que se refere à potência dos 
corpos comunitário e singular. Este conjunto abraça todas as forças cósmicas, 
do acaso e do não-conhecido, que ligadas aos corpos, aos seres e às coisas do 
universo, se expressam nos nascimentos, nas mortes, nos fenômenos 
meteorológicos, nas guerras etc, manifestando a irrupção da natureza na cultura, 
não considerando esta irrupção como a de polos opositivos como polos 
opositivos trata esta presença da natureza na cultura na elaboração de suas 
próprias criações culturais: os ritos, as práticas mágicas, religiosas etc, 
responsáveis pela reestruturação de sistemas ameaçados de desordem. 
 O segundo conjunto de forças se refere às outras interferências de 
energias não controladas, cuja atuação se dá fora das articulações normais dos 
 
16
 Podemos lembrar do contraste proposto por Foucault em A vontade do saber entre a sciencia 
sexualis do Ocidente e a ars erotica oriental como duas radicalmente diferentes formas de 
relação do corpo com os desejos e os prazeres. 
 21 
códigos de comunicação dos quais o corpo é transdutor, tais como a loucura, a 
doença etc. 
 “Num e noutro caso, o xamane ou o feiticeiro encontra-se lá para voltar 
a tecer as articulações simbólicas, recodificando o corpo, permitindo a 
tradução dum código noutro. O que ele faz - o que implica num processo de 
descodificação-recodificação - contribui para restaurar a vida do corpo 
voltando a dar força aos símbolos [...] o homem primitivo encontrou a parada 
no seu corpo; saberá quando e como o descodificar para se fabricar um todo 
novo em que, uma vez mais os desvios e as diferenças deixarão passar, intacto, 
o fluxo da vida”.17 
 Daí a importância da dança, como esta manifestação da cumplicidade 
entre o mundo físico, biológico e humano, de certa forma responsável pela 
“recriação do universo” e pela captura do que ele tem de fluxos, rupturas e 
medidas. A dança recolhe os fragmentos caóticos do cosmo e do corpo e lhes dá 
um sentido originário imanente à própria dança, que, produzindo este sentido, o 
fará ser rememorado pelo mito, se concordarmos com Fernand Robert em La 
Réligion Grecque
18
 que afirma os mitos serem enredos gerados após as 
ritualizações, às quais se adequam, para fornecer uma narrativa àquilo que já se 
praticava. 
 Ora, o que a dança ritual expressa, na sua função de integração do 
cosmos, é um radical hibridismo da figura humana, que se tornará 
posteriormente insuportável para uma cultura que só saberá pensar-se a partir da 
separação radical entre natureza e cultura, onde o comunismo dos corpos não 
fará nenhum sentido. 
 É interessante verificarmos um tema comum: a humanidade mesclada à 
animalidade, o que faz com que o comércio entre o homem e o animal seja 
cercado de rituais sagrados, mostrando a tensão destas relações e que aparece 
numa cumplicidade entre a caça e a dança. Em vários estudiosos vemos 
descrições que relatam o fato de o caçador matar a sua caça com pesar, buscar 
 
17
 José Gil, op. cit., p.55. 
18
 Fernand Robert, La Réligion Grecque, mimeo, s/data, Estamos voltando à Grécia, mas algo 
antes dela ter se constituído na matriz que separa corpo e mundo, e exatamente, para desenhar 
esta separação. 
 22 
desculpas para isto e procurar acalmar os espíritos que irritou com lamentações 
e conservação ritual de parte do corpo do animal. O fato de que seja 
significativa a difusão destes ritos constitui uma prova de sua remota origem, 
mas comprova também a ambivalência dos sentimentos do homem para com o 
animal. 
 Através da mímica e na integração do corpo pela dança, este homem, 
anterior e diferente da nossa história cultural, tentaria reproduzir o animal, 
incorporá-lo e assim também assumir o seu poder, seja domesticando-o ou 
encantando-o pela dança, movimento intenso de trocas e passagens, de 
representações vividas e intensas onde nossas atuais fronteiras não tinham sido, 
ainda, construídas; a operação é sutil e ambígua: matar o animal e ao mesmo 
tempo incorporá-lo, distanciar-se e confundir-se com ele, ser e não ser animal. 
 O equilíbrio destas duas dimensões, enfatizado por Eurípedes nas 
Bacantes, como indispensável, a saber, o encontro do delírio, da paixão, da 
loucura e do vinho com a sabedoria, ou seja, o encontro das duas ordens de 
forças do corpo que as sociedades primitivas sabiam considerar, fazem parte de 
uma "saudade"que foi talvez a primeira promessa da filosofia: a possibilidade 
de decifrar o enigma da animalidade devoradora expressa também 
metaforicamente nos fenômenos onde a natureza faz a sua irrupção arrasadora, 
jogando com as presenças de ser e não ser, como nos jogos heraclitianos, para 
quem a guerra, polemós, é a mãe de todas as coisas. 
 
II.2. O CORPO TRANSCENDENTE: O SEGUNDO PASSO 
 
 
 A filosofia posterior será talvez a eterna tentativa de escapar aos efeitos 
dilaceradores, contundentes e desistematizadores destes encontros. A criação da 
filosofia como escrita, a redução da dança ao texto que permita representar o 
encontro são a via transversa pela qual a filosofia abordará o mistério. Via que 
permite ao filósofo escapar, não apenas vivo, mas sem sofrer nenhum contágio, 
num corpo asseptisado pela letra. Passamos do labirinto do Minotauro à caverna 
do filósofo, que pode a ela retornar e dela sair ileso e iluminado; que pode 
 23 
dançar no labirinto de onde expulsou o touro; que poderá enfim, trocar a 
Caverna pela Academia. Esta via, que troca o fio tecido no corpo pela tessitura 
das letras é também o que pode estrangular o Eros. Resta celebrá-lo, numa 
quase elegia, um banquete loquaz, sempre temendo os efeitos da 
intempestividade ébria de Alcibíades. Confiando "para sempre" em Sócrates. 
 Abandonar a caverna é subtrair-se ao espaço simbólico por onde se 
penetra nos "mistérios" da sobrevivência, da reprodução e do além. Para Mircéa 
Éliade 
19
 a caverna é um dos "omphalos" (umbigo) do mundo, cujo traçado 
confuso, próximo do labirinto, exigiria uma vinculação do saber com um poder 
mágico, privilégio do rei, sacerdote caçador ou heróis extemporâneos ou 
imprevistos como Teseu, resumindo uma geometria coreográfica e cósmica. 
 A nova filosofia fundará uma cidade, a implantação de uma concepção 
de espaço elaborado simultaneamente por arquitetos, astrônomos e legisladores. 
Nesta nova cartografia, delineia-se um novo pensamento: de uma física jônica 
passamos ao pensamento do múltiplo e do um. De um cosmos mítico ao cosmos 
geométrico, onde o espaço se define por relação de distância e posição, 
orientando-se uniformemente a partir de um centro. Neste novo espaço será 
preciso reinventar o corpo, mediado por um ideal a ele externo, que o destacará 
da natureza para a pólis: o novo corpo, agora grego, do cidadão. Um corpo que 
encerra a carne, comum aos homens e animais, sob uma forma protetora em 
torno da qual as legislações da cidade terão sua aplicação. 
 É curioso pensarmos que ainda nesta cidade nascente, outro recorte irá 
constituir-se, anunciando a efetiva entrada na nossa tradição ocidental, cuja 
origem pode estar expressa na tradição pitagórica, a qual terá com a cidade 
grega uma relação de exclusão que nós cristalizaremos mais tarde, em certa 
medida, no corpo e na carne: ao mesmo tempo questão e sintoma. 
 Os pitagóricos compunham uma pequena sociedade marginal cujos 
membros desenvolviam um ensino original, ao mesmo tempo em que 
recusavam o sacrifício e o alimento carnal, conforme atestam os escritos de 
Porfírio e Diógenes Laércio.
20
 
 
19
 Mircéa Éliade, Aspects du Mythe, Paris, Gallimard, 1965. 
20
 apud Dany-Robert Dufour, Les Mystéres de la Trinité, Paris, Gallimard, 1990, p.350-1. 
 24 
 Os membros desta sociedade sabiam o alcance de seus atos: o estatuto 
de cidadão era, nas cidades gregas, definido pelo direito e pelo dever de 
participar dos sacrifícios
21
 e a recusa de se juntar às festas sacrificiais 
significava a exclusão da comunidade. Assim, os pitagóricos seriam excluídos 
das honras da cidade por recusarem a composição com a morte que era, nas 
cidades gregas, celebrada como a maior das virtudes, os heróis, homens mais 
audazes e menos temerosos do que os outros eram os modelos dos que teriam 
transcendido sua condição de mortal "acolhendo a morte em vez de sofrê-la." 
22
 
 Os pitagóricos foram os primeiros na história humana, se as nossas 
indicações forem confiáveis, a ter, de maneira tão coerente, recusado-se a 
instalar as bases de seu sistema simbólico na aceitação mental da morte e na 
ingestão física da carne, e, concomitantemente a esta recusa teórica e prática, 
desenvolveram um sistema de conhecimento novo, cujos elementos de 
aritmética e geometria emprestados do Egito eram reinterpretados em uma visão 
global, coerente, que tinha por fundamento um sistema de oposição binário ou 
"schizis" : "ilimitado ou limitado, par ou ímpar, múltiplo ou um, esquerda ou 
direita, macho ou fêmea, em repouso ou movente, curvo ou retilíneo, 
obscuridade ou luz, mau ou bom, redondo ou quadrado. Seja, dez oposições 
que a filosofia posterior organizará numa "schizi" única: mesmo e outro". 
23
 
 Por outro lado, a aptidão ao número (e sua familiaridade com o som), 
que os pitagóricos visualizam como própria dos homens, é o que lhes permite 
relacionar o fim e o começo, através da serialidade, e assim, dominando esta 
relação, os homens "não morrerão" mais, ou seja, serão como deuses. Não é de 
estranhar que esta filosofia valorizasse a medicina, como a atitude humana mais 
sábia, uma medicina voltada para os começos e os fins, a saber: o nascimento, a 
morte e a reprodução sexual. O princípio da imortalidade já existe: é a alma  
só lhes resta realizar este princípio em si mesmos, em seus corpos  o que é 
possível já que o corpo, como qualquer elemento do mundo, é apenas o objeto 
 
21
 A este respeito é bastante elucidativo o livro de René Girard Le Bouc Émissaire, Ed. Bernard 
Grasset, Paris, 1982, assim como Des choses cachées depuis la fondation du Monde, idem, 
1988. 
22
 Jean-Pierre Vernant, La belle mort ou le cadaver outragé in L’Individu, l’amour et la mort, 
Paris, Gallimart, 1989, p.52. 
 25 
de uma dualidade, assim como a alma é, do mundo, a expressão harmônica. 
"Segundo Alcméon, relata Aécio, é o equilíbrio das potências, como úmido e o 
seco, o frio e o quente, o amargor e a doçura, etc... que produz e conserva a 
boa saúde, é, ao contrário a predominância de uma delas que provoca a 
doença e quando duas destas potências predominam, se segue a morte".
24
 
 Vemos aparecer aí o corpo idealizado, modelizado e "julgado" por 
princípios agora externos a ele, transcendentes, antes pensados do que vividos. 
As situações singulares e a realidade empírica serão analisadas por estas 
configurações universais que constituirão o corpo, particularmente o corpo 
grego, como uma imagem de valor universal. Nascido da recusa da carne. 
 O que parece fundamental retermos da influência pitagórica é que ela 
realizou, de uma forma particular, o que nós chamamos o modo ocidental de 
ser, ou seja, produziu uma diferença - com o não - ocidental - e afirmou uma 
lógica de pensamento para a nossa experiência cultural. 
 A particularidade aí produzida, e que veio a nos caracterizar de maneira 
irrevogável, relaciona-se ao uso das imagens da geometria para representar ou 
simbolizar a natureza, prática que, sendo apenas nossa, fundou uma concepção 
de mundo que nos levou a pensar o Cosmos como uma abóboda, de forma 
esférica, portanto criando uma filosofia que se sustentaria até a chamada 
revolução copernicana. 
 Sabemos que Pitágoras foi a influência marcante de Platão, com quem e 
contra quem a filosofia ocidental não cessou de se debater, a ponto de 
pensadores como Gilles Deleuze (a partir de sua herança nietzscheana) 
afirmarem ser a tarefa da filosofia contemporânea, ainda, a reversão do 
platonismo. E não ignoramos, na amável influência de Jorge Luis Borges, que a 
história da cultura humanaé a história da repetição de umas poucas idéias. 
 Portanto, a leitura da natureza a partir da geometria, talvez nunca 
completamente abandonada, apesar de tantas descontinuidades apresentadas 
pela filosofia e pela ciência, é o quadro ou a cena imaginária onde a menção do 
 
23
 Dany-Robert Dufour op. cit., 351. 
24
 Idem p. 375. 
 26 
corpo é sempre o enunciado do desejo de forma. O que significa imagem 
totalizada, reconhecível no espelho. 
 Vejamos agora, panoramicamente, o percurso das imagens idealizadas 
do corpo no Ocidente que funcionaram, para as respectivas experiências 
culturais que as produziram, como suportes necessários e legítimos para as 
configurações dos princípios de totalidade, unicidade e consistência. Dizendo 
de outro modo, foi a partir do corpo como imagem que a noção de integridade 
pôde ser pensada e discutida, assim como foi a partir da invenção destas 
imagens do corpo que têm sua própria história, de cuja crise falamos agora, que 
cada uma destas experiências pensou-se como integral e totalizada. 
 
 
II.3. A IDEALIZAÇÃO DO CORPO: A EXPERIÊNCIA DA POLIS GREGA 
 
 
 A primeira delas, já a ela nos referimos, é a imagem do corpo grego, 
atraente ainda hoje para nossas saudades originárias, pela ligação deste com 
princípios de uma estética da existência, que nos convida a uma existência 
estética. Na verdade, este corpo grego era radicalmente idealizado mas devia 
constantemente ser treinado, produzido em função do seu aprimoramento, o que 
significa que ele era, ao contrário de uma natureza, qualquer que fosse ela, um 
artifício a ser criado numa civilização que alguns helenistas chamam de 
"civilização da vergonha" por oposição à judaico-cristã que será uma 
"civilização da culpa".
25
 
 Não desconhecemos as diferenças internas da experiência grega, 
exemplificadas pelo contraste de suas duas pólis mais representativas, Atenas e 
Esparta, que se relacionam menos com a imagem ideal do corpo e mais com 
suas atualizações articuladas, mas nos serviremos do exemplo de Atenas 
especialmente em função de ali ter florescido um duplo culto do corpo: na vida 
dos cidadãos e nas formas com que a arte grega, cujo exemplo maior é o 
Parthenon, celebrou a existência maravilhosa deste corpo. 
 27 
 O crítico John Boardman
26
 aponta que, no Parthenon, a imagem do 
corpo humano é "mística e idealizada, mais do que individualizada [...]; 
(nunca) o divino foi tão humano, nem o humano tão divino". O que nos autoriza 
a pensar que a imagem idealizada correspondia ao conceito de cidadão, e que 
cada um dos cidadãos devia buscar realizá-la no seu corpo singular, ou seja, 
modelá-lo a partir de exercícios e meditações. Esta relação de poiésis, ou seja, 
de um corpo a ser produzido, fundou uma moral própria, para a qual o corpo foi 
o médium fundamental: trata-se de uma moral assimétrica e livre com um 
conjunto de regras normativas (e não prescritivas) que convida a uma adesão 
que terá a intensidade possível para cada um. Como menciona Tucídides: o 
corpo nu e belo não é uma dádiva da natureza; a nudez é uma conquista da 
civilização. 
 O corpo exposto é objeto de admiração; eram os bárbaros que cobriam a 
genitália nos jogos públicos pois, para o habitante de Atenas, havia uma 
equivalência entre a liberdade de exibir-se, o que se dava mais intensamente nos 
ginásios onde o corpo era adestrado; e a de exprimir-se, sendo o debate o 
exercício de adestramento do espírito e seu topo de manifestação a Ágora. 
 O próprio ginásio era esta afirmação de que o corpo pertencia a uma 
unidade, a Pólis, onde ele podia, a partir de uma exibição pública e de constante 
treinamento, ser modelado de modo artístico. Por isto as figuras humanas do 
Parthenon são todas jovens, exibindo corpos perfeitos e nus, com expressões 
serenas, contrastando, por exemplo, com o Zeus de Olímpia, esculpido poucos 
anos antes, mais individualizado e mostrando sinais da idade e do medo. Os 
deuses estão prontos; os homens estão se fazendo. 
 Mas a nudez tinha também um outro e curioso valor: o imaginário do 
interior do corpo humano na época de Péricles, marcado pelo calor corporal 
que, segundo eles, antecedia o próprio nascimento, determinando que fetos bem 
aquecidos deste o início da gravidez deveriam tornar-se machos e, de fetos 
carentes de aquecimento, surgiriam fêmeas. Diógenes de Apolônia foi o 
primeiro grego a pesquisar estas diferenciações de calor, mais tarde 
 
25
 P. Dodds, Os Gregos e o irracional, Lisboa, Gradiva, 1988. 
26
 apud Richard Sennett, Carne e pedra, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p.38. 
 28 
desenvolvidas por Aristóteles em Das partes dos animais, onde comparou o 
sangue menstrual  sangue frio  e o esperma  sangue quente; o esperma, 
superior por gerar a vida, em contraposição à menstruação, inerte. 
 Na Grécia, acreditava-se que macho e fêmea eram dois pólos de um 
continuum corporal, a diferença que havia entre ambos era de grau (e o grau era 
referido ao calor) e não de natureza; o corpo tem um único sexo de modo que 
fetos masculinos precariamente aquecidos tornam-se homens afeminados e 
fetos femininos muito aquecidos tornam-se mulheres masculinizadas. A 
anatomia dos homens e das mulheres supunha que os mesmos órgãos fossem 
reversíveis na genitália masculina e feminina: "a vagina virada para o lado de 
fora" ou "virando para dentro o pênis dobrado" encontra-se a mesma estrutura 
em ambos. Idéias que nos parecem curiosas, mas vigoraram vomo verdade 
científica por dois mil anos, passando da antiguidade ocidental, através dos 
pensadores árabes, para o ocidente cristão medieval e atravessando a 
Renascença, até serem contestadas no século XVIII. 
 Mas, à inclusão do feminino e do masculino na mesma espécie não 
correspondeu o reconhecimento liberal da igualdade, e sim o abandono da idéia 
da fêmea como "obviamente inferior ao macho": o registro médico formava 
uma escala ascendente de valores da fêmea, fria, passiva; para o macho, quente, 
forte e participante, ainda que fossem da mesma matéria. E embora 
compareçam corpos femininos como desvios caloríficos de sua "normalidade" 
expressos nas amazonas-guerreiras (masculinizadas) e na figura das prostitutas 
sagradas, as leis da cidade aplicavam normas diferentes aos corpos masculino e 
feminino. Se ao primeiro correspondia o exibir-se nu nos ginásios e o andar na 
cidade com vestes soltas por serem seres capazes de absorver calor e manter o 
equilíbrio térmico, dispensando o uso da proteção das roupas; ao segundo, 
feminino impunha-se o seu uso, considerando-se que, para o interesse das casas 
as roupas leves seriam suficientes e para a saída às ruas seus corpos deveriam 
estar cobertos. 
 Lei equivalente para os escravos, excluídos dos debates pois - quando os 
homens livres falavam, liam e ouviam, o entusiasmo aumentava o calor do 
corpo, e sem a capacidade do corpo ideal grego de absorver e produzir calor, 
 29 
teriam necessariamente, a temperatura de seu corpo reduzida e por isto 
precisavam andar vestidos. Uma curiosa relação de honra e vergonha, 
derivando, na cidade grega, também de um conceito de fisiologia, que associava 
as regras do calor corporal para dominar e subordinar os outros corpos. 
 Cabe sempre lembrar que imagens ideais do corpo humano levam 
sempre à repressão mútua e à insensibilidade, especialmente entre os que estão 
fora do padrão. “Em uma sociedade ou “ordem política” que enaltecegenericamente “o corpo” corre-se o risco de negar as necessidades dos que 
não se adequam a este paradigma.”27 Considerando a imagem idealizada 
evidente, presente na expressão “corpo político” como condição da ordem 
social, fica fácil compreendermos como a idealização do corpo enquanto 
imagem funcionou como duplo suporte para as relações que configuram o 
campo político: a da pedagogia e a do poder que tem, no corpo, o médium 
necessário. 
 Para ilustrar o que dissemos, Richard Sennett nos fornece um exemplo 
acabado, citando João de Salisbury que, em 1156, afirma: “O estado (res 
publica) é um corpo”28 formado por: o governante, que funciona como cérebro; 
os conselheiros como o coração; os comerciantes como o estômago da 
sociedade, os soldados como as mãos e os camponeses e trabalhadores manuais 
como os pés. Sendo assim, a ordem hierarquizada do corpo deve servir de 
modelo para a nação, que deve ser organizada como o corpo humano, e para a 
cidade, com suas construções e movimentos, que deve proteger e orientar os 
corpos dos cidadãos singulares, e encenar a presença do corpo político. A esta 
configuração da cidade grega e ao tipo de “mensagem” que ela veiculava, Paul 
Virilio descreve como sendo a do lugar onde “os homens devem aprender a 
marchar juntos e caminhar separados”29 portanto a que encerra e pedagogiza o 
corpo também no movimento e na ação, particularmente no controle das 
paixões. 
 
27
 Richard Sennett, op. cit., p.20. 
28
 Idem p.22. 
29
 P. Virilio, Guerra Pura - A militarização do cotidiano, São Paulo, Brasiliense, 1984. 
 30 
 Esta paidéia foi reforçada não apenas no campo das representações 
visuais, das quais o Parthenon é o exemplo, mas também na tragédia grega que 
exibia um corpo humano em “um estado não natural de pathos quando se 
afastava de seu ideal de força e integridade” 30. Podemos aí fazer uma nova 
associação: a tragédia grega descreve a luta entre duas ordens de justiça ou diké: 
a justiça do clã ou do sangue e a da cidade; o lugar onde esta tensão se expõe é 
no contraste entre os dois corpos e suas ligações: o sangue comum familiar 
ainda preso a uma noção de continuidade comunitária é o que constitui o corpo 
a ser abandonado, o novo corpo ordenado a partir das normas da polis é o que 
se desliga do sangue (e da carne) para se ligar à lei e à palavra. Esta foi a lição 
de Antígona e todos aprenderam com ela. 
 Assim se constitui uma história de poder e de formas. “Aqueles que 
dispõem do poder, - ou, os fundadores de Igrejas e de Estados, os padres, os 
chefes - dispõem também de meios de adestração dos corpos; e aos olhos 
daqueles que eles submetem, possuem o saber que permite o controle e a 
manipulação das forças agora denotadas/conotadas pelo significante supremo: 
transformam estas potências em poder sobre os corpos”.31 
 Convém ressaltar que este desejo de forma que constituía a idéia de 
corpo representava uma aposta também numa hierarquia dos sentidos, tal como 
nos referimos, no início do capítulo, à função - espelho, refletora de Narcisos e 
amedrontada com os vampiros que não se mostram. Não era um dado 
completamente novo: já na Odisséia, o grande perigo para Ulisses era o canto 
da sereia, a audição representando uma penetração que desfaz a ordem 
interior/exterior e sendo, portanto, encantatória. Ver é conhecer, isto significa, 
produzir formas identitárias. 
 Michel Serres, em um belo texto chamado Génèse, nos fala desta 
sintomatologia ocidental que constrói como dicotômicos o visível e o invisível, 
o que deve ser visto e o que não o pode ser, as ligações explicitadas e 
explicitáveis e o que deve viver à sombra. Assim ele nos dá a fórmula: “Nossa 
metafísica se ressente metaforicamente da nossa física. Nós temos medo dos 
 
30
 R. Sennett, op. cit., p.53. 
31
 J. Gil, op. cit., p.71. 
 31 
gases e dos líquidos, não compreendemos Lucrécio, nosso saber não é feito 
para as grandes multiplicidades. Fugimos do pensamento da multiplicidade 
enquanto tal.”32 Mais tarde, numa expressão sintética, ele nos afirma: “O 
Universo é Diverso.”33 
 Foi assim que à ordem visual associou-se o poder imperialista de Roma. 
O poder do imperador devia ser exibido, tornado grande e evidente, em 
monumentos e obras públicas. Quando Adriano começou a construção do 
Pantheon em 118, no mesmo lugar onde Agripa havia construído o primeiro 
Pantheon para a devoção aos deuses romanos, era a afirmação do Império que 
estava em questão, sendo a lógica desta nova construção um extraordinário uso 
da luz que se colocava contra seitas nascentes como o cristianismo com cultos 
mais dirigidos a mundos invisíveis do que a este. “O Pantheon correspondeu a 
um esforço, exercido na própria Roma, para que todos olhassem, acreditassem 
e obedecessem”.34 
 Estas novas relações entre mundo visível e invisível eram decorrentes de 
um mal-estar mais geral e profundo do corpo. Os atenienses já aproximavam a 
escuridão da fragilidade de várias formas, desde a mais matinal filosofia onde 
“alethéia” era desvelamento, luz e memória e “lethe” era esquecimento, 
escuridão, noite. Mas eles celebravam, como vimos, em seus ginásios, a 
exposição total, a força dos músculos e dos ossos. 
 
 
 
 
 
II.4. O CORPO CRISTÃO: O CORPO SEM LUGAR 
 
 
 
32
 M. Serres, Génèse, Paris, Galilée, 1982, p.176. 
33
 Idem p.181. 
34
 R. Sennett, op. cit., p.81. 
 32 
 Já os Romanos, quando Adriano construiu o Pantheon, mesmo os mais 
fortes, não se expunham à luz. O mundo onde se nascia era um mundo sem 
piedade, tal como o enunciavam os gladiadores no seu juramento. Estes 
homens, que pretendiam matar-se, afirmavam esta vontade de modo 
absolutamente contraditório: “Deve-se morrer ereto e invencível”.35 A força 
física tingia-se de escuridão e desespero. Não nos admira portanto que a grande 
metáfora do cristianismo seja a Luz de Deus, vinculada a um Poder mais alto e 
imaterial. 
 Este Deus/criador e centralizador atrairá para si uma nova ordem, de tal 
maneira generalizante, que destruirá a vontade de forma e as ligações que o 
corpo humano experimentava até então, para uma configuração particularmente 
notável. Senão vejamos: o cristianismo pregará a irmandade de todos no amor a 
Deus, ou seja, proporá, no lugar de uma moral assimétrica e livre, o seu oposto, 
quer dizer, uma moral simetrizante e mediada pela figura do próprio Cristo, 
filho de Deus, tornado corpo e carne, que morreu na cruz para nos salvar a 
todos, sem distinção. 
 Esta “irmandade em Cristo” já que todos somos filhos de Deus, proporá 
para o corpo humano a idéia que ele deverá para sempre suportar, a saber, que 
somos feitos à imagem e semelhança do Senhor, o que poderia indicar uma 
volta a uma experiência comunitária do corpo. Acontece porém que nascemos 
em ou do pecado, expulsos do Paraíso aonde vivemos o corpo da criação feito, 
vale lembrar, pelo “O Criador de tudo é Luz”. As pragas que o mito da Gênese 
enuncia são claras: uns cultivarão a Terra com o suor de seu rosto e nem sempre 
ela lhes dará seus melhores frutos; outras parirão seus filhos em dor. Ambos 
morrerão, já que agora, depois de comerem do fruto da Árvore do 
Conhecimento e se verem nus e se envergonharem, expulsos do Éden, não 
poderão comer da Árvore da Vida, guardada pelo anjo com sua espada-de-fogo. 
Podemos pensar que a transgressão de Adão e Eva construiu um dilema: se os 
homens tivessem o conhecimento e a eternidade seriam deuses. Entrando no 
tempo ganharam um corpo-para-a-morte, ao qual é prometido o apocalipse que 
preparao juízo final e a ressurreição. 
 
35
 Idem p.82. 
 33 
 Este corpo pecaminoso que precisa ser guiado pelo pastor, responsável 
pelo conjunto do rebanho e por cada uma das ovelhas
36
 diante desta dupla e 
radical diferença de temporalidade, a saber o corpo-para-a-morte e o que 
ressuscitará, fará uma cisão, até então não cristalizada tão opostamente na 
experiência ocidental, entre o corpo e alma, e, por muitos séculos eles serão 
antagônicos devendo os cristãos, guiados por seus pastores, investir no 
aprimoramento da alma, já que o corpo é a sede dos pecados “da carne”. 
 É por isto que a noção do sofrimento físico sofrerá uma grande 
transmutação. Não queremos afirmar a ausência do sofrimento no mundo 
pagão, o que seria não apenas absurdo mas contrário ao que enunciamos 
panorâmicamente nas referências à “bela morte ou o cadáver ultrajado” grego 
ou ao “morrer ereto e invencível” do corpo romano. Mas este sofrimento físico 
não era considerado uma circunstância humana: os homens e mulheres podiam 
aprender com ele mas não o buscavam, na antiga e agora superada “civilização 
da vergonha”. Nestes novos tempos, que inauguram a “civilização da culpa”, o 
advento do cristianismo conferiu à dor do corpo um valor espiritual. A lição 
divulgada era a da morte de Cristo e suas torturas e, portanto, lidar bem com a 
dor do corpo é mais importante do que saber lidar com os prazeres, para estes 
novos corpos cristãos. 
 Nos primeiros tempos do cristianismo as pessoas não nasciam, mas 
tornavam-se cristãos, ou seja, assumia-se a fé ao longo da vida, pois o “tempo 
espiritual” aparecia na linguagem teológica como a equivalência de que a 
afirmativa de acreditar correspondia a uma experiência transformadora, onde o 
corpo funcionava como o primeiro alvo do sacrifício necessário, devendo ser 
objeto de árduas e não naturais renúncias e de penitências flagelantes em 
circunstâncias particulares. 
 O primeiro alicerce do cristianismo, era, como já vimos, a doutrina da 
igualdade entre os seres humanos. Vistos por Deus, todos os corpos não eram 
 
36
 A respeito da figura do pastor cristão e de sua diferença do pastor grego, ligado ao conjunto 
da cidade e do pastor judaico, ligado à promessa do lugar, buscamos em Michel Foucault, no 
texto Omnes et Singulatim, um curso oferecido na Universidade de Berkeley, em 1979 e 
publicado na Revue Débat nº 41 de setembro-outubro de 1986 e depois transcrito no volume III 
do Dits et Ecrits, Paris, Gallimard, 1984 o apoio teórico. 
 34 
nem feios nem bonitos, nem superiores nem inferiores; as imagens como as 
formas visuais deixavam de ser importantes. Também a distinção macho/fêmea 
sofre uma certa relativização; na epístola de São Paulo aos Coríntios I, este 
reinvidicou roupas que distinguissem rigorosamente homens e mulheres, mas 
sustentou que os (as) profetas são dotados de “um espírito” e, nesse sentido, não 
tem sexo. 
 Quanto às não-profetas, bem, serão os elementos de sedução de que se 
servirá o príncipe deste mundo, o diabo, sempre pronto a alianças que elas 
podem aceitar. A figura da feiticeira, tal como descrita por Jules Michelet nos 
dá disto um sábio exemplo: elas que foram as pitonisas decifradoras dos 
oráculos e ligadas aos mistérios, são agora as bruxas, com segredos próprios 
com a natureza da qual são próximas. A Inquisição lhes dedicará mortes 
horrendas, consumidas pelo fogo, que transformará carne e nervos em cinzas, 
num processo de tortura absoluto - eis o castigo do corpo vivo, cremado antes 
da morte. 
 O segundo alicerce repousava sobre a aliança ética com os corpos 
vulneráveis: os pobres, os desamparados, os oprimidos. A ênfase cristã na 
igualdade dos humildes e despossuídos, derivada da concepção religiosa do 
corpo de Cristo, de origem modesta e que se fez fraco pelos outros, cujo 
martírio serviria para restaurar a honra dos que lhe eram semelhantes, fornecia o 
laço entre a vulnerabilidade de Deus e a dos aflitos. Peter Brown resume este 
nexo afirmando: “os dois grandes temas da sexualidade e da pobreza 
caminhavam juntos na retórica de João e de muitos cristãos. Ambos dizem 
respeito à fraqueza universal do corpo a que todos os homens e mulheres estão 
sujeitos, independentemente de classe estatus social”.37 Por outro lado, a 
história cristã compõe um corpo narrativo onde todos os sinais mais 
significantes da vida cristã estão presentes, colocados no relato da vida de 
Cristo. 
 Esta nova experiência de fé, especialmente no seu início, foi o 
rompimento de uma relação com a política tal como o mundo pagão a praticava, 
como seria de se esperar. Mas, pelas características particulares ligadas ao credo 
 35 
e à narrativa da vida de Cristo, ela se configurou também como uma outra e 
mais radical do que uma simples diferença interna a um sistema político, como 
uma experiência de uma não-cidade ou um não-lugar, de todo incompatível com 
a noção básica de cidadão que sustentava o mundo helênico e romano. 
 Se no mundo pagão o corpo pertencia à cidade, livre deste laço e desta 
identidade para onde o corpo poderia ou deveria ir? Por outro lado, o povo do 
Velho Testamento se concebia como errante e o seu YHVH
38
 também era um 
deus errante, um deus do tempo e não do lugar, cuja promessa aos que o 
seguiam era a de um sentido divino nas jornadas que levavam a lugar nenhum. 
 Com o cristianismo, os valores do Velho Testamento persistiram. 
Mesmo sem sair mundo afora, o apego ao lugar onde se vive deve ser deixado 
de lado. Santo Agostinho refere-se a esta obrigação referindo-se a uma 
“peregrinação através do tempo”. E assim a descreve na Cidade de Deus: 
“Sabemos que está registrado sobre Caim que ele edificou uma cidade, 
enquanto Abel, como se fosse um simples andarilho, nada construiu. Pois a 
verdadeira Cidade dos Santos está no paraíso, embora aqui, na terra, haja 
cidadãos que erram como numa peregrinação através do tempo, procurando 
pelo Reino da eternidade”.39 
 Esta romaria, nascida também da proibição de Cristo a seus discípulos, 
quando estes desejaram construir-lhe monumentos, associada às provas no 
corpo, de um sacrifício ou castigo agora compreendidos como um processo de 
purificação, já que realizava o rompimento das relações da carne com o lugar e 
com os prazeres, vai produzir uma importante cesura na idéia de corpo e de 
corpo próprio. Por um lado, não se tem um corpo comunitário, embora o ponto-
de-partida do Cristianismo seja a comunidade em Cristo; ao mesmo tempo, o 
corpo individual que se tem, concebido à imagem e semelhança do Senhor, 
precisa tornar-se cristão, num processo que começa no batismo e deve 
acompanhar o cristão por sua vida inteira. 
 
37
 apud R. Sennett, op. cit., p.111. 
38
 YHVH - é o tetagrama impronunciável que nomeia o inominável no Velho Testamento, onde 
é proibida a representação verbal ou por imagem do que conhecemos por Deus. O hábito entre 
os que “traduzem” o tetagrama é grafá-lo D’s. 
39
 Agostinho apud Sennett, op. cit., p.115. 
 36 
 As fábulas sobre a vida dos santos ou as histórias das vidas religiosas 
não cessam de nos falar sobre este corpo - próprio mas não tropo - e de seus 
processos para romper as ligações deste com o lugar, com os afetos individuais 
e, por fim, com a carne. De todas estas experiências, a que nos parece mais 
interessante foi a dos eremitas coptas, realizadas entre os séculos I e IV, porque 
nelas se misturaram, de maneira intensamente original, heranças diferentes doVelho e do Novo Mundo, já que aí encontramos as velhas tradições do Egito, 
para quem o deserto foi sempre um espaço de fuga para os fora-da-lei; a herança 
grega das seitas epoptas, fora das cidades e às suas margens; a presença do 
nomadismo judaico na fuga do Egito pelos quarenta anos no deserto e, 
finalmente, o novo apelo cristão. 
 O que ela parece nos informar vai mais longe do que sua simples 
descrição. Ela nos faz conjugar duas premissas, não excludentes mas também 
não complementares, cuja relação nos fornece um olhar mais acurado para 
compreender as formações aparentemente bizarras que atravessam e são 
atravessadas pelas nossas experiências históricas. A primeira delas se refere à 
idéia da modelagem do humano: não estando nunca pronto, isto é, totalmente 
modelado, o homem é receptador de seu contrário e seus ciclos culturais e 
históricos desenham órbitas diferentes a partir de sua exposição a certas 
solicitações. De que outro modo poderíamos compreender as escolhas 
individuais pelo deserto, o mais inumano de todos os espaços? 
 A segunda, inspirada pelos trabalhos de Michel Foucault, nos mostra 
que a experiência religiosa de uma época e sua história social reenviam a um 
centro, uma espécie de código sutil que restringe certas formas de experienciar, 
estimula outras e transforma, no sentido mais amplo, o contexto social, 
modificando não apenas a tensão ou diferença entre o espaço público e o 
privado, mas também a relação com a natureza e desta com a cultura. 
 Segundo Jacques Lacarrière, em seu livro Os homens embriagados de 
Deus
40
, pensar o deserto é uma questão que se impõe para compreender um tipo 
de movimento ou de errância que atravessou efetiva e imaginariamente o 
percurso da nossa cultura. A questão que abre o seu prefácio pergunta se os 
 37 
desertos do Oriente Próximo deixaram de ser hoje o lugar de experiências 
soberanas. Ligados agora à idéia do petróleo e do combustível, terão eles 
perdido aquilo que os caracterizou por tantos séculos, a saber, uma espécie de 
nudez que rejeitava a história para os confins de suas areias, onde nada se mexia 
ou parecia “progredir”? “Os desertos eram o lugar do imovente, de uma 
virgindade perpétua onde o homem termina por se parecer com os anjos”.41 
 Num tal mundo, o homem é uma presença absurda que só pode nele 
viver tornando a si mesmo peso morto do tempo. Eis porque durante séculos 
este lugar extremo só abrigou hirsutos fantasmas, sombras desencarnadas, 
restos de seres humanos que os testemunhos de então chamavam de atletas do 
exílio, homens que sobreviviam e buscavam um lugar cujo sintoma mais 
imediato é o de não se constituir num território, compreendido como um espaço 
regulado por leis e normas de ocupação, trânsito, habitação etc. 
 No entanto, se isolar do mundo, romper com a sociedade de seu tempo, 
pensar que apenas longe dela, tal como o fizeram os eremitas, podemos 
encontrar a resposta para o destino humano não é uma atitude completamente 
insólita. É uma atitude quase natural, na medida em que toda sociedade 
altamente civilizada engendra uma espécie de franja anti-social onde aparecem, 
como irmãos, os profetas e os fora-da-lei, cujo comportamento tem em comum 
uma rejeição à comunidade (e uma rejeição da comunidade), sendo ambos 
formas de rebeldia a uma ordem julgada intolerável ou fracassada. Com outra 
paisagem, mas não radicalmente oposta, os anos 60 do nosso século viram 
surgir o movimento hippie, a literatura e o cinema on the road, enfim, a contra-
cultura, que associava o fora-da-lei e o artista, numa prova onde não se 
desconsiderava a produção de outros corpos, tanto singulares quanto sociais: 
um mundo onde a associação de sexo, drogas e letras produziu o seu campo 
como o outro do mundo industrializado e tecnológico. 
 Não parece também impertinente considerar a postura filosófica, 
herdeira ainda em certos pensadores e num modo particular de operar (o que 
evidentemente não se aplica aos filósofos que tiveram nos sofistas e nas cidades 
 
40
 J. Lacarrière, Le Hommes Ivres de Dieu, Paris, Fayard, 1975. 
41
 Op. cit., p.9. 
 38 
seus topos de reflexão) uma distância ativa das regras sociais. Se pensarmos em 
uma filosofia contemplativa não nos afastaremos da frase de Toynbee que 
Deleuze gostava de citar: “Eles são nômades porque não se mexem” assim 
como compreenderemos a tarefa da filosofia exposta por Foucault no prefácio 
do Uso dos prazeres: a de ser “uma ascese do pensamento”42 
 Voltemos à nossa origem: este fenômeno, gerador destes homens 
“embriagados de Deus” tinha originalmente um nome: a ANACORESE, que, 
do grego anachorèsis, significa uma fuga do mundo quotidiano. Atitude 
negativa em princípio, marcando uma recusa, uma ruptura radical com toda 
sociedade organizada. Mas é sabido que não basta sair para a solidão do deserto 
(ou hoje para a “inocência” do campo) para romper com os valores de seu 
tempo. O anacoreta cristão se isolava da comunidade temporal para reencontrar-
se com a comunidade espiritual, ideal e intemporal, de seus irmãos de outros 
tempos e de outros lugares e, neste movimento, vieram a fundar, sob nomes 
diversos, os monastérios que serão o modelo das cidades futuras ou das cidades 
de Deus. Este paradoxo é legível na história da palavra “monge” (moine) que, 
no início, significava um homem vivendo só e que terminou por designar todo 
homem vivendo numa comunidade religiosa e organizada. 
 “O monastério é um céu terrestre e assim devemos todos ser como 
anjos” escreveu Jean Climaque, autor ascético do século VII. Terá sido então 
para tornarem-se anjos que Antônio, Pacôncio e todos os que os imitaram 
desertaram um dia da cidade e da história para enfrentar a prova do 
deserto”.43 
 Vimos que o Cristianismo trouxe para a comunidade humana uma nova 
ordem temporal à qual o apocalipse e o escatológico pertenciam como condição 
de redenção para o “outro mundo”. Como viver então num tempo que prega, ao 
mesmo tempo, o Reino de Deus e o fim da história, neste anúncio do fim 
imanente do tempo? Como viver no medo do desaparecimento de tudo? Neste 
clima exaltado que se amplificará nos séculos seguintes dando origem aos 
movimentos milenaristas, tiveram nascimento comportamentos excessivos e 
 
42
 M. Foucault, op. cit., p.13. 
43
 J. Lacarrière, op. cit., p.26. 
 39 
irracionais, tais como a vocação ao martírio, a obsessão da virgindade e da 
ascese, a fuga para os desertos, tendo todos, como traço essencial, o de ser uma 
recusa radical deste mundo destinado a desaparecer um dia, única resposta 
possível à angústia de um mundo que lia em si mesmo os signos da própria 
agonia. 
 Esta ruptura com a sociedade e com a história, este retomar por sua 
própria conta a espera do Reino de Deus, eram valores que exigiam uma ruptura 
total com o mundo profano. Não bastava sair para o deserto, era preciso romper 
com as tentações que traziam as lembranças do passado cultural, o que 
significava romper com tudo que integrava o homem nesta sociedade, tudo o 
que criava um vínculo social: o saber, a cultura, a posse dos bens, a família, o 
casamento, a procriação. A renúncia ao social implicava a renúncia à carne e é 
por isto que o anacoreta é necessariamente um asceta. 
 Mas há ainda uma outra lógica na relação entre a anacorese e o 
ascetismo: os dois comportamentos não são apenas anti-sociais mas também 
anti-naturais. Ao contrário do mito do bom selvagem do século XVIII, que tanto 
exaltou a imaginação européia, tocando de perto seu campo reflexivo

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