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Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2011. MEDICINA NA IDADE MÉDIA Elaine Alves Paulo Tubino A medicina na Idade Média, período compreendido desde a desintegração do Império Romano do Ocidente no ano 476 (século V) até o século XV, com a queda de Constantinopla em 1453, foi praticada em meio a grandes epidemias com centenas de milhares de vítimas. A partir do século V, os Bárbaros (povos de origem germânica que habitavam as regiões norte e nordeste da Europa e noroeste da Ásia) periodicamente devastavam a Europa e havia uma insegurança generalizada. . As Além das epidemias, contra as quais não existia tratamento eficaz, havia miséria e fome. A instabilidade política e as perturbações sociais levaram a um rápido desaparecimento da cultura, de um modo geral, e a uma desmoralização da medicina. Cresceu a desconfiança nos médicos e as pessoas se voltaram para os ritos mágicos e as crenças sobrenaturais. Nessa época, a igreja católica foi a única instituição que se manteve íntegra graças, sobretudo, à vida monástica. Na Idade Média Antiga (476- 1000) o homem instruído era quase sempre um membro do clero. . c O cristianismo, com seus conceitos de caridade e amor ao próximo, era a oportunidade de salvação para os humildes e mais desesperados. Nas epidemias, por um dever de caridade, os cristãos atendiam e cuidavam dos enfermos a despeito do perigo de contágio. Mas, embora a medicina religiosa cristã combatesse os tratamentos mágicos, não havia preocupação com os problemas médicos ou com a investigação das causas das doenças, porque se aceitava que era a vontade de Deus. A oração, a unção com óleo sagrado e a cura pelo toque da mão de um santo eram os principais recursos terapêuticos. Posteriormente, esta medicina religiosa sofrerá a influência do Oriente e se transformará na medicina monástica. O culto aos santos foi parte importante da medicina religiosa cristã. Entre os primeiros médicos cristãos que foram beatificados estão os irmãos gêmeos Cosme e Damião. São Cosme e São Damião viveram no século III, na Cilícia, Ásia Menor (atual Turquia). Médicos, eles exerciam a medicina por caridade e curavam por meio da fé; cristãos, foram perseguidos pelo imperador Diocleciano e decapitados em 303. Um dos milagres mais famosos dos gêmeos teria sido a substituição da perna ulcerada de um sacristão de cor branca pela perna de um etíope morto recentemente, tema que serviu de inspiração para muitas pinturas e iluminuras (figura 1). Juntamente com o apóstolo Lucas e São Pantaleão, São Cosme e São Damião são os santos padroeiros dos médicos. A ideia de que o doente é impuro e deve ser evitado dominou a Idade Média, como pode ser comprovado, por exemplo, pelo isolamento dos leprosos. A doença era essencialmente um castigo, mas também era fonte de purificação e redenção. Considerava-se que o sofrimento era “amigo” da alma, conceito que através dos tempos prejudicou consideravelmente o tratamento da dor. “A história da Medicina se identifica com a história da Humanidade. Do empirismo dos povos primitivos até as últimas descobertas do Nobel, a evolução da Medicina reproduz a evolução do pensamento humano. Percorrer este longo caminho é como viver uma inesperada e fascinante aventura.” Giuseppe Penso Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 2 MEDICINA BIZANTINA Enquanto isso, no Império Romano do Oriente ou Império Bizantino (figura 2), de língua grega, as atividades se concentravam cada vez mais em Bizâncio (depois Constantinopla), que se tornou o centro da cultura bizantina. A civilização bizantina era uma combinação de cultura grega clássica, leis romanas, cristianismo e influências artísticas orientais. Constantinopla era conhecida como “Nova Roma”. A medicina bizantina floresceu de 400 d.C. a 1453 d.C., sob a autoridade suprema da Igreja católica e das Sagradas Escrituras. Não fez inovações, mas reuniu o essencial das obras antigas, em particular a de Galeno. Figura 1 – Milagro de los Santos Cosme y Damián. Atribuído a Fernando del Rincón (final do século XV/início do século XVI). Museu do Prado, Madri. Figura 2 – Divisão do Império Romano, depois da morte do imperador Teodósio (395), em Império Romano do Ocidente e Império Romano do Oriente. Esta divisão vai levar a dois caminhos diferentes da medicina, após a invasão do Império Romano do Ocidente pelos Bárbaros. Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 3 Os médicos bizantinos frequentemente compilavam e padronizavam o conhecimento médico existente em livros de texto bem ilustrados. Dentre esses médicos destacaram-se ORIBÁSIO DE PÉRGAMO (c. 325-405), AÉCIO DE AMIDA (c. 502-575), que foi médico do imperador Justiniano I e PAULO DE EGINA (c. 625-690). É de particular importância o Epitome Medicale Libri Septem (Compêndio Médico em Sete Livros) escrito por PAULO DE EGINA, médico e cirurgião. O compêndio foi escrito no final do século VII e permaneceu em uso como livro de texto padrão por cerca de 800 anos. O sexto livro (dedicado à cirurgia) é de especial interesse e marco na história da cirurgia. Entre outras, há descrições originais de litotomia, trepanação, tonsilectomia, paracentese, mastectomia, cirurgia ocular e para correção de anquiloglossia e ânus imperfurado. Uma contribuição importante do Império Bizantino foi a de ser o primeiro império em que os estabelecimentos dedicados à medicina – os hospitais – se desenvolveram. Embora existissem estabelecimentos similares na Antiguidade, especialmente em Roma, chamados valetudinária, eram geralmente instituições para uso de militares. O primeiro hospital em Bizâncio foi construído por Basílio de Cesareia (c. 329-379), na Capadócia (atualmente na Turquia), no final do século IV. A conservação de muitos textos clássicos gregos, inclusive de medicina, se deve aos nestorianos. Estes seguiam a doutrina preconizada por Nestório, Patriarca de Constantinopla, de que em Jesus não havia duas naturezas e sim duas pessoas completas e distintas, a humana e a divina, que constituiam dois entes independentes. Consequentemente, consideravam que Maria não era mãe de Deus, pois gerara apenas o Cristo-homem. Excomungados como hereges no ano 431, fugiram para o Oriente e mais tarde, em 489, alguns se refugiaram em Gundishapur (ou Jundi-shapur, literalmente “jardins bonitos”), capital da Pérsia na época. Entre eles havia médicos e outros homens de ciência, que levaram consigo grande número de obras científicas escritas em grego e as traduziram, primeiro para o siríaco (dialeto do aramaico, língua semítica falada no Oriente Médio) e depois para o árabe. Em 529, com a finalidade de erradicar completamente o paganismo, o imperador bizantino Justiniano ordenou o fechamento da famosa escola de filosofia de Atenas, o que provocou outra migração de sábios gregos para Gundishapur. A cidade também recebeu fugitivos de Antióquia e de Edessa, tornando-se o refúgio para os intelectuais de várias regiões. Fundada em 271 pelo rei Shapur (Sapor) I, Gundishapur foi o centro intelectual do império sassânida (dinastia que governou a Pérsia entre 224 e 651) e sede do mais antigo hospital de ensino que se conhece, que também compreendia uma biblioteca e uma universidade. Localizava-se na atual província iraniana do Khuzistão. Quando a cidade foi conquistada pelos árabes, em 636, a escola de Gundishapur era um renomado centro médico que reunia o conhecimento grego, siríaco e indiano. A universidade foi preservada e a escola de medicina, com seu hospital, se tornou o principal centro de educação médica no mundo árabe. No século VII se estabeleceu em Gundishapurum centro de ensino superior conhecido como Academia Hipocrática. No século VIII, os árabes conquistam o norte da África e invadem a Península Ibérica. Enquanto grande parte da Europa ocidental ainda vivia em cabanas, a civilização brilhava no Oriente, em Bizâncio ou em Bagdá. As medicinas bizantina e islâmica foram os elos que permitiram a volta da medicina clássica à Europa ocidental. MEDICINA NO MUNDO ISLÂMICO Os árabes iniciaram sua expansão em 634, depois da conversão de toda a Arábia à fé islâmica. Derrotaram os persas e os bizantinos e conquistaram a Síria, a Palestina, a Mesopotâmia, o Egito, Tunis e a Península Ibérica (em 711). Os povos conquistados foram integrados ao império, mantendo alguns direitos quanto à manutenção de suas culturas e religiões. O árabe tornou-se a língua oficial comum a todo o império islâmico, incluindo a literatura filosófica e científica. A medicina árabe era pouco desenvolvida no início da expansão do Islã e se baseava principalmente nos saberes gregos, aos quais foram acrescentados os conhecimentos médicos da Pérsia, Síria, Índia e do Império Bizantino. Os califas al-Mansur, Harun al-Rashid (que ficou famoso pelas histórias das “Mil e uma noites”) e al-Ma’mun destacaram-se por patrocinar o ensino e a medicina. O apoio dos governantes Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 4 islâmicos à medicina grega dos médicos nestorianos costuma ser relacionado à cura de um problema gástrico do califa de Bagdá al-Mansur, que governou de 734 a 775, pelo médico cristão (de língua siríaca) JURJIS IBN JIBRA'IL IBN BAKHTISHU`, que atuava no hospital nestoriano de Gundishapur. Seu filho também foi chamado para Bagdá em 787, onde permaneceu até morrer em 801, como médico do califa Harun al-Rashid. Da terceira geração dessa família de médicos cristãos, JIBRA'IL IBN BAKHTISHU`, foi médico de Harun al-Rashid e dos dois califas que o sucederam em Bagdá. Por oito gerações, até a segunda metade do século XI, doze membros da família Bakhtishu`serviram aos califas como médicos e conselheiros, patrocinando a tradução dos textos clássicos e escrevendo seus próprios tratados. No final do século VIII o centro cultural de Gundishapur foi transferido para Bagdá, onde o califa abássida al-Ma’mun fundou a “Casa da Sabedoria”, na qual se traduziram todas as obras científicas de médicos e filósofos da Antiguidade como Aristóteles, Hipócrates, Galeno e Dioscórides. Em meados do século IX os árabes já conheciam o Corpus Hipocraticum na íntegra, a obra monumental de Galeno e vários textos de Aristóteles. A medicina islâmica foi uma medicina hipocrática clássica. Os médicos persas e árabes recolheram a herança grega e recusaram explicações sobrenaturais para as doenças. A partir do século X, embora tomassem por base os pressupostos de Galeno, enriqueceram a medicina clássica de origem grega com suas próprias observações. Essa tradição médica se expandiu por todo o mundo islâmico, da Pérsia (atual Irã) até a Espanha, na época sob domínio muçulmano. A medicina islâmica, no período entre a morte do profeta Maomé (632) e a reconquista de Granada pelos espanhóis (1492), ostenta uma longa lista de nomes imortais, dos quais destacaremos: RASIS (865-925) Abū Bakr Muhammad ibn Zakarīya al-Rāzi (Rhazes ou Rasis, em latim), persa, autor de 56 livros médicos, dentre os quais o livro Kitab al-mansuri – traduzido por Gerardo de Cremona (1114- 1187) com o nome de Liber de medicina ad Almansore – que trata em dez partes de toda a teoria e a prática da medicina como se conhecia na época. A tradução latina da obra tornou-se livro de consulta obrigatória durante toda a Idade Média e até o final do século XVI. Como os outros médicos islâmicos, aceitava a teoria hipocrático-galênica dos humores para explicar a doença, embora com alguns questionamentos como os citados no livro “Dúvidas sobre Galeno”. Rasis teria isolado o ácido sulfúrico e o álcool, iniciando seu uso na medicina. Introduziu o unguento mercurial e instrumentos como almofarizes, espátulas e frascos usados nas farmácias até o início do século XX. Foi médico e professor famoso, tendo escrito sobre medicina, filosofia, religião, matemática, astronomia e ciências naturais. A ele é atribuída a primeira descrição conhecida da varíola. Foi o primeiro médico a diagnosticar a varíola e o sarampo e a distinguir as diferenças entre as duas doenças. Descreveu a asma alérgica, a rinite sazonal (febre do feno) e foi também o primeiro médico a escrever um tratado sobre alergia e imunologia. Foi o primeiro a compreender que a febre é um mecanismo natural de defesa do organismo e a descrever a reação pupilar à luz. AVICENA (980-1037) Abu Ali al-Hussayn ibn Abd-Allah ibn Sina, médico, filósofo e cientista persa, nascido em Bucara (atualmente no Uzbequistão), é considerado o maior dos médicos da era islâmica. Escreveu cerca de 450 livros sobre diversos assuntos, principalmente de filosofia e medicina. Sua obra máxima foi o Kitab al-Qanun fi al-Tibb, que se conhece em latim como Liber canonis medicinae (Cânone da Medicina ou Cânone de Avicena). O Cânone da Medicina foi escrito em cinco volumes e compreendia toda a medicina, apresentada em ordem rigorosa da cabeça aos pés. Avicena adotava a teoria humoral da enfermidade e nessa obra a expõe e comenta com detalhes, mas sem qualquer modificação. O Cânone de Avicena foi o texto médico padrão na Europa ocidental durante quase cinco séculos. ABULCASIS (936-1013) Abu al-Qasim al-Zahrawi, médico e cirurgião hispano-árabe nascido em Córdoba, considerado o “pai da moderna cirurgia”. Seus textos, nos quais combinava ensinamentos clássicos greco-latinos com os conhecimentos da ciência do Oriente Próximo, foram a base dos procedimentos Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 5 cirúrgicos europeus até o Renascimento. Sua maior contribuição foi o Al-Tasrif, uma obra de trinta volumes sobre a prática médica, que foi posteriormente traduzida para o latim e usada nas escolas médicas europeias e muçulmanas por séculos. IBN AL-NAFIS (1213-1288) Ala-al-din abu Al-Hassan Ali ibn Abi-Hazm al-Qarshi al-Dimashqi, conhecido como Ibn al-Nafis, foi um médico árabe nascido em Damasco (Síria) que deu importante contribuição ao conhecimento dos princípios da circulação pulmonar. Foi o primeiro a questionar a afirmação de Galeno que o sangue passaria através do septo interventricular do coração, considerando que todo o sangue que chegava ao ventrículo esquerdo passava através dos pulmões. Também considerava que deveria haver pequenas comunicações ou poros (manafidh em árabe) entre a artéria e a veia pulmonar, antecedendo em cerca de 400 anos a descoberta dos capilares pulmonares por Marcello Malpighi. PROGRESSOS OBTIDOS PELA MEDICINA ISLÂMICA A medicina árabe trouxe progressos como novas observações clínicas, especialmente em doenças infecciosas e oculares, a ampliação da farmacopeia e a construção de hospitais. Os árabes tinham um nível elevado de conhecimentos no campo da farmácia e foram responsáveis pela ampliação da farmacopeia, acrescentando três ou quatro centenas de drogas às cerca de mil drogas medicinais conhecidas na Antiguidade clássica. Foram os primeiros a separar as artes do boticário (farmacêutico) e do médico com a criação de estabelecimentos para a venda de drogas e medicamentos, em Bagdá, no final do século VIII: as primeiras farmácias de propriedade privada. Assim, a botica é uma criação dos povos da península Arábica. A partir do século IX já havia técnicos de alta qualificação, os sayadila, dedicados exclusivamente à preparação dos medicamentos e que atuavam nos centros hospitalares. Como os médicos, havia mais de um tipo de farmacêutico: artesãos envolvidos no comércio de drogas e especiarias, boticários e confeiteiros (nas farmácias preparavam- sexaropes, mas também doces e conservas). Não existia uma separação profissional clara, de modo que todos os médicos, desde os sábios aos praticantes poderiam preparar os seus próprios medicamentos sem ter que recorrer ao serviço dos sayadila. Desde essa época há evidências de inspeção e regulamentação governamental dos farmacêuticos e vendedores de drogas e ervas. Deve ser destacada a criação dos chamados “locais para doenças”: os BIMARISTANS, pequenos hospitais para atendimentos primários e também para portadores de doenças mentais. Os tratamentos eram baseados em análises científicas dentro da tradição hipocrática. Os bimaristans eram centros de assistência e também de ensino que concediam as licenças oficiais para a atividade médica; eram construídos para proporcionar um ambiente que fosse o mais confortável possível, com muitas fontes e água corrente cujo murmúrio ajudava a relaxar e a dar conforto aos pacientes, especialmente os pacientes psiquiátricos. Desde os tempos do califa Harun al-Raschid, no século IX, que havia sido fundado um hospital em Bagdá seguindo o modelo de Gundishapur (provavelmente um bimaristan). No total, existiram por volta de 34 hospitais no território dominado pelo Islã, que eram centros de assistência e de ensino. Ao terminarem seus estudos, os alunos deviam ser aprovados em um exame aplicado pelos médicos mais velhos. Já no século IX, a medicina praticada no mundo islâmico combatia o charlatanismo, propiciava uma formação geral do médico, estimulava a observação, fomentava a saúde pública e defendia um controle central da medicina. Mas havia semelhanças com a medicina ocidental: sujeição aos autores considerados autoridades; abandono dos estudos anatômicos; desinteresse pela cirurgia; apego à cauterização; observância da tese de Galeno sobre a supuração em cirurgia (pus laudabilis, que seria um produto natural que favorecia a cura das feridas). Em meados do século XIII o poderio do Islã começou a declinar. Em 1236 o rei Fernando de Castilla conquistou Córdoba e, em 1258, Bagdá foi destruída pelos mongóis. Mas em uma época de grandes problemas no Ocidente, os médicos islâmicos conservaram a tradição médica clássica. Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 6 MEDICINA MONÁSTICA No Ocidente, o fundador da Medicina Monástica foi SÃO BENTO DE NÚRSIA (480-547), monge que criou a Ordem dos Beneditinos. Fundou, em 529, o monastério de Monte Cassino, na Itália, berço da Ordem dos Beneditinos. Fundou depois mais onze monastérios, dentre os quais o de Subiaco dedicado a São Cosme e São Damião. Criou a “REGRA DE SÃO BENTO”, composta de 73 capítulos e um prólogo. No capítulo 36 (“Dos irmãos enfermos”), está estabelecido: “Antes de tudo e acima de tudo deve tratar-se dos enfermos de modo que se lhes sirva como verdadeiramente ao Cristo, pois Ele disse: ‘Fui enfermo e visitastes-me’ e ‘Aquilo que fizestes a um destes pequeninos, a mim o fizestes’.” Consequentemente surgiu a necessidade de que os monges tivessem conhecimentos médicos, uma vez que atender um enfermo não era mais apenas dar de comer ou beber, mas também aliviar suas dores e tratar suas doenças. Assim, o ensino médico foi instituído nos mosteiros. Também foram criados centros de prática e estudo da medicina na França (Chartres e Tour), Inglaterra (Oxford e Cambridge), Alemanha (Fulda e São Galo, atualmente na Suíça) e Irlanda, entre outros. Os monges tiveram o mérito de guardar, conservar, traduzir e copiar os antigos textos de medicina. Nos mosteiros, os religiosos traduziram os textos médicos gregos para o latim, destacando- se CASSIODORO “O ERUDITO”. Cassiodoro (c. 490-581) fundou o mosteiro de Vivarium na Calábria (555), em cujo scriptorium (que serviu de modelo para os outros monastérios) foram resgatadas, traduzidas e copiadas as obras de Hipócrates, Dioscórides, Celso, Galeno e muitos outros. De início a assistência médica era dada dentro do mosteiro. Depois, o monge (monge/médico/enfermeiro) saia do mosteiro para curar os enfermos entre a população e no campo. A medicina monástica foi desaparecendo durante o século X, por várias causas. Uma delas, paradoxalmente, foi seu êxito. Os monges se afastavam cada vez mais de seus mosteiros para atender à crescente demanda médica, o que interferia com seus deveres religiosos. Nos Concílios de Reims (1131), Tours (1163) e Paris (1212) as atividades médicas dos monges foram restringidas e finalmente proibidas. Cabe aqui uma observação a respeito de certas afirmativas, repetidas ao longo do tempo e até mesmo atualmente, de que a Igreja Católica teria impedido todo o espírito de pesquisa, proibindo ou dificultando as dissecções e também condenando a cirurgia, considerada uma prática bárbara. De fato o papa Bonifácio VIII (c. 1235-1303) emitiu a bula papal De sepulturis em 1300, na qual proibia o costume conhecido como Mos teutonicus (ou “costume alemão”). O Mos teutonicus era um método de descarnização usado a partir da Segunda Cruzada (1145–1149) em que o corpo era eviscerado, desmembrado e fervido em vinho, vinagre ou água até que as partes moles se destacassem dos ossos. Enquanto que a carne e os intestinos eram em geralmente enterrados in situ, por vezes cremados, os ossos limpos eram envolvidos em peles de animais para a viagem. Essa prática era extremamente popular entre os nobres europeus e só cessou no século XV. O documento papal foi considerado, por alguns, o “princípio dos males da anatomia”. Entretanto, de sua leitura não se depreende que o trabalho dos anatomistas estivesse incluído na disposição proibitiva. A bula somente proibia os desmembramentos feitos com o propósito de preservar os corpos dos cruzados para sepultamento em local distante. Por outro lado, a famosa frase “ecclesia abhorret a sanguine” (“a igreja abomina o sangue”) não é encontrada em nenhum documento eclesiástico; é de autoria do médico e economista francês François Quesnay (1694-1774) em seu livro sobre a história da cirurgia na França, escrito no ano de 1744. EN FRANCE. No final do século VIII, houve uma primeira tentativa de reerguimento da cultura do Ocidente. Carlos Magno (c. 747-814) conseguira reunir grande parte da Europa sob seu domínio e para unificar e fortalecer o seu império decidiu reformar a educação. Carlos Magno foi sucessivamente: rei dos Francos (de 771 a 814), rei dos Lombardos (a partir de 774) e primeiro Imperador do Sacro Império Romano (coroado no ano 800 pelo Papa Leão III), restaurando o antigo Império Romano do Ocidente. O monge inglês ALCUÍNO DE YORK (735-804) foi convidado pelo monarca para ajudá-lo e elaborou um projeto de desenvolvimento escolar que buscou reviver o saber clássico. Estabeleceu os programas de estudo a partir das sete artes liberais: o trivium, ou ensino literário (gramática, retórica e Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 7 dialética) e o quadrivium, ou ensino científico (aritmética, geometria, astronomia e música). A partir de 787, foram emitidos decretos que recomendavam, em todo o império, a restauração de antigas escolas e a fundação de novas. As novas escolas podiam ser monacais, sob a responsabilidade dos mosteiros; catedrais, junto à sede dos bispados; e palatinas, junto às cortes. No ano de 805, Carlos Magno ordenou que a medicina fosse incluída nos programas de estudo das escolas, que até então só compreendiam o trivium e o quadrivium. Nos séculos XII e XIII, muitas das escolas que haviam sido fundadas, especialmente as escolas catedrais, ganharam a forma de universidades medievais. HOSPITAIS MEDIEVAIS No Ocidente, eram comunidades religiosas cujos cuidados estavam a cargo de monges e freiras. Um termo antigo francês para hospital é Hôtel-Dieu. Alguns eram ligados a mosteiros; outros eram independentes. Alguns tinham múltiplas funções enquanto que outros tinham objetivosespecíficos, como cuidar dos leprosos ou servir de refúgio para os pobres ou peregrinos; nem todos cuidavam de doentes. Na verdade, inicialmente, os hospitais europeus funcionavam mais como abrigos. Os doentes eram recebidos apenas na medida em que fizessem parte de um grupo específico: pobres, peregrinos, viajantes, idosos, órfãos e outros destituídos. Para esses, a caridade cristã provia “hospitalidade”, especialmente comida e abrigo. Assim, os hospitais no início da Idade Média raramente eram dedicados ao tratamento dos enfermos. Geralmente os doentes eram recebidos para o atendimento de suas necessidades corporais e espirituais até que estivessem recuperados para retornar à vida normal. Merece ser mencionado que por volta de 1048, quando Jerusalém estava sob domínio muçulmano, comerciantes da cidade italiana de Amalfi conseguiram permissão para construir um hospital e um albergue para os peregrinos que iam à Terra Santa. O hospital foi dedicado a São João Batista e era dirigido por um monge beneditino conhecido como beato Gerardo. Em 1099, quando os cruzados conquistaram Jerusalém, o hospital acolheu os que foram feridos. Alguns cruzados se uniram aos religiosos e constituíram uma Ordem que foi autorizada pelo Papa Pascoal II, em 1113, com o nome de Ordem Hospitalar de São João de Jerusalém. Em 1530, com a transferência de sua sede para a ilha de Malta, passou a se chamar Ordem de Malta. ESCOLA MÉDICA DE SALERNO É considerada a mais antiga escola médica da civilização moderna e embora não se saiba ao certo a data de sua fundação, acredita-se que já era conhecida por volta de 757 d.C. Mas a longa tradição médica de Salerno começou durante o período greco-romano, no ano 540 a.C, em uma colônia grega chamada Eléia, situada na costa leste de Salerno, quando Parmênides decidiu fundar uma escola médica. PARMÊNIDES (c. 510-450 a.C) nasceu em Eléia na Magna Grécia (hoje Vélia, no sul da Itália). Foi um dos mais importantes filósofos pré-socráticos, e também teria sido médico. A ele é atribuída a frase: “Dê-me uma oportunidade para criar uma febre e eu curarei qualquer doença.” Durante a era romana, as cidades de Salerno e Eléia tornaram-se famosas por seus tratamentos médicos e numerosos pacientes se reuniam nessas cidades. Conta-se que próprio imperador Augusto (63 a.C.-14 d.C.), que ficou muito doente no ano 23 a.C., para lá se dirigiu com um provável abscesso hepático (febre tifóide?), sendo curado por ANTONIUS (ANTÔNIO) MUSA com compressas frias (ou banhos frios). A medicina grego-romana de Hipócrates e Galeno deu os fundamentos para o método de ensino usado na Escola de Salerno, que foi a primeira escola do ocidente a conceber e a colocar em prática tratamentos médicos livres da influência das estrelas. A fama de Salerno aumentou a partir do século X, chegando ao apogeu no século XII. Salerno deu uma contribuição notável para a formulação do currículo médico nas universidades medievais. Caracterizou-se pela convivência pacífica e integração entre as culturas grega, latina, árabe e judaica. Era fundamentalmente prática e se dedicava ao tratamento dos enfermos, com pouco interesse nas teorias e nos livros clássicos. Ainda que, em Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 8 820, os monges beneditinos tenham fundado um hospital em Salerno onde praticavam a medicina, os médicos laicos foram se liberando do controle clerical e no ano 1000 o ensino da medicina era completamente secular. CONSTANTINO O AFRICANO (c. 1010-1087), muçulmano nascido em Cartago que se tornou monge beneditino, chegou a Salerno no século XI e foi o principal difusor dos conhecimentos islâmicos, graças às traduções que fez dos textos árabes para o latim. Alguns textos que os estudantes de Salerno liam foram conservados e tiveram grande influência nas outras escolas. Um famoso professor de cirurgia de Salerno, ROGERIUS SALERNITANO (Rogério de Salerno), escreveu o livro: Practica Chirurgiae (“A Prática da Cirurgia) por volta de 1180. É também chamado Chirurgiae Magistri Rogerii (“A Cirurgia do Mestre Rogério"). Foi o primeiro livro-texto medieval de cirurgia que dominou o ensino da matéria por mais de um século, inclusive nas novas universidades que foram criadas. “A Cirurgia do Mestre Rogério” é um livro tipicamente salernitano: claro, breve e prático, sem citações longas e tediosas. Cada afecção cirúrgica é descrita de forma sumária e o tratamento é discutido com parcimônia. Entretanto, o livro mais famoso de todos produzidos em Salerno foi o Regimen Sanitatis Salernitanum (também conhecido como Flos medicinae Salerni). É um texto versificado, em latim, que começou 362 versos e terminou com cerca de 3520. É uma série de observações simples e conselhos racionais. O livro foi traduzido pelo menos em oito idiomas e em 1846 já havia sido editado 240 vezes. Consta de 10 seções: higiene, drogas, anatomia, fisiologia, etiologia, semiologia, terapêutica, classificação das doenças, prática da medicina e epílogo. Um de seus conselhos famosos é: “Se te queres sentir bem e viver com saúde, larga as preocupações Uma lauta ceia é a pena máxima para o estômago Para que a noite te seja leve, tua ceia será parca A sesta deve ser curta porque do contrário pode causar fadiga, dores de cabeça e febre Se tens falta de médicos, sejam eles: mente alegre, descanso e dieta moderada.” Como exemplo da liberdade que havia em Salerno está o fato de que lá TRÓTULA DE RUGGIERO (? - 1097), filha de uma nobre família salernitana, pôde estudar e depois ensinar na mesma Escola Médica. Chamada de sapiens matrona tinha idéias inovadoras: considerava a prevenção o aspecto principal da medicina e enfatizava a importância da higiene, da alimentação equilibrada e da atividade física para a saúde. Em 1224, Frederico II ordenou que para exercer a medicina nas Duas Sicílias era necessário passar por um exame feito pelos professores da Escola de Salerno. Com a criação da Universidade de Nápoles, a Escola de Salerno começou a perder sua importância. Seu prestígio, com o passar do tempo, foi obscurecido pelo das universidades mais jovens: Montpellier, Pádua e Bolonha. Em 1811 foi fechada por Joachim Murat, rei de Nápoles sob as ordens de Napoleão. UNIVERSIDADES MEDIEVAIS Instituições consideradas universidades pelo alto nível de seus ensinamentos se estabeleceram na Itália, França e Inglaterra nos séculos XI e XII para o estudo das artes, leis, medicina e teologia. As mais antigas são as de: Bolonha, Itália (1088); Paris, França (1150); Oxford, Inglaterra (1167); Módena, Itália (1175); Palencia, Espanha (1208); Cambridge, Inglaterra (1209); Salamanca, Espanha (1218); Montpellier, França (1220); Pádua, Itália (1222); Toulouse, França (1229); Orléans, França (1235); Siena, Itália (1240) e Coimbra, Portugal (1288). Em 1137 foi fundada a Escola de Medicina de Montpellier, na França. Entre 1200 e 1400 foram fundadas 52 universidades na Europa, 29 delas erguidas por papas. Na Universidade de Bolonha existiam professores de medicina desde 1156 e foi onde se iniciaram as dissecções anatômicas no princípio do século XIV. GUILHERME DE SALICETO (1210- 1280), professor de cirurgia em Bolonha, escreveu um texto de cirurgia em que rechaçava o uso do cautério (que era favorecido pelos árabes) e preferia o bisturi. Nesse livro também combatia a idéia de Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 9 que a supuração é benéfica para a cicatrização das feridas. MONDINO DE LUZZI (LIUZZI) (c. 1276- 1326), anatomista e também professor da Universidade de Bolonha, executou – depois de mais de 1700 anos – uma das primeiras dissecções em um corpo humano. De acordo com os relatos dispo- níveis, tratava-se de uma mulher executada em 1315 e a dissecção foi feita em benefício dos estudantes de medicina,assim como para o público. Mondino compilou um dos mais antigos livros de anatomia: De Omnibus Humani Corporis Interioribus Membris Anathomia; na verdade, o tratado dedicava-se mais às técnicas de dissecção do que aos estudos anatômicos. Embora terminado em 1316, o livro foi publicado pela primeira vez em 1487, em Pádua. GUY DE CHAULIAC (1298-1368) foi outro grande cirurgião medieval. Estudou em Bolonha, Paris e Montpellier, onde trabalhou até que se mudou para Avignon, onde foi médico da corte papal. Escreveu o livro Chirurgia Magna, que foi o texto definitivo de seu tempo. Descreveu a utilização da tração contínua para a redução e tratamento de fraturas do fêmur e foi um dos primeiros a fazer anotações sobre o tratamento de feridas por arma de fogo. A PRÁTICA DA MEDICINA Até fins do século XV os conhecimentos teóricos da medicina não haviam avançado mais do que época de Galeno. Prevalecia a teoria humoral das doenças. A anatomia começava a ser estudada no cadáver, embora poucos médicos tivessem visto mais que uma dissecção na vida. O tratamento se reduzia a quatro medidas gerais: sangria, dieta, purga e o uso de drogas (digestivas, laxantes, diuréticas, analgésicas etc.). A sangria era feita quase sempre por flebotomia, mas também eram usadas sanguessugas, com a finalidade de: (a) eliminar o humor excessivo responsável pelo desequilíbrio (discrasia), e nesse caso era feita no lado anatômico onde se localizava a doença; (b) derivar o humor de um órgão para outro, sendo feita então no lado oposto ao da doença. As indicações da sangria eram complicadas pois incluíam não só o local e a técnica, mas também: condições astrológicas favoráveis (mês, dia e hora); número de sangrias anteriores; quantidade de sangue obtida em cada procedimento. Dependiam ainda do temperamento do paciente, da estação do ano, da localização geográfica etc. A dieta era prescrita para evitar que, a partir dos alimentos, continuasse sendo produzido o humor responsável pela doença. Às vezes a restrição alimentar era absoluta, causando desnutrição e até caquexia. A purga, por meio de purgantes ou enemas, era indicada para facilitar a eliminação do excesso do humor causador da doença. Baseava-se em uma antiga idéia egípcia de que seria gerado um princípio patológico no intestino, de onde passaria para o resto do organismo, produzindo mal estar e padecimentos. Essa talvez tenha sido a medida terapêutica mais antiga e duradoura; considerada eficiente desde o século XI a.C. no Egito, ainda era usada em meados do século XX da era cristã. As drogas eram obtidas principalmente das plantas. Com frequência as receitas continham mais de 20 componentes distintos. A preparação favorita era a “teriaga, triaga ou teríaca” (mistura de cerca de 60 substâncias usada como preventivo e remédio contra diversas enfermidades, além de antídoto contra a mordedura de animais venenosos). Atribuída a Andrômaco de Creta, médico de Nero, foi usada até o século XVIII. Um dos componentes da teriaga era o ópio, o que talvez explique sua popularidade. Também eram feitos tratamentos baseados em poderes sobrenaturais. Os exorcismos eram usados no manejo dos transtornos mentais, epilepsia e impotência. Acreditava-se no poder curativo das relíquias e rezava-se a santos especiais para o alívio de doenças específicas. A partir de 1056 e durante cerca de nove séculos, especialmente na França e na Inglaterra, acreditava-se que a tuberculose ganglionar cervical ulcerada (escrófula) podia ser curada com o toque da mão do rei. Na Idade Média praticava-se a uroscopia e o símbolo da medicina era o frasco com urina (figura 3), uma vez que se pensava ser possível avaliar o estado dos quatro humores cardinais (bile negra, bile amarela, flegma e sangue) pela inspeção da urina. Na época, havia o conceito de que a urina Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 10 era constituída de nutrientes que sobravam após a produção do sangue pelo fígado e, portanto, refletiria o estado da saúde. Por volta de 1100 foi escrito o primeiro livro detalhando cor, densidade, qualidade e sedimentos encontrados na urina. Havia cartas de uroscopia, com amostras de urina em várias gradações de cor e aspecto, com indicações para o médico sobre quais doenças as produziriam. O médico observava o aspecto, o cheiro e/ou o sabor da urina e fazia diagnósticos e prognósticos. O interessante é que não havia necessidade de examinar o paciente, a uroscopia era suficiente para o diagnóstico diferencial. Os médicos não praticavam a cirurgia, somente os cirurgiões e os barbeiros. Os cirurgiões não frequentavam a universidade, não falavam latim e eram considerados gente pouco educada e de classe inferior. Muitos iam de cidade em cidade operando hérnias, cálculos vesicais e cataratas, drenando abscessos e tratando de feridas e fraturas. Seus principais competidores eram os barbeiros que, além de cortar o cabelo, vendiam unguentos, arrancavam dentes, aplicavam ventosas, enemas e faziam sangrias. Em 1365, os cirurgiões de Paris criaram a Irmandade de São Cosme com duas finalidades: poder frequentar a Faculdade de Medicina de Paris e impedir que os barbeiros praticassem a cirurgia. Depois de dois séculos conseguiram seus objetivos, mas tiveram que incorporar os barbeiros como membros da Irmandade. Na Itália a distinção entre medico e cirurgião nunca foi muito acentuada e desde 1349 existem estatutos que se aplicam igualmente a médicos, cirurgiões e barbeiros; todos deviam se registrar e fazer exames nas escolas de medicina das universidades. Somente em 1540 é que os barbeiros e cirurgiões de Londres se unem na Companhia dos Barbeiros Cirurgiões, que em 1800 se transformaria no Royal College of Surgeons. Assim, embora tenha havido uma aparente estagnação dos estudos médicos na Alta Idade Média (século V ao século X), a medicina clássica continuou sendo praticada, sobretudo nos mosteiros. A partir do século XII, o estudo da medicina é introduzido nas universidades e define-se um novo status do médico. Com a retomada dos estudos anatômicos (sobretudo a partir do século XIV) e com as novas traduções dos textos médicos da Antiguidade, a medicina chega ao Renascimento e à Idade Moderna. Figura 3 – Constantino o Africano, examinando a urina dos pacientes (imagem em domínio público). Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 11 Referências/Literatura selecionada sugerida Alves EMO, Tubino P. Proibição das dissecções anatômicas: mito ou realidade? In: XIII Congresso Brasileiro de História da Medicina, 2008, Fortaleza, CE. Jornal Brasileiro de História da Medicina (Suplemento 1). São Paulo: Sociedade Brasileira de História da Medicina, 2008. v.12. p.63-4. Amr SS, Tbakhi A. Abu Al Qasim Al Zahrawi (Albucasis): Pioneer of Modern Surgery. Ann Saudi Med. 2007; 27:220-1. Amr SS, Tbakhi A. Abu Bakr Muhammad Inb Zakariya Al Razi (Rhazes): Philosopher, Physician and Alchemist. Ann Saudi Med. 2007; 27:220-1. de Divitiis E, Cappabianca P, de Divitiis O. The "schola medica salernitana": the forerunner of the modern university medical schools. Neurosurgery. 2004;55:722-44. Dunn PM. Paulus Aegineta (625-690 AD) and Bysantine medicine. Arch Dis Chils Fetal Neonatal Ed. 1997;77:155-6. Grzybowski S, Allen EA. History and importance of scrofula. 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Restless corpses. 'Secondary burial' in the Babenberg and Habsburg dynasties’.Antiquity. 2001;75:769-80. West JB. Ibn al-Nafis, the pulmonary circulation, and the Islamic Golden Ages. J Appl Physiol. 2008; 105:1877-80. Weisz GM. The papal contribution to the development of modern medicine. Aust N Z J Surg. 1997; 67:472-5. Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 12 ANEXO I PESTE NEGRA A Peste Negra (também chamada “Grande Peste”) foi uma epidemia que atingiu a Europa, a China, o Oriente Médio e outras regiões do Mundo durante o século XIV (1347-11350) e dizimou cerca de 30% a 60% da população européia, provocando 25-50 milhões de mortes. A Peste Negra teve consequências duradouras sobre a civilização da Europa, até porque a doença continuou a reaparecer nos vários países afetados. A peste, em uma época em que medicina não dispunha de conhecimentos e nem capacidade para controlar as epidemias, causou importantes problemas econômicos, sociais e religiosos como, por exemplo: a falta de mão de obra, particularmente na agricultura; o abandono das cidades e da terra; revoltas populares e o aparecimento de grupos de fanáticos que procuravam encontrar culpados e perseguiam minorias inocentes, como os doentes de lepra e os judeus, acusados de serem a causa da peste. As pessoas que tinham a doença eram obrigadas a sair das cidades. Algumas ordens religiosas recolhiam os doentes e os tratavam enquanto estavam isolados. Uma das maiores dificuldades era dar sepultura aos mortos. Guy de Chauliac, famoso cirurgião e médico do Papa Clemente VI, sobreviveu à peste e fez o seguinte relato: “A epidemia era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo.” As pessoas que tinham a doença eram obrigadas a sair das cidades. Algumas ordens religiosas recolhiam os doentes e os tratavam enquanto estavam isolados. Uma das maiores dificuldades era dar sepultura aos mortos. Guy de Chauliac, famoso cirurgião e médico do Papa Clemente VI, sobreviveu à peste e fez o seguinte relato: “A epidemia era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo.” A doença voltou a cada geração à Europa até o início do século XVIII. Cada epidemia matava os indivíduos susceptíveis, deixando os restantes imunes. Só quando uma nova geração não imune crescia é que havia novamente suficiente número de pessoas vulneráveis para a infecção se propagar. Entretanto nenhuma dessas epidemias foi tão mortal como a primeira. A peste (também chamada no Brasil de “febre do rato” ou “doença do rato”) é causada pela bactéria Yersinia pestis, comum entre roedores, e pode ser transmitida por suas pulgas (Xenopsylla cheopis) para o ser humano. Se não tratada com antibioticoterapia (idealmente nas primeiras 15 horas após o início dos sinais e sintomas), dependendo da forma clínica, pode matar em 50% a 100% dos casos. A transmissão da peste se dá em geral pelas picadas das pulgas dos roedores, quando infectadas, ocorrendo às vezes por intermédio das pulgas humanas (Pulex irritans) que se tenham infectado, por repasto, em animais ou pessoas com a forma septicêmica da doença. As bactérias ficam no proventrículo (pequena bolsa) do estômago da pulga, onde se reproduzem causando obstrução parcial ou total do tubo digestivo. As pulgas nessa condição não conseguem se alimentar direito e ficam em um estado de fome permanente, que as impele a atacar os animais vorazmente. O proventrículo parcialmente bloqueado faz com que haja refluxo do sangue contido no estômago da pulga; assim, quando a pulga se alimenta regurgita (para o interior do corpo do animal que está sendo picado) o sangue infectado com bacilos que não consegue ingerir.1 A via mais comum de infecção é por meio da picada da pulga infectada, originando a peste bubônica. O bacilo também pode penetrar no hospedeiro por via sanguínea, pela pele, pela conjuntiva ocular ou através das mucosas do aparelho respiratório e digestivo. A inoculação do bacilo através da conjuntiva ocular determina a peste septicêmica, enquanto que as vias percutânea e subcutânea reproduzem a peste bubônica; pela via intratraqueal desenvolve-se a peste pulmonar. Peste bubônica: os sinais e sintomas aparecem depois de um período de incubação de dois a seis dias: mal-estar geral, prostração, cefaleia intensa, calafrios, febre alta, dores generalizadas, anorexia, náuseas, vômitos, confusão mental, olhos avermelhados por congestão das conjuntivas, pulso rápido e irregular, hipotensão arterial e linfadenite regional (inflamação e tumefação dos linfonodos superficiais: bubões). Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 13 Peste septicêmica: ocorre quando a bactéria se multiplica no sangue. Pode ser a manifestação inicial (não há bubões) ou como complicação da peste bubônica ou pulmonar. Há prostração, febre alta, calafrios, cefaleia intensa, dores generalizadas, anorexia, náuseas, vômitos, confusão mental, congestão das conjuntivas, hipotensão arterial, dispneia, estado geral grave, dificuldade na fala, hemorragias na pele ou em outros órgãos, necrose dos membros, choque e morte. Assim como a peste bubônica, não se propaga de uma pessoa para outra (a menos que haja contato com o pus do bubão supurante). Peste pulmonar: ocorre quando a Yersinia pestis infecta os pulmões. O período de incubação é de um a três dias. Além dos sinais e sintomas comuns às outras duas formas clínicas, há dor no tórax, respiração curta e rápida, dispnéia, cianose, expectoração sanguinolenta (rica em bactérias), delírio, coma e morte. Sem tratamento é fatal em, praticamente, 100% dos casos. Este grave tipo de peste pode propagar-se de pessoa a pessoa através do ar e é altamente contagioso. Existe uma forma benigna da peste bubônica, encontrada geralmente em regiões onde a peste é endêmica: peste benigna (pestis minor). Caracteriza-se por febre, cefaleia, linfadenite e prostração que regridem espontaneamente dentro de uma semana.1 O ser humano pode contrair a infecção no campo ou em sua própria habitação. As epizootias1 dos animais silvestres podem atingir as habitações humanas por meio dos roedores ou dos animais domésticos A Xenopsylla cheopis é considerada o principal vetor da peste (pelo bloqueio do proventrículo, larga distribuição geográfica e grande avidez em picar o homem), mas outras espécies de pulgas são capazes de transmitir o bacilo da peste. Nos focos do Nordeste brasileiro, há evidência de transmissão pelas pulgas dos roedores silvestres (Polygenis tripus e jordani) e pela Pulex irritans. Cães e gatos são infectados, experimentalmente, pela Y. pestis. Mas enquanto os cães apresentam um quadro clínico benigno, os gatos desenvolvem uma forma mais grave da doença, muitas vezes fatal. Ambas as espécies produzem anticorpos contra o bacilo da peste que permanecem, pelo menos, por 300 dias. Admite-se que, em condições naturais, a contaminação dos carnívoros pela peste ocorra mais provavelmente por via oral (pela ingestão de roedores infectados) do que pela picada de pulgas. Entretanto, no curso da doença, eles podem se tornar fonte de infecção para as pulgas que os parasitam.Há casos documentados de contaminação humana por carnívoros domésticos. Gatos podem desempenhar papel importante na disseminação da peste, seja transportando carcaças de roedores e/ou pulgas infectadas ou contraindo eles próprios a infecção e transmitindo-a diretamente ao homem ou outros animais. O contágio humano pode ser direto pela manipulação de animais com lesões cutâneas purulentas abertas, ricas em Y. pestis, ou pelas secreções oronasais dos animais infectados. Nas regiões onde não há evidência de peste recente, os carnívoros domésticos (cães e gatos) podem ser testados, sorologicamente, como indicadores da presença ou ausência da peste entre os roedores. Inquéritos sorológicos em cães e gatos são valiosos na detecção de atividade pestosa nos focos.2 A peste chegou ao Brasil pelo porto de Santos em outubro de 1899, onde ocorreu o primeiro caso humano. Em seguida várias cidades do litoral foram infectadas, tendo se registrado em 1900 o primeiro caso em Fortaleza. A partir de 1907 a infecção avançou para o interior do País, tendo se estabelecido em focos naturais espalhados nas áreas rurais de vários estados do Nordeste (CE, RN, PB, PE, AL, BA), nordeste de Minas Gerais e Rio de Janeiro.3 No Brasil, atualmente, existem duas principais áreas de focos independentes: focos do Nordeste, abrangendo uma extensa área que se estende do estado do Ceará ao norte de Minas Gerais e outra área de foco localizada no estado do Rio de Janeiro, na Serra dos Órgãos, nos limites dos municípios de Teresópolis e Nova Friburgo. Entre os anos de 1993 a 2006, foram notificados 75 casos de peste humana no Brasil, originários dos focos do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Bahia e Minas Gerais.4 1 Epizootia: doença que apenas ocasionalmente se encontra em uma comunidade animal, mas que se dissemina com grande rapidez e apresenta grande número de casos. Alves E, Tubino P. Medicina na Idade Média, 2013. 14 Esquema da transmissão da peste1 Referências 1. Almeida A, Leal NC, Balbino TCL, Sobreira M. Peste - Serviço de Referência. Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde (MS), 2002. Acesso em 02/maio/2008. Disponível em http://www.cpqam.fiocruz.br/aggeu/doc/manual_peste.pdf 2. Almeida AMP, Brasil DP, Melo MEB, Leal NC, Almeida CR. Importância dos carnívoros domésticos (cães e gatos) na epidemiologia da peste nos focos do Nordeste do Brasil. Cadernos de Saúde Pública 1988; 4(1):49-55. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/csp/v4n1/04.pdf 3. Brazil V. A peste bubonica em Santos. Revista Medica de São Paulo 1899; 2 (12): 343-55. 4. Secretaria de Vigilância em Saúde/Ministério da Saúde. Peste. Acesso em 03/maio/2008. Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=27317 * Lagomorfos (latim: Lagomorpha) constituem uma ordem de pequenos mamíferos herbívoros, que inclui coelhos e lebres. *
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