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Correlações Clinicopatológicas: Exemplos Selecionados de Lesão e Necrose Celulares Tendo revisto brevemente as causas, morfologia e mecanismos da lesão celular e da morte celular por necrose, descreveremos agora algumas formas comuns e clinicamente relevantes de lesão celular que tipicamente culminam em necrose. Esses exemplos ilustram muitos dos mecanismos e sequência de eventos da lesão celular, descritos anteriormente. Lesão Isquêmica e Hipóxica A isquemia é o tipo mais comum de agressão celular em medicina clínica e que resulta da hipoxia provocada pela redução do fluxo sanguíneo, geralmente devido a uma obstrução mecânica arterial. Ela também pode ser causada por redução da drenagem venosa. Ao contrário da hipoxia7, durante a qual a produção de energia através da glicólise anaeróbica continua, a isquemia também compromete o fornecimento de substratos para a glicólise. Assim, nos tecidos isquêmicos, não apenas o metabolismo aeróbico é comprometido, mas a geração de energia anaeróbica também cessa depois que os substratos glicolíticos são exauridos ou quando a glicólise é inibida pelo acúmulo de metabólitos que normalmente seriam removidos pelo fluxo sanguíneo. Por essa razão, a isquemia tende a causar lesão celular e tecidual mais rápida e intensa que a hipoxia na ausência de isquemia. Mecanismos da Lesão Celular Isquêmica A sequência de eventos que se segue à hipoxia ou à isquemia reflete muitas das alterações bioquímicas da lesão celular que foram descritas e são resumidas aqui. Quando a pressão de oxigênio dentro da célula diminui, ocorre perda da fosforilação oxidativa e diminuição da geração de ATP. A depleção de ATP resulta em falha da bomba de sódio, com perda de potássio, influxo de sódio e água e tumefação celular. Ocorre também influxo de cálcio, com seus muitos efeitos deletérios. Há uma perda progressiva de glicogênio e redução da síntese de proteínas. Nesse estágio, as consequências funcionais se tornam graves. Por exemplo, o músculo cardíaco cessa sua contratilidade dentro de 60 segundos após a oclusão da artéria coronária. Observe, entretanto, que a perda de contratilidade não significa morte celular. Se a hipoxia continua, a depleção ainda maior de ATP causará deteriorações adicionais. O citoesqueleto se dispersa, levando à perda de características ultraestruturais como as microvilosidades e formação de “bolhas” na superfície celular (Figs. 2‑9 e 2‑10). “Figuras de mielina”, derivadas das membranas celulares em degeneração, são vistas dentro do citoplasma (em vacúolos autofágicos) ou no meio extracelular. Acredita‑se que elas sejam o resultado da exposição de grupos fosfatídicos que promovem a captação e a inserção de água entre pilhas lamelares de membranas. Nesse momento, as mitocôndrias estão geralmente tumefeitas, como consequência da perda do controle do volume nessas organelas; o retículo endoplasmático permanece dilatado e a célula inteira está intensamente tumefeita, com altas concentrações de água, sódio e cloreto e uma concentração reduzida de potássio. Se o oxigênio for restaurado, todas essas alterações são reversíveis. Se a isquemia persiste, sobrevêm lesão irreversível e necrose. A lesão irreversível está associada morfologicamente com a intensa tumefação das mitocôndrias, extenso dano da membrana plasmática (originando as figuras de mielina) e tumefação dos lisossomos (Fig. 2‑10C). Grandes densidades amorfas e floculentas crescem na matriz mitocondrial. No miocárdio, elas são indicação de lesão irreversível e podem já ser observadas após 30 a 40 minutos de isquemia. Ocorre então influxo maciço de cálcio para dentro da célula, particularmente se a zona isquêmica é reperfundida. A morte é principalmente por necrose, mas a apoptose também ocorre; a via apoptótica provavelmente é ativada pela liberação de moléculas pró‑apoptóticas das mitocôndrias muito permeáveis. Os componentes celulares são progressivamente degradados e há uma ampla perda das enzimas celulares para o espaço extracelular e, inversamente, entrada de macromoléculas extracelulares do espaço intersticial para dentro das células que estão morrendo. Finalmente, as células mortas são substituídas por grandes massas compostas de fosfolipídios na forma de figuras de mielina. Estas são fagocitadas por leucócitos ou degradadas posteriormente a ácidos graxos. A calcificação desses ácidos graxos residuais pode ocorrer, com formação de sabões de cálcio. Como mencionado, a saída de enzimas intracelulares e outras proteínas, através da membrana plasmática anormalmente permeável, para a corrente sanguínea, proporciona um importante indicador clínico de morte celular. Por exemplo, níveis séricos elevados da creatina‑cinase MB e troponina do músculo cardíaco são sinais precoces de infarto do miocárdio, podendo ser detectados antes que o infarto seja morfologicamente detectável. As células dos mamíferos desenvolveram respostas protetoras para lidar com o estresse hipóxico. A mais bem definida dessas respostas é a indução de um fator de transcrição denominado fator‑1 induzido por hipoxia, que promove a formação de novos vasos sanguíneos, estimula vias de sobrevivência celular e incrementa a glicólise anaeróbica. Ainda resta saber se o entendimento de tais mecanismos de detecção de oxigênio irá fornecer novas estratégias para a prevenção e tratamento da lesão celular isquêmica e hipóxica. Apesar das muitas investigações em modelos experimentais, não há ainda abordagens terapêuticas confiáveis para a redução das consequências lesivas da isquemia em situações clínicas. A estratégia que é, talvez, a mais útil nas lesões isquêmicas (e traumáticas) cerebrais e medulares é a indução transitória de hipotermia (reduzindo‑se a temperatura corporal interna a 33,3°C). Esse tratamento reduz a demanda metabólica das células agredidas, diminui a tumefação celular, suprime a formação de radicais livres e inibe a resposta inflamatória do hospedeiro. Tudo isto contribui para a redução da lesão celular e tecidual. Lesão de IsquemiaReperfusão A restauração do fluxo sanguíneo para os tecidos isquêmicos pode promover a recuperação de células, se elas foram reversivelmente lesadas, mas também pode, paradoxalmente, exacerbar a lesão e causar morte celular. Consequentemente, os tecidos reperfundidos continuam perdendo células além daquelas já irreversivelmente lesadas no final da isquemia. Esse processo, denominado lesão de isquemia‑reperfusão, é clinicamente importante porque contribui para o dano tecidual nos infartos do miocárdio e cerebral em seguida a terapias para restaurar o fluxo sanguíneo. Como ocorre a lesão de reperfusão? A resposta provável é que novos processos lesivos são desencadeados durante a reperfusão, causando a morte de células que, de outro modo, poderiam ter se recuperado. Vários mecanismos foram propostos: • Estresse oxidativo. Novo dano pode ser iniciado durante a reoxigenação por aumento da geração de espécies reativas de oxigênio e de nitrogênio. Esses radicais livres são produzidos no tecido reperfundido como resultado da redução incompleta do oxigênio pelas mitocôndrias danificadas, ou pela ação de oxidases de leucócitos, células endoteliais ou células do parênquima. Os mecanismos de defesa antioxidante celulares são comprometidos pela isquemia, favorecendo o acúmulo de radicais livres. • Sobrecarga de cálcio intracelular. Como mencionado, a sobrecarga de cálcio intracelular e mitocondrial começa durante a isquemia aguda; ela é exacerbada durante a reperfusão devido ao influxo de cálcio resultante dos danos à membrana plasmática e da lesão mediada por ERO ao retículo sarcoplasmático. A sobrecarga de cálcio favorece a abertura do poro de transiçãode permeabilidade mitocondrial com consequente depleção de ATP. Isto, por sua vez, provoca mais lesão celular. • Inflamação. A lesão isquêmica está associada com a inflamação através da liberação de “sinais de alerta” provenientes de células mortas, citocinas secretadas pelas células imunes locais, tais como os macrófagos residentes, e expressão aumentada de moléculas de adesão por células endoteliais e parenquimatosas hipóxicas, tudo isso atuando para recrutar neutrófilos circulantes para o tecido reperfundido. A inflamação provoca lesão tecidual adicional. A importância da chegada dos neutrófilos na lesão de reperfusão foi demonstrada experimentalmente pela observação de efeitos benéficos do tratamento com anticorpos que bloqueiam citocinas e moléculas de adesão, com consequente redução da saída de neutrófilos dos vasos sanguíneos. • A ativação do sistema complemento contribui para a lesão de isquemia‑reperfusão. Por razões desconhecidas, alguns anticorpos IgM possuem uma tendência a se depositarem em tecidos isquêmicos, e, quando o fluxo sanguíneo é restaurado, as proteínas do complemento ligam‑se aos anticorpos depositados e são ativadas, provocando mais lesão celular e inflamação. Lesão Química (Tóxica) A lesão química permanece como um problema frequente na medicina clínica, e é a principal limitação à terapia com fármacos. Como muitos fármacos são metabolizados no fígado, este órgão é alvo frequente da toxicidade dos medicamentos. De fato, a lesão hepática tóxica é talvez a razão mais frequente para a interrupção do uso terapêutico ou do desenvolvimento de um fármaco. Aqui, descreveremos as principais vias de lesão quimicamente induzida, com exemplos selecionados. As substâncias químicas induzem lesão celular por um dos dois seguintes mecanismos gerais: • Toxicidade direta. Algumas substâncias químicas lesam células diretamente pela sua combinação com componentes moleculares críticos. Por exemplo, no envenenamento por cloreto de mercúrio, o mercúrio se liga aos grupamentos sulfidrila das proteínas da membrana celular, causando aumento da permeabilidade da membrana e inibição do transporte de íons. Nesses casos, a maior lesão ocorre nas células que usam, absorvem, excretam ou concentram as substancias químicas — no caso do cloreto mercúrico, as células do trato gastrointestinal e do rim. O cianeto envenena a citocromo‑oxidase mitocondrial, inibindo, assim, a fosforilação oxidativa. Muitos agentes quimioterápicos antineoplásicos e antibióticos também provocam lesão celular por efeitos citotóxicos diretos. • Conversão em metabólitos tóxicos. A maioria das substâncias químicas não é biologicamente ativa na sua forma nativa, mas precisa ser convertida em metabólitos tóxicos reativos, que então agem sobre as moléculas‑alvo. Essa modificação é normalmente realizada pelas oxidases de função mista do citocromo P‑450, no retículo endoplasmático liso, no fígado e em outros órgãos. Os metabólitos tóxicos causam lesão da membrana e lesão celular principalmente pela formação de radicais livres e subsequente peroxidação lipídica; a ligação covalente direta a proteínas e lipídios da membrana também pode contribuir. Por exemplo, o tetracloreto de carbono (CCl4), que é amplamente utilizado na indústria de limpeza a seco, é convertido pelo citocromo P‑450 no radical livre altamente reativo .CCl3, que causa peroxidação lipídica e danos a muitas estruturas celulares. O acetoaminofeno, um medicamento analgésico, é também convertido a produto tóxico durante a detoxificação pelo fígado, produzindo lesão celular. (Retirado de: PATOLOGIA: Bases Patológicas das Doenças. 9ª edição. Robbins & Cotran)
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