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BREVE HISTÓRIA DO CORPO E DE SEUS MONSTROS IEDA TUCHERMAN 2 para meu pai, Gregorio Vaisberg, in memorian para Fernanda, Guilherme, David e Marcela, “ventos do futuro” 3 AGRADECIMENTOS: Este livro é resultado de inquietações, curiosidades e diálogos. Nasceu sob o signo dos encontros e das amizades, surgindo como continuidade de uma viagem minha a Portugal em abril de 1997. Creio que estas três condições marcam seu estilo e a sua “errância”, pois é ainda um trajeto onde fez mais prazer o percurso do que a hipótese da chegada. Sem algumas pessoas ele não teria sido possível, ou seria outro, e para elas vão os meus realmente sinceros agradecimentos. a José Augusto Bragança de Miranda pelo convite para escrevê-lo, pela aposta de que eu o faria e pela amizade tão estimulante a minha turma das quartas-feiras de manhã, meus alunos de pós- graduação, adoráveis “sócios” na experiência de concebê-lo a Carmem Gadelha pelo cuidado da primeira leitura ao Cláudio pela paciência na digitação No mais, aos meus amigos (que sorte que os tenha!) não faço dedicatórias. Prometo dedicação. 4 “O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos vêem com amor o que não é, tem ser” (Padre Antonio Vieira - Paixões Humanas) “Repetir, repetir, até ficar diferente “Repetir é um dom do estilo” (Manoel de Barros - Livro das Ignorãnças) 5 SUMÁRIO: I - APRESENTAÇÃO, 6 II - BREVE HISTÓRIA DO CORPO, 12 II.1 - A CRIAÇÃO DE UMA CATEGORIA: A FUNÇÃO - ESPELHO, 12 II.2 - O CORPO TRANSCENDENTE: O SEGUNDO PASSO, 22 II.3 - A IDEALIZAÇÃO DO CORPO: A EXPERIÊNCIA DO CORPO GREGO E A INVENÇÃO DO CORPO ROMANO, 25 II.4 - O CORPO CRISTÃO: UM CORPO SEM LUGAR, 31 II.5 - CORPO, ESPAÇO E NARRATIVA, 46 II.6 - A TRANSIÇÃO PARA O CORPO MODERNO, 52 II.7 - O NOVO CORPO E OS NOVOS PERSONAGENS, 55 II.8 - A CRISE DO CORPO, 68 III - MONSTROS, FREAKS E CYBORGS: O OUTRO DO CORPO E O CORPO DO OUTRO, 72 III.1 - A CONSTRUÇÃO DOS MONSTROS E AS RAÇAS FABULOSAS, 72 III.2 - OS MONSTROS FANTÁSTICOS E OS FREAKS, 87 III.3 - OS FREAK-SHOWS, 98 III.4 - O MONSTRO IMAGINÁRIO DE MARY SHELLEY, 101 III.5 - DO FRANKENSTEIN AOS NOVOS FREAKS: UM PROCESSO DE ABSORÇÃO, 105 III.6 - ARTE, CULTURA E TECNOLOGIA, 113 III.7 - CYBORGS, UM DEVIR..., 120 III.8 - “MANIFESTO PARA OS CYBORGS”, 124 III.9 - CYBORGS E A CIBERCULTURA, 129 6 IV - ENSAIO PARA UMA CONCLUSÃO, 137 V - BIBLIOGRAFIA, 150 I - APRESENTAÇÃO: “Com pedaços de mim eu monto um ser atônito” (Manoel de Barros - Livro sobre Nada) Perplexidade parece ser o sentimento mais comum que experimentamos em nossos dias. Divididos entre o assombro e o desassossego nos vemos incapazes ou, pelo menos, mal preparados para entendermos o que constituía nossa sensação de realidade. De certa forma perdemos o mundo e as mais caras idéias que tínhamos sobre nós mesmos. Neste fim de milênio, sempre uma data muito grave, repetimos, sem nos darmos conta, as profecias milenaristas que no ano 1000 enchiam de pânico os habitantes da velha Europa, antecipando, naquele então, o fim dos tempos e o fim do Mundo. Sabemos que eles estavam enganados. Nossa simples presença é a prova concreta do seu engano e, de há muito, nos pareceram ingênuas e fanáticas suas previsões. No entanto, alguns de nossos intelectuais mais festejados assim como a grande massa atingida pelos meios de comunicação não cessam de fazer voltar a saudade dos outros tempos referindo-se à nossa atualidade como o momento do fim da história, do esgarçamento do humanismo, da gravíssima ameaça ao nosso eco-sistema, da perda das identidades e do fim dos processos de subjetivação. Perda, fim, vazio, indiferenciação, desaparecimento são os termos e os diagnósticos mais freqüentes hoje. 7 Este pequeno livro nasceu deste e contra este ambiente. Pode ser pensado como um desejo de teimosia e de esperança. Que não se quer ingênua, pois não desconsidera que, como diz a canção, “nada será como ontem, amanhã”. Mas que assume algumas lições aprendidas com pensadores que, como faróis, iluminam parte do caminho a ser inventado e percorrido. Sem eles a tarefa seria impossível. Com eles não existem garantias totais já que lhes ser fiel significa também afastar-se deles, que já não estão presentes, em alguns casos como os de Nietzsche, Foucault e Deleuze, ou não desejam discípulos como Michel Serres, para citar apenas os companheiros mais constantes. Algo há de fazer, ou melhor, a pensar. Pois o fim de um pensamento não é o fim da possibilidade de inventar; pois não temos o direito de desprezar o presente; pois precisamos conhecer os perigos e as estratégias que nos permitam resistir; pois devemos escolher o que queremos que permaneça e lutar por isto. Imperioso optar por um “ceticismo ativo” que nos proteja da falsa euforia como da improdutiva apatia. O resto é tentar, correndo o risco de encontros e encontrões, de muitos pequenos enganos e de algumas contradições que, esperamos, sejam perdoáveis. A autora tem o vício, mais do que o estilo, de não saber conceber tratados. Não por ausência de rigor ou seriedade, mas por ser alérgica a verdades contumazes. Sendo assim este texto reapresenta uma escolha já antiga realizada para a sua tese de doutorado, que tinha como título: Ética e Modernidade: Diário de Bordo ou Contos de Amizade. Escrever no modelo grego dos “hypomnemata”, espécie de cadernos que constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas e pensadas, para nós também vistas e simuladas, de modo a ajudar nos exercícios de reflexão mas também na arte de viver. Este é o projeto. Que sorte o bafeje. Onde estamos nós? poderia ser nossa primeira pergunta. Em que lugar tempo realizamos nossa coexistência? A que cultura, afinal, pertencemos? Alguns nomeiam nossa época de pós-modernidade, num 8 batismo que nos parece pouco definido: pós significa aí apenas depois de, tal como o prefixo pré em pré-socráticos junta no mesmo nome todos os que antecederam Sócrates, incluindo pensadores tão contrastantes como Anaximandro, Empédocles, Heráclito, Parmênides etc. E, se é o depois da Modernidade, como é, ou seja, é uma continuação no depois, uma evolução, ou é uma ruptura? Pós-modernidade seria o nome da crise da Modernidade, ou de sua total superação? Preferimos pensar em termos de atualidade, considerando que esta tem relações ambíguas com o seu passado imediato, ou seja, a Modernidade que talvez defina o que não somos mais, ao menos em termos absolutos, mas do que ainda manifestamos sintomas, e algo que ainda não somos mas que estamos devindo, isto é, vindo a ser. Inegável no entanto é que neste nosso agora assistimos a uma espécie de reinvenção da cultura onde o ciberespaço e a realidade virtual põem em questão a própria existência do real e de seu sentido, experimentado por nós como ausência de existência já que a realidade, tal como nossa tradição cultural a concebeu, supõe uma efetuação material e uma presença tangível. Podemos viver afetivamente esta perda, mas é necessário evitar as armadilhas: o virtual não se opõe ao real; a relação que existeé entre o atual e o virtual, um modo próprio de ser do real que se associa a um processo de “desterritorialização” e a novos fenômenos espaço-temporais. Ora, o que era a realidade pensada como presente e presença para a experiência moderna senão um contínuo deixar de ser? Sua aposta não foi a eleição do novo como o cultuado valor já que o que lhe parecia intolerável era que o futuro não fosse melhor e mais digno do que o passado? O presente que aí foi desvelado, uma vez rompidas as ligações com a tradição, era uma questão apresentada pelo negativo, ou seja, como já o dissemos, pelo deixar de ser, cuja singularidade é a emergência do possível. Pontuou, ao mesmo tempo, o mágico momento do aflorar das utopias, este não-lugar do real que fala do desejo do que pode vir a ser, 9 portanto do sonho, e da autonomia da razão que deve ser capaz de avaliar as condições possíveis do presente atual e preparar a chegada do novo. O novo era o lugar de confluência do sonho e da razão, era a radical promessa onde sopravam os ventos da liberdade e da realização. Mas tinha os seus problemas, alguns dos quais constituem nossa herança. Para além da Revolução Francesa e no seu modelo, surgiram todos os movimentos libertários, buscando construir os novos mundos. Surgiram também, é bom não esquecermos, os movimentos totalitários, pretendendo produzir um novo pré-determinado e único, exterminador radical de todos os possíveis. Ora, foi em busca do novo e do mais veloz, de introduzir uma separação entre cultura e natureza que o Ocidente investiu o melhor dos seus esforços. Paul Virilio menciona esta relação na fórmula “HOMO FABER”, o que é capaz de fazer melhor e mais rápido que a Natureza, sujeita às leis do comparecimento do acaso, que, desde o mito da Gênese já é um outro do Paraíso: o enunciado bíblico “Tu cultivarás a Terra com o suor do teu rosto e nem sempre ela te dará os melhores frutos”, mais do que uma condenação, produziu uma tarefa: a ação da cultura humana que, tendo a ciência e a tecnologia como suas apostas, deveria tentar controlar, por um lado, e antecipar por outro, a cultura dos frutos necessários. Não é portanto tão espantoso que falemos hoje do desaparecimento do real, entendido como suporte material, relacionado, de certa forma, ao espaço e à natureza. Talvez a diferença se encontre, em primeiro nível, na aceleração da velocidade que desqualifica o espaço: mas este sempre foi transformado pelas tecnologias; enquanto suporte, sua existência se realiza a partir da possibilidade de percorrê-lo e esta deveria poder ser sempre mais segura e veloz. Hoje é a velocidade que nos confunde: é que parecemos estar atrasados não em relação ao nosso futuro, mas em relação ao nosso próprio presente. Ao mesmo tempo em que o real faz questão, surge desta uma segundo pergunta, logicamente correlata. Quem somos nós, humanos? já as novas tecnologias biomédicas, as novas teorias de neurofisiologia 10 cerebral, a profusão de próteses conectáveis ou implantáveis com as quais nos hibridizamos, as clonagens e as experiências que superaram as determinações da espécie só fazem por em questão as mais antigas noções de humanidade e nossas determinações mais radicais: a saber, mortalidade, singularidade e sexualidade. Em relação à mortalidade, a nossa finitude constitutiva da experiência da Modernidade, cuja elaboração podemos reconhecer nas questões Kantianas a partir da radicalidade do limite como nosso princípio próprio: O que posso conhecer? O que devo desejar? O que posso esperar? parece estar sob suspeição. Assim como as intervenções protéticas e o processo de duplicação tornam possível o adiamento ou a superação da mortalidade, à condição que o homem perca suas pretensas características de ser natural, portador de singularidades próprias, pois para postular-se como imortal é preciso que o homem seja “em seu próprio corpo”, puro artefato, as questões que nos constituíam tornam-se anacrônicas ou obsoletas. Talvez não estejamos totalmente preparados mas é, sem dúvida preciso, conceber as novas questões que se fazem necessárias. Entre elas, talvez, a mais significativa seja: O que é ser um corpo? ou O que é ter um corpo? que possibilidades hoje nos são abertas e que experiências nos são possíveis? Quanto à singularidade, ela se relacionava mediatamente com a experiência de finitude, de corpo e modo de ser próprios. E o processo de globalização, que configura o que chamamos de sociedade de controle, parece ter como premissa lógica para seu funcionamento a nossa des- singularização. Somos agora senhas, que fala do nosso lugar no sistema, que é o que interessa para a operacionalidade do mundo que tem como alma a empresa, como somos conexões no regime da cibercultura. “Eu sou na medida das minhas conexões” parece ser o que hoje define nossa subjetividade, assim como nosso corpo. No que se refere à nossa sexualidade, nós nos orgulhamos do movimento político que nos permitiu destacá-la da reprodução, a nossa tão festejada revolução sexual que afirmava em nós a liberdade de seres do 11 desejo. Mas não estávamos, parece, preparados para não sermos mais responsáveis pela vida e pela continuidade da espécie. Tudo parece supor que a ordem mundial na sua mais intensa radicalidade não depende mais do homem, condenado então à “funções inúteis”. Não é possível deter este processo. Não parece também sensato acreditar que conheçamos ou possamos determinar o seu desfecho. A única certeza que parece lógica é a da perda de tudo o que enquadrou nossos saberes, nossas confortáveis referências teóricas, nossas antigas seguras fronteiras que delimitavam humano e não-humano, e da articulação presente - passado - futuro que nos dotava ao menos imaginariamente, da capacidade de previsão, da diferença representada pelo novo que destacava real e possível entre outras. Logo, não perdemos a bússola, mas também o mapa e o território, o que para um viajante corresponde à experiência impossível de perder-se no não-lugar. A Modernidade apostou no desejo de futuro, na antecipação de seus possíveis. Mas a atualização de um certo intolerável aconteceu para além de suas previsões. Não foram os acidentes singulares, lugares de um medo identificável que nos perturbaram mais profundamente, mas, de certa forma, as vitórias obtidas. As revoluções tecnológicas configuraram um tempo onde as coisas acontecem antes de terem sido desejadas. O novo, valor de investimento do nosso mais imediato ontem é também o nome da angústia do nosso hoje, já que nos inclui na pergunta: Que humanos somos nós? A que nova raça pertencemos? O que é hoje nossa corporeidade? Modificam-se o ambiente, a questão e os afetos: agora não se trata apenas do que podemos ser ou fazer mas também, e principalmente, se podemos controlar aquilo que faremos e o resultado do que fizermos. Curiosamente nossos poderes escapam a nossos poderes. E, como um mote, atingem-nos diretamente na carne, isto é, naquilo que o corpo protegia. É disto que tentaremos falar. Nossos personagens conceituais serão o corpo, sua história e seus outros: monstros, freaks, cyborgs, anjos. 12 Tentaremos encontrá-los ouvindo os “ventos do futuro” que sopraram para Nietzsche: “O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim o que pode ser amado no homem é que ele é um passar e um sucumbir” (F.Nietzsche - Assim falou Zaratustra, Primeira parte 4) CAPÍTULO II BREVE HISTÓRIA DO CORPO Et puisque tous ces mystères nous dépassent Feignons d’en être les organisateurs(Jean Cocteau - La Machine Infernale) II.1 - CRIAÇÃO DE UMA CATEGORIA - A FUNÇÃO ESPELHO O “corpo” pertence ao conjunto de categorias mais persistentes na cultura ocidental. Fundamentalmente porque ele suporta, pela sua aparente evidência, todas as grandes questões que nos configuraram e permitiram que nós nos inventássemos, nos esquecêssemos e tornássemos a nos inventar na categoria mais radical que parecia definir a nossa humanidade ou seja, aquilo que pensadores como Clément Rosset (entre muitos outros) chamam de nossa fatalidade ontológica: a nossa finitude radical e a nossa necessária singularidade que “by all the ways”, ou seja, “always”, nos determina uma forma que 13 reconhecemos no espelho, no cinema e mesmo na nossa sombra que nos faz presente na nossa ausência imediata. 1 O recurso ao espelho, agora pensado no grande plano para além close- up, parece alegoricamente sedutor. Pois apenas o que possui uma imagem atual e totalizada se permite capturar no espelho na presença de duas dimensões: altura e largura. “E quando nos vemos no espelho, o que vemos refletido é a imagem do Narciso que está em nós, mas não do vampiro que nos habita: este sempre escapa, mas escapa como viajante nômade [...]. O vampiro que somos torna possível a imagem do Narciso que vemos: mas o vampiro é o que não pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz a imagem de vampiro. Drácula contra Narciso. Drácula contra Édipo”.2 Lembrando também o que a nossa música popular através de Caetano Veloso enunciou definitivamente: “É que Narciso acha feio o que não é espelho”.3 O espelho é, em relação ao mundo, poderoso mas também específico. E parece que, desde a primeira possibilidade técnica do reflexo nas águas, a que o mito de Narciso faz menção, a grande aposta da tradição ocidental foi a de se constituir como o reino da visibilidade universal: ver é conhecer e a aposta é que uma pedagogia do olhar é o que constrói nossa relação com o mundo. A relação entre especulação filosófica e fenomenologia Ser é Perceber é a de um vínculo forte, como aponta, com argúcia, Umberto Eco. 4 Speculum - espelho; spectabilis - o visível; specimem - a prova; o indício, o argumento e o presente; speculum é parente de spetaculum (a festa pública) que se oferece ao spectator (o que vê, o espectador) que não apenas se vê no espelho e vê o espetáculo, mas ainda pode voltar-se para o speculandus (a especular, a investigar, a examinar, a vigiar, a espiar) e ficar em speculatio (sentinela, vigia, estar de observação, pensar vendo) porque exerce a spectio (a 1 Clément Rosset, Le Réel - Traité de l’idiotie, Paris, Minuit, 1977. 2 E. L. de Souza, Theatrum do sentido, dissertação de mestrado apresentada na Escola de Comunicação da UFRJ, 1995, e orientada por mim. 3 Caetano Veloso, Sampa. 4 U. Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. 14 vista, inspeção pelos olhos, leitura dos agouros) e é capaz de distinguir entre as species e o spectrum (espectro, fantasma, aparição, visão irreal). Poderoso porque congela o tempo e define o espaço para que nele conquistemos uma forma e, assim, reflete o Narciso que ele mesmo produziu. Específico em outro sentido: se eu escrever um diário, gravar uma fita e enviá- la a alguém na garrafa do náufrago das lendas ou através das modernas tecnologias de comunicação, o meu pedido de socorro ou as minhas reflexões serão apreendidas - assim diz a lenda - como assim acontece quando aciono meu netscape. No entanto, depois que eu desaparecer, a pessoa que me seja mais amada e a mais próxima, olhando no espelho em que eu me vi a cada manhã, só encontrará seu “próprio” corpo e minha perda. O espelho é um agora absoluto ou, usando uma expressão mais filosófica, uma recusa do tempo. 5 E todo e qualquer homem (na generalidade de humano onde ela ainda parece ser possível) do mais sábio ao menos cultivado, sabe que precisa esperar derreter o torrão de açúcar para que o café seja adoçado: ou seja, sabemos instintivamente que só existimos no tempo e em sua medida de duração, ainda que falemos sobre instantaneidade, ubiqüidade, virtualização e aceleração. Ao lado da INTERNET, acessada pelo meu computador, está a velha xícara talvez com a pequena fissura na porcelana familiar, esperando que o açúcar se misture a um café não-instantâneo, para permitir que o “meu corpo”, cansado de um dia de trabalho, se energize com a cafeína consumida e me permita continuar “plugada”. Mantendo a referência afetiva a Deleuze, a ela acrescentando Guattari, a máquina desejante pode muito, mas precisa ter qualquer espécie de combustível que, associado ao desejo, me permita, simplesmente estar acordada. De pé na “aldeia global”. Voltando ao espelho para um re-conhecimento, seu agora absoluto é “mortal” ou, pelo menos, muito perigoso. Narciso apaixona-se por sua “própria” imagem e isto significa sua morte. Cecília Meireles, a mais conhecida poetisa brasileira, com a sutileza do olhar feminino, pergunta: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”.6 5 Ferdinand Alquié, Le Désir d’Eternité, Paris, PUF, 1a. edição, 1943. 6 Cecília Meireles, Retrato - Flor de Poemas, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1972, p.63. 15 E a nossa cultura tem sido, refiro-me aí às duas matrizes que sustentam o nosso chamado pensamento ocidental de Occidere lugar onde o sol vem morrer e portanto ficará sem luz, “cego” (talvez como Tirésias por saber demais), e a matriz grega e a judaico-cristã, uma poderosa construtora de espelhos e imagens legisladoras de princípios de inclusão e exclusão, natureza e cultura, mesmo e outro. Entre estas, talvez a mais radicalmente privilegiada tenha sido a imagem do corpo, o que parece explicar a sua longevidade, por um lado, e uma certa aflição por outro, já que não é difícil identificar nas queixas de alguns pensadores como Virilio e Baudrillard, apenas para citar exemplos, pois a lista seria bem maior, a associação de três conceitos: a hiperrealidade, a perda do suporte material e a morte da vida viva, isto é, do real e do corpo. O que tem justificado certas perguntas decorrentes desta associação: qual é hoje o campo da experiência possível? Ainda há um agir, para além do agir comunicativo? Vamos tentar pensar de outra forma e isto vai significar pôr em questão cada uma da três evidências, ou melhor, compreender a que imagens elas ainda se referenciam. Mas há um tom imediatamente identificável e que é apocalíptico, retomando contemporaneamente, desde O Evangelho de São João, passando pelas profecias milenaristas, até certas propostas modernas e nostálgicas: a idéia da perda ou da morte do mundo e de tudo que nele vive e vigora. Tom que embora soe às vezes como melodioso, tem embutido nele um certo princípio messiânico e purista que atrapalha as cambalhotas do pensamento. 7 Fizemos referência à longevidade da idéia de corpo. Para reforçar sua capacidade de impregnação é curioso lembrar que, depois da morte de Deus proclamada por ele e da noção associada da morte do homem e do advento do Super-Homem (ou o Além-Homem como preferem alguns preocupados talvez com a homonímia com o personagem das aventuras que é a metamorfose poderosa de Clark Kent), Nietzsche ainda enuncia assim nos aforismos de A vontade de potência sua relação com o corpo: “O corpo é um pensamento mais 7 Estamos apenas fazendo referência a alguns diagnósticos e sobretudo a leituras feitas a partir destes autores:ainda que não concordemos com todas as suas posições são dois pensadores próximos com os quais o diálogo é sempre enriquecedor. 16 surpreendente do que a alma de antigamente, 8 ou, “O que é mais surpreendente é bem mais que o corpo: não deixamos de nos maravilhar com a idéia de que o corpo humano tornou-se possível”.9 Idéia compartilhada pelos modernos físicos dedicados ao recente estudo da cosmologia científica diante de dados surpreendentes: os 4.600.000.000 de anos do universo, a existência de fósseis encontrados especialmente no Xisto de Burgess de mais de 16 espécies diferentes e o fato de que do período camboriano - de 600.000.000 de anos se tenha fixado uma espécie de vida, o Picabia, que, apesar de menor e menos forte do que outras espécies que lhe foram contemporâneas, pela estrutura rígida de sua formação deu origem à coluna vertical que nos tornou possíveis, e ao nosso corpo. Para tais físicos somos filhos do acaso no sentido mais científico que este termo possa ter. Mas, a partir da coluna vertebral, surgiram várias espécies. Para nós interessa pensar em que medida ela sustentou para nossa civilização a idéia de corpo próprio e ideal que nos é rigorosamente peculiar e que, se podemos ver com tanta nitidez, é porque esta imagem na nossa contemporaneidade se mostra em crise a partir de uma série de sintomas dos quais podemos listar: o aumento das próteses, a criação do cyborg (um cyberbody), o surgimento da clonagem, a replicação como possibilidade técnica e as intervenções científicas viabilizadas pela engenharia genética, a biologia molecular e pelas novas técnicas cirúrgicas e de visualização. É evidente que a crise do corpo é caudatária da crise dos fundamentos da nossa cultura e se articula com a crise do sujeito, a qual tinha como condição operatória sua diferença do objeto, que era, em primeira instância, o mundo, do qual nós aprendemos a nos destacar, primeiro pelas narrativas míticas e depois pela dualidade que impusemos entre logos e physis. Este foi um longo processo de constituição e invenção, rupturas e metamorfoses, o que nos permite dizer 8 F. Nietzsche, La volonté de puissance, Fragments Posthumes org. por Généviéve Bianquis, livro II aforisma 173, cit. por G. Deleuze, Nietzsche et La Philosophie, Paris, Ed. Minuit, 1963, p.45. 9 Idem Livro II aforisma, 226 - idem p.45. 17 que o nosso corpo tem uma realidade lógica, ou seja, de “logos”, o que não corresponde à evidência, já que naturalmente somos “physis”, isto é, carne.10 Para compreendê-lo faremos contraste entre duas fábulas. A primeira, expressa num dos capítulos de Além das nuvens, filme dirigido por Antonioni e Win Wenders e relatada pela personagem num bar conta a seguinte história, transcrita de memória, pois sua exatidão não compromete a associação que vai possibilitar, e retoma a magia da tradição oral que encerrava esta prática narrativa: uma equipe de arqueólogos contratou um grupo de carregadores mexicanos para conduzir sua bagagem e seus instrumentos de trabalho por uma região montanhosa. Depois de um certo tempo, quando o ritmo vinha sendo bem ágil, os carregadores pararam sem que nada os convencesse a avançar. Perguntados pelo chefe da expedição da razão de tal comportamento, responderam que tinham ido muito rápido e suas almas tinham ficado para trás; era preciso parar para que elas os alcançassem. A segunda nos foi fornecida por José Gil, no livro As metamorfoses do corpo 11 , referindo-se ao caledôneo cristianizado perguntado pelo missionário Leenhard: 12 “Em suma é a noção de espírito que nós trouxemos para o vosso pensamento?” e que respondia: “O espírito? Oh! Vós não trouxestes o espírito. Já conhecíamos a existência do espírito [...] O que vós nos trouxestes foi o corpo.” Aparentemente, elas relatam experiências opostas: aos primeiros faltava a alma, aos outros foi “oferecido” um corpo, o que nos fez lembrar que as expedições feitas no Brasil às tribos indígenas, das mais predatórias às mais sérias, tinham por hábito oferecer espelhos e outras coisas que brilhassem (e assim refletissem), o que, seguramente se ligava a este trazer o corpo ao qual o caledôneo se referia. Corpo como imagem de corpo próprio, como diferença dos elementos da natureza mas também dos “homens brancos”. 10 Este texto é extremamente devedor dos trabalhos de José Augusto Bragança de Miranda, especialmente da conferência entitulada As ligações do corpo realizada na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 11 de setembro de 1977 e ainda não publicada, cujo texto ele gentilmente me cedeu para consulta. 11 José Gil, As metamorfoses do corpo, A Regra do Jogo Edições Lisboa, 1980. 12 M. Leenhard, Do Kamo, Gallimard, Paris, 1947, p.212 apud J. Gil op. cit., p.48. 18 Mas é possível ver algo que comparece às duas fábulas: uma certa existência diferente e algo autônoma entre o corpo e o espírito. O que elas parecem descrever fala de uma não apropriação de um pelo outro: o corpo dos carregadores “não sabe” aprisionar a alma e a marcha ou o ritmo dos dois não é o mesmo, o que demanda uma “orquestração” dos movimentos; o corpo dos cristianizados ainda não havia chegado quando eles já conheciam o espírito. No entanto, é mais que óbvio, que ambos estavam vivos mesmo na constatação da não-sincronicidade. E que respiravam, se mexiam, falavam, comiam, dormiam, etc. É possível estar vivo sem um corpo? Parece que sim, isto quer dizer sem o conceito de corpo que nós, ocidentais e cristãos (mesmo gregos) idealmente construímos, tendo como sustentação as idéias de corpo-perfeito no mundo grego e sua apropriação: de corpo feito à imagem e semelhança do seu Criador, Deus, que criou todas as coisas do mundo, todas as flores da terra e todas os pássaros do céu, todas as pedras e plantas e animais, todos os rios e florestas, mas só à sua última criação concedeu a sua própria forma, criando do barro (terra e não carne, mas aí se encontra a raiz mitológico-religiosa que as combinou em nosso imaginário), soprado pelo seu ar divino, o homem feito para ser diferença que se expressa no mito da Gênese: Deus fez desfilar diante de Adão todas os animais e a cada um este concedeu um nome diferente do seu. Então Deus viu que ele estava só e criou de uma de suas costelas aquela que destinou para sua companheira, a quem ele chamou de Virago, isto é, descendente de varão que, posteriormente, ganhou o nome de Eva. Vale ressaltar que a civilização grega não incluía as mulheres na sua concepção de corpo perfeito, que era pensado e produzido nos rapazes aos quais se aplicava uma dietética e uma erótica 13 e que elas eram proibidas de participar dos cultos dionisíacos e beber o sangue do touro sagrado que conferia VIR (força) e, portanto, excluídas de uma das experiências de transe, o permitido sendo àquele experimentado pelas pitonisas como mediadoras do oráculo. 13 Vejam-se os últimos trabalhos de Foucault a este respeito, a saber O uso dos prazeres e o cuidado de si, respectivamente o 2º e 3º volumes da História da Sexualidade. 19 Também o mundo judaico-cristão produziu um corpo feminino que só por mediação do corpo do homem da qual é imediatamente herdeira, mediatamente se aproxima da semelhança ao divino. Nela a carne surge no que sangra e morre todo mês, no que muda de forma e funciona na comunidade com o mundo animal. Virilio nos lembra que nas sociedades nômades a mulher foi o primeiro “animal de carga” sendoresponsável pelo transporte dos víveres e dos bens, antes que os homens se apossassem do corpo dos animais e fizessem “este estranho engate” de dois corpos de natureza distinta que permitiu a passagem da caça para a guerra, “caça homossexual”.14 Parece interessante contrastarmos esta fundação cultural que se deu em torno do corpo com algo que parece se constituir como nossa diferença e que, de certa forma, está presente nas duas fábulas apresentadas: uma outra experiência de corpo que, na oposição à noção de corpo próprio e privado, designa um corpo comunitário, que constitui o suporte de experiência das sociedades arcaicas ou tradicionais e funda uma forma própria de comunicação, respondendo de uma maneira particular aos processos de singularização, mas também às questões e às pressões sociais. É um corpo que comunica, mas de maneira própria. José Gil em Metamorfoses do corpo assim descreve: “Sempre que falamos de “comunicar” com a natureza; sempre que o xamane pretende compreender a linguagem dos animais; sempre que as técnicas artesanais primitivas se referem aos materiais (à madeira, aos metais) como se se tratasse de seres vivos que é preciso “entender” - encontramo-nos perante um tipo de comunicação diferente da linguagem articulada e de qualquer código explícito. E qual é o médium utilizado? É o corpo, mas o corpo que abarca e atravessa todos os corpos individuais, é um corpo que contém em si a herança dos mortos e a marca social dos ritos”.15 Este corpo que faz comunhão, oferece, neste processo e em sua dinâmica, todas as presenças deste universo primitivo pois, segundo a imagem do corpo humano, tudo são combinações metáforo-metonímicas em ação, o que permite pensar no corpo como uma árvore e na árvore como um corpo e, por 14 Paul Virilio, Guerra Pura - A militarização do cotidiano, São Paulo, Brasiliense, 1984. 15 José Gil, op. cit., p.43. 20 esta sua possibilidade, o corpo e sua plasticidade constituem-se no modelo de representação do universo, ao qual o corpo se integra. Não é desrazoável dizer que nestas culturas de sociedades primitivas, assim como na maior parte das religiões orientais, por oposição à nossa tradição ocidental, produz-se uma cultura para o corpo. 16 E o que seria, neste universo, uma tal realidade: seria o investimento num equilíbrio que salvaguarde cada corpo e sua singularidade, que não se afirma como separação dos outros corpos ou das forças cósmicas, mas, ao contrário, numa certa intensidade, num estilo de produzir as articulações ou seja, à sua capacidade de se descodificar e se recodificar. Ao lado e às margens das instituições normais e seu códigos, uma energia que circula sob outro regime será considerada e articulada por outras práticas de decodificação e recodificação, ao mesmo tempo, práticas periféricas, mas também situadas no interior do campo social. O corpo recebe assim e os traduz na sua própria existência, dois tipos de forças, ambas compreendidas como pertencentes, de direito e de fato, à vida do próprio corpo. O primeiro conjunto de forças designa um funcionamento institucional, ao mesmo tempo social e individual que se refere à potência dos corpos comunitário e singular. Este conjunto abraça todas as forças cósmicas, do acaso e do não-conhecido, que ligadas aos corpos, aos seres e às coisas do universo, se expressam nos nascimentos, nas mortes, nos fenômenos meteorológicos, nas guerras etc, manifestando a irrupção da natureza na cultura, não considerando esta irrupção como a de polos opositivos como polos opositivos trata esta presença da natureza na cultura na elaboração de suas próprias criações culturais: os ritos, as práticas mágicas, religiosas etc, responsáveis pela reestruturação de sistemas ameaçados de desordem. O segundo conjunto de forças se refere às outras interferências de energias não controladas, cuja atuação se dá fora das articulações normais dos 16 Podemos lembrar do contraste proposto por Foucault em A vontade do saber entre a sciencia sexualis do Ocidente e a ars erotica oriental como duas radicalmente diferentes formas de relação do corpo com os desejos e os prazeres. 21 códigos de comunicação dos quais o corpo é transdutor, tais como a loucura, a doença etc. “Num e noutro caso, o xamane ou o feiticeiro encontra-se lá para voltar a tecer as articulações simbólicas, recodificando o corpo, permitindo a tradução dum código noutro. O que ele faz - o que implica num processo de descodificação-recodificação - contribui para restaurar a vida do corpo voltando a dar força aos símbolos [...] o homem primitivo encontrou a parada no seu corpo; saberá quando e como o descodificar para se fabricar um todo novo em que, uma vez mais os desvios e as diferenças deixarão passar, intacto, o fluxo da vida”.17 Daí a importância da dança, como esta manifestação da cumplicidade entre o mundo físico, biológico e humano, de certa forma responsável pela “recriação do universo” e pela captura do que ele tem de fluxos, rupturas e medidas. A dança recolhe os fragmentos caóticos do cosmo e do corpo e lhes dá um sentido originário imanente à própria dança, que, produzindo este sentido, o fará ser rememorado pelo mito, se concordarmos com Fernand Robert em La Réligion Grecque 18 que afirma os mitos serem enredos gerados após as ritualizações, às quais se adequam, para fornecer uma narrativa àquilo que já se praticava. Ora, o que a dança ritual expressa, na sua função de integração do cosmos, é um radical hibridismo da figura humana, que se tornará posteriormente insuportável para uma cultura que só saberá pensar-se a partir da separação radical entre natureza e cultura, onde o comunismo dos corpos não fará nenhum sentido. É interessante verificarmos um tema comum: a humanidade mesclada à animalidade, o que faz com que o comércio entre o homem e o animal seja cercado de rituais sagrados, mostrando a tensão destas relações e que aparece numa cumplicidade entre a caça e a dança. Em vários estudiosos vemos descrições que relatam o fato de o caçador matar a sua caça com pesar, buscar 17 José Gil, op. cit., p.55. 18 Fernand Robert, La Réligion Grecque, mimeo, s/data, Estamos voltando à Grécia, mas algo antes dela ter se constituído na matriz que separa corpo e mundo, e exatamente, para desenhar esta separação. 22 desculpas para isto e procurar acalmar os espíritos que irritou com lamentações e conservação ritual de parte do corpo do animal. O fato de que seja significativa a difusão destes ritos constitui uma prova de sua remota origem, mas comprova também a ambivalência dos sentimentos do homem para com o animal. Através da mímica e na integração do corpo pela dança, este homem, anterior e diferente da nossa história cultural, tentaria reproduzir o animal, incorporá-lo e assim também assumir o seu poder, seja domesticando-o ou encantando-o pela dança, movimento intenso de trocas e passagens, de representações vividas e intensas onde nossas atuais fronteiras não tinham sido, ainda, construídas; a operação é sutil e ambígua: matar o animal e ao mesmo tempo incorporá-lo, distanciar-se e confundir-se com ele, ser e não ser animal. O equilíbrio destas duas dimensões, enfatizado por Eurípedes nas Bacantes, como indispensável, a saber, o encontro do delírio, da paixão, da loucura e do vinho com a sabedoria, ou seja, o encontro das duas ordens de forças do corpo que as sociedades primitivas sabiam considerar, fazem parte de uma "saudade"que foi talvez a primeira promessa da filosofia: a possibilidade de decifrar o enigma da animalidade devoradora expressa também metaforicamente nos fenômenos onde a natureza faz a sua irrupção arrasadora, jogando com as presenças de ser e não ser, como nos jogos heraclitianos, para quem a guerra, polemós, é a mãe de todas as coisas. II.2. O CORPO TRANSCENDENTE: O SEGUNDO PASSO A filosofia posterior será talvez a eterna tentativa de escapar aos efeitos dilaceradores, contundentes e desistematizadores destes encontros. A criação da filosofia como escrita, a redução da dança ao texto que permita representar o encontro são a via transversa pela qual a filosofia abordará o mistério. Via que permite ao filósofo escapar, não apenas vivo, mas sem sofrer nenhum contágio, num corpo asseptisado pela letra. Passamos do labirinto do Minotauro à caverna do filósofo, que pode a ela retornar e dela sair ileso e iluminado; que pode 23 dançar no labirinto de onde expulsou o touro; que poderá enfim, trocar a Caverna pela Academia. Esta via, que troca o fio tecido no corpo pela tessitura das letras é também o que pode estrangular o Eros. Resta celebrá-lo, numa quase elegia, um banquete loquaz, sempre temendo os efeitos da intempestividade ébria de Alcibíades. Confiando "para sempre" em Sócrates. Abandonar a caverna é subtrair-se ao espaço simbólico por onde se penetra nos "mistérios" da sobrevivência, da reprodução e do além. Para Mircéa Éliade 19 a caverna é um dos "omphalos" (umbigo) do mundo, cujo traçado confuso, próximo do labirinto, exigiria uma vinculação do saber com um poder mágico, privilégio do rei, sacerdote caçador ou heróis extemporâneos ou imprevistos como Teseu, resumindo uma geometria coreográfica e cósmica. A nova filosofia fundará uma cidade, a implantação de uma concepção de espaço elaborado simultaneamente por arquitetos, astrônomos e legisladores. Nesta nova cartografia, delineia-se um novo pensamento: de uma física jônica passamos ao pensamento do múltiplo e do um. De um cosmos mítico ao cosmos geométrico, onde o espaço se define por relação de distância e posição, orientando-se uniformemente a partir de um centro. Neste novo espaço será preciso reinventar o corpo, mediado por um ideal a ele externo, que o destacará da natureza para a pólis: o novo corpo, agora grego, do cidadão. Um corpo que encerra a carne, comum aos homens e animais, sob uma forma protetora em torno da qual as legislações da cidade terão sua aplicação. É curioso pensarmos que ainda nesta cidade nascente, outro recorte irá constituir-se, anunciando a efetiva entrada na nossa tradição ocidental, cuja origem pode estar expressa na tradição pitagórica, a qual terá com a cidade grega uma relação de exclusão que nós cristalizaremos mais tarde, em certa medida, no corpo e na carne: ao mesmo tempo questão e sintoma. Os pitagóricos compunham uma pequena sociedade marginal cujos membros desenvolviam um ensino original, ao mesmo tempo em que recusavam o sacrifício e o alimento carnal, conforme atestam os escritos de Porfírio e Diógenes Laércio. 20 19 Mircéa Éliade, Aspects du Mythe, Paris, Gallimard, 1965. 20 apud Dany-Robert Dufour, Les Mystéres de la Trinité, Paris, Gallimard, 1990, p.350-1. 24 Os membros desta sociedade sabiam o alcance de seus atos: o estatuto de cidadão era, nas cidades gregas, definido pelo direito e pelo dever de participar dos sacrifícios 21 e a recusa de se juntar às festas sacrificiais significava a exclusão da comunidade. Assim, os pitagóricos seriam excluídos das honras da cidade por recusarem a composição com a morte que era, nas cidades gregas, celebrada como a maior das virtudes, os heróis, homens mais audazes e menos temerosos do que os outros eram os modelos dos que teriam transcendido sua condição de mortal "acolhendo a morte em vez de sofrê-la." 22 Os pitagóricos foram os primeiros na história humana, se as nossas indicações forem confiáveis, a ter, de maneira tão coerente, recusado-se a instalar as bases de seu sistema simbólico na aceitação mental da morte e na ingestão física da carne, e, concomitantemente a esta recusa teórica e prática, desenvolveram um sistema de conhecimento novo, cujos elementos de aritmética e geometria emprestados do Egito eram reinterpretados em uma visão global, coerente, que tinha por fundamento um sistema de oposição binário ou "schizis" : "ilimitado ou limitado, par ou ímpar, múltiplo ou um, esquerda ou direita, macho ou fêmea, em repouso ou movente, curvo ou retilíneo, obscuridade ou luz, mau ou bom, redondo ou quadrado. Seja, dez oposições que a filosofia posterior organizará numa "schizi" única: mesmo e outro". 23 Por outro lado, a aptidão ao número (e sua familiaridade com o som), que os pitagóricos visualizam como própria dos homens, é o que lhes permite relacionar o fim e o começo, através da serialidade, e assim, dominando esta relação, os homens "não morrerão" mais, ou seja, serão como deuses. Não é de estranhar que esta filosofia valorizasse a medicina, como a atitude humana mais sábia, uma medicina voltada para os começos e os fins, a saber: o nascimento, a morte e a reprodução sexual. O princípio da imortalidade já existe: é a alma só lhes resta realizar este princípio em si mesmos, em seus corpos o que é possível já que o corpo, como qualquer elemento do mundo, é apenas o objeto 21 A este respeito é bastante elucidativo o livro de René Girard Le Bouc Émissaire, Ed. Bernard Grasset, Paris, 1982, assim como Des choses cachées depuis la fondation du Monde, idem, 1988. 22 Jean-Pierre Vernant, La belle mort ou le cadaver outragé in L’Individu, l’amour et la mort, Paris, Gallimart, 1989, p.52. 25 de uma dualidade, assim como a alma é, do mundo, a expressão harmônica. "Segundo Alcméon, relata Aécio, é o equilíbrio das potências, como úmido e o seco, o frio e o quente, o amargor e a doçura, etc... que produz e conserva a boa saúde, é, ao contrário a predominância de uma delas que provoca a doença e quando duas destas potências predominam, se segue a morte". 24 Vemos aparecer aí o corpo idealizado, modelizado e "julgado" por princípios agora externos a ele, transcendentes, antes pensados do que vividos. As situações singulares e a realidade empírica serão analisadas por estas configurações universais que constituirão o corpo, particularmente o corpo grego, como uma imagem de valor universal. Nascido da recusa da carne. O que parece fundamental retermos da influência pitagórica é que ela realizou, de uma forma particular, o que nós chamamos o modo ocidental de ser, ou seja, produziu uma diferença - com o não - ocidental - e afirmou uma lógica de pensamento para a nossa experiência cultural. A particularidade aí produzida, e que veio a nos caracterizar de maneira irrevogável, relaciona-se ao uso das imagens da geometria para representar ou simbolizar a natureza, prática que, sendo apenas nossa, fundou uma concepção de mundo que nos levou a pensar o Cosmos como uma abóboda, de forma esférica, portanto criando uma filosofia que se sustentaria até a chamada revolução copernicana. Sabemos que Pitágoras foi a influência marcante de Platão, com quem e contra quem a filosofia ocidental não cessou de se debater, a ponto de pensadores como Gilles Deleuze (a partir de sua herança nietzscheana) afirmarem ser a tarefa da filosofia contemporânea, ainda, a reversão do platonismo. E não ignoramos, na amável influência de Jorge Luis Borges, que a história da cultura humanaé a história da repetição de umas poucas idéias. Portanto, a leitura da natureza a partir da geometria, talvez nunca completamente abandonada, apesar de tantas descontinuidades apresentadas pela filosofia e pela ciência, é o quadro ou a cena imaginária onde a menção do 23 Dany-Robert Dufour op. cit., 351. 24 Idem p. 375. 26 corpo é sempre o enunciado do desejo de forma. O que significa imagem totalizada, reconhecível no espelho. Vejamos agora, panoramicamente, o percurso das imagens idealizadas do corpo no Ocidente que funcionaram, para as respectivas experiências culturais que as produziram, como suportes necessários e legítimos para as configurações dos princípios de totalidade, unicidade e consistência. Dizendo de outro modo, foi a partir do corpo como imagem que a noção de integridade pôde ser pensada e discutida, assim como foi a partir da invenção destas imagens do corpo que têm sua própria história, de cuja crise falamos agora, que cada uma destas experiências pensou-se como integral e totalizada. II.3. A IDEALIZAÇÃO DO CORPO: A EXPERIÊNCIA DA POLIS GREGA A primeira delas, já a ela nos referimos, é a imagem do corpo grego, atraente ainda hoje para nossas saudades originárias, pela ligação deste com princípios de uma estética da existência, que nos convida a uma existência estética. Na verdade, este corpo grego era radicalmente idealizado mas devia constantemente ser treinado, produzido em função do seu aprimoramento, o que significa que ele era, ao contrário de uma natureza, qualquer que fosse ela, um artifício a ser criado numa civilização que alguns helenistas chamam de "civilização da vergonha" por oposição à judaico-cristã que será uma "civilização da culpa". 25 Não desconhecemos as diferenças internas da experiência grega, exemplificadas pelo contraste de suas duas pólis mais representativas, Atenas e Esparta, que se relacionam menos com a imagem ideal do corpo e mais com suas atualizações articuladas, mas nos serviremos do exemplo de Atenas especialmente em função de ali ter florescido um duplo culto do corpo: na vida dos cidadãos e nas formas com que a arte grega, cujo exemplo maior é o Parthenon, celebrou a existência maravilhosa deste corpo. 27 O crítico John Boardman 26 aponta que, no Parthenon, a imagem do corpo humano é "mística e idealizada, mais do que individualizada [...]; (nunca) o divino foi tão humano, nem o humano tão divino". O que nos autoriza a pensar que a imagem idealizada correspondia ao conceito de cidadão, e que cada um dos cidadãos devia buscar realizá-la no seu corpo singular, ou seja, modelá-lo a partir de exercícios e meditações. Esta relação de poiésis, ou seja, de um corpo a ser produzido, fundou uma moral própria, para a qual o corpo foi o médium fundamental: trata-se de uma moral assimétrica e livre com um conjunto de regras normativas (e não prescritivas) que convida a uma adesão que terá a intensidade possível para cada um. Como menciona Tucídides: o corpo nu e belo não é uma dádiva da natureza; a nudez é uma conquista da civilização. O corpo exposto é objeto de admiração; eram os bárbaros que cobriam a genitália nos jogos públicos pois, para o habitante de Atenas, havia uma equivalência entre a liberdade de exibir-se, o que se dava mais intensamente nos ginásios onde o corpo era adestrado; e a de exprimir-se, sendo o debate o exercício de adestramento do espírito e seu topo de manifestação a Ágora. O próprio ginásio era esta afirmação de que o corpo pertencia a uma unidade, a Pólis, onde ele podia, a partir de uma exibição pública e de constante treinamento, ser modelado de modo artístico. Por isto as figuras humanas do Parthenon são todas jovens, exibindo corpos perfeitos e nus, com expressões serenas, contrastando, por exemplo, com o Zeus de Olímpia, esculpido poucos anos antes, mais individualizado e mostrando sinais da idade e do medo. Os deuses estão prontos; os homens estão se fazendo. Mas a nudez tinha também um outro e curioso valor: o imaginário do interior do corpo humano na época de Péricles, marcado pelo calor corporal que, segundo eles, antecedia o próprio nascimento, determinando que fetos bem aquecidos deste o início da gravidez deveriam tornar-se machos e, de fetos carentes de aquecimento, surgiriam fêmeas. Diógenes de Apolônia foi o primeiro grego a pesquisar estas diferenciações de calor, mais tarde 25 P. Dodds, Os Gregos e o irracional, Lisboa, Gradiva, 1988. 26 apud Richard Sennett, Carne e pedra, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p.38. 28 desenvolvidas por Aristóteles em Das partes dos animais, onde comparou o sangue menstrual sangue frio e o esperma sangue quente; o esperma, superior por gerar a vida, em contraposição à menstruação, inerte. Na Grécia, acreditava-se que macho e fêmea eram dois pólos de um continuum corporal, a diferença que havia entre ambos era de grau (e o grau era referido ao calor) e não de natureza; o corpo tem um único sexo de modo que fetos masculinos precariamente aquecidos tornam-se homens afeminados e fetos femininos muito aquecidos tornam-se mulheres masculinizadas. A anatomia dos homens e das mulheres supunha que os mesmos órgãos fossem reversíveis na genitália masculina e feminina: "a vagina virada para o lado de fora" ou "virando para dentro o pênis dobrado" encontra-se a mesma estrutura em ambos. Idéias que nos parecem curiosas, mas vigoraram vomo verdade científica por dois mil anos, passando da antiguidade ocidental, através dos pensadores árabes, para o ocidente cristão medieval e atravessando a Renascença, até serem contestadas no século XVIII. Mas, à inclusão do feminino e do masculino na mesma espécie não correspondeu o reconhecimento liberal da igualdade, e sim o abandono da idéia da fêmea como "obviamente inferior ao macho": o registro médico formava uma escala ascendente de valores da fêmea, fria, passiva; para o macho, quente, forte e participante, ainda que fossem da mesma matéria. E embora compareçam corpos femininos como desvios caloríficos de sua "normalidade" expressos nas amazonas-guerreiras (masculinizadas) e na figura das prostitutas sagradas, as leis da cidade aplicavam normas diferentes aos corpos masculino e feminino. Se ao primeiro correspondia o exibir-se nu nos ginásios e o andar na cidade com vestes soltas por serem seres capazes de absorver calor e manter o equilíbrio térmico, dispensando o uso da proteção das roupas; ao segundo, feminino impunha-se o seu uso, considerando-se que, para o interesse das casas as roupas leves seriam suficientes e para a saída às ruas seus corpos deveriam estar cobertos. Lei equivalente para os escravos, excluídos dos debates pois - quando os homens livres falavam, liam e ouviam, o entusiasmo aumentava o calor do corpo, e sem a capacidade do corpo ideal grego de absorver e produzir calor, 29 teriam necessariamente, a temperatura de seu corpo reduzida e por isto precisavam andar vestidos. Uma curiosa relação de honra e vergonha, derivando, na cidade grega, também de um conceito de fisiologia, que associava as regras do calor corporal para dominar e subordinar os outros corpos. Cabe sempre lembrar que imagens ideais do corpo humano levam sempre à repressão mútua e à insensibilidade, especialmente entre os que estão fora do padrão. “Em uma sociedade ou “ordem política” que enaltecegenericamente “o corpo” corre-se o risco de negar as necessidades dos que não se adequam a este paradigma.”27 Considerando a imagem idealizada evidente, presente na expressão “corpo político” como condição da ordem social, fica fácil compreendermos como a idealização do corpo enquanto imagem funcionou como duplo suporte para as relações que configuram o campo político: a da pedagogia e a do poder que tem, no corpo, o médium necessário. Para ilustrar o que dissemos, Richard Sennett nos fornece um exemplo acabado, citando João de Salisbury que, em 1156, afirma: “O estado (res publica) é um corpo”28 formado por: o governante, que funciona como cérebro; os conselheiros como o coração; os comerciantes como o estômago da sociedade, os soldados como as mãos e os camponeses e trabalhadores manuais como os pés. Sendo assim, a ordem hierarquizada do corpo deve servir de modelo para a nação, que deve ser organizada como o corpo humano, e para a cidade, com suas construções e movimentos, que deve proteger e orientar os corpos dos cidadãos singulares, e encenar a presença do corpo político. A esta configuração da cidade grega e ao tipo de “mensagem” que ela veiculava, Paul Virilio descreve como sendo a do lugar onde “os homens devem aprender a marchar juntos e caminhar separados”29 portanto a que encerra e pedagogiza o corpo também no movimento e na ação, particularmente no controle das paixões. 27 Richard Sennett, op. cit., p.20. 28 Idem p.22. 29 P. Virilio, Guerra Pura - A militarização do cotidiano, São Paulo, Brasiliense, 1984. 30 Esta paidéia foi reforçada não apenas no campo das representações visuais, das quais o Parthenon é o exemplo, mas também na tragédia grega que exibia um corpo humano em “um estado não natural de pathos quando se afastava de seu ideal de força e integridade” 30. Podemos aí fazer uma nova associação: a tragédia grega descreve a luta entre duas ordens de justiça ou diké: a justiça do clã ou do sangue e a da cidade; o lugar onde esta tensão se expõe é no contraste entre os dois corpos e suas ligações: o sangue comum familiar ainda preso a uma noção de continuidade comunitária é o que constitui o corpo a ser abandonado, o novo corpo ordenado a partir das normas da polis é o que se desliga do sangue (e da carne) para se ligar à lei e à palavra. Esta foi a lição de Antígona e todos aprenderam com ela. Assim se constitui uma história de poder e de formas. “Aqueles que dispõem do poder, - ou, os fundadores de Igrejas e de Estados, os padres, os chefes - dispõem também de meios de adestração dos corpos; e aos olhos daqueles que eles submetem, possuem o saber que permite o controle e a manipulação das forças agora denotadas/conotadas pelo significante supremo: transformam estas potências em poder sobre os corpos”.31 Convém ressaltar que este desejo de forma que constituía a idéia de corpo representava uma aposta também numa hierarquia dos sentidos, tal como nos referimos, no início do capítulo, à função - espelho, refletora de Narcisos e amedrontada com os vampiros que não se mostram. Não era um dado completamente novo: já na Odisséia, o grande perigo para Ulisses era o canto da sereia, a audição representando uma penetração que desfaz a ordem interior/exterior e sendo, portanto, encantatória. Ver é conhecer, isto significa, produzir formas identitárias. Michel Serres, em um belo texto chamado Génèse, nos fala desta sintomatologia ocidental que constrói como dicotômicos o visível e o invisível, o que deve ser visto e o que não o pode ser, as ligações explicitadas e explicitáveis e o que deve viver à sombra. Assim ele nos dá a fórmula: “Nossa metafísica se ressente metaforicamente da nossa física. Nós temos medo dos 30 R. Sennett, op. cit., p.53. 31 J. Gil, op. cit., p.71. 31 gases e dos líquidos, não compreendemos Lucrécio, nosso saber não é feito para as grandes multiplicidades. Fugimos do pensamento da multiplicidade enquanto tal.”32 Mais tarde, numa expressão sintética, ele nos afirma: “O Universo é Diverso.”33 Foi assim que à ordem visual associou-se o poder imperialista de Roma. O poder do imperador devia ser exibido, tornado grande e evidente, em monumentos e obras públicas. Quando Adriano começou a construção do Pantheon em 118, no mesmo lugar onde Agripa havia construído o primeiro Pantheon para a devoção aos deuses romanos, era a afirmação do Império que estava em questão, sendo a lógica desta nova construção um extraordinário uso da luz que se colocava contra seitas nascentes como o cristianismo com cultos mais dirigidos a mundos invisíveis do que a este. “O Pantheon correspondeu a um esforço, exercido na própria Roma, para que todos olhassem, acreditassem e obedecessem”.34 Estas novas relações entre mundo visível e invisível eram decorrentes de um mal-estar mais geral e profundo do corpo. Os atenienses já aproximavam a escuridão da fragilidade de várias formas, desde a mais matinal filosofia onde “alethéia” era desvelamento, luz e memória e “lethe” era esquecimento, escuridão, noite. Mas eles celebravam, como vimos, em seus ginásios, a exposição total, a força dos músculos e dos ossos. II.4. O CORPO CRISTÃO: O CORPO SEM LUGAR 32 M. Serres, Génèse, Paris, Galilée, 1982, p.176. 33 Idem p.181. 34 R. Sennett, op. cit., p.81. 32 Já os Romanos, quando Adriano construiu o Pantheon, mesmo os mais fortes, não se expunham à luz. O mundo onde se nascia era um mundo sem piedade, tal como o enunciavam os gladiadores no seu juramento. Estes homens, que pretendiam matar-se, afirmavam esta vontade de modo absolutamente contraditório: “Deve-se morrer ereto e invencível”.35 A força física tingia-se de escuridão e desespero. Não nos admira portanto que a grande metáfora do cristianismo seja a Luz de Deus, vinculada a um Poder mais alto e imaterial. Este Deus/criador e centralizador atrairá para si uma nova ordem, de tal maneira generalizante, que destruirá a vontade de forma e as ligações que o corpo humano experimentava até então, para uma configuração particularmente notável. Senão vejamos: o cristianismo pregará a irmandade de todos no amor a Deus, ou seja, proporá, no lugar de uma moral assimétrica e livre, o seu oposto, quer dizer, uma moral simetrizante e mediada pela figura do próprio Cristo, filho de Deus, tornado corpo e carne, que morreu na cruz para nos salvar a todos, sem distinção. Esta “irmandade em Cristo” já que todos somos filhos de Deus, proporá para o corpo humano a idéia que ele deverá para sempre suportar, a saber, que somos feitos à imagem e semelhança do Senhor, o que poderia indicar uma volta a uma experiência comunitária do corpo. Acontece porém que nascemos em ou do pecado, expulsos do Paraíso aonde vivemos o corpo da criação feito, vale lembrar, pelo “O Criador de tudo é Luz”. As pragas que o mito da Gênese enuncia são claras: uns cultivarão a Terra com o suor de seu rosto e nem sempre ela lhes dará seus melhores frutos; outras parirão seus filhos em dor. Ambos morrerão, já que agora, depois de comerem do fruto da Árvore do Conhecimento e se verem nus e se envergonharem, expulsos do Éden, não poderão comer da Árvore da Vida, guardada pelo anjo com sua espada-de-fogo. Podemos pensar que a transgressão de Adão e Eva construiu um dilema: se os homens tivessem o conhecimento e a eternidade seriam deuses. Entrando no tempo ganharam um corpo-para-a-morte, ao qual é prometido o apocalipse que preparao juízo final e a ressurreição. 35 Idem p.82. 33 Este corpo pecaminoso que precisa ser guiado pelo pastor, responsável pelo conjunto do rebanho e por cada uma das ovelhas 36 diante desta dupla e radical diferença de temporalidade, a saber o corpo-para-a-morte e o que ressuscitará, fará uma cisão, até então não cristalizada tão opostamente na experiência ocidental, entre o corpo e alma, e, por muitos séculos eles serão antagônicos devendo os cristãos, guiados por seus pastores, investir no aprimoramento da alma, já que o corpo é a sede dos pecados “da carne”. É por isto que a noção do sofrimento físico sofrerá uma grande transmutação. Não queremos afirmar a ausência do sofrimento no mundo pagão, o que seria não apenas absurdo mas contrário ao que enunciamos panorâmicamente nas referências à “bela morte ou o cadáver ultrajado” grego ou ao “morrer ereto e invencível” do corpo romano. Mas este sofrimento físico não era considerado uma circunstância humana: os homens e mulheres podiam aprender com ele mas não o buscavam, na antiga e agora superada “civilização da vergonha”. Nestes novos tempos, que inauguram a “civilização da culpa”, o advento do cristianismo conferiu à dor do corpo um valor espiritual. A lição divulgada era a da morte de Cristo e suas torturas e, portanto, lidar bem com a dor do corpo é mais importante do que saber lidar com os prazeres, para estes novos corpos cristãos. Nos primeiros tempos do cristianismo as pessoas não nasciam, mas tornavam-se cristãos, ou seja, assumia-se a fé ao longo da vida, pois o “tempo espiritual” aparecia na linguagem teológica como a equivalência de que a afirmativa de acreditar correspondia a uma experiência transformadora, onde o corpo funcionava como o primeiro alvo do sacrifício necessário, devendo ser objeto de árduas e não naturais renúncias e de penitências flagelantes em circunstâncias particulares. O primeiro alicerce do cristianismo, era, como já vimos, a doutrina da igualdade entre os seres humanos. Vistos por Deus, todos os corpos não eram 36 A respeito da figura do pastor cristão e de sua diferença do pastor grego, ligado ao conjunto da cidade e do pastor judaico, ligado à promessa do lugar, buscamos em Michel Foucault, no texto Omnes et Singulatim, um curso oferecido na Universidade de Berkeley, em 1979 e publicado na Revue Débat nº 41 de setembro-outubro de 1986 e depois transcrito no volume III do Dits et Ecrits, Paris, Gallimard, 1984 o apoio teórico. 34 nem feios nem bonitos, nem superiores nem inferiores; as imagens como as formas visuais deixavam de ser importantes. Também a distinção macho/fêmea sofre uma certa relativização; na epístola de São Paulo aos Coríntios I, este reinvidicou roupas que distinguissem rigorosamente homens e mulheres, mas sustentou que os (as) profetas são dotados de “um espírito” e, nesse sentido, não tem sexo. Quanto às não-profetas, bem, serão os elementos de sedução de que se servirá o príncipe deste mundo, o diabo, sempre pronto a alianças que elas podem aceitar. A figura da feiticeira, tal como descrita por Jules Michelet nos dá disto um sábio exemplo: elas que foram as pitonisas decifradoras dos oráculos e ligadas aos mistérios, são agora as bruxas, com segredos próprios com a natureza da qual são próximas. A Inquisição lhes dedicará mortes horrendas, consumidas pelo fogo, que transformará carne e nervos em cinzas, num processo de tortura absoluto - eis o castigo do corpo vivo, cremado antes da morte. O segundo alicerce repousava sobre a aliança ética com os corpos vulneráveis: os pobres, os desamparados, os oprimidos. A ênfase cristã na igualdade dos humildes e despossuídos, derivada da concepção religiosa do corpo de Cristo, de origem modesta e que se fez fraco pelos outros, cujo martírio serviria para restaurar a honra dos que lhe eram semelhantes, fornecia o laço entre a vulnerabilidade de Deus e a dos aflitos. Peter Brown resume este nexo afirmando: “os dois grandes temas da sexualidade e da pobreza caminhavam juntos na retórica de João e de muitos cristãos. Ambos dizem respeito à fraqueza universal do corpo a que todos os homens e mulheres estão sujeitos, independentemente de classe estatus social”.37 Por outro lado, a história cristã compõe um corpo narrativo onde todos os sinais mais significantes da vida cristã estão presentes, colocados no relato da vida de Cristo. Esta nova experiência de fé, especialmente no seu início, foi o rompimento de uma relação com a política tal como o mundo pagão a praticava, como seria de se esperar. Mas, pelas características particulares ligadas ao credo 35 e à narrativa da vida de Cristo, ela se configurou também como uma outra e mais radical do que uma simples diferença interna a um sistema político, como uma experiência de uma não-cidade ou um não-lugar, de todo incompatível com a noção básica de cidadão que sustentava o mundo helênico e romano. Se no mundo pagão o corpo pertencia à cidade, livre deste laço e desta identidade para onde o corpo poderia ou deveria ir? Por outro lado, o povo do Velho Testamento se concebia como errante e o seu YHVH 38 também era um deus errante, um deus do tempo e não do lugar, cuja promessa aos que o seguiam era a de um sentido divino nas jornadas que levavam a lugar nenhum. Com o cristianismo, os valores do Velho Testamento persistiram. Mesmo sem sair mundo afora, o apego ao lugar onde se vive deve ser deixado de lado. Santo Agostinho refere-se a esta obrigação referindo-se a uma “peregrinação através do tempo”. E assim a descreve na Cidade de Deus: “Sabemos que está registrado sobre Caim que ele edificou uma cidade, enquanto Abel, como se fosse um simples andarilho, nada construiu. Pois a verdadeira Cidade dos Santos está no paraíso, embora aqui, na terra, haja cidadãos que erram como numa peregrinação através do tempo, procurando pelo Reino da eternidade”.39 Esta romaria, nascida também da proibição de Cristo a seus discípulos, quando estes desejaram construir-lhe monumentos, associada às provas no corpo, de um sacrifício ou castigo agora compreendidos como um processo de purificação, já que realizava o rompimento das relações da carne com o lugar e com os prazeres, vai produzir uma importante cesura na idéia de corpo e de corpo próprio. Por um lado, não se tem um corpo comunitário, embora o ponto- de-partida do Cristianismo seja a comunidade em Cristo; ao mesmo tempo, o corpo individual que se tem, concebido à imagem e semelhança do Senhor, precisa tornar-se cristão, num processo que começa no batismo e deve acompanhar o cristão por sua vida inteira. 37 apud R. Sennett, op. cit., p.111. 38 YHVH - é o tetagrama impronunciável que nomeia o inominável no Velho Testamento, onde é proibida a representação verbal ou por imagem do que conhecemos por Deus. O hábito entre os que “traduzem” o tetagrama é grafá-lo D’s. 39 Agostinho apud Sennett, op. cit., p.115. 36 As fábulas sobre a vida dos santos ou as histórias das vidas religiosas não cessam de nos falar sobre este corpo - próprio mas não tropo - e de seus processos para romper as ligações deste com o lugar, com os afetos individuais e, por fim, com a carne. De todas estas experiências, a que nos parece mais interessante foi a dos eremitas coptas, realizadas entre os séculos I e IV, porque nelas se misturaram, de maneira intensamente original, heranças diferentes doVelho e do Novo Mundo, já que aí encontramos as velhas tradições do Egito, para quem o deserto foi sempre um espaço de fuga para os fora-da-lei; a herança grega das seitas epoptas, fora das cidades e às suas margens; a presença do nomadismo judaico na fuga do Egito pelos quarenta anos no deserto e, finalmente, o novo apelo cristão. O que ela parece nos informar vai mais longe do que sua simples descrição. Ela nos faz conjugar duas premissas, não excludentes mas também não complementares, cuja relação nos fornece um olhar mais acurado para compreender as formações aparentemente bizarras que atravessam e são atravessadas pelas nossas experiências históricas. A primeira delas se refere à idéia da modelagem do humano: não estando nunca pronto, isto é, totalmente modelado, o homem é receptador de seu contrário e seus ciclos culturais e históricos desenham órbitas diferentes a partir de sua exposição a certas solicitações. De que outro modo poderíamos compreender as escolhas individuais pelo deserto, o mais inumano de todos os espaços? A segunda, inspirada pelos trabalhos de Michel Foucault, nos mostra que a experiência religiosa de uma época e sua história social reenviam a um centro, uma espécie de código sutil que restringe certas formas de experienciar, estimula outras e transforma, no sentido mais amplo, o contexto social, modificando não apenas a tensão ou diferença entre o espaço público e o privado, mas também a relação com a natureza e desta com a cultura. Segundo Jacques Lacarrière, em seu livro Os homens embriagados de Deus 40 , pensar o deserto é uma questão que se impõe para compreender um tipo de movimento ou de errância que atravessou efetiva e imaginariamente o percurso da nossa cultura. A questão que abre o seu prefácio pergunta se os 37 desertos do Oriente Próximo deixaram de ser hoje o lugar de experiências soberanas. Ligados agora à idéia do petróleo e do combustível, terão eles perdido aquilo que os caracterizou por tantos séculos, a saber, uma espécie de nudez que rejeitava a história para os confins de suas areias, onde nada se mexia ou parecia “progredir”? “Os desertos eram o lugar do imovente, de uma virgindade perpétua onde o homem termina por se parecer com os anjos”.41 Num tal mundo, o homem é uma presença absurda que só pode nele viver tornando a si mesmo peso morto do tempo. Eis porque durante séculos este lugar extremo só abrigou hirsutos fantasmas, sombras desencarnadas, restos de seres humanos que os testemunhos de então chamavam de atletas do exílio, homens que sobreviviam e buscavam um lugar cujo sintoma mais imediato é o de não se constituir num território, compreendido como um espaço regulado por leis e normas de ocupação, trânsito, habitação etc. No entanto, se isolar do mundo, romper com a sociedade de seu tempo, pensar que apenas longe dela, tal como o fizeram os eremitas, podemos encontrar a resposta para o destino humano não é uma atitude completamente insólita. É uma atitude quase natural, na medida em que toda sociedade altamente civilizada engendra uma espécie de franja anti-social onde aparecem, como irmãos, os profetas e os fora-da-lei, cujo comportamento tem em comum uma rejeição à comunidade (e uma rejeição da comunidade), sendo ambos formas de rebeldia a uma ordem julgada intolerável ou fracassada. Com outra paisagem, mas não radicalmente oposta, os anos 60 do nosso século viram surgir o movimento hippie, a literatura e o cinema on the road, enfim, a contra- cultura, que associava o fora-da-lei e o artista, numa prova onde não se desconsiderava a produção de outros corpos, tanto singulares quanto sociais: um mundo onde a associação de sexo, drogas e letras produziu o seu campo como o outro do mundo industrializado e tecnológico. Não parece também impertinente considerar a postura filosófica, herdeira ainda em certos pensadores e num modo particular de operar (o que evidentemente não se aplica aos filósofos que tiveram nos sofistas e nas cidades 40 J. Lacarrière, Le Hommes Ivres de Dieu, Paris, Fayard, 1975. 41 Op. cit., p.9. 38 seus topos de reflexão) uma distância ativa das regras sociais. Se pensarmos em uma filosofia contemplativa não nos afastaremos da frase de Toynbee que Deleuze gostava de citar: “Eles são nômades porque não se mexem” assim como compreenderemos a tarefa da filosofia exposta por Foucault no prefácio do Uso dos prazeres: a de ser “uma ascese do pensamento”42 Voltemos à nossa origem: este fenômeno, gerador destes homens “embriagados de Deus” tinha originalmente um nome: a ANACORESE, que, do grego anachorèsis, significa uma fuga do mundo quotidiano. Atitude negativa em princípio, marcando uma recusa, uma ruptura radical com toda sociedade organizada. Mas é sabido que não basta sair para a solidão do deserto (ou hoje para a “inocência” do campo) para romper com os valores de seu tempo. O anacoreta cristão se isolava da comunidade temporal para reencontrar- se com a comunidade espiritual, ideal e intemporal, de seus irmãos de outros tempos e de outros lugares e, neste movimento, vieram a fundar, sob nomes diversos, os monastérios que serão o modelo das cidades futuras ou das cidades de Deus. Este paradoxo é legível na história da palavra “monge” (moine) que, no início, significava um homem vivendo só e que terminou por designar todo homem vivendo numa comunidade religiosa e organizada. “O monastério é um céu terrestre e assim devemos todos ser como anjos” escreveu Jean Climaque, autor ascético do século VII. Terá sido então para tornarem-se anjos que Antônio, Pacôncio e todos os que os imitaram desertaram um dia da cidade e da história para enfrentar a prova do deserto”.43 Vimos que o Cristianismo trouxe para a comunidade humana uma nova ordem temporal à qual o apocalipse e o escatológico pertenciam como condição de redenção para o “outro mundo”. Como viver então num tempo que prega, ao mesmo tempo, o Reino de Deus e o fim da história, neste anúncio do fim imanente do tempo? Como viver no medo do desaparecimento de tudo? Neste clima exaltado que se amplificará nos séculos seguintes dando origem aos movimentos milenaristas, tiveram nascimento comportamentos excessivos e 42 M. Foucault, op. cit., p.13. 43 J. Lacarrière, op. cit., p.26. 39 irracionais, tais como a vocação ao martírio, a obsessão da virgindade e da ascese, a fuga para os desertos, tendo todos, como traço essencial, o de ser uma recusa radical deste mundo destinado a desaparecer um dia, única resposta possível à angústia de um mundo que lia em si mesmo os signos da própria agonia. Esta ruptura com a sociedade e com a história, este retomar por sua própria conta a espera do Reino de Deus, eram valores que exigiam uma ruptura total com o mundo profano. Não bastava sair para o deserto, era preciso romper com as tentações que traziam as lembranças do passado cultural, o que significava romper com tudo que integrava o homem nesta sociedade, tudo o que criava um vínculo social: o saber, a cultura, a posse dos bens, a família, o casamento, a procriação. A renúncia ao social implicava a renúncia à carne e é por isto que o anacoreta é necessariamente um asceta. Mas há ainda uma outra lógica na relação entre a anacorese e o ascetismo: os dois comportamentos não são apenas anti-sociais mas também anti-naturais. Ao contrário do mito do bom selvagem do século XVIII, que tanto exaltou a imaginação européia, tocando de perto seu campo reflexivo
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