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1 KANT: A MORALIDADE DO DEVER Prof. Pablo Antonio Lago Immanuel Kant é, sem dúvida alguma, um dos mais célebres filósofos que já existiu. Nascido em Konigsberg, na primeira metade do século XVIII, foi influenciado por pensadores como Rousseau e Hume – sendo que, como veremos, apresenta uma visão diametralmente oposta à deste último no que diz respeito ao papel da razão como guia da conduta humana. Foi professor bem-sucedido na universidade de sua cidade natal, e sempre levou uma vida reservada e sem fatos muito marcantes. Foi um homem extremamente metódico, o que se observa tanto na estrutura de suas obras principais (nas quais desenvolve um aparato conceitual próprio e de difícil compreensão), quanto em sua rotina privada: consta que planejava toda a sua vida com muita precisão, e seus vizinhos eram capazes de acertarem os relógios no momento em que ele saia de casa para sua caminhada diária, pontualmente às quatro e meia (MORRISON, 2012, p. 155). O contexto intelectual em que estava inserido era muito semelhante ao de David Hume. É no contexto político que podemos notar algumas particularidades: Kant é, em certa medida, fruto das preocupações dos chamados “déspotas esclarecidos” prussianos 1 , particularmente de Frederico, o Grande. Este imperador, além da forte militarização da Prússia, também incentivou a formação de um ambiente intelectual que estabeleceu as bases para o domínio de pensadores alemães na filosofia daquele século (KENNY, 1999, p. 351) 2 . A obra que o deixou imortal, a Crítica da Razão Pura, foi também o primeiro de seus escritos e surgiu a público somente em 1781, quando Kant contava com 57 anos de idade. Sua produção acadêmica teve início, portanto, em uma fase relativamente tardia da vida. Depois se seguiram obras como Fundamentos da Metafísica dos Costumes, Crítica da Razão Prática, Crítica do Juízo e Projeto de Paz Perpétua. Tal qual Hume, seu ponto de partida está em questões de ordem epistemológica (acerca das condições do conhecimento humano). Ele também concede espaço às experiências sensoriais, mas o principal elemento de seus estudos é a razão. Para Kant, 1 Na época, o que hoje compreendemos como a Alemanha correspondia a um conjunto de pequenos Estados, sendo que merece destaque o Império Prussiano, que disputava com a Áustria a hegemonia regional. 2 É emblemática a disposição de Frederico, o Grande, em travar contatos diretos com filósofos iluministas. Dentre estes, destaca-se Voltaire, quem convidou para passar um período em Berlim. 2 nós podemos dividir o conhecimento em a priori e a posteriori. O conhecimento a priori é, de certa forma, inato aos seres humanos e compreende a razão em sua forma pura. Ela antecede nossas experiências sensoriais, e é a partir dela que somos capazes de entender as coisas. Ela está em nossa mente, e serve como uma espécie de “cola” que nos permite juntar os frutos de nossos sentidos (o que apreendemos através da visão, audição, tato etc.) em “entendimentos” sobre o mundo. O conhecimento que só existe em razão de nossas experiências será, portanto, um conhecimento a posteriori. O que Kant pretende com esta distinção é explicar a natureza da razão pura, enquanto conhecimento a priori. Assim, posso “sentir” as coisas do mundo através dos meus sentidos, mas o que atribui a estas coisas um significado é a razão pura, uma espécie de conhecimento que é pré-existente às nossas experiências sensoriais. Na realidade, esta razão pura é capaz de desvendar os elementos condicionantes das nossas experiências (COMPARATO, 2006, p. 287). É por isso que os seres humanos, diferentemente de outros animais, são vistos como seres racionais e não como seres meramente reativos aos seus sentidos e instintos. Por certo, a nossa porta de entrada para o mundo continua sendo os sentidos. Nós conhecemos o mundo através deles, através de nossas experiências. Assim, nosso conhecimento começa pela experiência, mas a razão pura demonstra que nem todo conhecimento resulta apenas de nossas experiências. Não é a nossa mente que se conforma aos objetos com os quais travamos contato, mas são estes objetos que se conformam à nossa mente – pois somente a razão pura consegue atribuir a eles um significado (KENNY, 1999, p. 352-353). A origem desta razão pura é algo metafísico, transcendental, apriorístico e, consequentemente, além das nossas capacidades de compreensão. Sabemos que ela existe, mas nos é impossível expressar em termos inteligíveis o que ela “é”. Percebemos, entretanto, que ela cumpre uma série de funções em nosso contato com o mundo. É possível distinguir na razão pura, por exemplo, a nossa inclinação natural a separar os objetos em entes singulares e, a partir daí, somos capazes de alcançar a ideia de unidade e formular cálculos matemáticos puros. Esta capacidade independe de nossas sensações ou experiências sensoriais. Tudo isso para dizer que o conhecimento só é possível porque somos dotados de razão. Além da distinção entre conhecimento a priori e a posteriori, cuja linha divisória está em nossas experiências sensoriais, também somos capazes de dividir, por questões didáticas e metodológicas, a razão entre razão pura e razão prática. Como vimos, a razão pura será sempre a priori e é o que nos permite compreender as coisas do mundo, 3 atribuindo-lhes um significado. Seu objeto é o conhecimento em si mesmo e sua estrutura está delineada na obra Crítica da Razão Pura. Já a razão prática tem como objeto central a ação humana. Trata-se do conhecimento dirigido para o agir. Em certa medida, a razão prática também é “pura”, já que também antecede os nossos sentidos e experiências sensoriais. Ambas, por constituírem o conhecimento a priori, são necessárias e universais – todos os indivíduos são dotados de razão para conhecer o mundo e para agir. É por isso que alguns autores preferem afirmar que é a razão pura que deve ser dividida, entre “razão pura teórica” e a “razão pura prática”. De qualquer modo, a distinção habitualmente utilizada é entre razão pura (o conhecimento em si mesmo) e a razão prática (o conhecimento dirigido para a ação), embora o fundamento de ambas seja praticamente o mesmo. Em um curso de filosofia para estudantes de direito, a preocupação central ao analisar a teoria kantiana reside, justamente, nesta ideia de razão prática. É a partir dela que conseguimos observar o contraste entre a teoria kantiana e a posição de Hume. Para este último, a razão é “escrava das paixões” e não serve como um guia efetivo da ação humana. Utilizamos a razão, em última análise, para realizarmos nossos desejos e instintos (daí se afirmar que Hume é, em certa medida, um utilitarista). A razão só teria uma importância residual e utilitária, e a fonte principal do conhecimento humano estaria em nossas experiências e na observação de nossos desejos (o que o caracteriza como um empirista). Kant rompe com esta linha de raciocínio, sustentando a primazia da razão prática como guia da conduta humana. Seres humanos são capazes de se conduzir em sentido contrário aos seus desejos porque, em última análise, são capazes de agir por dever. A ideia de dever é central para a compreensão do pensamento kantiano, e decorre da possibilidade de agirmos de acordo com leis morais universais, absolutas e formais. Universais, porque vigoram para todos os homens e em todos os tempos; absolutas, porque não comportam exceções; e formais, porque são “puras fórmulas de dever-ser”, devendo ser obedecidas não em razão de outras consequências ou finalidades, mas sim porque são intrinsecamente valiosas (COMPARATO,2006, p. 289). Um exemplo, para Kant, seria o dever de dizer a verdade: ela é válida para todos os indivíduos, em todas as circunstâncias, importante em si mesma e, sobretudo, não admite exceções 3 . 3 É por este excessivo idealismo que Kant é tão criticado. Não é difícil imaginar circunstâncias onde o mais “adequado” seria, justamente, mentir. Imaginem um indivíduo alemão que, em pleno regime nazista, 4 Estas ideias de razão prática, leis morais e dever ocupam um lugar central na filosofia ética e moral de Kant. Ao cumprirmos o dever, estipulado nas leis morais, agimos de forma certa (independentemente dos propósitos e consequências) e não, simplesmente, boa (onde o valor da ação se verifica a partir das consequências meritórias e dos propósitos) (MORRISON, 2012, p. 156). A razão prática e o dever, conjuntamente com estas leis morais, são intrinsecamente valiosas. Em síntese, o que temos é o “dever pelo dever”. Pouco importa, portanto, as consequências das nossas ações, deste que elas estejam afinadas na razão e decorram do nosso senso de dever (e aí fica claro o contraste com o pensamento utilitarista). Mas como alcançamos o “agir certo”? O ponto de partida é a virtude e a ideia de liberdade (compreendida aqui como livre-arbítrio). Para Kant, somos virtuosos quando agimos por dever, e não tendo em vista outros propósitos. As leis morais são guias da conduta humana e devemos segui- las independentemente das suas consequências. É por isso que o fim da ação humana não pode se confundir com a ideia de felicidade: se nossa intenção fosse sempre buscar a felicidade, talvez seguir nossos instintos em todas as circunstâncias seria mais eficiente (KENNY, 1999, p. 374). O homem, entretanto, é livre para escolher seus caminhos. Ele é dotado de autonomia e livre-arbítrio. Isso faz com que seja capaz de manifestar sua vontade das mais diferentes formas, seja em direção à busca de prazeres, ou então ao cumprimento do dever. Somente quando a vontade está dirigida para o cumprimento do dever é que estamos diante de uma vontade “boa” e a ação humana será certa. A ação praticada por dever, portanto, tira seu valor moral não da intenção do agente, mas sim da regra (lei moral) da ação. Afinal, nada nos garante que nossa intenção não foi egoística, ou que fomos motivados por nossos desejos (COMPARATO, 2006, p. 293). Devemos dizer a verdade porque a verdade é um bem em si, sem pensar nas consequências de nossas ações ou se isso nos fará ou não mais felizes. Somente assim nossa vontade será boa, virtuosa e fundamentada no dever. A motivação pelo dever corresponde à máxima, ao princípio subjetivo da ação, encontrado na consciência individual – ela não se confunde, portanto, com a lei moral (que é um princípio objetivo e válido para todos) (COMPARATO, 2006, p. 294). acolhe uma família judia em sua casa. De repente, aparece um soldado da SS questionando se há judeus na residência. O indivíduo sabe que, se falar a verdade, a família será conduzida para um campo de concentração, mas se mentir nada acontecerá. O que deveria fazer neste caso? A posição kantiana é clara: deveria falar a verdade, independentemente das suas consequências. 5 A máxima corresponde, portanto, ao princípio com base no qual agimos – em outras palavras, vem a ser o imperativo ao qual nossas ações se conformam. Podemos dividir os imperativos em dois: hipotético e categórico. O imperativo hipotético afirma que, se quisermos atingir determinado fim, devemos agir desta ou daquela maneira. Já o imperativo categórico afirma que, independentemente dos fins desejados, devemos agir desta ou daquela maneira (KENNY, 1999, p. 374) – em outras palavras, o imperativo categórico é justo aquele que se relaciona com o dever. Deste modo, o imperativo categórico pode ser formulado de duas formas. A primeira forma afirma que “devemos agir de modo que a máxima de nossa ação possa ser transformada em uma lei universal”. O princípio subjetivo da nossa ação, neste caso, deve ser passível de universalização. Dois exemplos podem esclarecer esta ideia. Imaginem um indivíduo que, abatido por tantos males e sofrimentos, questiona- se se não seria melhor pôr termo à sua própria vida. Se ele raciocinar a partir do imperativo categórico, entretanto, verá que não pode preferir o suicídio ao sofrimento, pois nenhum ser vivo pode pretender, enquanto lei universal, a destruição da vida (COMPARATO, 2006, p. 296). Outro exemplo é o seguinte: imaginem um indivíduo que esteja bem na vida, a quem um terceiro em dificuldades peça ajuda. Recusar-se a ajudar iria em sentido contrário ao imperativo categórico, pois este indivíduo poderá, um dia, também se encontrar em dificuldades e precisar de auxílio – assim, não pode querer que a máxima de sua ação se transforme em uma lei universal (KENNY, 1999, p. 375). A segunda forma do imperativo categórico é a seguinte: “devemos agir de modo a tratar a humanidade, seja em nossa pessoa ou na de outros, nunca como meio, mas sempre e ao mesmo tempo como um fim”. Em outras palavras, não devemos tratar as pessoas como meios, mas como fins em si. O homem se apresenta, no mundo, como um fim em si mesmo, e isso acontece, também, porque é dotado de autonomia: somos capazes de nos conduzir segundo as leis que nós mesmos editamos. Isso nos diferencia dos demais seres vivos e nos confere dignidade – nós não temos um preço, e nossa vida é insubstituível. Logo, ainda que sejamos capazes de sentir afeição ou temor por outros seres do mundo, somente os homens são capazes de suscitar respeito. Aí se encontra o fundamento de validade daquilo que, atualmente, compreendemos como direitos humanos universais (COMPARATO, 2006, p. 297). Feitas estas considerações, no que consiste o direito para Kant? Para responder esta questão, devemos diferenciar dois tipos de legislação: a legislação ética e a 6 legislação jurídica. A legislação ética faz com que a ação seja um dever, e o dever deve ser também o seu motivo. Assim, o indivíduo cumpre uma determinação ética por dever de consciência, por motivos interiores. Na legislação jurídica, ao contrário, o motivo para seguir suas determinações não é o dever, mas sim fatores exteriores ao indivíduo (notadamente a existência de uma sanção negativa, da coercibilidade jurídica). O direito tem por base esta legislação jurídica. O que possibilita falarmos em um “dever jurídico” está, consequentemente, na possibilidade de coação. É claro que o indivíduo pode respeitar o direito por um dever de consciência, mas isso não é exigido pelo direito – basta que cumpra o que determina a regra jurídica. Aí reside a principal diferença, para Kant, entre direito e moral, pois esta última leva em consideração a consciência, os motivos interiores que levaram o indivíduo a agir (COMPARATO, 2006, p. 299). Todas estas questões levaram Kant a refletir, também, sobre o direito internacional. Em sua obra Projeto de Paz Perpétua, inovou ao tratar os Estados como sujeitos das relações internacionais, ao invés de reis e príncipes. Além disso, também tratou indivíduos como sujeitos de direito no plano internacional, criando as bases para uma espécie de direito cosmopolita ou “direito da cidadania mundial” (COMPARATO, 2006, p. 300-301). Não é difícil perceber que tais inovações decorrem, justamente, do caráter universalizável da razão e do dever (indo além das fronteiras estatais). O que Kant buscava, em última análise, eram as bases para um estado de paz social,de modo a que uma comunidade ética viesse a substituir a comunidade política – o mundo ideal é justamente aquele no qual o homem abre mão de leis coercitivas, pautando suas ações apenas no dever. O objetivo final da humanidade, neste sentido, não está no direito, mas este constitui um passo essencial para nos tornarmos criaturas de paz (MORRISON, 2012, p. 180-181). Outra consequência do pensamento kantiano está na retomada da ideia de retribuição no âmbito do direito penal. Aqui, Kant vai a sentido contrário da posição utilitarista clássica, que observamos no pensamento de autores como Beccaria e Jeremy Bentham. Para estes, a razão de punirmos um crime está no fato de que esta punição ajuda na prevenção e na redução de crimes futuros – o que significa que o juiz deve voltar seus olhos para o futuro, enquanto uma questão de eficiência do sistema penal. Kant, entretanto, afirma que a única razão para punirmos alguém é o fato do indivíduo ter cometido um crime – a punição representa aquilo que a pessoa merece, e o juiz retributivista deverá ter em mente o delito, voltando seus olhos para o passado e para a 7 gravidade moral dos atos praticados. Temos, então, um dever absoluto de dar ao crime o devido castigo (MORRISON, 2012, p. 175-177). Por mais paradoxais que sejam as conclusões de Kant em alguns momentos de seu raciocínio (é difícil sustentar, por exemplo, um dever de dizer a verdade sob todas as circunstâncias), suas ideias ajudam a compreender e a dar uma resposta aos dilemas que nos são colocados pelo raciocínio meramente utilitarista. Wayne Morrison menciona, neste sentido, o caso do paciente do quarto 306. Imaginem um médico que se encontra em um hospital em que seis pacientes aguardam por um transplante de órgãos. Cada um precisa de um órgão diferente, e sem os transplantes, os pacientes morrerão. Entretanto, não há órgãos disponíveis. Mas temos um paciente no quarto 306 pronto para uma operação de rotina, com órgãos saudáveis. E se o médico utilizasse os órgãos desse paciente para salvar os demais? O paciente morrerá, mas salvará outros seis. Uma perspectiva utilitarista, muito provavelmente, nos levaria à conclusão de que esta seria uma medida adequada (MORRISON, 2012, p. 173). Nossa aversão a este tipo de conclusão, diria Kant, decorre justamente da afronta ao dever, que se encontra incrustado na razão humana – estaríamos tratando o paciente do quarto 306 como um meio, e não um fim em si mesmo. Isso afronta nossa humanidade de tal modo que, se adotássemos uma ótica utilitarista para resolver questões complexas de moralidade, não mais “valeria a pena” viver neste mundo. BIBLIOGRAFIA COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 287-304. KENNY, Anthony. História concisa da filosofia ocidental. Trad. de Desidério Murcho et alii. Lisboa: Temas e Debates, 1999, pp. 351-376. MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 155-181.
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