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OS REFLEXOS SUCESSÓRIOS NA INSEMINAÇÃO POST MORTEM1 Paula Mallmann Leal2 RESUMO: O presente trabalho analisou a reprodução assistida através dos princípios constitucionais, sob a ótica do direito à vida, à liberdade, ao próprio corpo, princípio da igualdade e acima de tudo resguardando o respeito à dignidade da pessoa humana. Além disso, abordou as consequências jurídicas, sociais e emocionais de uma criança concebida por inseminação homóloga post mortem e sua inserção no âmbito familiar. O tema reprodução assistida foi estudado tanto na legislação brasileira como na dos demais países, analisando-se as diferentes posições que existem frente a um assunto tão polêmico e inovador. Ainda, foram abordadas questões procedimentais referente às técnicas de reprodução utilizadas atualmente. A única regulamentação específica sobre reprodução assistida é uma Resolução do Conselho Federal de Medicina, embora não possua força de lei. Outros projetos já foram apresentados, porém até o momento não foram aprovados. Convém ressaltar que as técnicas são referidas na Codificação de 2002, bem como são previstas as presunções de filiação decorrentes do emprego das técnicas. Por último, foram analisados os princípios norteadores do direito sucessório e de proteção da filiação além dos reflexos familiares e o direito à herança na inseminação homóloga post mortem. Palavras-chave: técnicas de reprodução assistida; reprodução assistida post mortem; princípios do direito sucessório; limites do direito de herança 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado com grau máximo pela banca examinadora composta pelo Professor Orientador Mauro Fiterman, Profª. Adelia Green Koff e Profª. Fernanda Souza Rabello, em 28 de junho de 2011. 2 Acadêmica do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da PUCRS. Contato: paulamleall@hotmail.com. 2 INTRODUÇÃO O presente trabalho trata de um tema polêmico, atual e controverso. A dificuldade de inúmeros casais em conceber um filho resultou na necessidade de se buscar métodos e técnicas diversas na medicina para que a concepção fosse possível para esses casais com problemas de fertilidade. Os avanços tecnológicos permitem hoje que um grupo de pessoas que por alguma razão deixaram a paternidade para mais tarde consigam conceber ainda que com idade mais avançada e com maior segurança, bem como as pessoas que por alguma razão orgânica ou funcional não consigam procriar. A biotecnologia passou a estudar e desenvolver alternativas para sanar o problema deste nicho, vindo a criar técnicas de reprodução assistida. As reproduções assistidas serão analisadas tanto no Brasil como em outros países do mundo, inclusive mencionando como estes países posicionam-se juridicamente frente aos avanços biotecnológicos. O sistema jurídico teve de acompanhar essa evolução biotecnológica adaptando-se e encontrando respostas para as diversas perguntas que surgiram decorrentes desses avanços, como, por exemplo, a necessidade de consentimento do marido para realizar a inseminação e o direito da esposa sobre o esperma. Ainda serão estudados os princípios consagrados pela Constituição Federal e seus reflexos no assunto em pauta; como são realizados os procedimentos de inseminação; como o Código Civil se posiciona com relação a isso; bem como as consequências advindas dessa filiação post mortem e seus reflexos sucessórios. 1 REPRODUÇÃO ASSISTIDA – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS E O DIREITO COMPARADO 1.1 A REPRODUÇÃO E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS A sociedade em tempo algum viveu avanços científicos tão acentuados quanto os atuais3, representando uma verdadeira revolução. Esses avanços, porém, trazem diversas 3 ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. Técnicas de reprodução assistida e biodireito. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=110>. Acesso em: 07 abr. 2011, às 13h48min. 3 repercussões para o mundo jurídico, que não tem acompanhado esses progressos e deve buscar solucionar conflitos até então inimagináveis. No Brasil, já houve quatro projetos de lei tentando legislar as técnicas de reprodução assistida, entre eles estão: o PL nº 3.638/93, que tendo sido aprovado pela Câmara dos Deputados, foi remetido ao Senado Federal e então arquivado; o PL nº 2.855/97; o PL nº 90/99; o PL nº 54/02; todos sem aprovação até o presente momento.4 A Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina (CFM)5, revogada pela nº 1.957/2010, disciplina a conduta dos médicos nas Normas Éticas para Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, embora não possua força de lei.6 A referida resolução aborda de forma sintética a inseminação post mortem7, até mesmo por tratar-se de normas de caráter puramente ético, permitindo não só às mulheres solteiras a inseminação através de sêmen de doador como o uso de sêmen de esposo falecido.8 Com relação aos princípios constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana9 é o primeiro dispositivo a ser analisado quando se destaca aspectos da evolução histórica da família brasileira. Para Alexandre de Moraes: 4 CARLOS, Paula Pinhal de; LIEDKE, Mônica Souza; SCHIOCCHET, Taysa; SCHNEIDER, Raquel Belo. Reprodução assistida: aspectos éticos. Disponível em: <http://www.ghente.org/temas/reproducao/art_aspectos_eticos.htm>. Acesso em: 17 abr. 2011, às 17h20min. 5 O Conselho Federal de Medicina, CFM, é um órgão que possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica. Criado em 1951, sua competência inicial reduzia-se ao registro profissional do médico e à aplicação de sanções do Código de Ética Médica. Nos últimos 50 anos, o Brasil e a categoria médica mudaram muito, e hoje as atribuições e o alcance das ações deste órgão estão mais amplas, extrapolando a aplicação do Código de Ética Médica e a normatização da prática profissional. Atualmente, o Conselho Federal de Medicina exerce um papel político muito importante na sociedade, atuando na defesa da saúde da população e dos interesses da classe médica. O órgão traz um belo histórico de luta em prol dos interesses da saúde e do bem estar do povo brasileiro, sempre voltado para a adoção de políticas de saúde dignas e competentes, que alcancem a sociedade indiscriminadamente. Ao defender os interesses corporativos dos médicos, o CFM empenha-se em defender a boa prática médica, o exercício profissional ético e uma boa formação técnica e humanista, convicto de que a melhor defesa da medicina consiste na garantia de serviços médicos de qualidade para a população (ver: CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/>. Acesso em: 15 de fev. 2011, às 14h35min). 6 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 58. 7 VIII – REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM. Não constitui ilícito ético a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente (ver: RESOLUÇÃO DA CFM no 1.597/2010. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1957_2010.htm>. Acesso em: 09 maio 2011, às 11h42min). 8 PETRACO, Álvaro; BADALOTTI, Mariângela; ARENT, Adriana Cristine. Bioética e reprodução assistida. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 8. 9 Previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. 4 O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana se apresenta em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos; em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes.10 O direito à dignidade da pessoa humana11 tem como ideia central a defesa dos direitos pessoais tradicionais e também os sociais, formando um conjunto de direitos básicos, necessários à existência humana.12 Vale lembrar que a dignidade é preexistente, sendo inerente à pessoa e constitui elemento indissociável dos direitos fundamentais da personalidade, dispensando, nesta acepção, do reconhecimento prévio do direito.13 Assim, é razoável indagar, por presunção, em caso de inseminação post mortem, se é digno o filho ser concebido após a morte do pai, o que abre um leque de questionamentos éticos e jurídicos que poderão ser respondidos através dos princípios constitucionais. Várias são as questões que merecem reflexões de natureza ética, como, por exemplo, a equiparação de uma criança nascida órfã por meio da utilização da técnica post mortem e a criança cujo pai faleceu durante sua gestação. Da mesma forma, pode-se considerar legítimo o desejo do casal de ter filhos e sendo o procedimento “pró-vida” esta técnica seria, então, eticamente aceitável.14 Sob a ótica emocional, o enfoque polêmico estaria mais voltado aos prejuízos da ausência de um pai. Ou seja, teríamos de um lado o direito à procriação de uma mulher com parceiro falecido e de outro a vida da criança sem a presença de um pai. 10 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 129. 11 Quando o constituinte dispõe que a dignidade da pessoa humana fundamenta o Estado, de imediato insurge-se perante qualquer indesejável distanciamento entre as circunstâncias que rodeiam a vida humana e que devem ser resolvidas com a efetividade das normas constitucionais, a aplicação da lei e a obrigação do Estado a prestações positivas, em casos concretos, ordinários, cotidianos. Autoriza-se a interpretar as normas e resolver os conflitos incluindo-se, sempre, o ser brasileiro e o estrangeiro que pise no território nacional, na Constituição. Tal deve ser o norte do legislador que produz a norma, da Administração que a executa, dos juízes e tribunais que a aplicam, bem como a direção uníssona da doutrina: o homem ser e estar na Constituição (ver: LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004. p. 249). 12 SILVA, José Afonso da. Apud, LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004. p. 253. 13 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 47. 14 PETRACO, Álvaro; BADALOTTI, Mariângela; ARENT, Adriana Cristine. Bioética e reprodução assistida. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 8. 5 Essas questões devem ser enfrentadas pela ordem jurídica, que o fará de forma mais eficaz se houver o cruzamento interdisciplinar, aplicando-se conhecimento das demais ciências, observando-se sempre o aspecto constitucional, orientado pelos princípios da dignidade, da igualdade, da segurança e da justiça15, não esquecendo o direito ao planejamento familiar. Quanto ao princípio à igualdade16, trata-se de um valor consagrado pela Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso I, que tem como fundamento tratar a todos igualmente, não fazendo distinção entre as pessoas. Por esta razão, a viúva poderia igualmente desejar filhos, embora com esposo falecido, desde que esse tivesse seu sêmen previamente congelado. O princípio da igualdade dispõe que todas as pessoas são iguais perante a lei; portanto, o direito da viúva sobre o sêmen de seu parceiro pode ser equiparado ao direito de uma mulher solteira ter um filho por inseminação artificial. Ao relacionar o princípio da dignidade da pessoa humana e o da igualdade questiona-se onde encontrar o limite da dignidade de cada um, onde ele acaba e onde começa a dos demais. Sendo assim, a companheira ou cônjuge do falecido que quer engravidar poderia estar agredindo a dignidade alheia ao tentar conceber um filho do de cujus sem seu prévio consentimento, o que poderia gerar desigualdade entre ele e os demais filhos concebidos ainda em vida do falecido. No entanto, havendo um consentimento prévio, seus direitos estariam assegurados. 15 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. As inovações biotecnológicas e o direito das sucessões. 22.04.07. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=290>. Acesso em: 07 abr. 2011, às 14h05min. 16 O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possa criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social (ver: MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 82). 6 Quanto ao princípio da liberdade17, pode-se vinculá-lo com o direito de privacidade, intimidade e de livre exercício da vida privada. A liberdade manifesta a possibilidade de autodeterminar-se, decidindo o que fazer, como fazer e quando fazer.18 Sendo assim, acredita-se que o Direito, em seu texto constitucional, visa “guiar” a sociedade brasileira para um pensamento mais responsável, mesmo que liberal. Ainda a esse respeito, é possível dizer que a necessidade de autonomia do ser humano deva ser agregada à responsabilidade gerada por sua escolha, ou seja, a liberdade de decidir não pode vir desvinculada da responsabilidade de fazer. Deve-se constatar que o princípio da liberdade individual está subordinado a uma abrangente “reserva de lei”, que o torna relativo diante de aspectos como a proteção da futura criança e outros interesses públicos.19 Importante destacar o estreito liame entre o direito à liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana, já que a noção de dignidade assenta-se, essencialmente, na liberdade do ser humano.20 No tema ora em questão, ao utilizar-se do material genético após a morte do marido, a viúva estaria exercendo a sua plena liberdade de escolha ao optar por conceber uma criança com pai ausente e sem o suporte afetivo paternal. A privacidade não é um princípio absoluto, podendo ser limitada pelo direito, pois deve resguardar a dignidade da pessoa humana. Baseando-se nesta afirmação, o direito de 17 A liberdade, além de constar expressamente do preâmbulo do texto constitucional brasileiro de 1988, e do artigo 5º – inclusive associada ao princípio da legalidade, no inciso II, deste dispositivo constitucional –, foi incluída no rol dos objetivos fundamentais da República brasileira para o fim de caracterizar a sociedade, nos termos do artigo 3º, inciso I, do texto. Ora, com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, logicamente deve ser reconhecida a liberdade como um dos bens jurídicos fundamentais. De acordo com o artigo 5º, inciso II, da Constituição de 1988, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, o que demonstra, por óbvio, que a liberdade sofre restrições como outros bens jurídicos, especialmente relacionadas à dignidade da própria pessoa humana livre e das outras pessoas humanas, daí a função do princípio da dignidade da pessoa humana como restrição ao direito à liberdade. Um dos exemplos que se pode apresentar, relacionado ao princípio da liberdade e temas de bioética, diz respeito à disposição de gametas humanos, especialmente relacionando-se à função dos gametas e a possível vida futura na eventualidade do seu emprego em técnicas de reprodução (ver: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 171). 18 SILVA, De Plácido e. Apud ALVES, Daniela Ferro A. Rodrigues. Direito à privacidade e liberdade de expressão. p. 1-2. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_const/direito_privacidade_liberdade.pdf >. Acesso em: 14 abr. 2011. 19 KRELL, Olga Jubert Gouveia. Reprodução humana assistida e filiação civil. 3. reimpr. Curitiba: Juruá, 2009. p. 104. 20 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 170. 7 herança de uma criança gerada post mortem, tendo em vista que a dignidade dessa criança deva ser protegida e preservada, deverá ser cuidado até o limite em que não prejudique a dignidade de outrem. O direito à vida fundamenta-se na proteção da vida como bem inestimável e inviolável. O princípio da dignidade da pessoa humana não se presta a proteger aspectos mais ou menos específicos da existência humana, como, por exemplo, a integridade física, intimidade, vida, propriedade etc., mas, sim, é uma qualidade que identifica o ser humano como tal, sendo, portanto, um atributo próprio do ser humano.21 O direito à vida só terá sua abrangência limitada ao ser confrontado com outro direito fundamental, em favor do direito à vida de outro ser humano.22 O direito à vida engloba o corpo e as suas partes, tanto o corpo físico como psíquico e também o uso do cadáver. Entre os direitos da personalidade está o direito ao corpo, que trata de temas como o transplante de órgãos, aborto e inseminação artificial.23 Pode-se citar, dessa forma, o caso da viúva que exerce o direito de usar seu próprio corpo para conceber, ao passo que o marido, que em vida depositou o material genético, estaria dispondo não de seu próprio corpo e sim de material renovável e não poderia ser impedido de deixar herdeiros.24 O planejamento familiar25 já faz parte do Direito Brasileiro e assegura a liberdade de decisão do casal, desde que obedecidos os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, e atribui ao Estado o dever de fornecer recursos tanto científicos como educacionais.26 Deste modo, o direito ao planejamento familiar prevê a liberdade quanto à escolha entre ter ou não filhos, quantos filhos ter, quando ter e como ter. As únicas limitações 21 SARLET, Ingo Wolfgang. Apud BARBOZA, Heloisa Helena. Direito à procriação e às técnicas de reprodução assistida. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 161-162. 22 LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004. p. 186. 23 ALMEIDA, Aline Mignon de. Bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 21. 24 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 442. 25 Artigo 226, parágrafo 7º, da Constituição Federal. 26 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Filiação e reprodução assistida: introdução ao tema sob a perspectiva do direito comparado. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v.1, n. 1, abr.- jun. 1999, p. 15. 8 quanto à liberdade no planejamento familiar são a dignidade da pessoa humana, a paternidade responsável27 e o melhor interesse da criança. Finalizando, pode-se concluir que, dentro dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, do direito ao planejamento familiar, do princípio da liberdade, do direito à vida e do direito ao próprio corpo, a concepção post mortem faz parte dos direitos do cidadão. 1.2 DIREITO COMPARADO – EVOLUÇÃO HISTÓRICA MUNDIAL DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA O governo dos Estados Unidos, sendo uma república federativa, permite que cada Estado atue independentemente dos outros, assegurando as particularidades de cada um e conforme o entendimento territorial de cada tema, havendo uma diversidade de posições e comportamentos que variam cada vez que se cruza a fronteira de um estado norte-americano.28 Pode-se considerar, então, mais radical a doutrina norte-americana, pois parte da premissa de que cada pessoa tem o direito de procriar, como de não procriar, encontrando tal direito fundamento na liberdade pessoal, tutelada pela Constituição Americana, sendo um dos muitos aspectos do “right of privacy”.29 27 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Filiação e reprodução assistida: introdução ao tema sob a perspectiva do direito comparado. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 1, n. 1, abr.- jun. 1999, p. 16. 28 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 274. 29 Distinct from the right of publicity protected by state common or statutory law, a broader right of privacy has been inferred in the Constitution. Although not explicity stated in the text of the Constitution, in 1890 then to be Justice Louis Brandeis extolled 'a right to be left alone.' This right has developed into a liberty of personal autonomy protected by the 14th amendment. The 1st, 4th, and 5th Amendments also provide some protection of privacy, although in all cases the right is narrowly defined. The Constitutional right of privacy has developed alongside a statutory right of privacy which limits access to personal information. The Federal Trade Commission overwhelmingly enforces this statutory right of privacy, and the rise of privacy policies and privacy statements are evidence of its work. In all of its forms, however, the right of privacy must be balanced against the state's compelling interests. Such compelling interests include the promotion of public morality, protection of the individual's psychological health, and improving the quality of life. (Disponível em: <http://topics.law.cornell.edu/wex/Privacy>. Acesso em: 07 abr. 2011, às 12h10min, definição tirada do Dicionário Nolo’s Plain-English Law Dictionary). Tradução nossa: Diferentemente do direito de publicidade protegido pela lei estatutária ou comum do Estado, o direito de privacidade está resguardado na Constituição, embora não seja explícito. [...] Esse direito se desenvolveu em uma liberdade de autonomia pessoal protegido pela 14ª emenda. A primeira, a quarta e a quinta emendas também concedem alguma proteção à privacidade, embora em todos os casos o direito não seja amplamente definido. O direito constitucional da privacidade desenvolveu paralelamente um estatuto que limita o acesso a informação pessoal. A Comissão Federal de Comércio defende fortemente esse direito de privacidade estatutário, e o aumento de políticas e declarações de privacidade são evidências do seu trabalho. Em todas as suas formas, entretanto, o direito de privacidade deve ser equilibrado contra o conjunto de interesses obrigatórios do Estado. Esses interesses obrigatórios incluem a promoção da moralidade pública, a proteção da saúde psicológica do indivíduo e o aumento da qualidade de vida. 9 Assim como os Estados Unidos da América, cada estado mexicano tem autonomia para elaborar suas normas jurídicas próprias, não possuindo qualquer previsão legal no que concerne à reprodução assistida.30 O direito costarriquenho tem como uma de suas peculiaridades o Código de Família apartado do Código Civil, Lei nº 5.476 de 1973, além de ter um capítulo inteiramente dedicado à união estável. Em se tratando de reprodução assistida, o direito costarriquenho prevê que apenas as pessoas formalmente casadas poderão se utilizar deste procedimento.31 A legislação argentina, por sua origem espanhola, sofre forte influência da religião católica, visto que determina a inconveniência das normas do Código Civil que legislam sobre filiação que não deveriam ser aplicadas de forma indiscriminada nos casos não obtidos de forma natural.32 Quanto à reprodução assistida, a lei argentina ainda não se aprofundou sobre as novas questões, havendo projetos de lei em tramitação.33 Em relação à inseminação heteróloga, o direito argentino é categórico ao não aceitar o uso da técnica, entendendo que não seria eticamente aceitável, uma vez que esta prática instrumentaliza a pessoa humana, além de criar situações que prejudicam os filhos nascidos por esse meio.34 A inseminação homóloga é legalmente admitida no direito argentino, condicionando-a tão-somente à certeza de que a futura filiação seja resultado de sêmen do marido ou convivente e o óvulo materno, não havendo diferença na qualidade de filiação 30 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 305. 31 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 316. 32 SAMBRIZZI, Eduardo A. La filiación en la procreación asistida. Buenos Aires: El Derecho, s. d. p. 44. (Texto original: Es por lo hasta aquí dicho, que creemos en la inconveniencia de que las normas del Código Civil que legislan sobre filiación sean aplicadas en una forma indiscriminada cuando se trata de una filiación no obtenida por medios naturales – entendidos éstos como la relación sexual entre el varón y la mujer.) 33 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 310. 34 SAMBRIZZI, Eduardo A. La filiación en la procreación asistida. Buenos Aires: El Derecho, s. d. p. 79. (Texto original: También Josefina Sapena considera que la fecundación heteróloga no es éticamente aceptable, lo que afirma en razón de que, a su juicio, esa práctica instrumentaliza a la persona humana, además de crear situaciones que perjudican a los hijos nacidos por este medio.) 10 entre os nascidos de união sexual natural e aqueles concebidos por uso de técnicas artificiais.35 Em se tratando de fecundação post mortem, o sistema jurídico argentino entende ser inadmissível a produção de órfãos artificiais através da fecundação assistida, pois para a procriação exige-se que dois seres humanos com potenciais físicos, psíquicos e sociais o façam possível.36 O direito português, ao contrário do americano, centraliza através do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, CNPMA, as questões éticas, sociais e legais envolvendo as técnicas de reprodução.37 Segundo a Lei Portuguesa nº 32/2006, o princípio da dignidade humana é estabelecido de forma que a igualdade se estabelece tanto entre os filhos advindos da utilização das técnicas quanto dos concebidos naturalmente, não os diferenciando. Quanto à inseminação post mortem, esta será permitida desde que seja para cumprir um projeto estabelecido por escrito antes do falecimento do companheiro.38 A Lei Espanhola é considerada permissiva39, pois, em 1988, com a Lei nº 35/88, a doação de gametas já era permitida, dando acesso às mulheres solteiras às técnicas e à fecundação post mortem.40 Com o surgimento da Lei nº 14, de 2006, houve avanços no tema, permitindo que qualquer mulher, maior de 18 anos, com bom estado de saúde e independentemente do estado civil e da orientação sexual, possa fazer uso das técnicas de reprodução humana 35 SAMBRIZZI, Eduardo A. La filiación en la procreación asistida. Buenos Aires: El Derecho, s. d. p. 75-76. (Texto original: En esos casos no existe diferencia, por tanto, con relación a la filiación, entre los nacidos por la unión sexual natural del hombre y la mujer, y aquellos que han sido concebidos por aplicación de alguna de las técnicas recién referidas.) 36 SAMBRIZZI, Eduardo A. La filiación en la procreación asistida. Buenos Aires: El Derecho, s. d. p. 212. (Texto original: Lo cierto es que no parece adecuado producir huérfanos artificiales a través de la fecundación asistida, lo que ha llevado a que la doctrina en general se haya pronunciado en contra de la fecundación después de la muerte. Se há señalado al respecto que el derecho de procrear requiere para su concreción dos existencias humanas con los potenciales físicos, psicológicos y sociales que lo hagan posible.) 37 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 68. 38 Artigo 22, itens 1, 2 e 3 da Lei nº 32/06. 39 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 73. 40 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 71. 11 assistida, para fins exclusivos de procriação.41 Contudo, caso a mulher seja casada, precisará do consentimento do marido. Pela lei espanhola, não poderá ser reconhecida a filiação ou relação jurídica entre o filho concebido por inseminação post mortem e o pai falecido.42 No entanto, havendo prévia aceitação escrita do marido em escritura pública ou testamento, ou tendo o processo de reprodução já se iniciado quando da morte do cônjuge, seu material genético poderá ser utilizado após seu falecimento.43 A lei italiana, por sua forte influência da Igreja Católica, é a mais restritiva de todas as legislações da Europa Continental. Prova disso é a proibição de doação de esperma, de óvulos, o uso de barriga de aluguel e pesquisa com embriões, autorizando tão- somente casais legalmente casados ou em união estável, sendo vedada a inseminação heteróloga.44 O Direito francês segue o viés do Direito italiano, restringindo sua utilização a casais que resolverem realizar a inseminação de forma consensual, devendo os mesmos ter vínculo marital formal ou união estável por no mínimo dois anos. A inseminação, realizada “intervivos”, pelo marido ou concubino, não gera maiores debates, pois a criança está juridicamente vinculada ao seu pai e à sua mãe (biologicamente).45 Mas, o procedimento post mortem46 é vedado legalmente, por não haver projeto em comum e sim um plano individual da viúva. 41 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 71. Artigo 6, da Lei nº 14/06. 42 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 297. 43 Eduardo de Oliveira Leite entende que a validade da autorização é de 06 meses, contados a partir da data do falecimento (ver: LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 297), enquanto Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz, considera o prazo de 12 meses (ver: FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 72). 44 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 75. 45 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o Direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 313. 46 Vale lembrar que não se confunde a inseminação post mortem com o nascimento post mortem de uma criança, mesmo concebida por inseminação artificial ou fecundação in vitro (ver: LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o Direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 314). 12 O Direito francês prevê que o consentimento a ser dado pelo marido ou companheiro deva ser perante o poder judiciário, assim como a necessidade de um mês após o consentimento para que possa refletir acerca da decisão tomada. Na Alemanha, limitou-se o recurso à reprodução assistida aos casais formalmente unidos em casamento e, apenas excepcionalmente, aos companheiros, sendo explícita a proibição da pessoa solteira, divorciada ou viúva ter acesso a qualquer das técnicas reprodutivas.47 A respeito da inseminação homóloga, só será autorizada no Direito alemão se existir consulta médica obrigatória, seguida de recomendação médica e autorização por escrito pelo marido. A inseminação homóloga post mortem é terminantemente proibida.48 Somente os casais formalmente casados poderão se utilizar da técnica de inseminação heteróloga no caso de esterilidade, excluindo a união estável. Tal posição se mostra mais restritiva do que a adotada na inseminação homóloga, sendo ainda necessárias entrevistas psicossociais e que o marido dê seu consentimento escrito.49 O Direito sueco, como o alemão, é limitativo, não obstante ser o berço da inseminação artificial heteróloga, que surgiu na década de 20. O sistema sueco remete a decisão ao médico do setor público, especializado em ginecologia e obstetrícia, o acesso do casal à inseminação heteróloga.50 É requisito essencial para a validade da inseminação o consentimento formal do marido ou companheiro e, usualmente, os médicos exigem que o doador seja casado e tenha filhos próprios e sãos, como praticado no Direito francês.51 As técnicas de reprodução medicamente assistida, tanto na modalidade homóloga quanto heteróloga, são admitidas tanto para casais legalmente casados como em união 47 LEITE, Eduardo de Oliveira. Apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 265. 48 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 282. 49 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 265. 50 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 301. 51 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 286. 13 estável, sendo proibida a inseminação da mulher que viva só ou com pessoa do mesmo sexo.52 A legislação do País entende que a inseminação post mortem deveria ser vedada, demonstrando restrições nesse sentido. A legislação inglesa, em relação à inseminação heteróloga entende que o marido, ao consentir a inseminação de sua esposa, passa a ser considerado pai. Entretanto, sendo homóloga e post mortem, não será possível estabelecer a paternidade do falecido sobre a criança gerada, mesmo não havendo proibição expressa na lei.53 2 DA LEI E DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ARTIFICIAL 2.1 O CÓDIGO CIVIL E A REPRODUÇÃO POR TÉCNICA ARTIFICIAL O avanço do conhecimento científico no âmbito das procriações artificiais afastou a necessidade da sexualidade para a procriação, socorrendo os casais que se deparam com a esterilidade ou infertilidade,54 embora a legislação não tenha acompanhado essa evolução. Na inseminação post mortem, a Resolução nº 1.597/2010, que revogou a Resolução nº 1.358/92, entende que não constitui ilícito ético a reprodução assistida post mortem havendo autorização anterior e específica do falecido para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente. O atual Código Civil reconheceu a evolução da bioética e, consequentemente, passou a incluir em seu ordenamento as técnicas de reprodução artificial através da presunção de paternidade (artigo 1.59755, Código Civil). Dentre os incisos do referido 52 DIAS, João Álvaro. Procriação assistida e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Ed., 1996. p. 53. 53 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 328. 54 Existe diferença entre esterilidade e infertilidade. Esterilidade conjugal “é a incapacidade de um ou dois dos cônjuges, por causas funcionais ou orgânicas, fecundarem por um período conjugal de, no mínimo, dois anos, sem o uso de meios contraceptivos eficazes e com vida sexual normal. Chamamos de infertilidade a incapacidade, quer por causas orgânicas ou funcionais atuando no fenômeno da fecundação, de produzir descendência (ver: LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 28-30). 55 Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; – nascidos nos 300 (trezentos) dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. 14 artigo estão reconhecidas a inseminação artificial homóloga, a heteróloga, bem como aos embriões excedentários, demonstrando os efeitos da reprodução em matéria de filiação. Porém, não há qualquer previsão na esfera do direito sucessório que estipule as consequências da utilização dessas técnicas.56 Com relação às presunções oriundas do artigo 1.597, CC, pode-se destacar a relativa e a absoluta. A presunção absoluta não admite prova em contrário quanto à paternidade e à maternidade, como exemplo, pode-se citar a técnica de reprodução assistida heteróloga consentida pelo marido.57 Quanto à presunção relativa, trata-se da hipótese em que não há consentimento expresso e prévio do marido para que sua esposa possa ter acesso à técnica de reprodução assistida heteróloga.58 Os incisos I e II do artigo 1.597, CC, em uma primeira análise, não trazem qualquer indagação a respeito, pois apenas preveem a paternidade em sua esfera biológica e determinam prazos para que haja a presunção de filiação.59 A respeito do inciso III, o Código Civil traz o instituto da fecundação artificial homóloga, ou seja, a inseminação feita com o sêmen do marido ou companheiro.60 No entender de Maria Berenice Dias, para que a viúva possa requerer o material genético armazenado, teria de haver uma manifestação em vida do falecido, expressando ser este o seu desejo. Esta manifestação seria necessária, pois ainda que o marido tenha fornecido o sêmen, não há como presumir o consentimento para a inseminação post mortem.61 Ainda amparando este entendimento está a Resolução n° 1.358/92, que regulamenta e prevê que: “no momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré- 56 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2008. p. 116. 57 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 842. 58 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 844. 59 LEITE, Eduardo de Oliveira. Bioética e presunção de paternidade (Considerações em torno do Art. 1597 do Código Civil). In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 22. 60 LEITE, Eduardo de Oliveira. Bioética e presunção de paternidade (Considerações em torno do Art. 1597 do Código Civil). In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 28. 61 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. 3. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 330. 15 embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los”.62 Assim, para que a viúva possa requerer ao banco de espermas a restituição do material do falecido marido, para que possa empregar a técnica de reprodução assistida post mortem, deverá haver o consentimento prévio do marido, em vida, com a devida autorização por escrito na clínica contratada onde foi procedida a coleta. Esta resolução, recentemente revogada pela de n° 1.597/2010, conserva o disposto acima, reforçando ainda a exigência de autorização prévia específica para a utilização do material do falecido. Quanto à expressão “mesmo que falecido o marido” disposta no inciso III, entende-se que, havendo material genético do marido, e estando ele vivo ou morto, prevalecerá o critério biológico e a presunção absoluta de paternidade. De acordo com o previsto pela legislação, admite-se, portanto, a inseminação homóloga post mortem.63 Quando se confronta o disposto no inciso III com o previsto no inciso II, surge uma controvérsia, pois se indaga se a expressão “mesmo que falecido o marido” deveria respeitar o prazo de 300 dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal (inciso II) ou se a qualquer momento depois do falecimento do marido esta criança poderia ser gerada, fruto da coleta e congelamento do material, mesmo que muitos anos se passassem para que esta concepção fosse efetuada. Para alguns autores, como Rolf Madaleno: O artigo 1.597, inciso III do CC, ao admitir a possibilidade de a fecundação artificial ser procedida após o falecimento do marido, não será aplicada a presunção limite dos 300 dias subsequentes à morte do esposo, referida no inciso II do mesmo dispositivo legal, porque o congelamento do sêmen permite que a fecundação artificial possa ocorrer muitos anos depois de dissolvida a sociedade conjugal pelo falecimento do marido.64 No entanto, para outros, como Guilherme Calmon Nogueira da Gama, “a cláusula mesmo que falecido o marido deve ser interpretada tão-somente para fins de estabelecimento da paternidade, observado o prazo-limite de trezentos dias da morte do ex- marido”.65 62 RESOLUÇÃO Nº 1.358/92, artigo V, inciso 3. Disponível em: <http://www.ghente.org/doc_juridicos/resol1358.htm>. Acesso em: 31 mar. 2011, às 17h. 63 LEITE, Eduardo de Oliveira. Bioética e presunção de paternidade (Considerações em torno do Art. 1597 do Código Civil). In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 38. 64 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 381. 65 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A reprodução assistida heteróloga sob a ótica do novo Código Civil. Revista Brasileira de Direito de Família, n. 19, ago.-set. 2003, p. 53. 16 Sendo assim, conclui-se que, se respeitando ou não o prazo de trezentos dias da morte do marido, a intenção do sistema é de proteger os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, resguardando seus direitos, sem, no entanto, estimular a inseminação post mortem com a geração de filhos já tidos como órfãos desde a sua concepção. O inciso IV do artigo 1.597 traz a figura dos embriões excedentários. Os supranumerários são os embriões que sobram depois do sucesso da fecundação artificial. Estes embriões geram diversas discussões e posições a respeito, pois surgem dúvidas sobre o que fazer com este material “extra”. A legislação restringiu ao máximo esse inciso, somente referindo-se à criança concebida a partir de embrião excedentário, e nascida “a qualquer tempo”, independentemente dos prazos previstos nos incisos I e II do mesmo artigo. Ou seja, desde que haja a concepção do embrião durante a convivência conjugal, o prazo de trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal seria dispensável.66 Quanto ao inciso V, para que se presuma concebido na constância do casamento os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, faz-se necessário que haja o consentimento do cônjuge ou companheiro.67 No que se refere à forma da autorização, não há conformidade, pois o Código Civil não se manifestou a respeito, enquanto a Resolução n° 1.358/92 estabelece que a autorização deva ser expressa e escrita.68 No entanto, alguns autores, como Paulo Lôbo, entendem que “a única exigência é que tenha o marido previamente autorizado a utilização de sêmen estranho ao seu. Pois, a lei não exige que haja autorização escrita, apenas que seja prévia, razão por que pode ser verbal e comprovada em juízo como tal”.69 66 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A reprodução assistia heteróloga sob a ótica do novo Código Civil. Revista Brasileira de Direito de Família, n. 19, ago.-set. 2003, p. 52. 67 ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. Técnicas de reprodução assistida e biodireito. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=110> Acesso em: 08 abr. 2011. 68 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 107. 69 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao Estado de Filiação e Direito à Origem Genética: Uma distinção necessária. Revista Brasileira de Direito de Família, n. 19, ago.-set. 2003, p. 137. 17 A presunção de paternidade advinda da inseminação artificial heteróloga poderá gerar a filiação socioafetiva, pois não há qualquer vínculo biológico entre o pai que o registrará e o filho concebido por meio da técnica.70 Assim, considerando o reconhecimento das técnicas de reprodução assistida pela legislação e ante a ausência de previsões no âmbito sucessório, vê-se a importância de discussões adicionais e profundas com o intuito de delimitar as consequências hereditárias cabíveis a essas crianças geradas de forma artificial. 2.2 AS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO PELA VIA ARTIFICIAL As técnicas de reprodução assistida ou de procriação artificial humana referem-se aos meios não naturais de concepção, ou seja, afasta-se através de métodos artificiais a necessidade da sexualidade para a reprodução. Na inseminação artificial não é necessária a retirada do óvulo da mulher, ocorrendo a fecundação no próprio organismo feminino, ou seja, intracorpórea.71 A inseminação artificial homóloga é realizada com sêmen proveniente do próprio marido ou companheiro72 e será utilizada em casos específicos em que, por mais que o casal seja biologicamente apto a procriar, a inseminação natural intravaginal não é possível em decorrência de alguma anomalia.73 A inseminação homóloga post mortem ocorre quando há a preservação do embrião em processo de criopreservação e com esse material é possível fecundar a mulher após a morte do doador do sêmen.74 Denomina-se inseminação artificial heteróloga o procedimento que utiliza material genético de terceiro (doador), que não o marido ou companheiro da mulher.75 70 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 106. 71 BARBOZA, Heloisa Helena. A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização “in vitro”. Rio de Janeiro: Renovar, 1993. p. 36. 72 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 32. 73 GOMES, Renata Raupp. A relevância da bioética na construção do novo paradigma da filiação na ordem jurídica nacional. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 341. 74 ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. Técnicas de reprodução assistida e biodireito. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=110>. Acesso em: 13 abr. 2011. 75 BARBOZA, Heloisa Helena. A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização “in vitro”. Rio de Janeiro: Renovar, 1993. p. 55. 18 Na hipótese da inseminação heteróloga, a paternidade biológica seria do doador, aquele a quem pertencia o material genético necessário à fecundação do óvulo. Contudo, pode surgir a paternidade socioafetiva, aquela que não é biológica, que se baseia na relação paterno-filial, por força da convivência familiar, consolidada na afetividade e que repousa sobre o marido da mulher inseminada.76 Além das paternidades já mencionadas, existe ainda a paternidade jurídica ou presumida, que pode ser apontada como sendo a estabelecida pelo Código Civil na esfera da filiação matrimonial do lado paterno (artigo 1.597).77 Ainda, no que se refere à inseminação heteróloga, pode-se observar que o consentimento do marido é requisito essencial para que haja a determinação da paternidade, não prevalecendo em sentido estrito a presunção legal. Ao atrelar o reconhecimento jurídico do filho ao consentimento do marido, a legislação assegura à criança a paternidade, independentemente de posterior retratação78, sendo vedado ao marido a contestação da paternidade anteriormente consentida. A técnica chamada fertilização ou fecundação in vitro refere-se ao procedimento que é realizado em laboratório com a fecundação extracorpórea do óvulo pelo espermatozóide.79 Os materiais genéticos, feminino e masculino, são recolhidos previamente, havendo a fecundação dos gametas e a formação do embrião, em um tubo de ensaio ou uma “placa de petri”.80 Assim como a inseminação artificial, a fertilização in vitro pode ser realizada com material genético do marido ou companheiro (homóloga), com material genético proveniente de um banco de esperma com doador anônimo (heteróloga) ou ainda mediante a doação de um embrião, sendo ambos os gametas provenientes de doadores.81 76 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao Estado de Filiação e Direito à Origem Genética: Uma distinção necessária. Revista Brasileira de Direito de Família, n. 19, ago.-set. 2003, p.136. 77 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade – Filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 480. 78 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. 3. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 331. 79 GOMES, Renata Raupp. A relevância da bioética na construção do novo paradigma da filiação na ordem jurídica nacional. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 344. 80 ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. Técnicas de reprodução assistida e biodireito. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, v. 11, n. 55, ago.-set. 2009, p. 15. 81 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 394. 19 A transferência intratubária de gametas (GIFT) é um procedimento que se destina somente às mulheres que possuam as trompas de Falópio saudáveis, pois os óvulos e o esperma são introduzidos através de laparoscopia, diretamente nas trompas.82 A transferência de zigoto para as trompas (ZIFT) é um procedimento realizado in vitro, ou seja, os óvulos são retirados da mulher e fecundados fora do corpo, transformando-se em zigoto, sendo posteriormente reintroduzidos nas trompas.83 A transferência peritoneal de gametas (POST) é um procedimento utilizado para a recuperação de óvulos, que serão introduzidos, em conjunto com o sêmen, no peritônio.84 Outra modalidade de reprodução assistida permitida no Brasil pela Resolução n° 1.358/92 é a maternidade de substituição. A referida técnica obedece ao critério de gratuidade e a doadora temporária (mãe de substituição) tem que ser parente em até segundo grau da doadora genética.85 Sendo assim, pode-se observar que as técnicas de reprodução artificial estão sendo aperfeiçoadas e aprimoradas. Contudo, cabe ao legislativo suprir as lacunas existentes na legislação sobre o tema e ao judiciário reconhecer as crianças geradas artificialmente e estabelecer as implicações sucessórias decorrentes. 3 A REPRODUÇÃO ASSISTIDA APÓS A MORTE DO DOADOR DO SÊMEN E OS REFLEXOS SUCESSÓRIOS 3.1 OS PRINCÍPIOS DE DIREITO SUCESSÓRIO E DE PROTEÇÃO DA FILIAÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO Primeiramente, faz-se necessário conceituar alguns termos importantes no direito sucessório. O termo sucessão pode ser definido como o ato de transmitir patrimônio de 82 MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida: aspectos éticos e jurídicos. 1. ed. 2003, 5. reimpr. Curitiba: Juruá, 2010. p. 47. 83 FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá, 2009. p. 48. 84 MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida: aspectos éticos e jurídicos. 5. reimpr. Curitiba: Juruá, 2010. p. 49. 85 VII – SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO) As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. 1 – As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. 2 – A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial (ver: RESOLUÇÃO Nº 1.358/92. Disponível em: < http://www.ghente.org/doc_juridicos/resol1358.htm>. Acesso em: 13 abr. 2011, às 16h19min). 20 uma pessoa para a outra e pode ocorrer de duas formas diversas: por vontade das partes (intervivos) ou em razão da morte (causa mortis).86 A sucessão pode ocorrer de duas maneiras: a título universal ou a título singular. A primeira ocorre quando o herdeiro recebe uma parte da integralidade da herança, quando houver mais de um herdeiro. Esta parte é inseparável do todo até o momento da partilha. A segunda se dá de forma restrita, os bens transferidos aos herdeiros estão estabelecidos em testamento, de forma específica. O requisito essencial para que ocorra a sucessão a título singular é o testamento, última disposição de vontade, onde o de cujus determina o destino a ser dado ao seu patrimônio.87 Na sucessão a título singular, nomeia-se legado o bem transferido e legatário aquele que o recebe.88 Legado é o bem certo e determinado separado do patrimônio sobre o qual o testador está dispondo.89 Na sucessão a título universal os termos utilizados são outros; designa-se herança aquele patrimônio transferido de uma pessoa para a outra e herdeiro aquele que recebe o patrimônio referido.90 Cumpre ressaltar os dois tipos de sucessão: a legítima e a testamentária. A sucessão legítima se caracteriza pela não existência de testamento, ou, caso exista, tenha caducado ou seja ineficaz. Ao falecer, sem deixar testamento, o de cujus transfere para a lei a responsabilidade de estabelecer quem serão seus herdeiros.91 Ainda, quanto à herança, verifica-se a existência de outras características, como, por exemplo, a indivisibilidade. O caráter indivisível permanecerá da abertura da sucessão (morte) até a finalização da partilha. A partir do momento em que há a divisão do patrimônio e a designação dos quinhões hereditários, o caráter de indivisibilidade desaparece. Essa característica está prevista no artigo 1.79192, do Código Civil. 86 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 93. 87 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11. 441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 37. 88 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11. 441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 37. 89 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 381. 90 BEVILAQUA, Clovis. Apud SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. Os fundamentos do direito das sucessões. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=409>. Acesso em: 21 abr. 2011, às 11h14min. 91 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11. 441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 179. 92 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 1.791. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 22 abr. 2011, às 11h12min. 21 Com base no princípio da saisine, após a abertura da sucessão com a morte, o patrimônio é transmitido imediatamente para os herdeiros, ou seja, independentemente de qualquer formalidade.93 O herdeiro chamado a suceder tem em seu poder a prerrogativa de aceitar ou não esta condição. Caso aceite a condição de herdeiro, a transmissão da herança advinda do princípio da saisine passa a ser definitiva, conforme o disposto no artigo 1.80494, do Código Civil.95 A aceitação pode ocorrer de forma tácita, expressa ou presumida.96 Em contrapartida, existe a possibilidade de renunciar à herança e por meio deste ato o herdeiro ou legatário abre mão de seus direitos.97 Conforme o disposto no artigo 1.804, parágrafo único, do Código Civil98, a transferência provisória anteriormente ocorrida pelo princípio da saisine não se verifica.99 No tocante à capacidade testamentária ativa, considera-se que, para testar, deverá ser verificada a capacidade100 do testador, bem como a forma extrínseca do testamento, ambos de acordo com a lei vigente na data do mesmo. Já a legitimidade para suceder e a eficácia das disposições testamentárias deverão estar de acordo com a legislação que estiver em vigor no momento da abertura da sucessão.101 Com relação à capacidade sucessória, para que haja a capacidade de herdar é necessário que seja preenchido o requisito da existência, que pressupõe que o herdeiro esteja vivo no momento da abertura da sucessão. No entanto, o artigo 1.798, CC, prevê 93 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 101. 94 Art. 1.804. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão (ver: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 1.804. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 22 abr. 2011, às 15h13min). 95 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 49. 96 A doutrina costuma estabelecer distinções sobre o modo de ocorrer a aceitação da herança. Quando manifestada por escrito é chamada expressa. É tácita quando o herdeiro pratica atos de administração, alienação ou oneração dos bens da herança (CC 1.805). Não se manifestando o herdeiro quando intimado, considera-se presumida a aceitação (CC 1.807) (ver: NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 186). 97 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 56. 98 Art. 1.804, Parágrafo único. A transmissão tem-se por não verificada quando o herdeiro renuncia à herança (ver: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 1.804, parágrafo único. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 22 abr. 2011, às 15h34min). 99 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 49-56. 100 Os absolutamente incapazes e os que não tiverem pleno discernimento não dispõem de capacidade testamentária. Os relativamente incapazes não estão atingidos pela proibição, ou seja, a lei concedeu legitimidade para testar a quem tem entre 16 e 18 anos. A capacidade deverá ser verificada no momento em que ocorrer o ato de testar. A incapacidade do testador após o ato de testar não afeta a higidez do testamento. De outro lado, a superveniência da capacidade não convalida o testamento feito enquanto faltava capacidade ao testador (art. 1.861, CC) (ver: DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 319-320. 101 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 319. 22 que: “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.102 Ou seja, o referido artigo abre a possibilidade de o nascituro herdar.103 Quanto ao segundo requisito, na sucessão legítima será o respeito à ordem da vocação hereditária que está disposta no artigo 1.829104, do Código Civil, o qual elenca quem serão os herdeiros chamados a suceder nesta modalidade de sucessão.105 Observa-se que somente pessoas físicas têm capacidade para suceder na sucessão legítima.106 Quanto à sucessão testamentária, o número de legitimados a suceder será maior. O artigo 1.799107, CC, relaciona outros beneficiários que não foram favorecidos na sucessão legítima: os filhos ainda não concebidos (inciso I); as pessoas jurídicas (inciso II) desde que existam à época da abertura da sucessão; e a organização de fundação para que seja contemplada (inciso III).108 Pertinentes algumas considerações sobre a questão dos filhos ainda não concebidos previsto no inciso I do artigo 1.799. O instituto da filiação eventual abrange o herdeiro ou legatário que ainda não existe no momento da abertura da sucessão e nem sequer foi concebido até aquele momento. Os filhos não concebidos somente poderão ser beneficiados por testamento.109 Alguns pressupostos deverão ser preenchidos para que a prole eventual possa vir a suceder, como, por exemplo, a nomeação em testamento; não ser concebido no momento da abertura da sucessão; seu genitor deverá estar indicado no testamento e estar vivo no 102 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 1.798. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 22 abr. 2011, às 16h43min. 103 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 97. 104 Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais (ver: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 1.829. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 24 abr. 2011, às 17h30min). 105 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 97. 106 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 112. 107 Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; II – as pessoas jurídicas; III – as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação (ver: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 1.799. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 24 abr. 2011, às 17h35min). 108 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 112-113. 109 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 107. 23 momento da abertura da sucessão; e deverá ser descendente em primeiro grau do genitor indicado.110 Outra informação relevante sobre a filiação eventual é a necessidade da concepção deste herdeiro no prazo de dois anos contados a partir da data da abertura da sucessão. Após este termo final, sem a concepção do herdeiro, os bens serão transferidos aos herdeiros legítimos.111 Com base no princípio constitucional da igualdade entre os filhos, previsto no artigo 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988112: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Ratificado pelo artigo 1.596, CC, foi vedada qualquer distinção entre os filhos.113 Ao assegurar a igualdade entre os filhos, a lei possibilitou um vínculo de filiação diverso do sanguíneo, mesmo nas filiações eventuais, seja por meio de reprodução assistida heteróloga (art. 1.597, inciso V, CC), homóloga (inciso III), homóloga com a utilização de embriões excedentários (inciso IV) ou adoção. Qualquer manifestação contrária do testador deverá ser desconsiderada, pois estaria desafiando uma disposição constitucional.114 Por último, faz-se necessário referir que a prole eventual é uma exceção prevista no direito sucessório, podendo inclusive resultar da reprodução assistida post mortem. Importante analisar essa hipótese e suas consequências sucessórias. 3.2 OS REFLEXOS SUCESSÓRIOS QUANDO DA CONCEPÇÃO POST MORTEM A questão dos direitos sucessórios dos descendentes inseminados post mortem gera controvérsia entre os doutrinadores. 110 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 107. 111 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 323. 112 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – art. 227, § 6º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 26 abr. 2011, às 15h54min. 113 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.109. 114 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 325. 24 Muito embora os ainda não concebidos gozem, por força da presunção legal, do status de filho115, o artigo 1.798, CC, sujeita-se à interpretação de que o filho concebido por inseminação post mortem não teria reconhecido o direito sucessório, pois não estaria o nascituro ainda concebido e nem nascido no momento da abertura da sucessão.116 Conforme o disposto no artigo 1.597, inciso III, CC: “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...] III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido”. A disposição expressa no referido artigo manifesta a intenção da legislação de resguardar a filiação da criança gerada por inseminação póstuma, independentemente do momento do nascimento desta criança. Em contrapartida, havendo disposição testamentária a respeito, a filiação eventual seria reconhecida e o filho considerado herdeiro.117 A previsão testamentária, disposta no artigo 1.799, inciso I, CC, resolveria a discussão, pois com a indicação da prole eventual pelo testador não restaria dúvidas de que esse filho sucederia.118 O Projeto de Lei n° 90/99, embora ainda não aprovado, estabeleceu em seu artigo 15, parágrafo 2º, inciso III, que será obrigatório o descarte de gametas nos casos de falecimento do doador, sendo ressalvada a hipótese em que o doador tenha autorizado, em testamento, a utilização póstuma de seus gametas pela esposa ou companheira. Mesmo não havendo legislação específica a respeito da inseminação póstuma, a Resolução nº 1.358/92 estabelece, em seu item V, n. 3, que o casal no momento da criopreservação deverá manifestar, por escrito, o destino a ser dado aos pré-embriões, inclusive na hipótese do falecimento de um ou ambos os cônjuges ou companheiros. Quanto ao prazo a ser observado, alguns autores119 entendem pela observância de dois anos após a abertura da sucessão, como se aplica no caso de filiação eventual, 115 GOMES, Renata Raupp. A relevância da bioética na construção do novo paradigma da filiação na ordem jurídica nacional. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 350. 116 ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. Técnicas de reprodução assistida e biodireito. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, v. 11, n. 55, ago.-set. 2009, p. 23. 117 ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. Técnicas de reprodução assistida e biodireito. . Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, v. 11, n. 55, ago.-set. 2009, p. 23. 118 FREITAS, Douglas Phillips. Reprodução assistida após a morte e direito de herança. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, v. 11, n. 55, ago.-set. 2009, p. 8. 119 Tanto Rodrigo Santos Neves como Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior posicionam-se pela observância do prazo de dois anos, fazendo analogia ao prazo obedecido nos casos de prole eventual (ver: NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 108-109; e ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. Técnicas de reprodução assistida e biodireito. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, v. 11, n. 55, ago.-set. 2009, p. 23). 25 conforme o disposto no artigo 1.800, parágrafo 4º120, do Código Civil, mas outros, como Maria Berenice Dias não entendem assim. Portanto, entende-se que o filho biológico concebido post mortem seria considerado herdeiro legítimo necessário, pois o desejo do genitor decorreu de um planejamento realizado ainda em vida e que não deveria ser revogado pela sua morte, independentemente de prazos preestabelecidos.121 Confirmando o que foi dito, para alguns autores, seria desnecessária a autorização prévia e a posterior previsão em testamento, pois entendem que, ao autorizar o procedimento de recolhimento de material genético (a Resolução n° 1.358/92, do CFM, estabelece que a autorização deva ser por escrito) e a futura inseminação artificial homóloga, o doador já estaria demonstrando o seu desejo de procriar.122 Ante a ausência de lei específica sobre o assunto, recomenda-se a disposição em testamento sobre o material genético depositado e o reconhecimento deste filho como herdeiro testamentário.123 O princípio da igualdade entre os filhos poderia fundamentar o reconhecimento da sucessão legítima ao indivíduo concebido através da inseminação post mortem, pois o referido dispositivo veda qualquer distinção de tratamento entre os filhos, independentemente da origem do vínculo de filiação.124 120 Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz. § 1º Salvo disposição testamentária em contrário, a curatela caberá à pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro, e, sucessivamente, às pessoas indicadas no art. 1.775. § 2º Os poderes, deveres e responsabilidades do curador, assim nomeado, regem-se pelas disposições concernentes à curatela dos incapazes, no que couber. § 3º Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador. § 4º Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos. 121 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 117. 122 MORAIS, Daniele Reis de. Inseminação artificial homóloga post mortem e o direito à sucessão legítima. Disponível em: <http://analgesi.co.cc/html/t46507.html>. Acesso em: 29 abr. 2011, 18h. 123 MORAIS, Daniele Reis de. Inseminação artificial homóloga post mortem e o direito à sucessão legítima. Disponível em: <http://analgesi.co.cc/html/t46507.html>. Acesso em: 29 abr. 2011, às 18h. 124 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de Direito das Sucessões (de acordo com a Lei n. 11.441/07). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 109. 26 No Brasil, a 13ª Vara Cível de Curitiba125 (PR), em maio de 2010, concedeu liminar autorizando a professora Katia Lenerneier126 a utilizar o sêmen de seu falecido marido na tentativa de engravidar.127 O reconhecimento de amplos direitos ao filho concebido através de fecundação póstuma se consubstancia na Constituição, pois o princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no artigo 1º, e é reforçado em inúmeras outras disposições constitucionais, demonstrando sua importância no ordenamento jurídico brasileiro. Neste caso, ao não ser respeitado o princípio da dignidade se estaria afrontando também outros princípios, pois este princípio fundamenta todos os outros, como, por exemplo, o planejamento familiar, que se funda neste e na paternidade responsável (art. 226, parágrafo 7º, CF). O sistema jurídico brasileiro reconhece como entidades familiares a união estável, o casamento e a entidade monoparental, sendo o planejamento familiar uma livre escolha do casal. Em decorrência disso, parece inadmissível a existência de norma proibitiva à inseminação artificial post mortem, pois esta concepção faria parte de um projeto de vida em comum anterior. Este ato legitima e legaliza a inseminação post mortem, reconhecendo os efeitos jurídicos ao concebido. Sendo assim, a criança concebida de forma póstuma será descendente biológico do falecido, sendo reconhecido através do disposto no artigo 1.597, inc. III, CC, e seus direitos serão assegurados pela aplicação do princípio da igualdade, pois, como foi dito, esta criança será tão filha quanto os outros descendentes, não se admitindo qualquer exceção à regra. 125 Processo número: 27862/2010. Número unificado: 0027862-73.2010.8.16.0001. Autora: KATIA
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