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Trabalho apresentado nas XVI Jornadas de Epistemología e Historia de la Ciencia, Córdoba, Argentina, em outubro de 2005. Um versão reduzida foi publicada nos anais do evento: Ahumada, J., Pantalone, M. e Rodríguez, V. (eds.), Epistemología e Historia de la Ciencia, vol. 12. (Selección de trabajos de las XVI Jornadas de Epistemología e Historia de la Ciencia.) Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 2006. Hume e as crenças causais (Hume y las creencias causales) (Hume on causal beliefs) Silvio Seno Chibeni Departamento de Filosofia – IFCH – Unicamp Caixa postal 6110, 13083-970, Campinas, SP, Brasil chibeni@unicamp.br – www.unicamp.br/~chibeni Resumo: É comum hoje em dia que epistemólogos considerem a crença como uma condição necessária, embora não suficiente, para o conhecimento. Este trabalho começa salientando que, assim como Locke, Hume não adotou essa visão, tratando conhecimento e crença como pertencendo a domínios epistêmicos complementares. Em seguida, a teoria humeana da crença causal é brevemente exposta e comentada, com vistas a evidenciar seus pontos mais vulneráveis. Mostra-se, por fim, como o próprio Hume identificou e procurou sanar tais fragilidades, seja oferecendo argumentos e aclarações, seja efetivamente introduzindo modificações substanciais em sua teoria. Defende-se que o exame desses tópicos fornece apoio à interpretação naturalista da teoria epistemológica de Hume, originalmente proposta por Norman Kemp Smith no início do século XX. Resumen: En nuestros días, es frecuente que filósofos del conocimiento asuman que la creencia es una condición necesaria, pero no suficiente, para el conocimiento. Este trabajo empieza subrayando que Hume no compartió esa visión, al tratar conocimiento y creencia como perteneciendo a dominios epistémicos complementares, como ya había hecho Locke. En seguida, los trazos principales de la teoría humeana de las creencias causales son expuestos, con vistas a identificarse sus debilidades principales. Por último, se muestra cómo el propio Hume trató de sanarlas, sea ofreciendo argumentos y aclaraciones, sea efectivamente introduciendo modificaciones sustanciales en su teoría. Se defiende que el análisis de esos puntos apoya la interpretación naturalista de la teoría epistemológica humeana, originalmente propuesta por Norman Kemp Smith en comienzos del siglo veinte. Abstract: Nowadays, epistemologists often assume that belief is a necessary, though not a sufficient, condition for knowledge. This article begins by underscoring that, following Locke, Hume did not share this view, treating knowledge and belief as belonging to complementary epistemic realms. Hume’s theory of causal belief is then briefly reviewed, and some of its main weaknesses pointed out. Finally, it is shown how Hume himself tried to overcome them by offering further arguments and, more importantly, by modifying his theory in certain key aspects. It is submitted that the examination of all these topics lends support to the naturalistic interpretation of Hume’s theory of knowledge put forward originally by Norman Kemp Smith in the beginning of the 20th century. ... belief is more properly an act of the sensitive, than of the cogitative part of our natures. Hume (Tratado 1.4.1.8) 2 1. Introdução Em certas abordagens epistemológicas contemporâneas costuma-se colocar a crença como uma das condições necessárias ao conhecimento. Roderick Chisholm, por exemplo, evoca o Teeteto de Platão para propor, na primeira edição de seu conhecido livro-texto (1966, cap. 1), que busquemos caracterizar o conhecimento como a conjunção de crença, verdade e um terceiro fator, mais difícil de ser identificado; um candidato poderia ser, por exemplo, a evidência adequada. Mas assim como o personagem de Platão, Chisholm não consegue, seguindo essa linha, chegar a uma caracterização satisfatória da noção de conhecimento. Não cabe no escopo deste artigo adentrar essa complexa discussão. Basta, para nossos presentes propósitos, notar que em ambos os casos o fracasso é atribuído justamente às dificuldades relativas à terceira condição.1 Nem Platão nem Chisholm investigam a possibilidade de se partir de uma fórmula diferente para o conhecimento. Na segunda edição de seu livro, Chisholm omite a referência explícita ao Teeteto, e substitui a palavra ‘crença’ por ‘aceitação’; mas essas são alterações menores. A adesão ao esquema inicialmente sugerido continua essencialmente inalterada – esquema esse, aliás, que Chisholm agora diz representar “a concepção tradicional de conhecimento” (p. 102). Embora a associação dessa concepção ao Teeteto seja correta, sua qualificação de “tradicional” pode encobrir o fato de que houve, na história da filosofia, importantes análises do conhecimento que dela se afastaram de modo significativo. O objetivo principal deste trabalho é examinar brevemente uma dessas análises, a de David Hume, destacando, em particular, suas pioneiras investigações da própria noção de crença causal. Antes de Hume, Locke já havia formulado uma teoria do conhecimento em clara discrepância com a concepção do Teeteto. Hume aproveita alguns dos pontos centrais dessa teoria, dentre os quais destaco brevemente os seguintes:2 1) Um dos objetivos centrais da epistemologia seria o de delimitar a fronteira entre os domínios da crença e do conhecimento (Ensaio, Introdução, parágrafo 3); 2) Conhecimento requer certeza (Ensaio, IV vi 12); 3) O 1 Gettier (1963) apontou uma dificuldade adicional importante nessa abordagem. 2 Ver o Apêndice do presente artigo para mais detalhes. Em sua análise do assunto, Kemp Smith (1941, cap. 3) destaca a adesão de Hume ao ponto 4, o mais significativo para este artigo: “[...] Hume define crença em contraste com conhecimento. Conhecimento e crença são mutuamente exclusivos” (p. 68). Smith também salienta que, quanto a isso, Hume está seguindo Locke (p. 66). 3 conhecimento – ao menos o de caráter universal – deve ser obtido por meio da análise das idéias, sendo definido como “a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e repugnância de quaisquer de nossas idéias” (IV i 2); 4) Conhecimento e crença (ou fé, assentimento, opinião, “probabilidade”) são noções epistemológicas independentes, sendo da alçada de faculdades cognitivas distintas; 5) a faculdade geradora de crenças tem um caráter complementar, relativamente à que gera conhecimento (IV xiv 3-4); 6) Em nenhum caso a crença é dada como uma condição necessária para o conhecimento. 7) No estabelecimento das crenças a experiência desempenha um papel epistêmico direto, e não indireto, como no caso do conhecimento universal (em que participa apenas como fonte de idéias) . 2. Conhecimento e crença Descontando a discussão técnica sobre as idéias de espaço e tempo, feita na parte 2 do livro 1 do Tratado da Natureza Humana, Hume dedica muito pouco espaço à análise do conhecimento propriamente dito: apenas uma seção de três páginas (THN 1.3.1). E ainda assim essa seção é meramente preparatória para o extenso exame de um dos dois casos principais de crença, as crenças causais. O outro caso é o da crença na existência do mundo exterior. Como se sabe, esses dois grandes tópicos são abordados, respectivamente, nas partes 3 e 4 do livro 1 do Tratado. Essa ordem de exposição apresenta o inconveniente de levar Hume a usar, ao longo de toda sua discussão sobre a causalidade, formas de expressão que procuram ser neutras quanto ao realismo acerca dos objetos materiais. Como tal neutralidade não é inteiramente atingida – e nem poderia ser, dadas as teses defendidas na parte 4 – o texto resulta de difícil interpretação. Típica desse problemaé, por exemplo, a ambigüidade de sentido do termo ‘objeto’, que ora parece designar os supostos objetos reais do mundo, ora meramente as percepções. Os primeiros passos de Hume na direção da elaboração de sua teoria acerca da crença são dados ao identificar o que chama de “partes componentes de nossos raciocínios sobre causas e efeitos” (THN 1.1.3.4). Tais partes são três: “a impressão original” (a base do raciocínio), “a transição para a idéia da causa ou efeito a ela conectada” (a inferência), e “a natureza e qualidades dessa idéia” (a conclusão; THN 1.3.5.1). A noção de crença é crucialmente importante em todas as três partes. O inconveniente a que acabo de me referir afeta a primeira delas. Como o próprio Hume nota, quando inferimos um efeito a partir de uma causa, “temos de estabelecer a existência dessa causa” (1.3.4.1). Esse é um dos pontos 4 em que o realismo acerca do mundo exterior parece ser evocado; a afirmação não tem sentido adequado numa interpretação puramente cética.3 A causa cuja existência tem de ser estabelecida aparentemente não pode ser entendida como uma mera percepção, pois as percepções evidentemente existem qua percepções tão logo ocorram na mente. Hume prossegue, afirmando que para estabelecer a existência da causa temos só dois meios: “ou por uma percepção imediata da memória ou sentidos, ou por uma inferência a partir de outras causas” (THN 1.3.4.1). Mas a segunda via leva a um regresso infinito, que só pode ser parado por uma “impressão da memória ou sentidos, além da qual não há lugar para dúvida ou investigação” (ibid). Ora tal assertiva é duplamente intrigante. Primeiro, porque ocorre numa porção do livro na qual o leitor provavelmente ainda estará tentado a uma interpretação cética. Depois, porque a parte 4 mostrará que, ao menos para um filósofo, há muito lugar para investigação e dúvida quanto ao ponto indicado. O que pode salvar a coerência do texto de Hume é a tese, igualmente defendida na parte 4, de que uma forte crença na realidade de contrapartes reais das impressões se estabelece por um mecanismo natural da mente, independentemente de qualquer processo da razão, tal qual tradicionalmente entendida. Infelizmente, Hume nada antecipa acerca disso, limitando-se a acrescentar, na seção seguinte, estas palavras enganadoras: Parece, assim, que a crença ou assentimento que sempre acompanha a memória ou os sentidos não passa de uma vivacidade das percepções que apresentam; e que somente isso os distingue da imaginação. Crer é, neste caso, sentir [feel] uma impressão imediata dos sentidos, ou uma repetição dessa impressão na memória. É a mera força e vivacidade da percepção que constitui o primeiro ato do julgamento e estabelece a base do raciocínio que sobre ela construímos quando rastreamos [trace] a relação de causa e efeito. (THN 1.3.5.7) Como se nota pelo estudo da parte 4 do livro 1, o referido mecanismo natural de geração de crenças na realidade exterior é extremamente complexo, longe estando, portanto, de consistir da “mera força e vivacidade da impressão”. Limitações de espaço não me permitem examinar esse ponto neste trabalho, que se concentrará, de agora em diante, no caso das crenças causais.4 3 É claro que aqui estou tomando partido numa polêmica bem conhecida. Para uma posição diferente, ver por exemplo a influente crítica de Winkler 1991. Infelizmente, não disponho de espaço para estabelecer um diálogo explícito com os defensores da interpretação cética tradicional. 4 Sobre a crença na realidade dos objetos materiais, gostaria de destacar que, já na parte 3, seção 9, Hume fala da existência de “dois sistemas de realidade”: o formado pelos objetos das impressões e das idéias de 5 3. As crenças causais Retomando a questão das partes componentes dos raciocínios causais, o próximo item examinado por Hume – e desta vez de forma detalhada – é o das inferências causais propriamente ditas, ou nos seus termos, a “inferência da idéia a partir da impressão” (THN 1.3.6, título). Esse assunto é por demais conhecido, de modo que aqui me limitarei a lembrar a conclusão a que Hume chega: Tal inferência “não está suportada por nenhum raciocínio ou processo do entendimento” (EHU 5.2). Todavia, isso não parece significar, para Hume, o abandono de toda esperança de fundamentação das inferências causais. Notando que dessas inferências “depende quase todo o nosso conhecimento”, Hume acrescenta: “Se a mente não é levada a efetuar esse passo por argumentos, tem de ser induzida por algum princípio de igual peso e autoridade” (ibid). Tal princípio é identificado como o “Costume ou Hábito” (EHU 5.5), que se estabelece na mente a partir da observação da conjunção regular de objetos ou eventos do mesmo tipo. A forma de abordar o assunto no Tratado deixa mais claro que esse princípio coincide com um dos três princípios de associação de idéias, já estudados na parte 1 (seção 4).5 Vejamos uma das passagens relevantes: A razão nunca pode nos mostrar a conexão de um objeto com outro, embora auxiliada pela experiência, e pela observação de sua conjunção constante em todos os casos passados. Portanto, quando a mente passa da idéia ou impressão de um objeto para a crença ou idéia de outro, não é determinada pela razão, mas por certos princípios que associam as idéias desses objetos, e os une na imaginação [imagination]. Se as idéias não possuíssem na imaginação [fancy] mais união do que os objetos possuem no entendimento, jamais poderíamos extrair nenhuma inferência de causas para efeitos, nem depositar crença em nenhuma questão de fato [não observada]. A inferência depende, pois, unicamente da união de idéias. (1.3.6.12; os destaque são meus.) A passagem salienta o papel crucial da imaginação nas inferências causais e na formação da correspondente crença. Essa proposta é extremamente inovadora, por assinalar uma função por assim dizer cognitiva a uma faculdade usualmente associada a outros memória, e o que se conecta a ele “pelo costume, ou, se quiser, pela relação de causa e efeito” (THN 1.3.9.3). No fim do parágrafo seguinte há uma famosa passagem, que parece indicar uma interpretação não realista para todas essas referências à realidade. 5 Para uma posição divergente sobre o que acabo de dizer, ver Monteiro 2000. 6 domínios, como por exemplo a literatura. O próprio Hume classifica a proposta como uma “hipótese” (EHU 5.5, THN 1.3.9.1-2), e procura comprová-la por meio de considerações diversas. Não me aterei aqui aos detalhes dessa tentativa de comprovação; limito-me a registrar a natureza sui generis da proposta, notando que seu caráter extraordinário certamente favoreceu a interpretação cética da teoria humeana das crenças causais. Essa interpretação começou a ser questionada no século XX, a partir dos trabalhos de Kemp Smith, que sugeriram, em seu lugar, uma interpretação naturalista da epistemologia de Hume.6 A noção-chave para Smith é a de crença natural.7 Tratar-se-ia, segundo ele, de uma crença que não é o fruto do trabalho racional da mente sobre um corpo de evidências, mas que resulta de certos mecanismos mentais naturais. Antes de inspecionar brevemente os textos de Hume capazes de apoiar essa sugestão, chamo a atenção, num plano bastante geral, para a forma pela qual ele se refere ao princípio do hábito nas passagens citadas da Investigação sobre o Entendimento Humano. Primeiro, como já notei, Hume afirma que desse princípio “depende quase todo o nosso conhecimento”, e que “Se a mente nãoé levada a efetuar esse passo por argumentos, tem de ser induzida por algum princípio de igual peso e autoridade”. Depois, logo após anunciar o princípio, acrescenta: O costume é, pois, o grande guia da vida humana. É apenas ele que torna a nossa experiência útil para nós, e nos faz esperar, no futuro, uma seqüência de eventos similar às que nos apareceram no passado. Sem a influência do costume seríamos totalmente ignorantes acerca de toda questão de fato que se estenda além do que está imediatamente presente à memória e aos sentidos. Nunca saberíamos como ajustar os meios para os fins, ou empregar nossos poderes naturais na produção de qualquer efeito. (EHU 5.6) Os termos que grifei nessas citações são termos epistêmicos fortes, que parecem indicar que, como sugeriu Goodman (1954, pp. 60-64), Hume está falando sério quando apresenta sua teoria das inferências e crenças causais. Sugerem, ademais, uma certa flexibilização da noção de conhecimento, de modo a incluir algo fora do domínio das relações de idéias propriamente ditas. 6 Smith 1905, 1941. Entre os proponentes de uma interpretação não-cética, ou de um ceticismo mitigado, estão Nelson Goodman, John Wright, Edward Craig, Galen Strawson e João Paulo Monteiro; ver referências no final. Para uma crítica relevante, ver Winkler 1991. 7 “Essa doutrina da crença natural é uma das mais essenciais, e talvez a mais característica doutrina na filosofia de Hume” (1941, p. 86). 7 Após isso, Hume passa a detalhar a teoria, investigando a natureza das crenças causais. Em ambos os livros, começa notando que a crença não pode resultar de uma idéia especial que se anexe à idéia do objeto no qual se crê, pois caso contrário, dada a liberdade da imaginação de unir idéias, poderia crer no que quisesse (THN 1.3.7.2; EHU 5.10). O que distingue a crença da simples imaginação não reside, portanto, “nas partes ou composição da idéia que concebemos. Segue-se daí que a distinção tem de estar na maneira pela qual concebemos o objeto” (THN 1.3.7.2). No Tratado, o próximo passo dado por Hume é notar, no parágrafo seguinte, que o problema de saber “em que consiste a diferença entre crer e não crer em uma proposição” é fácil de resolver quando se trata de proposições “provadas por intuição ou demonstração”. Nesse caso, a pessoa que acredita em uma proposição “não apenas concebe as idéias de acordo com a proposição, mas está determinada a concebê-las daquele modo particular [...]. Não é possível à imaginação conceber algo contrário a uma demonstração.” No caso, porém, das proposições sobre questões de fato esse critério da “necessidade absoluta” não tem lugar: a imaginação pode conceber tanto uma proposição quanto sua negação, sendo necessário um outro critério (THN 1.3.7.3). Essa etapa da análise é omitida na Investigação. Diferentemente de outras tantas omissões, essa é claramente apropriada, pois a aplicação da noção de crença ao domínio das relações de idéias conflita com os princípios da epistemologia humeana. Já ressaltei anteriormente que, para Hume, os domínios das relações de idéias e das questões de fato são do âmbito exclusivo, respectivamente, do conhecimento e da crença. Como notou Kemp Smith, para Hume “Falar em crer [numa certa relação de idéias, como 3 + 2 = 5] não tem sentido; isso é conhecido” (1941, p. 66). Felizmente, essa passagem do Tratado é isolada, não tendo, aparentemente nenhum desdobramento. Seja como for, o problema está no início da passagem; seu final aponta para uma conclusão válida: as crenças sobre questões de fato – relações causais e realidade dos corpos – não se estabelecem por um critério intelectual. Na seção seguinte (THN 1.3.7), Hume prossegue investigando o que caracterizaria a “maneira” especial pela qual as idéias dos objetos em que se acredita são concebidas. Propõe então que o sentimento especial que constitui a crença é simplesmente uma maior “força e vivacidade” da idéia em questão: Uma opinião ou crença pode, portanto, ser mais precisamente definida como uma idéia vívida relacionada ou associada a uma impressão presente (THN 1.3.7.5; ver tb. 1.3.9.2). 8 Dedica-se, em seguida, a detalhar a sugestão, indicando um mecanismo pelo qual essa vivacidade se acrescenta à idéia. Propõe, como uma máxima empírica geral da ciência da natureza humana, que “quando uma impressão qualquer se nos torna presente, não apenas transporta a mente para as idéias a ela relacionadas, mas igualmente comunica-lhes parte de sua força e vivacidade” (THN 1.3.8.2). Enumera então uma série de “experimentos” para apoiar essa máxima, referentes a casos de associação de idéias por semelhança, contigüidade e causação. Veremos a seguir que parte das objeções que se podem levantar à teoria humeana da crença causal derivam justamente dessa proposta quanto ao seu mecanismo de formação. 4. Dificuldades da teoria humeana das crenças causais As dificuldades principais dessa teoria das crenças causais foram apontadas pelo próprio Hume. Embora ele tenha procurado lhes dar resposta, acabaram levando-o a modificar substancialmente a teoria, tanto no Apêndice do Tratado como na Investigação. 1ª objeção: Avivamento de idéias pela semelhança e contigüidade. Dado que as relações de semelhança e contigüidade estão, ao lado da de causa e efeito, na base de princípios de associação de idéias, sendo capazes não apenas de transportar a imaginação de uma idéia a outra, mas também de conferir vivacidade adicional às idéias associadas às impressões presentes, poder-se-ia objetar à teoria proposta que a crença deve resultar também de tais relações, e não apenas da de causa e efeito, como mostra a experiência (THN 1.3.9.2). Resposta: No Tratado,8 um primeiro passo dado por Hume para rebater esse desafio consiste em esclarecer que ele apontou o poder que as relações de semelhança e contigüidade têm de avivar idéias “a fim de confirmar, por analogia, [sua] explicação de nossos juízos acerca de causas e efeitos” (THN 1.3.9.2). Isso, evidentemente, não resolve o problema. Mas Hume não pára aí, acrescentando que há dois “sistemas de realidades”: o das impressões e idéias da memória e o que se conecta a este pelo costume, ou, se preferirmos, por causa e efeito (THN 1.3.9.3-4). Hume assevera agora que “se o objeto contíguo ou semelhante for inserido neste [segundo] sistema de realidades, não há duvida de que essas relações [de semelhança e contigüidade] auxiliarão a relação de causa e efeito, implantando a idéia relacionada com mais força na imaginação.” Ele reconhece que mesmo onde o objeto 8 Na Investigação o tratamento dessa objeção é feito em EHU 5.13-20, e não apresenta novidades relativamente ao que está no Tratado. 9 relacionado é apenas imaginado [feigned] aquelas duas relações “servirão para avivar a idéia” (THN 1.3.9.5). No entanto, quando isoladas da relação de causalidade as relações de semelhança e contigüidade têm influência “muito fraca e incerta”, incapaz de levar à crença (THN 1.3.9.6). Isso porque a mente pode variar livremente os objetos assemelhados e contíguos; ela nunca está determinada a imaginar sempre os mesmos objetos. Já no caso da relação de causa e efeito “os objetos que apresenta são fixos e inalteráveis” (THN 1.3.9.7). 2ª objeção: Avivamento de idéias pela “educação”. Uma segunda dificuldade para a teoria humeana provém do fato de que a repetição na mente de “uma mera idéia desacompanhada” também pode avivá-la (THN 1.3.9.16). Esse processo de repetição ocorre principalmente na educação, sendo sob esse título que Hume desenvolve sua análise. Ele reconhece que tambémaqui há um tipo de hábito. Esse “hábito”, afirma Hume, “não apenas se aproxima, em sua influência, daquele que resulta da união constante e inseparável de causas e efeitos, mas pode mesmo, em muitas ocasiões, sobrepujá-lo” (THN 1.3.9.17; grifei). Feitas tais concessões, não teriam essas crenças produzidas pela educação as mesmas credenciais epistêmicas que as crenças causais? Resposta: Curiosamente, Hume inicia sua resposta propondo que o fenômeno da educação na verdade corrobora sua tese sobre a natureza da crença, ou seja, crença como vivacidade: Aqui temos não apenas de dizer que a vivacidade da idéia produz crença, mas também que são inseparavelmente a mesma coisa. A repetição freqüente de uma idéia implanta-a na imaginação; porém jamais poderia, de si própria, produzir crença se tal ação da mente estivesse [...] anexada apenas a um raciocínio e comparação de idéias. (THN 1.3.9.17) Hume admite ainda que “mais da metade das opiniões que prevalecem na Humanidade se deve à educação”, e que a crença que resulta da educação “tem quase a mesma fundação – o costume e a repetição – que nossos raciocínios acerca de causas e efeitos” (THN 1.3.9.19). A única sugestão que dá no sentido de resolver, e não aprofundar ainda mais a objeção, é que a educação “é uma causa artificial” de crença (ibid.; grifei). Essa observação parece interessante. Mas suscita o problema de estabelecer a distinção entre crenças que resultam de causas naturais e crenças que têm causas artificiais. Uma pista para resolver o problema é dada pelo próprio Hume logo em seguida, quando observa que, no caso da educação, “suas máximas muitas vezes são contrárias à razão e também umas às outras, em diferentes épocas e lugares” (ibid.). Essa variabilidade dos objetos de crença deve ser contrastada com o que 10 ocorre no caso das crenças causais. Note-se que o fator evocado para desqualificar as crenças aqui é essencialmente o mesmo que o do caso anterior. 3ª objeção: Avivamento das idéias pelas paixões e pela imaginação. Na seção THN 1.3.10, intitulada “Da influência da crença”, Hume identifica dois outros fatores que podem, como a transfusão de vivacidade ao longo de uma relação causal, avivar idéias: as paixões e a imaginação. Quanto ao primeiro fator, Hume nota que assim como as crenças têm por efeito “elevar uma mera idéia a uma posição de igualdade com relação às nossas impressões, e conferir-lhe influência semelhante sobre as paixões” (3), estas podem, a seu turno, avivar as idéias, levando ao surgimento de crenças, num processo que se “assemelha às inferências extraídas da experiência” (4). Quanto à imaginação, sua influência sobre as crenças também é mútua. Assim, podemos observar não apenas que a crença confere vigor à imaginação, mas também que uma imaginação vigorosa e forte é, dentre todos os talentos, o mais próprio para produzir crença e autoridade. É difícil abster-nos de assentir àquilo que se pinta com todas as cores da eloqüência; e a vivacidade produzida pela fantasia [fancy] é, em muitos casos, maior do que a que surge do costume e da experiência. (THN 1.3.10.8). Isso se torna particularmente evidente no caso da loucura (9). Ora, ao referir-se, com evidente desconforto, a esse segundo fator de avivamento de idéias, Hume não estaria admitindo uma tensão interna em sua teoria, visto que anteriormente havia proposto justamente que a imaginação era a faculdade responsável pelas associações causais, e portanto pelas crenças causais, que ele não pretende desqualificar? Resposta: Há aqui menos clareza do que nos casos anteriores acerca do modo pelo qual Hume procura enfrentar a objeção. Uma solução interessante talvez possa ser encontrada ao longo da análise de Kemp Smith (1941, apêndice ao cap. XXI). Ele propõe que Hume usa o termo ‘imaginação’ em dois sentidos distintos. O primeiro é o sentido novo e específico introduzido por Hume no âmbito de sua teoria das crenças causais. O segundo, o sentido popular, original do termo. Agora a inspeção dos casos mencionados por Hume nesta seção THN 1.3.10 evidencia que, ao apontar a dificuldade, ele está falando neste segundo sentido, portanto da imaginação dos poetas, dos mentirosos e dos loucos. Smith lembra, a tal respeito, esclarecedora passagem da quarta parte do livro 1 do Tratado, na qual Hume faz a distinção entre “princípios permanentes, irresistíveis e universais – tais como a transição costumeira 11 das causas aos efeitos e dos efeitos às causas – e os princípios variáveis, fracos e irregulares”, tais como os envolvidos nos casos ordinários do uso da palavra ‘imaginação’. 9 5. Impacto das dificuldades na reformulação da teoria humeana das crenças causais As três objeções mencionadas levam Hume a efetivamente abandonar a tese inicialmente proposta no Tratado, de que o critério exclusivo da crença é a vivacidade.10 Assim, no Apêndice Hume acrescenta três parágrafos que modificam substancialmente essa tese. Tanto na poesia como na loucura, diz Hume, a vivacidade das idéias não deriva das particulares situações ou conexões dos objetos dessas idéias, mas da têmpera e disposição presentes da pessoa. Não importa, porém, qual seja o grau a que se eleve essa vivacidade, é evidente que na poesia ela nunca tem a mesma sensação [feeling] do que aquela que surge na mente quando raciocinamos, com base embora na mais baixa das espécies de probabilidade. A mente pode facilmente distinguir uma da outra; e seja qual for a emoção que o entusiasmo poético dê aos espíritos, ainda será apenas um fantasma [phantom] de crença ou persuasão. [...] Uma descrição poética 9 O parágrafo inteiro no qual está a passagem é o seguinte: “Pode-se aqui objetar que, como a imaginação, segundo eu mesmo admito, é o juiz último de todos os sistemas filosóficos, eu estaria sendo injusto ao condenar os filósofos antigos por fazerem uso daquela faculdade, e por se deixarem guiar inteiramente por ela em seus raciocínios. Para me justificar, devo fazer uma distinção, na imaginação, entre os princípios permanentes, irresistíveis e universais – tais como a transição costumeira das causas aos efeitos e dos efeitos às causas — e os princípios variáveis, fracos e irregulares – como os que acabo de mencionar. Os primeiros são o fundamento de todos os nossos pensamentos e ações, de tal forma que, se eliminados, a natureza humana imediatamente pereceria e desapareceria. Os últimos não são nem inevitáveis à humanidade, nem necessários, ou sequer úteis para a condução da vida; ao contrário, observa-se que só têm lugar em mentes fracas e que, como se opõem aos outros princípios, do costume e do raciocínio, podem facilmente ser anulados por um contraste e oposição adequados. Por essa razão, os primeiros são aceitos pela filosofia, e os últimos rejeitados. A pessoa que conclui que há alguém por perto, quando ouve no escuro uma voz articulada, raciocina de maneira correta e natural; embora tal conclusão derive apenas do costume, que fixa e dá mais vida à idéia de uma criatura humana, em virtude de sua conjunção usual com a impressão presente. Mas a pessoa que, sem saber por que, é atormentada pelo temor de espectros na escuridão, desta também podemos dizer, talvez, que está raciocinando, e raciocinando de uma maneira natural; mas neste caso deve ser no mesmo sentido em que dizemos que uma doença é natural – porque deriva de causas naturais, apesar de ser contrária à saúde, que é a situação mais agradável e mais natural do homem.” (THN 1.4.4.1; trad. de Déborah Danowsky). 10 Neste artigo estou tratando especificamente das crenças causais. Creio, porém, que o que acaba de ser dito vale igualmente para a crença na realidade domundo exterior, conforme indiquei brevemente no último parágrafo da seção 2. 12 pode [..] exibir o objeto diante de nós em cores mais vívidas [do que uma narrativa histórica]. As idéias que apresenta, porém, são diferentes para a sensação [feeling] relativamente àquelas que provêm da memória e do julgamento. Há algo fraco e imperfeito no meio de toda aquela aparente veemência de pensamento e sentimento que acompanha as ficções da poesia. (THN 1.3.10.10) Essa tentativa de caracterizar a crença como uma certa sensação especial prossegue na Investigação (5.11-13). Ali, Hume admite que não parece ser possível definir esse sentimento, do qual “todo homem está consciente a todo momento”, sendo apenas possível descrevê-lo por meio de uma multiplicidade de termos. A vivacidade continua sendo uma noção central aqui, porém não mais exclusiva. Ao concluir a discussão desse ponto, Hume resume sua posição: Assumamos, então, toda a extensão dessa doutrina, admitindo que o sentimento de crença não passa de uma concepção mais intensa e estável do que a que acompanha as meras ficções da imaginação, e que essa maneira de conceber surge da conjunção costumeira do objeto com algo presente à memória ou sentidos. (EHU 5 13; grifei o ‘e’.) Nota-se aqui não apenas a referência à estabilidade, ao lado da intensidade, mas também a condição expressa de que o referido sentimento surja da conjunção regular de fenômenos. Isso parece apoiar a interpretação de Kemp Smith, de que o que mais importa para estabelecer crenças causais genuínas é essa base experimental objetiva: Ao dizer que o costume é rei, Hume deixou em aberto a questão importantíssima de saber quando sua soberania é legítima e quando é usurpada, quando deve ser lealmente aceita, e quando deve ser questionada. [...] A posição real de Hume não é a de que o costume (ou o hábito), enquanto tal, é rei: de modo algum ele pode reclamar para si tal dignidade. É a experiência – e o costume apenas na medida em que se conforme a ela, e seja o seu resultado – que é, e deve ser, a instância terminal de apelo, uma corte de apelação que torna possível a distinção entre aqueles costumes e hábitos que são seguros e benéficos e aqueles que não são. A experiência nesse sentido normativo é a que [Hume] se propôs a definir e delimitar; e a pista que segue em sua análise das inferências [causais] é a relação causal vista como uma relação filosófica, isto é, como uma relação que tem como características a invariabilidade, e conseqüente universalidade de aplicação. (1941, pp. 382-383) Smith propõe, ademais, que a experiência não pode ser tomada aqui como uma experiência bruta, necessitando depuração racional: Somente por meio de um exame refletido podem as uniformidades que são verdadeiramente causais ser distinguidas daquelas que, repousando em combinações de causas contingentemente determinadas, podem variar a qualquer momento. (1941, pp. 385-386) 13 Essa a razão, segundo Smith, pela qual mesmo tendo introduzido elementos naturalistas essenciais em sua epistemologia Hume não pôde abrir mão da reflexão crítica, da permanente vigilância cética (1941, pp. 129-132, 378, 383-388). Não cabe à razão estabelecer crenças, nem tem ela o poder de aniquilá-las completamente (como Hume tantas vezes insistiu11), mas pode e deve assumir um papel de controle das crenças, evitando que se estabeleçam com base em “princípios variáveis, fracos e irregulares”, como os que se fazem presentes nos casos da mera semelhança ou contigüidade, da educação, da credulidade, do entusiasmo poético e da loucura. Naturalmente, muito haveria ainda a ser examinado quanto à concepção humeana de crença, não apenas para cobrir áreas inteiras que não foram abordadas neste trabalho (como por exemplo as crenças parciais que ocorrem no âmbito das “probabilidades”), ou o foram muito brevemente (a crença no mundo exterior), mas também para investigar possíveis limitações na interpretação aqui favorecida. 11 Veja-se, por exemplo, esta famosa passagem do Tratado: “A natureza, por uma necessidade absoluta e incontrolável, determinou-nos a julgar, assim como a respirar e a sentir. [...] Quem quer que tenha se dado ao trabalho de refutar as cavilações desse ceticismo total na verdade debateu sem antagonista, e fez uso de argumentos na tentativa de estabelecer uma faculdade que a natureza já havia antes implantado em nossa mente, tornando-a inevitável. [...] Minha intenção, portanto, ao expor tão cuidadosamente os argumentos dessa seita extravagante, é apenas sensibilizar o leitor para a verdade de minha hipótese: que nossos raciocínios acerca de causas e efeitos derivam unicamente do costume; e que a crença é mais propriamente um ato da parte sensitiva que da parte cogitativa de nossa natureza. (1.4.1.7-8; trad. D. Danowsky). E na seção final da Investigação, criticando o “pirronismo, ou ceticismo excessivo” (EHU 12.24), Hume observa: “É verdade que há poucos motivos para temer tamanha fatalidade [a aniquilação da vida humana], pois a natureza é sempre bastante forte para sobrepujar quaisquer princípios [filosóficos]. E embora um pirrônico, com seus raciocínios profundos, possa lançar a si próprio e a outros em uma perplexidade e confusão momentâneas, a primeira e mais banal ocorrência da vida porá em fuga todas as suas dúvidas e hesitações, e deixá-lo-á em posição exatamente semelhante, em tudo o que diz respeito à ação e especulação, à dos filósofos de qualquer outra seita, ou daqueles que nunca se envolveram em investigações filosóficas. Quando desperta de seu sonho, ele é o primeiro a rir-se de si mesmo e a confessar que suas objeções são puro entretenimento, e só tendem a mostrar a estranha condição da humanidade, que está obrigada a agir, a raciocinar e a acreditar sem ser capaz, mesmo pelas mais diligentes investigações, de convencer-se quanto às bases dessas operações, ou de afastar as objeções que podem ser levantadas contra elas.” (EHU 12.23; trad. J. O. Marques, com adaptações) 14 Apêndice: Conhecimento e crença em Locke No manuscrito da página inicial do famoso livro de Locke seu título era: An Essay concerning the Understanding, Knowledge, Belief and Assent.12 A palavra ‘Belief’ está riscada, aparecendo acima dela o termo ‘Opinion’. Essa alteração provavelmente se deve a alguma questão de estilo, visto que no corpo da obra os termos são usados como sinônimos, como se nota explicitamente, por exemplo, em IV xv 3. Feito esse esclarecimento terminológico, passo ao que mais interessa, ou seja, a forma pela qual as noções de crença e conhecimento são entendidas por Locke. Já no parágrafo 3 da Introdução do Ensaio, Locke conclui, a partir de algumas considerações iniciais, que vale a pena investigar os limites entre opinião e conhecimento; e examinar por que medidas devemos regular nosso assentimento [...] nas coisas acerca das quais não podemos ter conhecimento certo. Esse o objetivo central do Ensaio, conforme Locke indica detalhadamente em seguida. Primeiro, diz que pesquisará a origem das idéias (o que faz nos livros I e II); depois, que procurará “mostrar que conhecimento o entendimento tem por meio dessas idéias; e a sua certeza, evidência e extensão” (livro IV, caps. i a xiii); por fim, que fará “alguma investigação sobre a natureza e bases da fé ou opinião”, que Locke entende como “aquele assentimento que damos a uma proposição como sendo verdadeira, mas acerca de cuja verdade não possuímos conhecimento certo [...]” (IV, xiv a xvi). Tal programa é cumprido estritamente no restante da obra. Destaco, por dizer respeito diretamente ao assunto destas notas, os seguintes pontos: 1. Locke entende o conhecimentocomo requerendo certeza.13 Nisso ele segue uma antiga tradição, que, como se sabe, se prolongaria ainda até o início do século XX. 2. Locke propõe que o conhecimento é obtido por meio da análise das idéias. Assim, já no início do livro IV, intitulado “Do conhecimento e opinião”, adota a seguinte definição de conhecimento: Conhecimento parece-me não ser senão a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e repugnância de quaisquer de nossas idéias. Ele consiste somente nisso. Onde há essa percepção, aí existe 12 Essa porção do manuscrito é reproduzida na capa de Ayers 1991. 13 Há inúmeras indicações nesse sentido ao longo do Ensaio. Veja-se, por exemplo, esta declaração explícita em IV vi 12: “Mas isto [...] não possui aquela certeza que é requerida para o conhecimento”. Veja-se também IV iii 6 e 14. Conforme se notou na análise da epistemologia de Hume feita na parte principal deste artigo, há uma certa inclinação de Hume de flexibilizar a noção de conhecimento, de modo a incluir o que não é absolutamente certo. Kemp Smith aparentemente não concordaria com essa observação (1941, p. 66). 15 conhecimento; e onde não há, embora possamos imaginar [fancy], supor [guess] ou crer, ficaremos sempre aquém do conhecimento. (IV i 2) Note-se, incidentalmente, que segundo essa definição o conhecimento não seria diretamente empírico. Embora Locke sustente que as idéias – os “materiais do conhecimento” (II i 25) – são todas, em última instância, de origem empírica, o conhecimento propriamente dito, o conhecimento proposicional, resulta de uma operação intelectual sobre as idéias: a percepção de que “concordam” ou “discordam” entre si. Mas essas asserções exigiriam qualificações importantes, que fogem ao objetivo principal das presentes notas.14 3. Por fim, para Locke conhecimento e crença (ou fé, assentimento, opinião, ou ainda “probabilidade”) são noções epistemológicas independentes, sendo da alçada de faculdades cognitivas distintas. Que tal é o caso se pode ver não somente da forma de sua exposição – primeiro analisa o conhecimento, em todos os seus aspectos, para depois tratar, em capítulos separados, da noção de crença –, como também do conteúdo de suas análises. Em IV xiv 3, por exemplo, lemos: A faculdade que Deus deu ao homem para suprir a falta de conhecimento claro e certo nos casos em que não pode ser obtido é o julgamento. [...] E no parágrafo seguinte: Assim, a mente tem duas faculdades que lidam com a verdade e a falsidade. Primeiro, o conhecimento, pelo qual ela percebe de forma certa [...] o acordo ou desacordo de idéias. Em segundo lugar, o julgamento, que é o colocar junto, ou separar, as idéias na mente, quando seu acordo ou desacordo certo não é percebido, mas presumido [...] . Assim, para Locke a faculdade geradora de crenças tem um caráter claramente complementar, relativamente à faculdade geradora de conhecimento. Não sendo possível alcançar conhecimento sobre algo, devemos pelo menos estabelecer bases para a crença, bases que, por mais seguras, nunca fornecerão certeza. Locke dedica bastante atenção à questão de que bases seriam essas. Os detalhes de sua proposta não interessam aqui; mas devemos notar que de nenhum modo são homogêneas com as bases do conhecimento, ou seja, a percepção de 14 Da teoria epistemológica lockeana decorre que o conhecimento universal é sempre sobre relações de idéias. No caso de conhecimento particular, Locke admite que pode, em certas circunstâncias, ser diretamente empírico, versando sobre questões de fato. (Cf. e.g. esta afirmação em IV xv 5: “Se eu próprio vejo um homem caminhar sobre o gelo, isso vai além da probabilidade; é conhecimento”.) Para uma análise desse tópico, ver Chibeni 2005. 16 certas ligações intrínsecas entre as idéias. Ao contrário, como o próprio Locke nota, “O que me faz crer é algo estranho [extraneous] à coisa em que creio” (IV xv 3). Locke indica que esse algo pode ser tanto a “conformidade de uma coisa com nosso conhecimento, observação, e experiência”, ou “o testemunho de outros, comprovando sua observação e experiência” (IV xv 4). Nota-se, pois, que no estabelecimento das crenças a experiência desempenha um papel epistêmico direto, e não indireto, como no caso do conhecimento universal. Mas ainda aqui a mente tem de trabalhar sobre essa experiência – tipicamente multifária –, para determinar os graus da crença ou assentimento. E a faculdade responsável por essa tarefa é, como Locke diz explicitamente em IV xvii 2, a razão, a mesma faculdade, portanto, anteriormente indicada como a responsável pelo conhecimento, quando a percepção do acordo ou desacordo de idéias não é direta, “intuitiva”, requerendo demonstrações. Resumindo: no caso do conhecimento, a razão coopera com a intuição para estabelecer relações entre idéias; no caso da crença, a razão coopera com a experiência, entendida como fornecedora não de idéias, mas de informação sobre questões de fato. Como Locke observa, quando considerados em si próprios, sem o auxílio da razão, “os sentidos e a intuição não alcançam muito longe” (IV xvii 2). Mas em nenhum caso a crença é dada como uma etapa na obtenção do conhecimento, ou uma condição necessária para o conhecimento.15 Isso marca claramente o seu desvio relativamente ao que Chisholm diz ser a “concepção tradicional de conhecimento”. Referências AYERS, M. Locke. (2 vols. em 1) London, Routledge, 1991. CHIBENI, S. S. Locke on the epistemological status of scientific laws. Principia, 9 (1-2): 19- 41, 2005. CHISHOLM, R. M. Theory of Knowledge. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1966. 2nd. ed., idem, 1977. CRAIG, Edward. The Mind of God and the Works of Man. Oxford: Clarendon Press, 1987. GETTIER, E. L. Is justified true belief knowledge? Analysis 25: 121-123, 1963. 15 Embora Locke admita que, “por preguiça, inabilidade ou pressa” (IV xiv 3) possamos às vezes formar crenças sobre algo capaz de ser demonstrado, e portanto conhecido. Mas esses casos são espúrios, alheios à natureza epistemológica do que está em questão. 17 GOODMAN, Nelson. The new riddle of induction. In: Fact, Fiction and Forecast. 4. edição. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983. (1. ed. 1954.) LOCKE, J. An Essay concerning Human Understanding. P. H. Nidditch (ed.) Oxford, Clarendon Press, 1975. HUME, D. A Treatise of Human Nature. D. F. Norton and M. J. Norton (eds.), Oxford: Oxford University Press, 2000. ––––. Tratado da Natureza Humana. Trad. Déborah Danowski. São Paulo, Edunesp, 2000. ––––. An Enquiry concerning Human Understanding. T. L. Beauchamp (ed.), Oxford: Oxford University Press, 1999. . Investigação sobre o Entendimento Humano. Trad. José Oscar de A. Marques. São Paulo, Edunesp, 1999. MONTEIRO, J. P. Hume e a epistemologia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. ––––. Associação e crença causal em Hume. Manuscrito 23 (1): 99-120, 2000. Reproduzido em Monteiro 2003, cap. 1. ––––. Novos Estudos Humeanos. São Paulo, Discurso Editorial, 2003. SMITH, N. K. The naturalism of Hume. Mind 14: 149-73 and 335-47, 1905. ––––. The Philosophy of David Hume. London: Macmillan, 1941. STRAWSON, G. The Secret Connexion. Oxford: Clarendon Press, 1989. WINKLER, K. The New Hume. Philosophical Review 100 (4): 541-79, 1991. WRIGHT, J. P. The Sceptical Realism of David Hume. Manchester: Manchester University Press, 1983.
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